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história e historiografia da antiguidade oriental

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História e historiografia 
na Antiguidade Oriental 
De há cento e cinquenta anos a esta parte vive-se uma espécie de 
segundo Renascimento. Não será efectivamente exagero nem abuso 
terminológico apelidar de «Renascimento oriental» a profunda 
transformação dos conhecimentos e o espantoso enriquecimento das 
vivências culturais resultantes da descoberta das literaturas, das 
religiões, das ciências e da arte do Próximo Oriente antigo. E ainda 
nos encontramos mais propriamente na fase preparatória do 
«Humanismo», sob o alvoroço da descoberta. Que será quando nos for 
dado mergulhar de cabeça aos pés nas águas refrescantes do pleno 
«Renascimento oriental» e seguir até ao fim, melhor dizendo, até ao 
princípio detectável, as raízes mais profundas das civilizações 
clássicas?!1 Em todo o caso desde já «os especialistas podem narrar 
com grande pormenor o primeiro grande esforço do homem para 
erigir uma civilização complexa. Enquanto o centro do segundo 
esforço esteve na Grécia e em Roma, o drama anterior centrou-se nas 
terras do Egipto, Síria e Mesopotâmia» 2. Não é, pois, lícito prolongar 
a euforia do primeiro Renascimento, como se tudo o que veio a ser 
Ciência e Filosofia, História e Arte, remontasse finalmente aos Gregos. 
Compreende-se que filólogos e historiadores da Antiguidade 
Clássica adiram ao orador-filósofo que baptizou Heródoto de «pai da 
História» (Cícero, De leg. 1,5), «pois ele criou a história como ideia e, ao 
mesmo tempo, transformou a vaga irrealidade da sua contínua 
anterioridade, do seu fluxo constante para trás, num cosmos de 
1 C f . S. MOSCATI , L'Orient avant les Grecs, t rad. , Paris 1963, pp . 3-8. 
2 G . E . W B I G H T , Arqueologia bíblica, t rad. , Madrid 1975, pp . 3 7 - 3 8 . 
XII (1982) DJOASEALU 333-358 
334 DIDASKALIA 
realidade duradoura e de futuro eterno» 3. Custa, porém, a entender 
que numa obra dedicada a «A Ideia de História» nas várias etapas do 
pensamento humano se arrume em escassas cinco páginas o contributo 
da Antiguidade Oriental sob o rótulo sumário de «História teocrática e 
mito» 4, para de imediato se passar à «Criação da História científica por 
Heródoto» 5. Nem com a mais tolerante compreensão 6 um 
orientalista se pode dar por satisfeito 1. E que nem era sequer preciso 
esperar pela decifração dos textos «historiográficos» amarelecidos nos 
monumentos egípcios ou soterrados até há pouco nas colinas de 
Lasgash, Nippur, Nínive, Hattusa, Alalakh, Mari e Tell el-Amarna 
(Akhet Aton). Analisando a única historiografia oriental que não 
ressuscitou com as descobertas arqueológicas porque nunca deixou de 
viver, ou seja, o Antigo Testamento, «um dos mais notáveis 
historiadores dos últimos tempos» 8 pôde afirmar: 
«Assim, o apogeu da realeza judaica criou uma verdadeira 
historiografia. Nenhum outro povo civilizado do antigo Oriente foi 
capaz disso; mesmo os Gregos só aí chegaram no ápice do seu 
desenvolvimento, no século V, e então não tardaram em ir mais além. 
Aqui, pelo contrário, trata-se de um povo que acabava de entrar na 
civilização. (...) Com estas criações, a civilização israelita coloca-se 
logo de início, com independência e igualdade de direitos, ao lado do 
desenvolvimento que, uns séculos mais tarde, de forma essencialmente 
mais rica e mais variada, se processou em solo grego...» 9 Umas 
décadas mais tarde, sintetizava G. von Rad:. 
«Neste campo (da história), os povos do círculo cultural do 
Ocidente são discípulos e herdeiros tanto da historiografia grega como 
da bíblica» 1 0. 
3 H . STRASBURGER, DielVesensbestimmung der Geschichte durch die antike Geschichtsschrei-
bung, Wiesbaden 1975 3 , p. 53. K . VON FRITZ, Die griechische Geschichtsschreibung, I, Berlin 1967, 
mal toca a questão das relações da historiografia grega c o m a oriental. 
4 R . G . COLLING WOOD, A Ideia de História, t rad. , Lisboa 1978 4 , pp. 2 3 - 2 7 . 
5 Ibid., pp . 28-30. 
6 E . A. SPEISER, Ancient Mesopotamia, e m R . C . DENTAN (ed.), The Idea of History in the 
Ancient Near East, N e w Haven, C o n n . / L o n d o n 1955, p . 39, n. 6: «But in justice to 
Col l ingwood's provocative study it should be added that its author had not the oppor tuni ty to 
acquaint himself wi th much essential informat ion on the progress of historiography among ' ou r 
forerunners in civilization'». 
7 Cf . a crítica de W . A. IRWIN, The Orientalist as Historian, J N E S 8 (1949) 303-304. 
8 Eduard Meyer , nas palavras de R . G . COLLINGWOOD, a. c., p. 2 2 3 . 
9 E . MEYER, Geschichte des Altertums, I I / 2 , Stuttgart 1 9 5 3 2 , pp . 2 8 5 - 2 8 6 . 
1 0 G. VON RAD, Der Anfang der Geschichtsschreibung im alten Israel, em Gesammelte Studien 
zum Alten Testament (TB 8), München 1961, p. 148. 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 335 
Que Israel foi pioneiro na tarefa de pensar e escrever história 
tornou-se comunis opinio entre os especialistas do Antigo Testa-
men to 1 1 . Mesmo os construtores das civilizações, bem mais 
brilhantes que a hebraica, do Egipto e da Mesopotâmia não teriam 
atingido o nível da historiografia autêntica 1 2 . 
Raras vezes os Hititas são chamados à colação. Muito mais 
raramente ainda os biblistas se apercebem de que a historiografia hitita 
se abalança a disputar a primazia à de Israel. «Muito mais significativo 
é que, entre os Hititas, tenha aparecido pela primeira vez na história 
mundial um género literário de alto significado: o relato histórico. (...) 
O relato histórico hitita tem a noção do que é compendiar 
acontecimentos retrospectivamente, a partir de pontos de vista 
unitários, evocar impressionantemente situações, num modo que só 
volta a ser atingido nos relatos históricos dos Israelitas»13. 
Mesmo seguindo a definição de «historiografia autêntica» 
perfilhada pelos exegetas do Antigo Testamento, ter-se-ia de 
reconhecer a anterioridade dos Hititas neste campo 1 4 . 
A parte uma ou outra excepção 1 5 ou solução de compromisso 1 6 , 
o berço da historiografia parece estar na Hélade para o filólogo e 
1 1 Cf . K . ELLIGER, Der Begriff ^Geschichte» bei Deuterojesaja (1955), em Kleine Schriften zum 
Alten Testament (TB 32), München 1966, pp. 199-200; H . GESE, Geschichtliches Denken im Alten 
Orient und im Alten Testament, Z T K 55 (1958) 127; J . A. SOGGIN, Geschichte, Historie und 
Heilsgeschichte im Alten Testament, T L Z 89 (1964) 725. 
1 2 G. VON RAD, O. C., p. 149: «Ein auffallendes U n v e r m ö g e n , geschichtlich in d e m oben 
bezeichneten Sinn zu denken, charakterisiert die alten Ägypter . Eminen t conservativ, eminent 
schreibfreudig haben sie doch ihr Nachdenken über die Vergangenheit i m m e r nur antiquarisch 
auf Einzelheiten gerichtet und es nicht vermocht , grössere Zusammenhänge zu erfassen. Aber 
auch die Kulturen des Zweistromlandes, so bewegt die Geschichte in diesem R a u m auch war , 
haben keine Darstellung der Geschichte geschaffen, die über Einzeldokumente der 
obengenannten Art wesentlich hinausginge. (...) So sind es nur zwei Völker, die i m Al ter tum 
wirklich Geschichte geschrieben haben: die Griechen und lange Zeit vor ihnen die Israeliten». 
