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As Duas Caixas Rubem Alves

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São Paulo, terça-feira, 27 de abril de 2010 
 
 
RUBEM ALVES 
 
As duas caixas 
FERNANDO Pessoa escrevia, lia o que escrevera e se assombrava. "Por que escrevi isto? 
Onde fui buscar isto? Isto é melhor do que eu..." 
Coisa parecida acontece comigo. Alguém me mostra um texto e diz que fui eu quem o 
escreveu. Leio-o, mas não o reconheço. É como se tivesse sido escrito por uma outra pessoa. 
Mas, à medida em que vou lendo, vou ficando alegre. É um texto bom, melhor do que eu! 
Faço então as mesmas perguntas que fazia Fernando Pessoa ao ler o texto que acabara de 
escrever. 
Sinto, então, vontade de publicar aquele texto de novo. Se ele surpreendeu a mim, é de se 
esperar que o mesmo aconteça com os leitores. E por que não? 
Sei que Freud achava que a compulsão à repetição é um sintoma neurótico. Mas essa não é 
toda a verdade. Digo que o desejo da repetição pode ser a reação da alma diante da beleza. 
Quero ouvir de novo a "Valsinha", quero ver de novo as telas de Carl Larsson, quero comer 
de novo um frango com quiabo mineiro, quero ver de novo os ipês floridos... 
Eu gostaria de publicar inteiros dois artigos que escrevi faz muito tempo. Eu os reli e gostei. 
Para que meus leitores saibam o que penso da educação. Como não posso publicá-los 
inteiros, vou publicar o essencial. E foi isso que escrevi: 
"Explicações conceituais são difíceis de se aprender e fáceis de se esquecer. Por isso, 
caminho sempre pelo caminho dos poetas, que é o caminho das imagens. Em vez de explicar 
por meio de conceitos abstratos, vou mostrar o que digo por meio de imagens. Quem 
aprender as imagens terá aprendido o essencial da minha filosofia de educação." 
"O corpo carrega duas caixas. Na mão direita, mão da destreza e do poder, ele leva uma 
caixa de ferramentas. E na mão esquerda, mão do coração e do prazer, ele leva uma caixa de 
brinquedos." 
"Os animais não precisam de ferramentas. Seus corpos são as ferramentas de que necessitam 
para viver. Diferentes dos animais, nossos corpos são fracos e incompetentes. Se fôssemos 
depender deles para sobreviver, como os animais, há muito teríamos desaparecido da Terra. 
A fraqueza e a incompetência obrigaram o corpo a pensar e a criar. E foi assim que 
inventamos porretes, pilões, facas, flechas, redes, barcos, casas, como extensões do corpo." 
"A primeira tarefa de cada geração, dos pais e das escolas, é passar aos filhos, como herança, 
a caixa de ferramentas. Para que eles sobrevivam e não tenham de começar da estaca zero." 
"Diante da caixa de ferramentas, a primeira pergunta que um professor tem de fazer é: "Isso 
que estou ensinando é ferramenta para quê? De que forma esse conhecimento aumenta a 
competência dos meus alunos para viver a sua vida?" 
Mas há uma outra caixa, na mão esquerda, a mão do coração e do prazer. Essa caixa está 
cheia de coisas inúteis que não servem para nada. Lá estão um livro de poemas da Cecília 
Meireles, a estória de "Alice no País das Maravilhas", um pé de jasmim, um quadro do 
Monet, uma sonata de Mozart, um banho de cachoeira, um beijo... Coisas inúteis. E, no 
entanto, elas são parte da vida e nos fazem sorrir. E não é para isso que se educa? Para que 
saibamos, além de viver, sorrir e ter prazer? 
Resumo da minha filosofia de educação: 
Primeiro, aprender ferramentas, para ter poder. 
Segundo: aprender os brinquedos, para ter prazer...

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