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Uma editora integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional Travessa do Ouvidor, 11 – Térreo e 6º andar – 20040-040 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 3543-0770 – Fax: (21) 3543-0896 faleconosco@grupogen.com.br | www.grupogen.com.br O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indenização cabível (art. 102 da Lei n. 9.610, de 19.02.1998). Quem vender, expuser à venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver em depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade de vender, obter ganho, vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para si ou para outrem, será solidariamente responsável com o contrafator, nos termos dos artigos precedentes, respondendo como contrafatores o importador e o distribuidor em caso de reprodução no exterior (art. 104 da Lei n. 9.610/98). Capa: Danilo Oliveira Fechamento desta edição: 04.05.2016 Produção Digital: One Stop Publishing CIP – Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. N876d Nucci, Guilherme de Souza Direitos humanos versus segurança pública / Guilherme de Souza Nucci. – Rio de Janeiro: Forense, 2016. Inclui bibliografia ISBN 978-85-309-7116-8 1. Direitos humanos. 2. Segurança pública. 3. Direitos fundamentais. I. Título. 16-32116 CDU: 342.7 1 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7 1.7.1 2 2.1 2.2 2.3 3 3.1 3.1.1 3.2 SUMÁRIO INTRODUÇÃO DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS Conceitos e terminologia Universalidade dos direitos humanos As guerras e o terrorismo Os direitos humanos na ordem interna Direitos humanos e direitos coletivos Direitos humanos e Internet Princípios e regras Direitos absolutos ou relativos DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E INTERLIGAÇÃO COM OS DIREITOS HUMANOS Dignidade da pessoa humana A proposta da interligação Algumas palavras sobre Kant SEGURANÇA PÚBLICA E SEGURANÇA INDIVIDUAL Segurança pública Marginalidade violenta Segurança individual 3.3 3.4 3.5 3.6 4 4.1 4.2 4.2.1 4.3 4.3.1 4.4 5 5.1 5.1.1 5.2 5.3 5.3.1 5.3.2 5.3.3 5.3.4 5.3.5 5.4 5.5 5.6 5.7 5.8 5.9 5.10 5.11 5.12 6 6.1 6.2 6.3 6.3.1 6.3.2 Segurança e legítima defesa social Explicação empírica da teoria das janelas quebradas Unificação das polícias Respeito à polícia e alternativas atuais CONFRONTO ENTRE DIREITOS HUMANOS E SEGURANÇA PÚBLICA Direitos humanos e segurança individual Direitos humanos e segurança pública Os abusos dos órgão estatais de segurança pública Colisão de direitos Colisão de direitos em face do princípio da dignidade da pessoa humana Mandados de criminalização e proibição ao retrocesso QUESTÕES POLÊMICAS DE DIREITO PENAL Legalidade Jurisprudência Cumprimento da pena Crimes contra a vida Homicídio, genocídio e extermínio Suicídio Aborto Eutanásia e variantes Fertilização in vitro Crimes sexuais Trabalho escravo Tortura Crime organizado Saúde e drogas Corrupção Discriminação Violência doméstica e familiar Direito penal do inimigo e terrorismo QUESTÕES POLÊMICAS DE PROCESSO PENAL Princípios: formais ou materiais? Judiciário, imparcialidade e mídia Prisão e liberdade Prisão cautelar Condução coercitiva e operações da polícia federal 6.4 6.5 6.6 7 7.1 7.2 7.2.1 7.2.2 7.2.3 8 8.1 8.1.1 8.1.2 9 10 Ampla defesa, recursos e a decisão do STF de cumprimento da pena após julgamento de 2º grau de jurisdição Ampla defesa e ações de impugnação Interceptação telefônica, sigilo e divulgação QUESTÕES POLÊMICAS DE EXECUÇÃO PENAL Direitos do preso Condições de cada regime Fechado Semiaberto Aberto QUESTÕES POLÊMICAS DE INFÂNCIA E JUVENTUDE Direitos da criança e do adolescente Adoção Internação CONCLUSÃO CONCLUSÃO ARTICULADA BIBLIOGRAFIA INTRODUÇÃO Pretende-se, por meio do título desta obra, evidenciar o seu propósito maior, que é fomentar o debate a respeito dos direitos humanos e de sua controversa relação com a segurança pública, sob o manto do Estado Democrático de Direito. A partir disso, explorar algumas das questões controvertidas no âmbito penal e processual penal, além de ingressar no cenário da execução penal e do direito da infância e juventude. Pode ser uma pretensão ousada, mas indiscutivelmente necessária, pois os escritos relativos às ciências criminais, mesmo os que invadem o terreno da criminologia, são carentes da discussão maior: afinal, os direitos humanos impedem a almejada segurança pública? Ambos se excluem? Ou se completam? Não se tem, hoje, a segurança pública ideal porque os infratores da lei penal possuem muitos direitos? Seriam estes os direitos humanos? Como situar a vítima do crime nesse universo? Visualizamos, no estudo precedente à composição deste trabalho, a imensa dificuldade de se encontrar artigos e obras científicas, no campo das ciências criminais, buscando esse alvo. Logo, caminhamos para o ambiente constitucional, onde a temática possui os devidos conceitos e definições, mas raramente se encontra a união de ambos para um embate, digamos, justo. Afora os constitucionalistas, conferimos uma literatura própria de direitos humanos (com suas designações similares: direitos fundamentais, direitos do homem, direitos subjetivos públicos, liberdades públicas etc.) e outra, cuidando de segurança pública. Por vezes, pareciam obras ou artigos adversários, dando a entender que, realizado um lado, prejudica-se o outro. Seriam antagonismos insuperáveis. A aliança entre os direitos humanos e a segurança pública encontra-se, ainda, distante de se consolidar. Eis o motivo pelo qual o tema é instigante, provocador e desafiador. É fundamental que se debata o fulcro da questão, inclusive por intermédio da análise de casos concretos. Observa-se, sob nomenclatura diversa, no Poder Judiciário, visto pelos seus próprios integrantes, mas também por outros operadores do Direito, a avaliação de Câmaras e Turmas como rigorosas (em tese, as que defendem a segurança pública) e liberais (em tese, as que prezam os direitos humanos). O mesmo perfil é traçado no tocante à figura do magistrado: aquele juiz é defensor dos direitos humanos; aquele outro é adepto intransigente da segurança pública. A visão captada pelo advogado, pelo promotor, pelo delegado, pelo defensor público ou dativo leva a uma análise distorcida do assunto, pois dá a entender que o juiz dos direitos humanos pouco se importa com a segurança pública, bem como que o magistrado, que preza a ordem pública, não se vincula aos preceitos humanistas. O equívoco sempre pareceu evidente, pois são os abusos trazidos pela lamentável radicalização de qualquer tema os verdadeiros culpados. A bem da verdade, o Brasil, por seus Três Poderes Republicanos, nem mesmo cultua umapolítica criminal definida, ora pendendo para a liberalidade excessiva, sem nexo, no cenário penal e processual penal, ora caminhando para o rigorismo ilógico, prevendo leis drásticas que, em geral, não funcionam. Na realidade, os integrantes do Poder Judiciário, salvo os radicalismos, cultuam o meio-termo, procurando respeitar os direitos humanos, ao mesmo tempo em que se tutela a segurança pública. Afinal, a sociedade clama por ordem, mas igualmente por respeito ao indivíduo. O Estado detém a força para utilizar contra a pessoa certa, que infringe a norma penal; prender, processar, condenar ou humilhar inocentes não se encontra entre as premissas do Estado Democrático de Direito. Em constante evolução, a humanidade passou por fases múltiplas, desde os tempos primitivos até a época contemporânea. Os seres humanos já experimentaram a selvageria implacável e constante até atingir o Estado de Direito, quando os abusos diminuíram, mas não foram eliminados. Eis o motivo pelo qual se diz que a humanidade ainda se encontra em plena evolução. As guerras do momento evidenciam o lado obscuro da personalidade humana, revelam os brutos e sádicos, expõem os radicais e frios assassinos, enfim, o homem no seu estado primitivo. Pouco importam as armas que carregam. O insensível soldado de qualquer causa tem um caráter particularmente sádico e, portando uma metralhadora de última geração ou um brutal e rude machado, faria o mesmo estrago contra seu inimigo (ou pretenso adversário). Há momentos em que um breve olhar pela História retira do estudioso dos direitos humanos qualquer esperança de paz e equilíbrio, do mesmo modo que uma rápida passagem por crimes célebres evidencia a imensa distância à qual está condenada a sociedade em face da ordem pública perfeita. Não se pode desistir de buscar o cuidadoso, equilibrado e ponderado meio-termo, pois é nesse cenário que se encontrará a solução para qualquer problema, em particular no confronto entre o indivíduo e o Estado, tendo a sociedade por expectadora. Linhas escritas por idealistas sugerem um mundo possível de ser alcançado ou levam ao descrédito de uma visão puramente utópica. Há idealistas dos dois lados da questão: defensores dos direitos humanos e da segurança pública. Parece fácil resolver certos dilemas, que envolvem ambos os aspectos, mas são poucos os autores que se atrevem a fornecer soluções para este tradicional embate, já existente há alguns séculos. Estudando-se os direitos humanos, louva-se o lado bom do ser humano. Visualizando-se as chamadas gerações dos