1 3 A. GOETZB, Hethiter, Churriter und Assyrer, Oslo 1936, p . 73. N ã o era a pr imeira 
descoberta da capacidade historiográfica dos Hititas, pois j á E. Forrer e m 1925 e o m e s m o A. 
Goetze em 1928 haviam chamado a atenção para o facto; Cf . H . CANCIK, Grundzüge der 
hethitischen und alttestamentlichen Geschichtsschreibung,Wiesbaden 1976, p . 5. 
1 4 Cf . H . CANCIK, Mythische und historische Wahrheit. Interpretationen zu Texten der 
hethitischen, biblischen und griechischen Historiographie (SBS 48), Stuttgart 1970, p. 46. 
1 5 N ã o faltam exgetas do Antigo Testamento a negar a consciência histórica e a 
«historiografia autêntica» em Israel. Assim L . KOEHLER, Der hebräische Mensch, Tüb ingen 1953 2 , 
pp . 125-126: «Geschichte stezt Vergangenheit voraus; vergangenist, was seine Wirksamkei t 
verliert. In diesem Sinn kennt der hebräische Mensch k a u m Vergangenheit oder Geschichte». 
O u R . SMEND, Elemente alttestamentlichen Geschichtsdenkens (TSt. 95), Zür ich 1968, p. 33: «Es fällt 
nicht leicht, macht m a n sich von dem hier besonders leicht hineinspielenden Bedürfnis nach 
Apologetik frei, der) Behauptung Vatkes zu widersprechen: ' A u f dem Standpunkt der eigentlich-
-historischen Betrachtung haben sich die Hebräer überhaupt nicht erhoben und kein Buch des 
A. T . . . . verdient den N a m e n wahrer Geschichtsschreibung!'». 
1 6 A. MALAMAT, Doctrines of Causality in Hittite and Biblical Histotriography, V T 5 (1955) 1: 
A historiografia «was a literary genre is the Ancient Near East, apparently introduced b y the 
Hittites and brought to artistic perfection by the Israelites». 
336 DIDÃSKALIA 
historiador da Antiguidade Clássica, na Palestina para o exegeta do 
Antigo Testamento, na Ásia Menor do 2.° milénio a. C. para o 
hititólogo. Mas não há lugar para bairrismos académicos. O que se 
impõe é o diálogo dos vários ramos da Orientalística entre s i l 7 , dos 
orientalistas com os classicistas18, alargado mesmo a historiadores de 
outras épocas e outras culturas. Todos não somos demais para debater 
questões tão complexas e tão fundamentais. Trata-se, efectivamente, 
de saber como é que os antigos escritores lidaram com o passado, que 
ideia tinham de «história» e do seu conteúdo, em que medida o seu 
pensamento histórico foi afectado pelo mundo e mundividência 
envolventes. 
Nesta perspectiva irénica, hei por bem renunciar metodologica-
mente à definição de «história» e «historiografia» (com maior razão à de 
«historiografia autêntica»). Proponho-me simplesmente captar as 
grandes linhas do pensar histórico da Antiguidade Oriental, enquanto 
veiculado em literatura de algum modo historiográfica. A esta 
limitação de género literário (as lendas, os cânticos, os hinos e as 
lamentações, os poemas e epopeias mitológicos, para não falar nos 
oráculos proféticos de Israel, têm muito a dizer sobre a ideia de história 
no Próximo oriente antigo, mas não cabem no espaço que me é dado) a 
esta limitação de género literário, dizia, há que juntar a da cronologia: 
terminus ad quem da digressão serão os meados do século VI a. C.. Em 
breve estará em cena o império persa — uma viragem significativa na 
história mundial — e um século mais tarde escreve Heródoto, «o pai da 
história»... clássica, pelo menos. 
I 
Reconhecendo embora o carácter substancialmente homogéneo 
da civilização mesopotâmica 1 9 , afloro separadamente cada uma das 
1 7 C o m o nos colóquios d o Depar tament of Near Eastern Languages and Literatures da 
Universidade de Yale, em colaboração com o Semitic and Blibical C lub local e dois especialistas 
vindos de fora e m 1952/53, donde saiu o vo lume editado por R . C . DENTAN (n. 6) ou no 
exercício interdisciplinar de estudantes de Teologia Protestante e de Orientalística da 
Universidade de Münster n o Semestre de Inverno 1973 /74, em cuja conclusão foi apresentado o 
estudo de J . KRECHER (n. 2 5 ) . 
1 8 Assim no seminário conjunto dos Depar tement of Near Eastern Studies e Depar tment 
of Classics da Universidade de Toron to , subordinado ao tema «Histories and Historians of the 
Ancient Near East» e realizado em 1 9 7 4 / 7 5 , onde se produziram os trabalhos de A. K . GRAYSON 
(n. seguinte) e H . A. HOFÍNER J r . (n. 6 7 ) . 
1 9 E . A. SPEISER, O. C., pp. 3 5 - 7 3 ; H . GESE, O. C., pp . 1 2 9 - 1 3 8 . A minha opção de separar as 
duas historiografias foi justificada a posteriori pelas observações de A. K. GRAYSON, Histories and 
Historians of the Ancient Near East: Assyria and Babylonia, e m Orientalia 4 9 ( 1 9 8 0 ) 1 4 8 . 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 337 
historiografias — a suméria e a acádica —, buscando a ideia de história 
expressa em cada uma delas. 
Os Sumérios deixaram-nos muitas referências históricas directas, 
mas poucas criações literárias que possamos apelidar de «historio-
gráficas». As próprias fontes históricas não foram exaradas pelo desejo 
de conservar para os vindouros a memória dos eventos. Sucede, 
porém, o arquivista situar uma vez ou outra o facto na sua perspectiva 
histórica, remontando às origens da situação presente ou confron-
tando-a com a passada. Assim na famosa inscrição de Entemena 
(c. 2430) — o diferendo entre Umma e Lasgash por causa da fronteira 
comum vinha de longe: já Mesilim, rei de Kish (mais de cem anos 
antes) o tinha arbitrado 2 0 . Ou ainda no não menos célebre texto da 
reforma social de Urukagina: a dedicação de um canal da cidade de 
Lagash deu azo a confrontarem-se as duas situações sociais sucessivas e 
opostas 2 1 . São estes os mais antigos lampejos de historiografia 
sumérica. Introduzindo o meta-estrato da conexão temporal ou 
causal, o escriba deixa a arquivística e envereda pela história. 
Três obras salientam-se nitidamente da massa do material de 
arquivo como autênticas composições literárias de índole (mais ou 
menos) historiográfica: um texto do libertador da Suméria, Utuhegal 
(2116-2110) a que poderíamos chamar «A Guerra dos Seis Dias», 
«A Maldição de Agade» e a «Lista de Reis». 
«A Guerra dos Seis Dias» 2 2 desenrola-se numa série de quadros: 
oração inflamada de Utuhegal de Uruk e Inanna, marcha para a guerra 
sob a protecção dos deuses, discursos às turbas nos santuários e 
entusiasmo transbordante dos ouvintes, estações de refrescamento 
espiritual e desobriga cultual em templos e capelas da rota. A partir do 
quarto dia (de marcha), o ritmo acelera, como a preparar a fuga 
precipitada de Tirigan, o rei do Gútios, logo apanhado e morto. «Pela 
estrutura e estilo, (isto é) claramente uma obra literária, não uma 
inscrição real, de que nem sequer se toma a forma externa» 2 3. 