direitos humanos, chega-se a atingir a terceira, que prega o direito à paz e até à solidariedade. É uma visão francamente otimista do mundo de hoje. Colhendo-se os dados referentes à segurança pública, observa-se a maldade humana crescente, um ódio inexplicável contra o semelhante, um prazer quase maldito de praticar delitos, a ponto de se decretar um nítido pessimismo para qualquer avaliação. Como compor esses anseios, aparentemente díspares e inconciliáveis? Ingressa-se no cenário da interpretação dos conceitos expostos de maneira linear por vários cientistas do direito justamente para encontrar as vias tortas e as trilhas sem saída de determinados temas. Procurar pelo impasse é o objetivo deste trabalho. Encontrando-o, ofertar sugestões, hipóteses de solução ou, pelo menos, uma visão a mais no conflituoso universo dos direitos humanos em franca dissensão com a segurança pública. Especula-se o direito à solidariedade, à fraternidade, à paz. Não seria também um dever do ser humano ser solidário, fraterno e pacífico? Em verdade, todos os direitos humanos geram deveres humanos contrapostos, pois se alguém tem direito à vida, é fundamental que outrem não a elimine. Tem-se direito à intimidade, enquanto outros têm o dever de não se imiscuir nessa privacidade. Eis um comezinho ensino de direito: a sua liberdade termina onde começa a do outro; o seu direito encontra fronteiras nos direitos alheios. No entanto, muitos não estão preparados para colocar em prática essas simplicidades do conhecimento jurídico, mesmo os próprios operadores do Direito e, pior, muitos magistrados. Esta é a parte na qual a pretensa adoção de uma posição inatingível, na prática, de paladino da segurança pública faz com que juízes falhem na sua atuação, negando direitos elementares ao indivíduo. Sob outro aspecto, muito se fala de segurança pública, e o assunto vem com algumas premissas equivocadas: cabe à polícia garantir a segurança de todos; o crime encontra elevados índices por ineficiência desta ou daquela polícia; a autoridade policial é culpada pelo caos social. Assim pensando, os paladinos dos direitos humanos queixam-se invariavelmente dos abusos policiais, sem nem mesmo prestar atenção nas baixas sofridas pelos agentes públicos, que também deixam famílias desesperadas, viúvas e muitos órfãos de pai ou mãe. Não cabe à polícia (civil ou militar) a segurança pública como um todo. A responsabilidade é de todos nós. Tornamos à questão inicial dos direitos humanos, digamos, mais difusos, como a solidariedade. Fosse esta cultivada pelo indivíduo, muitos males deixariam de existir e vários crimes poderiam ser evitados. Isso porque a crueldade encontra obstáculo na fraternidade; esta é uma verdade e não uma pregação. A filosofia em geral deleita-se em estabelecer conceitos e explicar situações com palavras e textos bem complexos e quase inexpugnáveis ao ser humano comum. Em linhas gerais, a escrita, em termos quase corporativistas, não é aspecto exclusivo da filosofia, mas assim também agem sociólogos, médicos, dentistas, engenheiros e, sem dúvida, o operador do direito. Debater direitos humanos e segurança pública exige um cenário mais aberto, que agregue leitores e não os expulse, razão pela qual parece um tema espinhoso para certas categorias. Pretende-se adotar, nesta obra, um vocabulário acessível, buscando o desapego à complexidade e, mais que tudo, procurando espelhar imparcialidade. Talvez seja somente um ideal, uma utopia, um propósito, que pode, ou não, ser atingido. Por outro lado, não se pode admitir a fuga do assunto, a pretexto de que é insolúvel ou que é inviável debatê-lo com imparcialidade. Desse modo, quer-se acreditar ser perfeitamente possível alcançar o objetivo traçado neste parágrafo. E se assim for feito, quer-se aclarar o embate, que julgamos contornável, entre direitos humanos e segurança pública. Para tanto, intenciona-se definir direitos humanos e sua terminologia correlata: segurança pública e segurança individual, assim como qual o direito e qual o dever de cada um nesse cenário, no âmbito individual e no tocante às instituições que lidam com a temática. Exposto o confronto entre os direitos humanos e a segurança pública, busca-se apresentar soluções por meio de casos concretos, que abarrotam os juízos e tribunais criminais de todo o país. Audácia à parte, julga-se perfeitamente viável uma composição amigável entre a segurança pública, desejo de todos, com o fiel respeito aos direitos humanos. Mas este é o objeto da conclusão – e não do início desta obra. Por certo, alguns temas podem ser adiantados, a título de ilustração. Constitui direito humano fundamental o direito à vida. Debate-se, no entanto, no próprio seio dessa matéria, o conceito real e atual de vida, seu início, sua duração e seu fim. Que vida seria essa? Diriam alguns: a vida digna; diriam outros: apenas a vida. Estabelece-se o confrontoconceitual de vida no meio dos debates relativos aos direitos fundamentais – não se relacionando à segurança pública. Porém, quando se toca no direito à vida da mulher, surrada pelo companheiro em pleno lar, atingem-se as raias do feminicídio, e essa violação do direito à vida transmuda-se para o espectro da segurança pública. A eutanásia (e suas variantes, ortotanásia, distanásia etc.) é um tema de direitos humanos ou de segurança pública? Como pode, ao mesmo tempo, ser praticada (ao menos a ortotanásia) em muitos hospitais brasileiros, sob concordância da mesma sociedade que almeja segurança – pública e jurídica? Afinal, ela não está expressamente autorizada em lei – ao contrário, configura o crime de homicídio pela letra do Código Penal, abalando a ordem pública. Outro lado dramático da violência doméstica concentra-se na elaboração de leis estapafúrdias e ilógicas, cuja parte penal desencontra-se do contexto processual penal, deixando o juiz em estado de apreensão. Autoriza-se a prisão preventiva para o agressor da mulher, processualmente falando. Ao mesmo tempo, vê-se, no dia a dia, constituir a imensa maioria dos casos de lesões corporais e ameaças, delitos cujas sanções são pífias (um mês, dois meses ou até simples multa). Como decretar a prisão preventiva de um agressor, por tempo indeterminado, se a prisão cautelar pode (e muitas vezes ocorre) ultrapassar o máximo de pena cominado ao delito cometido? Em nome do direito de tutela da integridade física da mulher – muitíssimo válido – afronta--se o princípio da legalidade, alcançando-se uma pena abusiva e inexistente no ordenamento. Paralelamente, alguns magistrados ainda não entenderam a gravidade da violência doméstica e continuam a conceder aos agressores as penas mais brandas possíveis, tais como restritivas de direito, muitas das quais – todos sabem – são inexequíveis (v.g., limitação de fim de semana), gerando a malfadada impunidade e distorcendo o campo da segurança pública. Em nível ideal, visualiza-se, em muitas Comarcas e Tribunais, magistrados incoerentes, que nem mesmo sabem o que defendem. Em primeiro lugar, encontram-se centenas (ou milhares) de decisões judiciais importantes (como a decretação de prisão cautelar) sem fundamentação ou com motivação tão singela quanto inútil. São todas proferidas em franco desrespeito à Constituição Federal. Deveriam ser anuladas, e o acusado, posto em liberdade assim que tocassem o solo do Tribunal, pela via do habeas corpus ou de um recurso. Mas não é essa a realidade, em nome da segurança pública. Termina o Tribunal suprindo a frágil argumentação do juízo de primeiro grau, com motivação sua, inexistente na decisão original. Um direito fundamental versus a ordem pública, embate do qual sai vencedora a segunda posição, quando, lamentavelmente, se está contrariando o próprio texto constitucional (todas as decisões judiciais serão fundamentadas). Em segundo, vê-se o magistrado atuando sem remorso ao decretar a prisão do marido agressor por meses a fio, quando seu único crime é o de ameaça, razão pela qual a pena, ainda que aplicada no máximo, não pode ultrapassar os seis meses. Penaliza-se, novamente, o direito individual à legalidade para privilegiar a segurança pública. Em terceiro, acompanha-se o magistrado que se julga “o” defensor dos direitos humanos, enquanto atua de maneira branda e rudimentar na defesa dos interesses dos mais fracos, como mulheres e crianças, no triste cenário da violência doméstica. Em quarto, há o magistrado preparado para soltar todo e qualquer acusado, sob o prisma da presunção de inocência, danificando o direito à segurança pública. Essas medidas extremadas, na prática, firmam a ilogicidade e a incoerência do pensamento de muitos integrantes do Judiciário. Parecem ter imensa dificuldade de trafegar na linha do bom senso; preferem adotar extremidades. Nem é preciso dizer que tais autoridades judiciais colocam a questão tratada nesta obra exatamente no embate que não deveria haver: direitos humanos versus segurança pública, havendo um vencedor e um vencido. Por quais trilhas caminha o justo? Em que bases se faz a esperada justiça? Quer-se acreditar, com firmeza, que jamais pelos extremos de qualquer questão criminal controversa. O justo é o ponderado; cuida-se do elemento de equilíbrio entre duas fontes de