2 0 E . SOLLBERGBR-J. R . KUPPER, Inscriptions royales sumériennes et akkadiennes (LAPO 3), 
Paris 1 9 7 1 , pp . 7 1 - 7 5 . Referência a Mesilim logo no início, p. 7 1 ; versão portuguesa do texto e m 
S . N . KRAMBR, OS Sumérios. Sua História, Cultura e Carácter, trad., Lisboa 1 9 7 7 , pp . 3 4 8 - 3 5 0 . 
2 1 S . N . KRAMER, Sumerian Historiography, I E J 3 (1953) 2 2 7 - 2 3 2 . Versão portuguesa do 
texto de Urukagina (ou segundo a proposta de leitura de W . G. LAMBERT e m Orientalia 3 9 
[ 1 9 7 0 ] 4 1 9 Uru-inim(KA)-gi-na) em I D . , Os Sumérios... pp. 3 5 1 - 3 5 4 . 
2 2 Versão francesa do texto em E . SOLLBERGBR-J. R . KUPPER, O. c., 1 3 0 - 1 3 2 . 
2 3 H . G. GÜTERBOCK, Die historische Tradition un ihre literarische Gestaltung bei Babyloniem 
unt Hethitern, I, Z A 42 (1934) 14. Há u m exemplar da época de Isin (séculos x x - x i x a. C.) e out ro 
mais tardio. 
338 DEDASKALIA 
Há a convicção profunda de que os homens executam uma missão 
divina. Os próprios deuses parecem defrontar-se: no auge do combate, 
Nanna (Lua) esconde-se, abandonando à sua sorte os pobres Gútios que 
devia proteger, enquanto Utu (Sol) atende a súplica de Utuhegal e o 
faz vitorioso. O que não exclui nem dispensa a acção dos homens. 
Preparação psicológica da população, alistamento de combatentes, 
troca de mensagens, perseguição e captura do inimigo... são elementos 
que não envergonham nenhuma historiografia, antiga ou moderna, 
«teocrática» ou «iluminada». Importante é ainda o prólogo, que 
remonta às origens e causas da situação presente. Provinha esta da 
invasão e actuação dos Gútios, «os escorpiões da montanha, que tinham 
feito violência aos deuses, que tinham levado para o estrangeiro a 
realeza da Suméria, que tinham enchido a Suméria de iniquidade, que 
raptaram a mulher de quem tinha uma mulher, que raptaram um filho 
a quem tinha um filho, que instalaram a iniquidade e a violência no 
país» 2 4 . 
Aqui como na reforma de Urukagina a história é uma sucessão de 
tempos: tempos maus — tempos bons. 
Sequênciainversa domina a principal composição historiográfica 
suméria, «A Maldição de Agade: o Ekur Vingado» 2 5. De Akkad 
restava apenas a memória e as ruínas. Caíra inexoravelmente às mãos 
dos Gútios. Mas porquê' O autor procura as causas e encontra-as no 
saque da cidade santa de Nippur. Enlil, ofendido com o sacrilégio de 
Naram-Sin (2259-2223), chama os Gútios das montanhas e lança-os 
sobre Akkad. Bem vistas as coisas, há aqui mais do que sequência. Os 
tempos maus são antes a consequência do pecado de Naram-Sin. 
Com a «Lista de Reis» 2 6 voltamos à ideia de história como 
sequência. Cada dinastia experimenta a passagem de tempos bons a 
tempos maus: «As armas feriram a cidade de x e a sua realeza foi para a 
cidade de y». 
A razão última das viragens históricas é a vontade soberana dos 
deuses: Urukagina corrige os abusos de Lagash como vigário de 
2 4 E . SOLLBERGER-J. R . KUPPER, 0. C.,P. 130. 
2 5 Composta provavelmente em N i p p u r nos meados do século x x i a. C . , só nos chegou 
e m cópias dos séculos x v m - x v i i a. C. ; cf . J . KRECHER, em J . KRECHER-H. P. M Ü I L E R , 
Vergangenheitsinteresse in Mesopotamien und Israel, em Saeculum 26 (1975) 15, 23. Versão inglesa 
em J . B. PRITCHARD (ed.), Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, Princepton 
1969 3 , pp . 647-651. 
2 6 Provavelmente da mesma época (sec. x x i a. C.), embora a versão actual provenha de 
Ur -Ninu r t a de Isin (1923-1896), J . KRECHER, O. c., p. 25. A Lista é u m a obra historiográfica, cujas 
fontes, oriundas de Kish, U r u k e outras cidades, terão sido elaboradas pelos redactores de 
Nippur ; cf. H . G . GÜTERBOCK, O. C., pp . 7-8. 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 339 
Ningirsu; Inanna escolhe e abençoa Sargão e Akkad, sem mérito da 
parte deste («A Maldição de Agade»). Só na explicação da ruína de 
Akkad se introduz um princípio de racionalização: os deuses não agem 
arbitrariamente; castigam pecados humanos. 
Ocorre perguntar se isto reflecte a ideia especificamente suméria 
de história. Numericamente é uma excepção. Quer-me parecer que 
está aqui infiltrada uma concepção semítica. Por duas razões: 
a) O pecado de Naram-Sin não é a única explicação de má sorte de 
Akkad neste texto de díspares tradições, retocadas e combinadas 2 7 . 
A primeira grande viragem da história de Akkad e do reinado de 
Naram-Sin irrompe exclusivamente pela vontade de Inanna. Sem 
qualquer explicação, a deusa resolve não aceitar os sacrifícios e 
abandonar a cidade 2 8 , b) Com esta atitude mental está de acordo a 
mundividência suméria: o pecado, se existe, não conta como 
elemento de reflexão e busca do racional. Os males individuais, até os 
demónios, entram e saem sem qualquer pecado humano. «Tão pouco 
como se pode impor aos deuses uma obrigação moral para o seu 
comportamento, tão pouco conhece a religião suméria, na medida em 
que se exprimem nos nossos monumentos literários, um nexo causal 
entre culpa e sofrimento, a nível humano» 2 9 . O sacrilégio de Naram-
-Sin como detonador da ruína da Akkad reflectirá então uma ideia 
semítica, segundo a qual o pecado é causa e origem de males colectivos 
e individuais 3 0. Indiscutivelmente suméria é a ideia de história como 
sequência de tempos. 
O rei e a sua relação com os deuses ocupam uma posição central 
nesta historiografia: nas construções, nas reformas sociais, nas empresas 
militares, no destino dos seus reinos. Muito cedo aparece a ideia das 
dinastias. E uma concepção fundamental da «Lista de Reis» suméria é a 
continuidade linear da realeza e das dinastias. 
2 7 Tradições sobre a queda de Akkad, tradições sobre a existência de u m soberano rival de 
Naram-Sin em Nippur , tradições sobre uma crise económica na cidade santa pelos fins da 
dinastia de Akkad; cf. J . KRECHBH, O. C., p. 2 3 . 
2 8 N a versão de S. N . KRAMER, em J . B. PRITCHARD (ed.) o. c., p. 648: «Holy Inanna 
accepted not its gifts /like a princely son w h o . . . , she shared not its weal th , / the ' w o r d of the ekur ' 
was upon it like a (deathly) silence, / Agade was all atremble, / the Ulmash was in terror / she 
w h o had lived there, left the city, / like a maiden forsaking her chamber, / H o l y Inanna forsook 
her shrine Agade, / like a warr ior hastening to (his) weapon, / she went for th against the city in 
battle (and) combat , / she attacked as if it were a foe». 
2 9 A . FALKENSTEIN-W. VON SODEN, Sumerische und akkadische Hymmen und Gebete 
(Bibliothek der alten Welt) , Zürich/Stut tgar t , 1953, p. 36; cf. A. FALKENSTEIN, Die Haupttypen 
der sumerischen Beschwörung literarisch untersucht, Leipzig 1931, pp . 56, 61. 
3 0 Cf . A . FALKENSTEIN-W. VON SODEN, o.e.,pp. 52-53. 