tensão; é o empate virtual entre detentores de interesses opostos. A justiça, de cuja imagem se serve a mulher de olhos vendados, não pode usar a sua força para consagrar e celebrar a incoerência, a inconstância e a parcialidade. Por certo – certíssimo até –, cada caso é um caso quando se torna concreto. Um roubo é sempre diferente de outro, ainda que os agentes estejam incursos no mesmo art. 157 do Código Penal. O Judiciário não pode valer-se, em hipótese alguma, de decisões padronizadas. Mas o que se expõe, nestas linhas, está longe disso. Indica-se a falta de visão do julgador em relação à repercussão de suas decisões; atém-se ao desapego da razão e da lógica; critica-se justamente a posição-padrão do juiz robotizado, que nem mesmo enxerga em diversos autos de processo coisas completamente diferentes (“um roubo é sempre um roubo”, dizem). Quer-se produção do juiz atualmente. Ele deve julgar cada vez mais rápido seus processos para que não se acumulem em seu gabinete. Justiça lenta não é justiça, diz-se. O que se observa, na prática, lamentavelmente, é a união na figura do julgador de lentidão e incoerência. Fosse pelo menos um magistrado de decisões céleres, permitiria, talvez, ao réu a chance de chegar mais rapidamente ao Tribunal e, quem sabe, corrigir o erro. Assim sendo, não vence nem a linha da segurança pública nem a dos direitos humanos, pois emerge a válvula da incapacidade de se voltar aos julgamentos com a dedicação indispensável. Estas linhas não têm a finalidade de discutir nem valorar a qualidade da atuação do Judiciário brasileiro, mas não pode e não ficará à parte do cenário gerador de desnecessários embates entre direitos humanos e segurança pública, pois indevidamente causados por magistrados despreparados para a sua função. Diante disso, é preciso frisar o que parece ser óbvio: magistrado não é, nem deve ser, justiceiro ou guardião da ordem pública. Se nem mesmo a polícia é a única responsável pela segurança pública, com maior razão, espera-se o magistrado absolutamente imparcial nesse falso embate. Por outro lado, também não é o juiz o defensor dos oprimidos socialmente, nem o advogado do pobre ou discriminado réu. Se não se aguarda do advogado a posição paternalista de cuidador dos interesses do acusado, extra- autos, naturalmente não cabe ao julgador ingressar nessa questão. Como um argumento toca outro – esse é o famoso dilema do Direito –, chega-se à origem do crime e aponta-se, de pronto, porque fácil, a desigualdade social, o capitalismo selvagem, o abismo entre as classes etc. Mas também não é objetivo desta obra debater a fonte do delito, pois ela é variada e não se calca exclusivamente na pobreza material. Aliás, basta ver a podridão reinante no universo dos economicamente favorecidos nas inúmeras operações policiais do momento vivido pela nação. Noutros termos, a sociedade quer segurança e também respeito aos direitos humanos, pois ambos os temas foram inseridos na Constituição Federal. Espera-se um Judiciário imparcial e dedicado, porque também constitucionalmente previsto como tal. Eis os motivos pelos quais não é possível cultivara trágica disputa entre direitos humanos e segurança pública. Pior, é preciso dar um basta na atuação extremada de magistrados que não têm equilíbrio para atuar com imparcialidade. Se esta fosse realmente cultivada, aqueles importantes direitos jamais entrariam em choque. Fazer triunfar a justiça, concretizar o justo é igualar as forças dos direitos humanos e da segurança pública, colocando-os todos na mesma trilha. Outros pontos polêmicos, além dos ilustrados acima, serão abordados neste trabalho, até que se atinja a conclusão, sugestiva de uma composição amigável entre todos os interesses constitucionalmente tutelados no Brasil na área criminal. Durante o nosso período de pesquisa para a composição destas linhas, ficou marcada a manifestação de D. Paulo Evaristo Arns, quando um repórter lhe perguntou qual a razão da existência humana. De maneira prudente, equilibrada e sensata, o cardeal respondeu haver duas concepções humanas: a) “você passa, mas fica na memória de seu filho, seu neto, seus amigos. Depois passou tudo”; 1. b) “considerar que você é responsável por todo o futuro; você ser responsável por tudo o que acontece”. Na primeira, “não vale a pena passar pela vida porque o que ela oferece de gozo é tão pouco, em comparação com o que ela oferece em tarefas, em dificuldades, em lutas etc.” Na segunda, você contribui para fazer justiça; tem importância. “A maioria dos homens se contenta com essa memória curta: cuidar bem dos netinhos, dos filhos, para depois ter uma velhice mais ou menos e desaparecer. Isto é viver de sobremesa. Mas quem quer mesmo viver da História, deve acreditar na justiça da História”.1 Há muito, optamos pela segunda opção, embora tenhamos prazer em cuidar bem da família. Sentimo-nos, intrinsecamente, ligados a viver a História, tanto quanto cremos na Justiça, praticamos justiça e escrevemos linhas atreladas à justiça. É o que se introduz. Em defesa dos direitos humanos. Encontro com o repórter, p. 149. 1.1 1 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS Conceitos e terminologia Em épocas primitivas, não se falava de – e muito menos se praticava – direitos humanos. A selvageria e a barbárie tomavam conta da relação humana de tempos pretéritos, fomentando apenas o desejo incontrolável de dominação do homem pelo homem e deste no tocante ao mundo ao seu redor. “Nessa sociedade onde a violência física era corriqueira e banalizada, não havia autoridade central suficientemente forte para obrigar os indivíduos a se controlarem”.1 Imprescindível mencionar a lição de Helio Bicudo: “a luta pelo reconhecimento desses direitos é, pois, uma constante na história da humanidade, pois, se de um lado é certo que a opressão dos mais fracos pelos mais fortes vem sendo a característica de todos os regimes políticos, desde quando, primitivos, impunham-se no interior das cavernas, até os dias que hoje correm, mais sofisticados e por isso mesmo mais opressores, de outro, o inconformismo com a sujeição e todas as formas de arbítrio é marca predominante do ser humano”.2 José Adércio Leite Sampaio completa: “o fanatismo, a ignomínia da guerra e a injustiça parece que habitam nossos arquétipos como teste de uma passagem tão longa quanto o tempo que vem do primogênito Adão aos dias em que vivemos”.3 A luz no horizonte surgiu com a afirmação dos direitos humanos, como uma esperança nas contendas ilimitadas existentes entre os habitantes do Globo.4 “Os primeiros a apontar a igualdade entre os seres humanos foram os sofistas no século V a.C. Esses filósofos, contemporâneos de Sócrates, foram criticados por duas atitudes muito impopulares entre os pensadores de seu tempo: cobravam por ensinar geometria, gramática e retórica (foram os primeiros na história que cobraram para ensinar) e não se preocupavam tanto de desvincular o sentido da realidade, como de buscar e utilizar argumentos para persuadir, condicionar ou manipular a opinião de seus ouvintes (daí o termo sofista venha empregado para qualificar a quem utiliza argumentos aparentemente verossímeis para enganar)”.5 “Na Grécia e Roma existiu uma mentalidade que entendia que no começo do mundo todos os homens haviam sido igualmente livres e que nenhuma coisa havia sido propriedade de ninguém. (...) Essas ideias passaram a Roma e os juristas e literatos romanos chamaram a esta ‘primeira constituição das coisas’ naturais, natura, e também jus naturale. (...) Não entendiam que a liberdade se fundamentava no direito natural – como diríamos hoje – senão que a liberdade de cada homem era o mesmo direito natural, o que o direito natural constituía a liberdade individual”.6 Certamente, nunca houve conformismo diante do quadro de violência gratuita contra indivíduos e suas famílias, em particular pelos povos dominados e por conta das pessoas presas, torturadas e mortas. Familiares desesperados; cidades inteiras destruídas e campos queimados constituíam cenário conhecido no longo tempo das trevas.7 Por isso, com o passar dos anos, vários documentos foram elaborados, em diferentes pontos do Globo, na tentativa de conter os abusos e o ilimitado poder dos soberanos, chefes e governantes em geral.8 Nas palavras de Rodríguez Puerto e G. Robles, “os ‘direitos humanos’ se chamavam antigamente ‘direitos naturais’ (iura naturalia, natural rights, droits naturels, natürliche Rechte, diritti naturalli). Este último nome indica a procedência desses direitos: a mãe natureza. Designam direitos que o ser humano possuiria pela simples razão de ter uma natureza humana. Por isso, foram denominados, mais tarde, ‘direitos humanos’ (humana iura, human rights, droits de l’homme, Menschenrechte, diritti umani). São direitos que o homem tem por ser homem. Trata-se, pois, de um conceito filosófico, de caráter moral e político, e que como é lógico envolve toda uma concepção antropológica. Devido a isso, é um conceito ideologizado”.9 Porém, toda e qualquer discussão doutrinária acerca da origem dos direitos humanos volta-se, quase sempre, ao direito natural, pois é elementar à própria concepção do ser humano como indivíduo. Na ótica de Elaine Cristina Pardi e Marcelo José Grimone, “essa abordagem do direito natural, que tem início na filosofia grega, como emanação da própria natureza, sendo invariável no tempo e no espaço, insuscetível de mudanças pelas opiniões individuais ou pela vontade do Estado, como abordado em Aristóteles, Cícero e principalmente pelos estoicos, compreende a primeira fase da teoria do direito natural ou jusnaturalismo”.10 Trata-se, também, de dogmas lançados pelas concepções judaico-cristãs a respeito da natureza humana, que indica ter sido o ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, motivo pelo qual possui individualidade e cada um deve amar o próximo como a si mesmo. Parece-nos plausível e complementar à história humana conceber o indivíduo como um ser racional diferenciado dos animais e das coisas; portanto, não se há de pautar exclusivamente em dogmas religiosos para compreender o universo natural dos direitos humanos. Um dos mais importantes documentos, pois trouxe à baila vários direitos essenciais à liberdade humana que hoje ainda são cultuados, é a Magna Carta, assinada em 1215 pelo rei João Sem Terra, restringindo seu próprio poder. Sabe-se não constituir um documento de interesse de todo o povo inglês, naquela época, mas sobretudo dos barões, que ameaçavam iniciar uma guerra sem precedentes. Pouco importa a motivação, visto ter sido alcançado um nívelde tutela, em pleno século XIII, dificilmente imaginado nos tempos atuais. Apenas a título de ilustração, nessa Carta emerge o princípio da legalidade penal – não há crimes ou penas sem lei –, o que resultou, igualmente, no princípio regente do devido processo legal. Inicialmente, cuidou-se da expressão by the law of the land, ou seja, ninguém seria punido se não fosse pela lei da terra, em verdade, os costumes (autêntico direito consuetudinário). Posteriormente, a expressão alterou-se para due process of law, vale dizer, o devido processo legal, abrangendo vários direitos correlatos, inclusive, e mais tarde, o processo justo. Há sempre uma parcela da doutrina a questionar a crucial importância e vitalidade da Magna Carta como o principal documento de direitos humanos até hoje editado. No entanto, é ela o texto mais importante do cenário da dignidade humana, ao menos conhecido e provado, que pode ser lido hoje e faz parte da Constituição não escrita do Reino Unido. “As cláusulas 20 e 21 lançam bases do tribunal do júri, bem como do princípio do paralelismo entre delitos e penas, dando início, com isto, ao lento processo histórico de abolição das penas criminais arbitrárias ou desproporcionais (...) A cláusula 39, geralmente apontada como o coração da Magna Carta, desvincula da pessoa do monarca tanto a lei quanto a jurisdição. Os homens livres devem ser julgados pelos seus pares e de acordo com a lei da terra. Eis aí, já em sua essência, o princípio do devido processo jurídico (due process of law), expresso na 14ª Emenda à Constituição norte-americana e adotado na Constituição Federal brasileira de 1988 (art. 5º, LIV: ‘ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal’). O princípio é reafirmado para determinadas situações particulares, nas cláusulas 52 e 55”.11 “Se essa Carta, por um lado, não se preocupa com os direitos do Homem mas sim com os direitos dos ingleses, decorrentes da imemorial law of the land, por outro, ela consiste na enumeração de prerrogativas garantidas a todos os súditos da monarquia. Tal reconhecimento de direitos importa numa clara limitação do poder, inclusive com a definição de garantias específicas em caso de violação dos mesmos. Note-se que na Magna Carta aponta a judicialidade um dos princípios do Estado de Direito. De fato, ela exige o crivo do juiz relativamente à prisão do homem livre”.12 Seguiram-se outros documentos de relevo, como a Carta de Direitos ou a Lei do Habeas Corpus, até se atingir a época do Iluminismo, trazendo novos pensadores, além de fomentar a Revolução Francesa voltada ao absolutismo do soberano. O primeiro documento mais específico dos direitos humanos foi a Declaração de Direitos da Virgínia (1776).13 No dizer de Fábio Konder Comparato, “a característica mais notável da Declaração de Independência dos Estados Unidos reside no fato de ser ela o primeiro documento a afirmar os princípios democráticos, na história política moderna. A própria ideia de se publicar uma declaração das razões do ato de independência, por um ‘respeito devido às opiniões da humanidade’, constituiu uma novidade absoluta. Doravante, juízes supremos dos atos políticos deixavam de ser os monarcas ou os chefes religiosos, e passavam a ser todos os homens indiscriminadamente. (...) Na concepção dos chamados Pais Fundadores dos Estados Unidos, a soberania popular acha-se, assim, intimamente unida ao reconhecimento de ‘direitos inalienáveis’ de todos os homens ‘entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade. (...) O conceito de felicidade (eudaimonia, literalmente, ter um bom espírito guardião) da filosofia grega está intimamente ligado a uma vida virtuosa e, por isso, era bem distinto da noção puramente objetiva e sentimental que o termo adquiriu na idade moderna”.14 E prossegue o autor, em relação à proclamação de abertura da Convenção de Filadélfia (1787), em que foi votada a Constituição americana, asseverando que todos os seres humanos são, pela sua própria natureza, igualmente livres e independentes, dando o tom de todas as grandes declarações de direitos do futuro, como a francesa de 1789 e a Declaração Universal de 1948, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas.15 Quanto à Declaração de Direitos da ONU, inaugurou o direito internacional dos direitos humanos. Fundou a concepção atual dos direitos humanos.16 O ser humano passa a ter direitos, ao menos formalmente. Esses direitos não possuem fronteiras; ao contrário, são universais, envolvendo todas as comunidades e nações. Como já mencionado, a respeito da origem dessa terminologia, aponta-se a filosofia judaico-cristã no sentido de que Deus criou o homem à sua imagem e, por isso, deve ser respeitado e amado.17 Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento encontram-se estampadas essas leis divinas.18 O ponto chave é decifrar o conteúdo e o alcance dessa tão famosa quanto difundida expressão: direitos humanos. Naturalmente, em termos de absoluta simplicidade, são os direitos do ser humano. Porém, dito isso, ausente está a definição, e também o seu alcance. Deve-se ponderar que os direitos humanos, em primeiro lugar, são os exclusivos do ser humano, afastando-se coisas e animais. Em segundo, hão de ser os direitos básicos, sem os quais o ser perece. Começa-se a encontrar um significado mais profundo, estabelecendo algumas fronteiras. Os direitos de primeira geração ou dimensão advêm do jusnaturalismo, a ponto de posições mais conservadoras defenderem que somente esses são direitos humanos. São os únicos direitos universais e válidos.19 Os direitos humanos, hoje ligados estreitamente ao princípio da dignidade da pessoa humana, são os essenciais a conferir ao ser humano a sua máxima individualidade dentre todas as criaturas existentes no planeta, mas também lhe assegurando, perante qualquer comunidade, tribo, reino ou cidade, condições mínimas de respeito à sua integridade físico-moral e de sobrevivência satisfatória. Muito além não se consegue – nem se deve – ir em conceito tão amplo quanto relevante para ser respeitado e seguido. Uma definição extremamente fechada, repleta de minúcias, poderia pecar pela ausência – falível – de algum ponto importante olvidado no momento de sua elaboração. Tratando-se de conceito exaustivo, poder-se-ia afastar algum direito básico do qual não se poderia, em sã consciência, abrir mão. Sob outro aspecto, uma definição abusivamente aberta, como dizer serem todos os direitos atribuídos somente ao ser humano, terminaria pela queda no vazio, na ausência de leis postas, bem como se pode atingir, igualmente, a submissão do que é essencial ao que é simplesmente legal. “Na necessidade de se adotar uma definição concisa, entendo por direitos humanos um conjunto mínimo de direitos necessários para assegurar uma vida do ser humano baseada na liberdade, igualdade e na dignidade”.20 Preferimos um conceito aberto de direitos humanos, permitindo-se que o intérprete o penetre, dele extraindo a essência, mutável, por certo, de tempos em tempos. Ademais, não são muitos os direitos que conferem e legitimam ao ser humano a sua individualidade como tal, garantindo--lhe respeito físico e moral, além dos bens materiais suficientes à sua sobrevivência. Ao longo dos anos, a doutrina cunhou termos diversos para os direitos humanos, tais como: direitos fundamentais,21 direitos da pessoa humana, direitos humanos fundamentais, direitos públicos subjetivos,22 liberdades públicas,23 direitos individuais, direitosdo homem e do cidadão, direitos naturais, direitos constitucionais, direitos civis etc.24 “Se os direitos humanos têm um caráter histórico evidente, é lógico que os mesmos assumam diversos modos de positivação ao largo do tempo e segundo as distintas circunstâncias nos diferentes sistemas jurídicos que lhes reconheçam a existência. Falar de direitos fundamentais ou de direitos