340 DIDASKALIA 
II 
A primeira impressão que se colhe de Babilónios e Assírios é o 
seu enorme interesse pelo passado. Três situações vitais estimularam a 
pesquisa: a escola com a sua curiosidade e o seu conservadorismo, o 
trono e o altar com as suas ânsias de fundamentar a legitimidade. 
Os académicos das dinastias semíticas de Isin, Larsa e Babilónia 
não se cansaram de copiar documentos históricos do velho e glorioso 
império de Akkad. Na prestigiada academia de Nippur as inscrições 
de Sargão e sucessores estavam mesmo à mão de semear, nas estátuas 
do templo deEnlil. Foram copiadas «com um cuidado e fidelidade que 
honrariam qualquer arqueólogo e epigrafista moderno» 3 1 . 
Mais duradoiro foi o convívio com o passado nos domínios do 
culto. Templos não faltavam e os materiais eram pouco sólidos. Por 
altura dos restauros, queria saber-se a sua história. O que era 
relativamente fácil: bastava ler as inscrições de fundação. Deste modo, 
Salmanassar I (1274-1245) ao restaurar um templo de Assur pôde 
registar as vicissitudes por que passara: originalmente erigido por 
Ushpia, fora reconstruído por Erishu e, cento e cinquenta e nove anos 
mais tarde, por Shamshi-Adad I (1814-1782); tinham passado mais 
quinhentos e oitenta anos até à actual reparação. Mal sabia o assírio 
que, outros quinhentos e oitenta anos volvidos, Asarhaddon (681-669) 
iria ter o mesmo trabalho de restaurar e o mesmo cuidado de anotar a 
história do monumento. Nabonido, «um arqueólogo feito rei» 
(Speiser), diz ter encontrado a primeira pedra do templo de Shamash, 
em Nippur, colocada três mil e quinhentos anos atrás 3 2 . U m culto 
tinha de ser devidamente instituído e atestado. 
O trono e os seus interesses não dispensaram os serviços da 
história. Acontecimentos políticos do século XII legitimam-se com 
uma suposta profecia do rei divinizado em vida Shulgi (2093-2046), da 
III dinastia de Ur. No século VII, um usurpador assírio toma o nome 
dinástico de Sargão (II: 722-705), reclamando-se não só do nome 
(Sharrukin, «o rei é legítimo») mas também do prestígio do grande 
Sargão de Akkad (outro usurpador), que vivera milénio e meio 
antes 3 3 . A um mecenas das letras assiro-babilónicas como Assurba-
3 1 S. N . KRAMER, OS Sumários... p . 79 . 
3 2 D . D . LUCKENBILL, Ancient Records of Assyria and Babylonia, I, reprinted N e w York 
1968, p . 41; cf. E . A . SPEISER, O. c., pp . 45-49. 
3 3 Cf . J . KRBCHER, o. c., pp . 1 5 , 2 2 . Ent re Sargão de Akkad e Sargão I I ( 7 2 2 - 7 0 5 ) tinha 
havido u m Sargão assírio, nos princípios do século x i x a. C. . 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 3 4 1 
nípal (669-627) ficava bem narrar a pacificação dos Elamitas no fundo 
da religião... e da história: os deuses deixaram as devastações dos 
vizinhos de Leste «mil e seiscentos anos por vingar» 3 4 . 
A concepção linear destas incursões no passado herdaram-na os 
Semitas dos Sumérios. Mas elevaram-se muito acima dos seus 
predecessores tanto na quantidade das produções historiográficas como 
na diversidade dos seus géneros: inscrições reais, anais, cartas ao deus, 
listas de reis, crónicas, epopeias históricas, esteiasfictícias 3 5 . 
A «Crónica de Weidner» 3 6 , paleobabilónica, é o «primeiro 
compêndio mesopotâmico sobre a ideia de história» 3 7. Partidária, 
doutrinária e manifestamente abaixo do nível do melhor pensamento 
do seu tempo, não deixa de ser, apesar de tudo, uma historiosofia. 
Enceta, pelo menos, no Dinástico Primitivo (c. 2750-2350 a. C.), 
nimbada de mitologia, mas o seu ponto nevrálgico é a dinastia de 
Sargão e os acontecimentos que a rodearam até Shulgi. A ideia de 
história é simplicíssima: a ascensão e queda dos reis dependeu sempre 
da sua atitude para com o Esagil, o grande templo de Marduk em 
Babilónia; os que negligenciaram ou insultaram Babilónia, Marduk e 
o seu culto tiveram fim miserável; ao passo que os cumpridores vive-
ram felizes e prósperos. Estão avisados os monarcas presentes e futu-
ros: livrem-se de não cuidar de Babilónia e do seu deus principal. 
Uma epopeia histórica babilónica sobre Adad-shuma-usur 
(1218-1189) navega nas mesmas águas: oficiais e nobres são bem 
sucedidas numa rebelião, porque o monarca desprezara Marduk e 
Babilónia. Adad-shuma-usur confessa os seus pecados ao deus e 
restaura o templo 3 8 . 
Parte-se do esquematismo fundamental sumério: tempos bons-
-tempos maus. Irrompe, todavia, a ideia de correspondência entre acto 
e paga. Os deuses não agem com total arbitrariedade; recompensam os 
méritos e punem as transgressões dos reis, os únicos responsáveis pelos 
destinos da nação. Da mera sequência de tempos nasce a consequência da 
acção humana. Chega-se a uma espécie de formulação genérica: 
«aquele que peca contra os deuses, a sua estrela não será estável no 
3 4 D . D . LUCKENBILL, O. C„ n , 3 5 7 . 
3 5 C f . A . K . GRAYSON, O. C., p p . 1 4 9 - 1 8 8 . 
3 6 Tex to , transliteração, versão alemã e comentário em H . G . GÜTEBBOCK, O. C., 
pp.45-57; versão francesa em R . LABAT e outros. Les religions du Proche-Orient asiatique. Textes et 
traditions sacrés babyloniens-ougaritiques-hittites, Paris 1970, pp . 315-316. 
. 3 7 E . A . SPEISES, O. C., p . 5 9 . 
3 8 A . K . GRAYSON, u . c . , p . 1 8 6 . 
342 DIDASKALIA 
céu» 3 9 . Eis um corolário da concepção semítica do pecado e um passo 
significante a caminho de uma concepção imanentista da história. 
Até no género literário da «estela» 4 0 (naru, em acádico) fictícia, tão 
parenética e tão concentrada nas lições da história, perpassa esta ideia de 
consequência. Por não obedecer a um oráculo que o mandava ficar em 
casa e abster-se de aventuras é que o rei fatídico Naram-Sin viu o país 
inundado de hordas bárbaras — um «dilúvio» de «morte, peste... 
terror, medo... fome, insónias», enfim, de «todos os males» 4 1. 
Fontes históricas de primeira ordem, os anais assírios4 2 são 
redundantes em frases bombásticas, mas literária e historiografica-
mente pobres e pouco adiantam sobre a ideia de história: teoria da 
história é teologia da história; o rei é mero vigário do grande deus 
Assur, a quem os anais — desenvolvimento literário das inscrições 
monumentais e das cartas ao deus — querem louvar e prestar contas. 
Levem-se, pois, os auto-elogios e hipérboles não à conta do orgulho 
desmesurado, mas antes da piedade devota dos monarcas. Babilónia, 
que nunca teve anais em forma, produziu consequentemente uma 
historiografia mais objectiva que a Assíria 4 3. Prova disso é a chamada 
«Crónica de Babilónia» 4 4, imensamente mais sóbria, imparcial e 
secular do que os anais assírios: na queda de Nínive pesa pouco ou nada 
o favor dos deuses; contam decisivamente as armas dos Medos e dos 
Babilónios. 
Para deparar com o theologoumenon semítico da história como 
consequência entre os Assírios, temos que ir à «Epopeia de Tukulti-
3 9 E . A . SPEISER, o. c . , p . 5 9 . 