constitucionais remete aos distintos modos com que os Estados de Direito têm reconhecido a existência e importância radical dos direitos humanos”.25 Divide-se hoje a maioria da doutrina entre as seguintes expressões: direitos humanos e direitos fundamentais.26 Afirma-se que esta última expressão advém – e é certo – do positivismo. São direitos fundamentais os que forem assim reconhecidos por tratados, convenções, constituições, enfim, normas expressas. Outros direitos, considerados essenciais, mesmo não estando explícitos por um texto, podem ser classificados como direitos humanos.27 Há os que preferem considerar direitos humanos os universais, envolvendo toda a humanidade, pouco importando o local do Globo. Logo, hão de estar previstos em tratados e convenções. Por outro lado, os direitos fundamentais são os previstos pelo direito interno; em nosso caso, a Constituição Federal. Diante disso, surgem os que preferem conciliar, denominando os direitos individuais, previstos constitucionalmente, como direitos humanos fundamentais. Cremos mais acertada a posição de acolhimento da terminologia dos direitos humanos, como os direitos universais do ser humano, reconhecidos como tais nacional e internacionalmente (v.g., o direito à liberdade). Geralmente constam, pelo menos, em tratados e convenções internacionais, podendo estar, também, na Constituição Federal. São, em nossa visão, direitos fundamentais os que, formalmente, forem assim considerados pela Constituição Federal.28 De qualquer forma, a adoção da expressão direitos humanos, muito mais vinculada à sua fonte original, conectada à dignidade da pessoa humana, tem o condão de expressar a sua fonte jusnaturalista. Essa corrente de pensamento preza a moral, a ética e não se preocupa tanto com as leis escritas. Os positivistas, sob outro ângulo, preferem a expressão direitos fundamentais, pois estes constituem exatamente o conteúdo da lei, que é a vontade do legislador e, em sociedades civilizadas, é justamente o que importa. O próprio Estado Democrático de Direito é erguido em bases positivistas. Porém, embora o Positivismo tenha adeptos de renome (vide Hans Kelsen, por exemplo), não nos parece a mais adequada trilha a percorrer em matéria de direitos humanos. Imagine-se, para argumentar, que a Constituição Federal tenha omitido, no art. 5º, que cuida dos direitos individuais, o direito à vida. Em nosso entendimento, continuaria a ser um direito humano indispensável. Ademais, soa mais plausível que os direitos humanos liguem-se à moral e à ética, pois seu conceito é aberto.29 Rodríguez Puerto e G. Robles afirmam que, para Bobbio, “o realmente importante neste assunto é a realização prática dos direitos e não as especulações teóricas acerca de sua fundamentação”.30 Não deixa de ser uma fórmula facilitada para prestigiar os direitos humanos, sem necessidade de abrir mão de uma linha positivista. Na realidade, jamais se deve perder de vista o jusnaturalismo, privilegiando apenas o positivismo, pois os direitos humanos têm raízes indiscutivelmente naturais. Conforme o direito codificado ganha terreno em todo o mundo, há que se compor as duas vertentes. Nesse prisma, confira-se a lição de Alexandre de Moraes: “a necessidade de interligação dessas teorias para plena eficácia dos direitos humanos fundamentais, conforme já visto, foi exposta no preâmbulo da Constituição francesa de 03/9/1791, quando se afirmou: ‘o povo francês, convencido de que o esquecimento e o desprezo dos direitos naturais do homem são as causas das desgraças do mundo, resolveu expor, numa declaração solene, esses direitos sagrados e inalienáveis”.31 É também a visão de Marcus Vinicius Ribeiro: “ambas as posições, levadas ao extremo, não resolvem a necessidade de proteção dos direitos da humanidade. É que na posição jusnaturalista não existe uma garantia para o indivíduo: nunca ficou claro qual é o estatuto das leis naturais. Este entendimento pode criar insegurança e só contemplar como sendo direitos fundamentais os que forem convenientes aos detentores do Poder. Em outras palavras, não se saberá quando realmente se trata de um direito do indivíduo ou não. Fica ao mero critério de quem o aplica (ou não). Além disto, é necessária uma consagração normativa para que a pessoa possa buscar seu direito. Por fim, não há direito sem obrigação e não há direito nem obrigação sem norma de conduta. De uma obrigação moral não nasce uma obrigação jurídica. Ter um direito sem previsão de sanção, devido à possibilidade de descumprimento e pela ausência de formas de se buscar a respectiva proteção, é o mesmo que não ter. Não basta reconhecer que as pessoas possuem direitos, se não existirem formas de fazê-los valer, sendo que isto só se consegue através do ordenamento jurídico”.32 Esclarece Friedrich Müller que “um bom termo guarda-chuva para o primeiro critério é ‘direitos fundamentais’. Estes incluem direitos humanos em relação aos quais toda pessoa é detentora (como no campo da dignidade humana, assim como liberdade de opinião e religião), e direitos civis. Os últimos são aplicáveis aos cidadãos do Estado (como direito de reunião e associação, direito de votar e ser votado para cargo público)”.33 Seria interessante utilizar o termo guarda-chuva (direitos fundamentais) se, realmente, ele abrangesse todos os direitos humanos, mais os direitos civis (estes estampados em leis 1.2 escritas). No entanto, parcela considerável da doutrina aponta a expressão direitos fundamentais somente como sendo os direitos humanos normatizados. Eis, então, a exclusão do guarda-chuva de outros direitos humanos essenciais, que ainda não encontrem guarida no Texto Constitucional. Não há a menor dúvida de que o rol de direitos individuais previstos no art. 5º da Constituição de 1988 não capta somente direitos humanos fundamentais materiais, autênticos, universais. Observe-se, como exemplo, o direito de não ser criminalmente identificado, desde que haja prévia identificação civil, na forma da lei (art. 5º, LVIII, CF). Pode ser considerado um direito fundamental, pois constante da listagem do referido art. 5º, mas nunca será acolhido como um direito humano de caráter universal. Nem mesmo consta de outros Documentos internacionais de direitos humanos. Cuidou-se de um capricho do constituinte brasileiro, em época pós-ditadura militar, quando um general reformado foi convocado por determinado delegado ao formal indiciamento; a autoridade policial, abusivamente, alertou a imprensa para filmar e fotografar o militar, que fora autoridade de relevo tempos antes, a tocar piano (expressão vulgar, utilizada para denominar a colheita da impressão dactiloscópica por meio da aposição dos dedos do indiciado em almofadas de tinta, passando-se em seguida a estampar dedo por dedo no papel, como se estivesse a tocar piano). O caso repercutiu em Brasília, pois se desenvolvia exatamente na época a Assembleia Nacional Constituinte, cuja função era elaborar a novel Constituição brasileira, nos idos de 1987 e 1988. Imagina-se tenha o parlamentar ficado temeroso de que, um dia, a mesma situaçãovexatória pudesse envolvê-lo. Insere-se, então, o inciso LVIII, com a previsão de estar o assunto disciplinado em lei. Depois de muitos erros judiciários, por falsas identificações extraídas apenas do documento civil (RG), duas leis foram editadas, vigorando, hoje, a Lei 12.037/2009, em que se pode constatar, no art. 3º, a facilidade com que a autoridade pode lançar mão da identificação criminal, mesmo existindo a civil. Noutros termos, não é, nunca foi e nunca será um direito materialmente fundamental o disposto nesse inciso LVIII do art. 5º da Constituição Federal. Completamente diversa é a situação do inciso XXXIX, que repete o consagrado princípio da legalidade: não há crime nem pena sem prévia lei. Trata-se de direito humano fundamental autêntico. Previsto em documentos internacionais, também o é na Constituição de 1988 e não se pode imaginar um Direito Penal sem legalidade; ao menos, no Estado Democrático de Direito. As raízes filosóficas dos direitos humanos remontam ao Humanismo – corrente de pensamento fundada sobre a afirmação da dignidade humana, considerando que todo ser humano é possuidor de uma dignidade ontológica pelo mero fato de sê-lo, independente de qualquer outra circunstância.34 A trajetória dos direitos humanos cruza a linha da dignidade da pessoa humana. Esta, como princípio geral regente de outros. Aqueles, como princípios subalternos ou regras a seguir. Universalidade dos direitos humanos Há quem sustente deva-se analisar o cenário dos direitos humanos, mundo afora, sob enfoques regionais ou delimitados. Noutros termos, o que pode ser um direito consagrado na Europa, pode não ser no continente africano. Mesmo dentro de um continente, determinada nação pode adotar práticas incomuns em outras, mas que são representativas de seus costumes seculares.35 Assim, para se respeitar a natural disparidade de hábitos entre seres humanos, não se poderia condenar como agressor o sujeito que seguisse uma regra consuetudinária em sua comunidade, alegando infração aos direitos humanos. Uma vítima, em determinado ponto do Globo, pode ser um algoz noutra parte. Lê-se em Boaventura de Sousa