4 0 Designação porventura mais apropriada do que a de «pseudo-autobiografia», como lhe 
chama A. K. GRAYSON, O. C., pp . 141,187-188. O pr imeiro estudioso a identificar e baptizar o 
género naru-Literatur foi H . G. GÜTERBOCK, O. C., pp . 19,62-86 (textos, com transliteração, versão 
alemã e comentário). 
4 1 «Esteta» de Naram-Sin, da versão francesa de R . LABAT e outros, o. c., p. 3 1 2 . A versão 
integral, ibid., pp . 3 0 9 - 3 1 5 , incorpora u m texto que H . G . GÜTERBOCK, O. C., v pp. 19 , 2 0 , 6 5 - 6 9 , 
tratara como independente e para que propusera a designação de «Texto de Suili» (p. 19), do 
n o m e da personagem principal, em substituição do t í tulo então usado, «O rei de Kutha». A o 
género naru pertence ainda, segundo R . LABAT e outros, a famosa «Lenda do Nascimento de 
Sargão», tão aparentada com a lenda do nascimento de Moisés (Ex 2) e que se pode ler nas 
versões de R . LABAT e outros, o. c., p . 3 0 8 , J . B . PRITCHARD (ed.), o. c., p. 1 1 9 e, com comentário, 
H . G . GÜTERBOCK, O. C., p p . 6 2 - 6 5 . 
4 2 C o m o os anais assírios são cronologicamente posteriores aos hititas, põe-se a questão de 
dependência. A GOETZE, O. C., (n. 13), pp . 181-182, observa que os anais assírios incorporam 
motivos mítico-épicos estranhos à mitologia hitita e que, em últ ima análise, poderiam remontar 
aos Hurritas; H . G . GÜTERBOCK, O. C., p. 98 deixa a questão e m aberto; A. K. GRAYSON, O. C., p . 
150 afirma que os anais são «apparently an Assyrian innovation». 
4 3 Cf . E. A . SPEISER, o. c., 64-67. 
4 4 Versão inglesa em D . D . LUCKENBILL, O. C., II, 417-421 e J. B. PRITCHARD (ed.), o. c., 
pp. 303-305 (A. L. Oppenheim). 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 343 
-Ninurta» 4 5 , do século xn a. C.: o rei cassita foi vencido, porque 
quebrara os juramentos aos deuses. 
Pela objectividade histórica tiveram os Semitas da Mesopotâmia o 
mesmo interesse dos Sumérios, isto é, nenhum. O passado só 
interessava enquanto ajudasse a compreender e sobretudo a modelar o 
presente. Pouco importava que houvesse ou não um templo de 
Marduk em Babilónia no tempo dos reis de Akkad («Crónica de 
Weidner»). A Marduk é que o teorizador se tinha de referir se queria 
fundamentar historicamente as pretensões hegemónicas daquele deus 
(ou do clero do Esagil). A finalidade didáctica e até propagandística foi 
um motivo comum na historiografia assiro-babilónica. A «Crónica de 
Weidner» é nisso igual à «Profecia de Shulgi», à «Epopeia de Tukulti-
-Ninurta» e à «Estela de Naram-Sin». 
Causalidade, a pedra de toque da historiografia moderna, não 
existia a não ser na interacção ou sinergismo de deuses e homens, um 
ponto indiscutível na mundividência mesopotâmica. 
Ao contrário do que tantas vezes se ouve, a história não era cíclica 
para Assírios e Babilónios. Passado, presente e futuro faziam parte de 
um fluxo contínuo de eventos, com origem num passado distante, mas 
sem meio nem fim. Deuses e homens continuavam ad injinitum. Não 
há provas de que o pensamento babilónico alguma vez tivesse 
concebido uma visão escatológica da história 4 6 . 
Entre os lados positivos da historiografia e ideia de história acádica 
está a sua intuição de que certos factos merecem ser recordados e 
narrados para o futuro e o saber elevar-se, desde os tempos mais 
remotos, a considerações sobre a verdade histórica. «Por Shamash e 
Aba, conclui uma inscrição de Rimush (2284-2275), juro que isto não 
são mentiras; é absolutamente verdade» 4 7 . 
III 
Em matéria de produção historiográfica e de ideia de história o 
vale do Nilo parece ter sido quase tão sáfaro como os desertos que o 
circundam. Certamente não faltou trabalho arquivístico 4 8 ou 
4 5 Redigida provavelmente depois da vitória de Tukul t i -Ninur ta I (1244-1208) sobre o 
rei cassita de Babilónia. Tradução parcial d e W . G. LAMBERT em Archiv fiir Orientforschung 18 
(1957/58) 43-51; cf. J . KRECHER, O. C., p . 26. 
4 6 A . K . GRAYSON, o. c., p . 1 9 1 . 
4 7 E . SOLLBERGER-J. R . KUPPER, O. C.,p. 103; cf. ibid.,p. 104 (Manishtushu). 
4 8 Pelo menos tão antigo com a V dinastia, donde p rovém a Pedra de Palermo, edesembocando no Papiro de Tur im, que menciona todos os faraós da I à X I X dinastia, ou seja de 
c. 3000-2900 a 1300-1200. 
344 DIDASKALIA 
interesse antiquário pelo passado 4 9 , para não falar nas longas listas de 
faraós, confeccionadas e mantidas por razões de culto funerário 5 0 . 
Mas só no Império Novo, com a expansão para a Síria e o fim do 
esplêndido isolamento, desabrochava a melhor literatura historio-
gráfica de toda a civilização faraónica. 
Quanto à ideia de história, o saldo final de uma investigação 
moderna só confirma a imaginável reacção de Heródoto ante o resumo 
da história egípcia ouvido da boca de egípcios cultos: «Neste espaço de 
tempo (trezentas e quarenta e uma gerações humanas), disseram (os 
sacerdotes egípcios), o sol nasceu quatro vezes de modo insólito 5 1. 
Onde agora se põe, de lá nasceu duas vezes, e onde agora nasce, lá se 
pôs por duas vezes. E nada então se alterou no Egipto, nem quanto aos 
produtos do campo ou do rio, nem quanto ao regime das enfermidades 
ou às condições da morte» 5 2 . Passados dois milénios e meio, parece-
nos estar a ouvir um eco: os antigos Egípcios «não puderam ter tido 
uma ideia de história comparável nalgum sentido ao que a expressão 
significa para pensadores da era presente, ou talvez dos últimos dois mil 
e quatrocentos anos» 5 3. 
As hipérboles têm a função salutar de realçar uma verdade 
estranha. Mas podem esconder outras. E o facto é que nem em 
historiografia nem muito menos em ideia de história foram os 
Egípcios absolutamente omissos. 
Uma inscrição de Hatshepsut 5 4, fonte primária e não propria-
mente historiográfica, não compreende a reconstrução de templos e 
monumentos sem evocar as causas da situação presente — a acção 
demolidora dos abomináveis Hicsos. O «Relato de Ahmose» 5 5 refere 
a insustentável situação política do Egipto — o faraó «associado a um 
4 9 Patente nas tábuas genealógicas de famílias sacerdotais do III Intermediário; cf. L. Bu ix , 
o. c„ pp . 3-9; J . VERCOUTTER, Fischer Weltgeschichte, II, Stuttgart 1978, pp. 232-233. 
5 0 E , por isso, obviamente incompletas, além de tendenciosas: razões teológicas ditaram 
a omissão de Akhenaton, herético e contumaz; razões jurídicas opuseram-se à inclusão de 
Hatshepsut (1490-1468), simples regente e não rainha; sentimentos patrióticos não admit i ram o 
cul to n e m a menção dos abomináveis Hicsos. 
5 1 O u , segundo a versão de u m texto conjectural, «mudou quatro vezes de moradas»; cf. 
HERODOTE, Histoires. Texte établi et traduit par Ph.-E. Legrand, Paris 1963 4 , II, 166, n . 7. 