Santos que, “para tornar mais claro o que tenho em mente, passo a definir o que considero ser a versão hegemônica ou convencional dos direitos humanos. Considero um entendimento convencional dos direitos humanos como tendo as seguintes características: os direitos são universalmente válidos independentemente do contexto social, político e cultural em que operam e dos diferentes regimes de direitos humanos existentes em diferentes regiões do mundo; partem de uma concepção de natureza humana como sendo individual, autossustentada e qualitativamente diferente da natureza não humana; o que conta como violação dos direitos humanos é definido pelas declarações universais, instituições multilaterais (tribunais e comissões) e organizações não governamentais (predominantemente baseadas no Norte); o fenômeno recorrente dos duplos critérios na avaliação da observância dos direitos humanos de modo algum compromete a validade universal dos direitos humanos; o respeito pelos direitos humanos é muito mais problemático no Sul global do que no Norte global”.36 Cuida-se de tema delicado e até mesmo de interpretação tormentosa, pois se está lidando, em verdade, com um confronto forjado. Provoca-se o embate, na realidade, entre a ignorância, a falta de civilidade, o atraso educacional, dentre outras deficiências, e os direitos humanos, desenvolvidos ao longo de séculos, à custa de muito sofrimento humano, cultivado, hoje, na quase totalidade dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Não se deve descer o degrau do conhecimento, afastando juízos de valor consagrados, a fim de preservar um costume qualquer, na verdade, uma barbárie, vinda de outras gerações e somente perpetuada por falta de nível educacional, subdesenvolvimento e até mesmo por conta de questões político-ideológicas. Ilustrando, se num determinado país ainda se corta a mão de quem furta algo, isto não significa preservar um costume, deixando de considerar o ato – mesmo estatal – uma infração aos direitos humanos. Se, noutras terras, a mulher considerada adúltera deve ser apedrejada, em ato público, até a morte, extraído tal ato de leis religiosas ou mesmo de costumes arraigados, também não significa tachar de normal o abuso, sem uma nítida oposição dos organismos internacionais, pois regra violadora dos direitos essenciais do ser humano.37 Celso D. de Albuquerque Mello explica que “a própria ideia de universalidade que vai ser defendida pelo Iluminismo é, infelizmente, de difícil realização. Um exemplo típico é o da extirpação do clitóris das meninas em certos povos da África subsaárica, a fim de que a mulher ao perder o prazer não venha a trair o seu futuro marido. Para nós, é uma violação dos direitos humanos, por exemplo, o da integridade física. Entretanto, para tais povos isto faz parte de sua cultura e a própria ordem jurídica 1.3 internacional defende a diversidade cultural”.38 A universalidade dos direitos humanos pode ser de difícil realização, até mesmo de complexa aplicação em todos os pontos do Globo, embora se queira andar para frente e não pregar ou sustentar a involução ou o retrocesso. Portanto, tamanha violência contra a mulher é visivelmente uma agressão, que, embora possa ser tida por costume ou ter outra base cultural, não afasta o abuso estatal ao permitir tal conduta, deixando de punir seu executor. Se tais povos ainda se interessam em cultivar o machismo e a violência contra a mulher, desculpas inexistem, a não ser a ignorância e o subdesenvolvimento. Cabe à comunidade internacional intervir, na medida do possível, para levar aos incautos os conceitos de direitos humanos, além de promover o desenvolvimento local ou regional, como se vê, hoje, viável, num mundo cada vez mais globalizado. Considerar os direitos humanos de natureza universal nada mais é do que igualar todos os seres humanos viventes no planeta.39 Note-se, por exemplo, a consideração que se tem pelo direito à vida. Este bem jurídico de primeira grandeza é respeitado, como tal, em quase todas as comunidades e assim deve acontecer, igualmente, aos direitos menos conhecidos, como a igualdade dos sexos, o respeito à integridade física e a preservação do ser humano de punições cruéis. As guerras e o terrorismo Ao longo da História, várias guerras dizimaram milhares de seres humanos, desprezando-se nesses conflitos inúmeros direitos humanos. O terrorismo não fica atrás, porque os atos violentos castigam pessoas inocentes e destroem bens jurídicos preciosos. Em ambas as situações – guerra e terrorismo – nem sempre os motivos são claros. Os governantes e os autores de atos terroristas evocam fundamentos pífios para conduzir seus compatriotas a destruir pessoas humanas, sob razões econômicas, religiosas, ideológicas, dentre outras. Em poucos casos, a guerra foi a última opção ou até mesmo foi travada em nome de um ideal maior. O terrorismo nem mesmo possui qualquer justificativa válida, pois é uma guerra inominada contra inimigos indeterminados, que ora estão num local, ora noutro; ora há um motivo determinado, ora prevalece um dogma qualquer. Trata-se de uma conduta humana inexplicável sob o ponto de vista racional. Inexiste justificativa para o resultado desse ódio, camuflado em ato de fé ou de luta por qualquer causa, geralmente absurda. Sacodem-se os direitos humanos de inúmeros inocentes à custa de discursos temerários, lastreados em interpretaçõestendenciosas de textos religiosos ou não, mas que jamais foram escritos para tal finalidade. José Carlos Buzanello narra: “é assim, por exemplo, que pode ser interpretada a declaração de Bin Laden: ‘as torres gêmeas eram alvos legítimos (...). Não se destruíram somente as torres. Mas também os pilares da moral nesse país’. Esse ataque terrorista estaria dirigido, então, contra o que talvez seria o pior da civilização ocidental representada pelos EUA: o fetiche hedonista individualista ali predominante, o triunfo duma virtude per si, de si e para si, ou do cada um por si, baseada na obtenção do prazer e numa agressiva concorrência nas relações humanas oriundas de uma felicidade materialista, marcada pelo consumo e o mercado. E tudo isto, em nome de valores opostos, da necessidade de uma consideração pelo próximo, de laços humanos não materiais, oriundos num puro ‘intuitivismo’ irracionalista-espiritualista, numa interpretação dogmática da religião (o Islã) e, em códigos e costumes muito rígidos que dela derivam e, que representariam a total antítese daqueles valores do Ocidente liberal e individualista. Os islamitas mais radicais, em nome de uma interpretação ortodoxa da religião, procuram islamizar a modernidade naqueles países árabes e muçulmanos considerados traidores porque se modernizaram à moda ocidental. Obviamente, nesta ‘guerra’ contra a modernização ocidentalizante do Islã, se impõe para eles a necessidade de minar as bases morais-éticas, hedonista e utilitarista, daquela potência, os EUA, que as apoia, e que constitui o modelo mais bem-sucedido e/ou acabado de modernidade assentado nessas bases”.40 Terrorismo e direitos humanos são aspectos da vida diametralmente opostos. Sob outro ponto de vista, assinala Albuquerque Mello constituir “a guerra talvez a violência na maior escala que o homem tenha conseguido produzir. As guerras surgem por fatores econômicos, políticos, religiosos, culturais etc. Cada guerra tem a sua história, mas ela sempre existiu, existe e continuará a existir ‘é a violência que se opõe à paz’. A guerra é apenas um processo de canalização daquela”.41 E conclui: “a guerra parece ser mesmo algo enraizado no ser humano e fazer parte da sua natureza através de um instinto de agressão ou de violência”.42 Historicamente, constata-se esse instinto violento inerente ao ser humano. Alguns o controlam e vivem em sintonia com a civilidade; outros o extravasam e terminam por provocar danos sérios. Porém, quando a tendência violenta eclode em líderes, com poderes para implementá-la, emergem as guerras, tão tolas quanto selvagens. Seria o Estado o maior violador dos direitos humanos?43 Em números, talvez. Afinal, basta considerar o número de pessoas dizimadas numa única guerra. O mundo encontra-se em baixo padrão de moralidade e respeito aos direitos humanos; tanta evolução tecnológica ainda não serviu para acalmar a violência interior de muitos.44 O grau educacional ganha peso na comunidade internacional, embora termine servindo, infelizmente, apenas a interesses econômicos com certa exclusividade. Quando as guerras cessarão? Por que os seres humanos, com cultura, inteligência e poder, preferem fugir ao diálogo, lançando mão da força? Essas são indagações passíveis de levar a inúmeras outras reflexões; uma delas, no entanto, parece visível: progresso econômico não é sinônimo de civilidade e moralidade. Por isso, povos aparentemente cultos vão à guerra motivados por interesses inconciliáveis com os direitos humanos, pois apegados à ganância, ao egoísmo, ao materialismo, enfim, a toda sorte de motivos capazes de afugentar os mais comezinhos preceitos éticos de respeito à pessoa humana. Não significa que, por ser assim há muito tempo, devamos aceitar passivamente tais eventos. Cabe a cada um fazer a sua parte; uma das tarefas é cultuar, como indivíduo, uma conduta regular, respeitosa e solidária, demonstrativa do justo e moralmente elevado. 