5 2 ' E v TOÎVUV TO\STCJ1 TC5 xpóvc.j TETpáxtç ëXeyv èÇ 7)0éwv TÓv fiXtov àvacrri ivat 
êv9a Ts vüv xaraSi iETat , èvõeÜTcv Slç èrcavaTeiXai, x a i gv9ev vüv ávaTéXXei, èvôaûra 
SLÇ xaxaSOvaf x a l oùSsv T<5V XOCT" Aïyu7tTov ÛTTÔ TAÛTA éTepoitoÔîjvat, OÖTC xà 
íx TYJÇ Yíjç o ö r e TÀ I x TOO TtoxafioCÎ a ç i ytv6[isva, OÜTE TÀ dtfjLtpi. votScrouç OÜTE 
TA xarà TOÙÇ 0avàTouç. 
5 3 L . BULL, O. C„ p . 3 2 . 
5 4 Versão inglesa e m j . B . PRITCHARD (ed.), o. c., p. 230. 
5 5 Versão inglesa ibid., pp . 232-233. 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 345 
asiático (rei dos Hicsos) e a um negro (rei da Núbia)» — e descreve 
brilhantemente o conselho de Estado e as guerras de libertação. Os 
chamados «Anais de Tutmés III», depostos ante o deus Amon no 
templo imperial de Karnak, oscilam entre a transcrição dos diários de 
campanha (relatos em primeira pessoa, ordens secas aos soldados) e a 
descrição primorosa dos acontecimentos. E chegamos à obra 
historiográfica por excelência do Império Novo e de toda a literatura 
egípcia: o «Boletim» e o «Poema» sobre a batalha de Cades, no 
Orontes 5 6 . Mas que estranha historiografia, mesmo no apogeu. 
A prosa do «Boletim» começa sóbria e objectiva: quatro divisões, faraó 
à cabeça, deixam o Egipto, passam ao Sinai, penetram em Canaã, 
atingem o Líbano. Quando, porém, junto a Cades, Ramsées II e a sua 
divisão são atacados de surpresa pelos carros hititas, o narrador troca a 
realidade pela fantasia: vê-se apenas o faraó a investir, sozinho, furioso 
«como seu pai Mont», contra toda a tropa hitita. No «Poema» épico, 
prevalece naturalmente a arte sobre a história. Conta-se per longum et 
latum et profundum o heroísmo de Ramsés II. Sozinho, desamparado de 
todos (de soldados e oficiais, até do deus Amon), menos dos seus 
cavalos (ironia pungente!), o faraó resolve o prélio com a ajuda do deus 
imperial, chamada e chegada in extremis. 
O balanço não é brilhante. Mesmo na mais elaborada 
historiografia do Império Novo («Relato de Kamose» «Boletim» de 
Cades) fica-se num estádio mais que rudimentar. Nunca o Egipto 
faraónico produziu uma visão global e minimamente crítica de 
qualquer época do seu passado, nem sequer ao nível da Lista de Reis 
suméria ou das Crónicas de Babilónia. E quer dizer da ideia de 
história? Faltará ela por completo no antigo Egipto, como quer L. 
Buli com a aprovação de H. Gese? 5 7 
De maneira nenhuma. Antes, a ideia de história, própria e 
vigorosa, é que impediu o desenvolvimento da historiografia como 
nós modernos a entendemos e, ingenuamente, desejaríamos impor a 
todas as épocas e culturas. Historiografia é literatura régia, porque a 
história é função do rei divino. Em rigor, só o faraó é objecto de 
historiografia. Por ele e em relação a ele tudo acontece. «Neste 
sentido, escreve-se história egípcia como dogmática do rei-deus» 5 8. 
5 6 Introdução e versão inglesa em M . LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature, II: The New 
Kingdotn, Los Angeles/London 1976, pp . 57-78. 
5 7 Apelando para a conclusão negativa do egiptólogo americano, H . GESE, O. C., p . 128 
justifica a omissão dos Egípcios do seu estudo. 
5 8 S. MOBENZ, Âgyplische Religion (Die Religionen der Menschheit , 8), Stuttgart 
1977 s , p. 11. 
346 DIDASKALIA 
Horus incarnado e filho de Rá, o faraó é o garante da ordem cósmica e 
social do universo, a maat. Estabelecer a maat implicava uma acção 
vasta nos domínios do político, do social, do religioso, do cósmico: 
combater as injustiças, satisfazer os deuses, garantir as cheias, os dias e as 
noites a seu t empo 5 9 , até dar caça às feras no deserto... Não fora o 
rei-deus, e as forças do caos, remetidas para as bordas do cosmos «pela 
primeira vez» na criação, desabariam sobre o mundo. História é apenas 
um aspecto parcial da maat: os inimigos do estrangeiro como as feras do 
deserto são manifestações do caos, pois o mundo é o Egipto; garante da 
ordem cósmica, o faraó tinha, por necessidade dogmática, de esmagar 
esses restos de caos. O faraó e os Egípcios são os únicos sujeitos da 
história, enquanto o resto do mundo não passa de objecto. Narrativas 
e representações plásticas só podem então terminar com a vitória dos 
Egípcios. Não importa a facticidade, mas sim a situação típica e a ideia 
que a suporta. «Os textos e as representações historiográficas têm uma 
relação para nós estranha com a realidade, em caso extremo 
transmitem factos aparentes que de modo nenhum aconteceram, 
reproduzem uma imagem da história cuja relação com os factos é 
determinada pela exigência ideal do que devia ter acontecido» 6 0. 
História como consequência da ideologia deu origem ao género 
literário da «novela real», tecida à volta de «um acontecimento 
importante e que actua através dos tempos; e é sempre o rei, não tanto 
como personalidade individual, mas enquanto figura típica, que está no 
centro» 6 1 . Com tamanha idealização e ideologização, até admira 
como a «novela real» de Kamose e de Tutmés III no conselho de 
guerra de Megiddo equilibrou tão bem a restituiçãodo facto com a 
dogmática. 
No todo, pode considerar-se a ideia egípcia de história como 
cu l to 6 2 celebrado pelo faraó na qualidade de penipotenciário dos 
deuses e garante da ordem recta. A alternância de cenas históricas com 
cenas cultuais nas paredes dos templosreforça esta ideia e, por outro 
lado, encontra aí a sua melhor explicação 6 3 . 
5 9 E . O T T O , Geschichtsbild und Geschichtsschreibung in Ägypten, c m Die W e l t des Orients 3 
( 1 9 6 6 ) 1 6 5 . 
6 0 Ibid., p. 161. 
6 1 A . HERRMANN, Die ägyptische Königsnovelle, Leipzig 1 9 3 8 , cit. e m S . HERRMANN, Die 
Königsnovelle in Ägypten und in Israel, e m W Z Leipzig 3 ( 1 9 5 3 / 5 4 ) 5 1 . C o m o trabalho de A . 
Her rmann , o n o m e de «novela real» teve aceitação geral na Egiptologia. 
6 2 E . HORNUNG, Geschichte als Fest, 1966. 
6 3 S. M O R E N Z , Der Alte Orient. V o n Bedeutung und Struktur seiner Geschichte, em I D . , 
Religion und Geschichte des alten Ägypten. Gesammelte Aufsätze, Kö ln /Wien 1975, p. 69. O 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 347 
Os artistas foram efectivamente os primeiros exegetas da ideia 
egípcia de história. Já na paleta de Narmer, dos alvores da história, 
aparece o rei como figura dominante. As cenas de guerra do Império 
Novo são meras elaborações dessa composição arcaica. Sem ajudas no 
carro nem inimigos que se lhe oponham, o faraó triunfa. Na caça 
como na guerra 6 4 , o faraó não é um herói, é um deus. Guerra e caça 
são funções essenciais do rei egípcio, pertencem-lhe de direito. E os 
artistas representaram Tutankhamon a abater touros e leões selvagens 
no deserto e Hatshepsut, varonil na coragem e nas feições, a combater 
ao lado de seu pai Amon... ainda que nem um nem outro tivessem 
estado envolvidos bravatas dessas 6 5. A dogmática régia obrigava... 