1.4 1.5 Os direitos humanos na ordem interna Estão previstos, basicamente, no art. 5º da Constituição Federal, logo, possuem o status de normas constitucionais, que estão acima de outras leis. Porém, o § 2º do art. 5º abriu a viabilidade de se acolher outros direitos e garantias, não expressos no Texto Maior, embora decorrentes do regime, dos princípios ou dos tratados firmados pelo Brasil. Desse modo, há direitos humanos advindos, implicitamente, de Tratados Internacionais; a título de ilustração, o princípio do duplo grau de jurisdição (o direito de recurso do réu contra uma decisão condenatória em primeiro grau), cuja fonte é a Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Além disso, no § 3º do art. 5º, incluído pela Emenda 45/2004, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, quando aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Por isso, caso tal hipótese ocorra, a norma referente ao direito reconhecido passa a ter status constitucional explícito. Surge, naturalmente, a necessidade de se constatar qual a visão do Supremo Tribunal Federal nesse campo. A última posição que se extrai de julgamento ocorrido em Plenário é conceder às normas advindas de tratados internacionais, não aprovados na forma do § 3º do art. 5º, mas ingressando pela porta do § 2º, um caráter supralegal.45 Seria, pois, uma norma a integrar a ordem interna situada abaixo da norma constitucional e acima da legislação ordinária. O exemplo supracitado (duplo grau de jurisdição) teria essa natureza jurídica. Eis a correta lembrança de André de Carvalho Ramos: “as normas de direitos humanos previstas em leis internas, Constituições e tratados internacionais são apenas um ponto de partida e nunca um ponto de chegada para o intérprete, pois cabe sempre averiguar a real interpretação e configuração normativa dada pelos tribunais. A proteção de direitos humanos é antes um exercício de prudência judicial do que labor legislativo”.46 De fato, mais força possui, no cenário da proteção individual, a decisão judicial do que a lei editada pelo Poder Legislativo. Por isso, como mencionamos na introdução a este trabalho, os magistrados precisam proferir suas decisões sempre fundamentadas, com coerência e primando pela lógica. Em especial, quando estiverem decidindo matérias concernentes aos direitos humanos, pela sua natural importância. Direitos humanos e direitos coletivos Por meio de singela leitura do título dado ao Capítulo I, Título II (Direitos e Garantias Fundamentais), da Constituição de 1988, encontra-se o termo coletivos: Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Isto não significa que a vida, por exemplo, pode ser tratada como um direito coletivo, pois é nitidamente individual. Por outro lado, o texto constitucional cuida, com expressa clareza, de direitos coletivos como o das entidades associativas e sua legitimidade para representar seus filiados judicial ou 1.6 extrajudicialmente (art. 5º, XXI). Entretanto, há um terceiro aspecto, justamente o ponto a ser debatido neste tópico: a defesa coletiva de direitos individuais, o que se vê como perfeitamente legítimo. Exemplificando, se o direito à vida é individual, nada impede que haja um grupo formado para defender o fim da autorização legal do aborto no Brasil. Defende-se, coletivamente, um direito individual. Boaventura de Sousa Santos bem observa que “os direitos coletivos nãofazem parte do cânon original dos direitos humanos”, logo, “a tensão entre direitos individuais e coletivos resulta da luta histórica dos grupos sociais que, sendo excluídos ou discriminados enquanto grupo, não podem ser adequadamente protegidos pelos direitos humanos individuais. As lutas das mulheres, dos povos indígenas, afrodescendentes, vítimas do racismo, gays, lésbicas e minorias religiosas marcam os últimos cinquenta anos de reconhecimento de direitos coletivos, um reconhecimento sempre amplamente contestado e em constante risco de reversão. Não existe necessariamente uma contradição entre direitos individuais e coletivos, mas que não seja pelo fato de existirem muitos tipos de direitos coletivos”.47 É natural a associação de minorias para mais adequadamente defender os interesses individuais que estão em jogo. O racismo é outro exemplo válido, pois atinge individualmente o ser humano, mas pode ser coletivamente cuidado e defendido. Direitos humanos e Internet Há uma nova realidade nos dias de hoje. Não se vive mais em uma comunidade apenas, mas em duas: a real e a virtual. O advento da rede mundial de computadores trouxe a globalização das interligações humanas para dentro dos lares em qualquer ponto do Globo, fazendo com que os direitos e deveres das pessoas se estendessem na mesma proporção. A Internet vem proporcionando facilidades importantes há poucas décadas; faz-se compras; estabelece-se vínculos afetivos com pessoas do outro lado do Planeta; criam-se comunidades e grupos que se comunicam diariamente; uma notícia – verdadeira ou falsa – viaja a uma velocidade impressionante, muito maior do que as TVs e jornais, antes os monopólios de informações, podem alcançar. Tanto é verdade que muitos órgãos de comunicação mantêm seus sites ativos para a divulgação, quase em tempo real, de informes aos seus leitores. Mas não é só. A rede mundial – ou a comunidade globalizada – espalhou--se ainda mais, pois invadiu a seara dos celulares, outra novidade da década de 1990, a ponto de se ter uma informação sem necessidade de ligar o computador em casa ou no trabalho, bastando olhar a telinha do telefone. Tudo isso parece um fantástico mundo da tecnologia, numa visão extremamente positiva do fenômeno. Jamais se deve perder de vista constituir a Internet um ganho inestimável para a humanidade, em matéria de tecnologia. No entanto – e parece sempre haver um mas nas coisas mais relevantes da vida humana –, trouxe também variados dissabores. Como se disse linhas acima, a notícia, incluindo a falsa, corre o mundo em questão de segundos. Invade-se a privacidade das pessoas dentro de suas casas; ativam-se os contatos criminosos na Internet oculta; criam-se laços sexuais entre adultos e crianças, cujo acesso à informação também pode dar-se de maneira incontrolável; difama-se uma gama enorme de pessoas; outros são injuriados ou caluniados; extravasa-se o que antes era guardado para o divã do analista. Em suma, circulam maus hábitos e condutas ilícitas na rede mundial de computadores, descambando para os crimes de ódio, para o incentivo ao racismo, ao preconceito, ao bullying e até mesmo às atividades terroristas, que se valem da Internet para organizar suas atividades nefastas. Como controlar e equilibrar o direito à informação e ao lazer proporcionado pela rede mundial com a prática de crimes e outras infrações, particularmente voltadas à quebra da intimidade e da vida privada? Como permitir às polícias de todos os países lidar com o delito via Internet? Como ser eficiente no combate à impunidade reinante no mundo cibernético? São indagações difíceis e complexas de se responder à luz dos direitos humanos, cujo nascimento, crescimento e maturidade ainda se encontram em plena evolução nas várias partes do Globo. Javier Bustamante Donas explica que “a tecnologia se mostra hoje como um sistema que engloba quase todos os aspectos da vida cotidiana. Não é possível conceber a tecnologia como um dos múltiplos subsistemas a mais que compõem a realidade social, mas que supõe, em conjunto, um nível qualitativamente novo na relação do homem com a natureza, caracterizado pela compreensão científica do mundo, o avanço qualitativo no controle do ambiente humano, a tecnologização da vida e o risco de destruição do meio ambiente ou de autodestruição humana. A tecnologia é um fenômeno universal – o que não significa que tenha que continuar o caminho que tem levado até nossos dias – e a universalidade do seu impacto não parece ser uma consequência acidental. (...) Na essência, os mecanismos de dominação e de limitação dos direitos humanos nesse novo espaço de informação, o ciberespaço, têm mais a ver com a limitação do acesso às condições necessárias (já sejam técnicas, econômicas ou culturais) que permitiriam o desenvolvimento de formas mais avançadas de participação pública e de intercâmbio e livre expressão de ideias e crenças”.48 Câmara evidencia o lado negativo: “já no tocante à internet, por ser ainda uma via relativamente nova, as nações mais desenvolvidas ainda não chegaram a um protocolo eficaz para inibir a telecriminalidade. Os casos de incitação à prática de crimes, como o intercâmbio de filmes e fotos eróticas de crianças e adolescentes, vítimas de abusos de corruptores; a incitação ou a difusão de ideias radicais como a dos neonazistas ou o ódio racial; a circulação de mensagem entre fanáticos e terroristas; o fluxo de valores que viabiliza a lavagem de dinheiro de narcotraficantes, caixa dois de maus empresários ou de políticos corruptos; a invasão de privacidade e consequente apropriação de ideias e valores pela rede; enfim, uma série de novos tipos de ações que impactam a segurança coletiva estão aí a exigir respostas. E, para