Raríssimas vezes os Egípcios se aproximaram da consciência 
histórica como hoje a entendemos. Ocorrem-me dois casos: no I 
Intermediário, com a ruptura da maat — «o que (antes) nunca sucedera, 
acontece (agora)» exclama Ipuwer, apontando um facto irreversível 
contrário à teoria; no Império Novo, com o reconhecimento de três 
partes especialmente significativas da história egípcia — as unificações 
do país por obra de Menes, de Mentuhotep e de Ahmose 
(periodização) «<>. 
IV 
Relativamente tardios no palco da história antiga 6 7 , tardios no 
horizonte do historiador moderno 6 8 , os Hititas foram assaz precoces 
no despertar para a historiografia 6 9. Não criaram a partir do zero, 
estudo aparecera e m Summa Histórica — Propyläen Weltgeschichte, 11, Ber l in /Frankfur t /Wien 
1965, pp. 25-63. 
6 4 Cf . H . FRANKFORT, Kingship and the Gods. A Study of Ancient NearEas te rn Religions 
as an Integration of Society and Nature , Chicago/London 1965 5 , pp. 7-11, onde se contrapõem 
as concepções egípcia e mesopotâmica da realeza através da arte de cada u m a das civilizações. 
6 5 C . DBSROCHES-NOBLECOURT, « A pintura egípcia», em J . P I JOAN, História da Arte, I , trad., 
Lisboa 1972, pp . 117-118. 
6 6 C f . J . VERCOUTTER, Fischer Weltgeschichte, II, 310. 
6 7 C o m H . A. HOFFNER, Histories and Historians of the Ancient Near East: The Hittites, em 
Orientalia 49 (1980) 283 considero hititas os súbditos de u m a sequência de reis começada com 
Anitta de Kussar (c. 1750) e terminada com Suppiluliuma II (c. 1200). 
6 8 Prosseguia há mais de cem anos a exploração científica das antigas civilizações do 
Egip to (desde 1798) e da Mesopotâmia (a partir de 1843) quando a missão arqueológica alemã, 
chefiada por H . Winckler , descobriu a antiga capital do império hitita (Hattusa) em Boghazküy, 
com seus arquivos. A exploração arqueológica de Winckler (1905-1913) foi mais tarde 
continuada pelas de K . Bittel (1931-1937; 1952). O checo B . Hrozny , que levou a cabo e 
decifração da l íngua hitita (1915), dirigiu escavações arqueológicas e m Kültepe/Kanesh (1925), 
retomadas pelo turco T . Ozgiiç em 1948. 
6 9 Ainda que porventura só u m décimo das suas composições literárias contenha 
narrativas históricas e não u m quarto, c o m o supõe E. LAROCHE, Catalogue des textes hittites. Paris 
1 9 7 1 2 (duzentos e vinte «textes historiques» em oitocentas e trinta e três entradas); cf. H . A. 
HOFFNER, O. C., p . 2 8 4 . 
348 DIDASKALIA 
é certo, sorvendo como sorveram a tradição histórica sumero-acádica. 
Mas, desde os primórdios da sua existência política, viu-se o sangue 
novo que injectaram na historiografia oriental 7 0 . 
Ainda os Mesopotâmios insistiam no monótomos e paratácticos 
encadeamentos de factos das inscrições reais e já Anitta de Kussar 
(c. 1750) rebentava o esquema dado com liberdade tal que o primeiro 
estudo sério do seu texto o rotolou de espúrio 7 1 . Com notável 
capacidade de retrospectiva histórica (linhas 39-42: «antes... mas 
depois»), o arquivista-historiador conjugou relatos de construção com 
narrativas de guerra e caça, desembocando na vassalagem do «grão 
príncipe» da zona, Burushanda, ao primeiro rei hitita. Eis o embrião 
de uma historiografia que não deixará de se afirmar cada vez mais 
autónoma e mais segura — na sã mundanidade do «Testamento 
Político» e na racionalidade desempoeirada dos «Anais» de Hattu-
silis I 7 2 (c. 1650-1620), no sentido da sequência temporal e na elevada 
técnica historiográfica da «Crónica de Ammuna» 7 3 , na humana, 
demasiado humana pré-história do «Edito Constitucional de Tele-
pinu» 7 4 , tudo do Reino Antigo — até alcançar o apogeu na obra 
historiográfica de Mursilis II (c. 1329-1300), no Império. Na «Década» 
e nos «Anais»7 5 como nas «Gestas de Suppiluliuma» 7 6, Mursilis 
denuncia uma inovadora concepção globalizante da história e uma 
invulgar capacidade de estruturação e composição literárias 7 7. 
7 0 N ã o está suficientemente provado que o «sentido histórico» dos Hititas seja de atribuir à 
simbiose entre os Hatitas autóctenes e os imigrados Hititas, contra A . KAMMENHUBER, Die 
hethitische Geschichtsschreibung, em Saeculum 9 ( 1 9 5 8 ) 1 4 6 ; considerar a historiografia hitita c o m o 
produ to do chamado espírito indo-europeu «ist jedenfalls lediglich mit Hilfe kräft iger Vorurtei le 
und Unkenntnis aufrechtzuerhalten» (H. CANCIK,Wahrheit... [n. 1 4 ] , p. 1 4 8 ) ; cf. H . A. HOFFNER, 
o. c., p . 322. 
7 1 H . G. GÜTERBOCK, Die historische Tradition un ihre literarische Gestaltung bei Babyloniern 
uni Hethitern, II, Z A 4 4 ( 1 9 3 8 ) 1 4 1 - 1 4 4 : «Anitta hät te also v o n der Assyrern nur den R a h m e n der 
königlichen Bau- oder Weihinschrif t lernen können , hätte aber dank der den Hethi tern eigenen 
erzählerischen Begabung seine Lehrmeister über t roffen. Das ist zwar nicht undenkbar , aber auch 
nicht gerade wahrscheinlich» (p. 142). Estudos publicados desde 1951 levaram, porém, À 
conclusão de que se trata de facto de u m a composição do R e i n o Antigo e o própr io GUterbock se 
vergou aos argumentos em favor da autenticidade (OLZ, 1 9 5 6 , col. 5 1 8 2 ) ; cf. A . KAMMENHUBBR, 
o. c., p p . 1 4 8 - 1 5 1 , H . C A N C I K , W a h r h e i t . . . p . 4 7 - 4 8 e H . A . HOPFNER, O. c., p p . 2 9 1 - 2 9 2 . 
7 2 H . CANCIK,Wahrhe i t . . . p p . 4 8 - 4 9 . 
7 3 H . A . HOFFNER, O. c„ p . 3 0 6 . 
7 4 Excertos de texto e comentár io em H . HOTTEN, «Hethiter, Hurr i ter und Mitanni», in 
Fischer Weltgeschichte, III, 112-113. 
7 5 MURSILIS II. KÖNIG D E R HETHITER: Die Annalen, texto hitita e versão alemã de A . 
Goetze, Darmstadt 1967 ( = Leipzig 1933). 
7 6 Tex to , transliteração, versão inglesa c o m int rodução e notas de H . G . GÜTERBOCK, The 
Deeds of Suppiluliuma as told by His Son Mursiii II, J C S 10 (1956) 41-50; 59-68; 75-85; 90-98; 
107-130. 
7 7 H . CANCIK, Wahrheii..., p . 52-61; Grundzüge der hethitischen und alttestamentlichen 
Geschichtsschreibung (n. 13), 1976, p. 49. 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 349 
Particularmente bem sucedida é a sétima placa das «Gestas» dedicada às 
guerras com os Egípcios. Há mais que terçar de armas: várias linhas de 
descrição histórica, discursos, conselhos de Estado e de guerra, 
manobras diplomáticas (a viúva de Tutankhamon pede a mão dum 
príncipe hitita,juízo correcto de situação: que significará um pedido de 
casamento depois de uma derrota militar?), certo sentido de 
distanciação e causalidade, tudo concorre para fazer das guerras com os 
Egípcios uma página memorável, literária e historiograficamente. No 
seu todo, a historiografia de Mursilis não sofre comparação com as das 
inscrições monumentais de Babilónia nem sequer com os mais 
elaborados e em parte contemporâneos anais assírios 7 8. 