enfrentar esse tipo de criminalidade, urge um esforço concentrado da sociedade e do Estado. Como os demais casos, a iniciativa cabe exclusivamente à União”.49 Sem dúvida, até mesmo o acesso à Internet é um problema em muitos países, seja por conta da censura imposta pelo Governo, seja pela precariedade e miserabilidade da vida da comunidade, sem acesso à tecnologia. Porém, esses aspectos, ligados aos direitos humanos, transcendem as barreiras do aspecto tecnológico, para atingir outras liberdades públicas e direitos essenciais, que ainda constituem feridas abertas no cenário da dignidade humana. Noutros termos, se há pessoas passando fome, sem moradia digna, sobrevivendo a duras penas, o acesso à Internet, na ordem das coisas, é irrelevante. Bustamante Donas encaixa a Internet na quarta geração dos direitos humanos, visto que esta será “a expansão de um conceito de cidadania digital que apresenta várias dimensões. Em primeiro lugar, como ampliação da cidadania tradicional, enfatizando os direitos que têm a ver com o livre acesso à informação e ao conhecimento entendidos como infraestrutura de realização pessoal, assim como com a exigência de uma interação mais simples e completa com as instituições do Estado através das redes telemáticas. Em segundo lugar, como o direito a superar a exclusão digital, não somente através da inserção de grupos marginais no mercado de trabalho na sociedade de informação, mas também através da exigência de políticas de educação cidadã, criando uma inteligência coletiva que assegure uma inserção autônoma de cada país em um mundo globalizado. (...) As novas polis são redes sociais, e como tais têm um caráter não estático mas dinâmico e processual.As redes sociais virtuais são a última expressão da assimilação do ciberespaço como local da polis, pois integra novas formas de experimentar as diásporas e as migrações, novas formas de comunicação e solidariedade, de ação política e revolucionária. As cibercidades, entendidas como redes sociais virtuais, são novas formas de relação social”.50 Diante dessa realidade, a legislação dos países já se alterou ou irá transformar-se para acolher a Internet e todas as suas implicações, mormente as negativas. Haverá uma redefinição de certos direitos individuais, como a privacidade e a intimidade, porque as pessoas que navegam na rede mundial de computadores abrem detalhes de suas vidas por pura voluntariedade. Eis um ponto irreversível, pois a intimidade pode ser violada pelo próprio internauta, que, depois, reclama do mau uso dos dados que ele mesmo transmitiu a estranhos. Torna-se claro um redimensionamento dos direitos humanos na era cibernética, reavaliando-se certas tutelas e reenquadrando-se determinadas condutas, para adequar os direitos humanos à vista de uma dimensão ainda por conhecer na sua integralidade, que é o mundo digital ou a vida virtual. A própria noção da (in)disponibilidade de certos direitos há de ser revista, em face do que o próprio internauta posta para o mundo no tocante à sua vida pessoal. Conflitos existirão e não serão poucos: liberdade versus segurança; intimidade51 versus publicidade; honra versus informação; propriedade intelectual versus cultura etc. Por ora, há que buscar a mais adequada fórmula de tutela dos direitos humanos em face da Internet, movendo-se o Estado, na proteção desses direitos, conforme as atividades de quem navega pelos diversos sites. Ilustrando, se o indivíduo pretende realizar uma compra, embora se valendo da facilidade do mundo digital, não é dado a qualquer pessoa desviar seus recursos, cometendo autêntico estelionato. Por outro lado, se uma pessoa expõe dados íntimos da sua vida, torna-se imune quem fizer a divulgação, mesmo que ofensiva. Afinal, o informe devassador da privacidade foi lançado pelo sujeito que se diz, depois, prejudicado. O mesmo não se pode dizer do menor de 18 anos, quando, pela sua própria imaturidade, expõe-se na rede mundial; o uso desses informes (fotos, declarações etc.) precisa 1.7 ser protegido pelo Estado. São detalhes variados de uma nova realidade, a ser conhecida pouco a pouco, pois não há fórmula perfeita para tanto. O importante é manter o canal aberto ao diálogo entre sociedade e Estado para criar mecanismos controladores da Internet, sem haver censura prévia, tudo a respeitar os já consagrados direitos humanos. Princípios e regras Os direitos humanos constituem-se normas, podendo dividir-se entre princípios e regras, como bem define Robert Alexy.52 Essas normas constitucionais possuem enunciados expressos no art. 5º da CF ou são supralegais, previstas em tratados ou convenções, mas não formalmente inseridas no ordenamento pela via do art. 5º, § 3º, da CF. Sejam princípios ou regras supralegais, na denominação conferida pelo Supremo Tribunal Federal, estão acima da legislação ordinária. O princípio, como um mandado de otimização, não fornece um parâmetro fixo, definido e nítido para ser colocado em prática. Temos como exemplo disso o princípio da ampla defesa (art. 5º, LV). A regra é um comando simples e objetivo, que precisa ser cumprido, tal como “o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial” (art. 5º, LXIV, CF).53 O objetivo deste trabalho não é estudar detidamente os conflitos porventura existentes entre princípios, entre estes e regras e entre regras, mas, em linhas gerais, como já expressado anteriormente, firmar o pensamento de que é inviável crer-se em uma antinomia impossível de ser resolvida pelos critérios já consagrados em Direito, venha de onde vier o confronto de normas. Por óbvio, os princípios, funcionando como elementos de orientação não somente ao Legislativo, mas também ao Judiciário, são axiologicamente superiores a uma regra, mormente quando ordinária, em nosso sentir. Afinal, o seu alcance é muito maior, envolvendo normas já redigidas pelo Legislativo e as que serão elaboradas: as normas infraconstitucionais devem render-se ao que é imposto pelo princípio constitucional, como regra, sob pena de padecer de inconstitucionalidade.54 As regras constitucionais, embora claras, especialmente quando estão expressas, merecem fiel cumprimento. Destarte, pode haver um conflito entre um princípio e uma regra, ambos de status constitucional: há de se encontrar uma solução equilibrada para aplicar um deles, afastando-se o outro, no caso concreto. A hipótese, muito rara, se ocorrer, não se torna um cabo de força, onde haveria um só vencedor. Compatibiliza-se, no caso concreto, a mais adequada solução. O mesmo se dá se dois princípios55 ou duas regras conflitarem aparentemente entre si. Ilustrando, a presunção de inocência, como princípio, pode conflitar com a regra impositiva da prisão em flagrante delito. Nesse caso, prevalece a regra, pois o fato de ser inocente o réu até o trânsito em julgado de decisão condenatória não retira o caráter cautelar da prisão realizada com autoridade constitucional. Se o princípio sempre derrotasse a regra, estariam extintas as prisões provisórias no Brasil – e não é essa a finalidade do princípio da presunção de inocência. Este enunciado normativo aponta para a excepcionalidade da prisão cautelar, para o ônus da prova caber à acusação, para outros direitos do preso cautelar, mas não impede essa modalidade de prisão. Um dos pontos cruciais, nesse âmbito, é a interpretação das normas constitucionais para delas extrair o máximo de conteúdo, sem distorcê-las e muito menos anulá-las. Por isso, Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos destacam alguns elementos relevantes no segmento interpretativo: “a) argumentação jurídica deve ser capaz de apresentar fundamentos normativos (mesmo implícitos) que a apoiem e sustentem. Não bastam bom senso e sentido de justiça pessoal. No Estado de Direito, a argumentação jurídica deve preservar justamente seu caráter jurídico; b) possibilidade de universalização dos critérios adotados para a decisão, por força do próprio imperativo da isonomia; c) dois conjuntos de princípios: instrumentais ou específicos; materiais (que trazem consigo a carga ideológica, axiológica e finalística da ordem constitucional)”.56 Diante disso, busca-se preservar a supremacia da Constituição e a presunção de constitucionalidade de leis e outros atos do poder público. Deve-se incentivar o operador do Direito a tecer, quase sempre, uma interpretação conforme a Constituição, para preservá-la e a sua autoridade. É fundamental compor conflitos porventura formados entre normas constitucionais, valendo-se dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, muito utilizados, igualmente, no cenário das ciências criminais. Para Humberto Ávila, a regra é a norma descritiva, que estabelece obrigações, permissões e proibições, demonstrando a conduta a ser adotada, enquanto o princípio é uma norma finalística, estabelecendo um estado de coisas para cuja realização é preciso adotar determinados comportamentos. As regras são “normas preliminarmente decisivas e abarcantes”; os princípios são “normas com pretensão de complementariedade e de parcialidade”.57 Segundo nos parece, na essência, inexiste frontal divergência entre o referido autor e os ensinamentos de Robert Alexy,
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