A ideia de história tem raízes orientais comuns: teoria da história é, 
antes de mais, teologia da história. Jamais algum historiógrafo hitita 
concebeu o devir histórico em pura causalidade horizontal. Surgiu até 
uma historiografia tão marcadamente teológica que melhor daria pelo 
nome de «teologia histórica» ou «história teológica». Não se evoca o 
passado pelo simples prazer de narrar, como fazia a tradição histórica, 
nem para conservar os factos para a memória dos vindouros, objecto 
da historiografia oficial, mas tão-somente para fundamentar 
teologicamente situações políticas actuais. Refiro-me às «Orações da 
Peste» 7 9 de Mursilis II e sobretudo à chamada «Autobiografia» ou 
«Apologia» 8 0 de Hattusilis III (c. 1275-1250). 
As «Orações da Peste» supõem a ideia semítica de história como 
consequência de acções humanas. Grassava uma peste no Hatti. 
A origem histórica próxima era clara: trouxeram-na os prisioneiros de 
guerra egípcios capturados nas campanhas da Síria. Mas faltava apurar 
a causa da última, que só podia ser um pecado grave de um rei hitita. 
De consciência limpa, Mursilis acha a causa no rompimento do pacto 
com os Egípcios sobre os habitantes de Kurustama. Réu era seu pai, 
Suppiluliuma. A «Apologia» de Hattusilis III desenvolve uma ideia 
diferente. História (se assim podemos chamar a uma biografia) é um 
produto exclusivo e acabado da divindade protectora de Hattusilis, 
Ishtar de Samuha. Do berço ao trono, Ishtar «nunca abandonou» (natta 
kuwapikki) e «sempre salvou» (humandazapát) o futuro rei. Não se 
7 8 C f . H . CKNCIK,Wahrheit... p . 6 1 . 
7 9 Versão inglesa em J . B . PRITCHARD (ed.), o. c., pp. 394-396. 
8 0 Embora muitas passagens justifiquem estas designações correntes, o texto é para H . 
GESE, O. c., p . 139 uma «autobiografia na forma de u m decreto real»; mas, na opinião de H . 
CÀNCIK,Wahrheit... p. 65, pertence mais propriamente ao género literário dos documentos de 
fundação e doação. 
350 DIDASKALIA 
conta a vida de Hattusilis, canta-se a protecção, o carinho, o poder, 
o triunfo de Ishtar. Se há uma lei da história, o seu nome hitita é para 
handandatar, qualquer coisa como «ordenação divina», «ordem divina», 
«império justo» da deusa. História não é consequência do agir 
h u m a n o 8 1 . Antes se remete o homem para uma passividade e 
irresponsabilidade to ta l 8 2 . 
Mas é isto um extremo. Nos «Anais de Mursilis», apesar das 
intervenções miraculosas dos deuses (com predomínio da deusa do Sol 
de Arina e do deus da Tempestade, Tesub) 8 3 , nunca se apaga a 
participação humana. O que é mais conforme com a ideia geral dada 
pela historiografia hitita: sinergismo da causalidade horizontal 
(humana) com a vertical (divina). Nem faltam apresentações 
historiográficas em que os deuses se eclipsam de todo. 
N ' « 0 Cerco de Ursu», por exemplo, os deuses não têm nenhuma 
influência no curso dos eventos, nem sequer se mencionam, a não ser 
uma só vez (deus da Tempestade) numa maldição 8 4 . Eminentemente 
secular é também o preâmbulo do «Edito Constitucional de Telepinu». 
Teologicamente moderados são ainda o «Testamento Político» e as 
«Gestas» de Hattusilis I: sem esquecerem os deveres cultuais 
(Testamento) e a assistência divina nas batalhas (Gestas), essas obras 
concedem largo espaço à iniciativa humana. 
Curiosamente, todas estas obras são do Reino Antigo. À medida 
que avançamos no tempo, cresce a compreensão teológica da história. 
Ao contrário da experiência moderna, a evolução não se dá no sentido 
da secularização, mas exactamente na direcção inversa. Os «Anais» de 
Mursilis II têm uma ideia de história muito mais teológica do que a 
analística antiga. 
Tão pouco como os Mesopotâmios ou os Egípcios, os Hititas se 
deixaram embalar pelo sonho moderno da objectividade histórica. 
Nunca cuidaram de investigar o passado por si próprio. Interessa-
vam-lhes mais as lições da história. E souberam pôr a história ao 
serviço da política, com uma tendenciosidade que toca as raias da 
propaganda. Nos preâmbulos a decretos ou pactos de vassalagem 
8 1 Contra H . GESE, O. C., p. 139. C f . n. seguinte. 
8 2 H . A . HOFFNER, o. c., p. 3 1 6 : «Even of himself Hattusili makes no statement that he 
earned his power . N o special obedience or cultic observances secured it for h im. It was strictly 
o f the divine initiative and grace. Ishtar chose h im as a child and vouchsafed to h im her 
protection and constant solicitude». 
8 3 H . CANCIK. Grundziige... pp. 1 4 4 - 1 4 6 ; H . A . HOHWEK, O. C., p . 3 1 4 . 
8 4 H . G . GÜTERBOCK, Die historische Tradition...,11,117 ( 1 4 ' ) : «Möge der Wet te rgo t t euch 
fortschwemmen!»; H . A. HOFFNER, o. C., p . 299. 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 351 
trata-se obviamente de uma «historiografia ao serviço de...» Se a 
história hitita é um céu aberto de sabedoria na política interna e 
externa, argumenta-se, há que acatar sem discussão as leis do país e os 
pactos concedidos aos vassalos. Os arrazoados históricos do «Edito 
Constitucional de Telepinu» e da «Apologia» de Hattusilis III não 
passam de instrumentos de propaganda política, difamando sem 
rebuço os reis destronados e legitimando a todo o custo os 
usurpadores 8 5. 
Inovadora foi a historiografia hitita no espaço concedido ao 
homem — até os generais inimigos se recortam com plasticidade 
própria, não são sombras nem caricaturas 8 6 — e à dimensão política da 
história 8 ? . Inovou na busca do racional (argumentação histórica em 
documentos jurídicos 8 8), na reflexão sobre a verdade (histórica 8 9 e até 
ontológica 9 0), com um grau de abstracção pouco comum no 2.° 
milénio a. C.. Inovou ainda libertando a historiografia do mito. 
Soube «ordenar e interpretar os acontecimentos particulares a 
partir de um ponto de observação mais elevado» 9 1. E chegou a 
articular uma filosofia da história e do Estado 9 2 : o Estado hitita 
prospera sempre que a família real se mantém unida, os grandes não se 
«comem» uns aos outros, os cidadãos não perseguem egoisticamente os 
seus interesses e ambições, todos seguem os conselhos e as leis do rei 
(preâmbulos históricos do «Testamento Político» de Hattusilis I e do 
«Edito Constitucional de Telepinu»). 
V 
Emergindo timidamente do colapso definitivo dos Hititas e do 
ominoso entardecer do Império Novo dos Egípcios, Israel parecia 
destinado a epígono serôdio e inglório das civilizações pré-clássicas. 
Que se havia de esperar daqueles grupelhos seminomádicos e semi-
-selvagens arribados às montanhas agrestes de Canaã pelos fins do 
8 5 H . A. HOFFNER, o. c., pp. 307-308,315. 
8 6 H . CANCIK, Grundzüge... p . 60. 
8 7 Cf . Ibid., pp . 38-43,59-66,143,147-151. 
8 3 H . A . HOFFNER, O.C.,p. 300. 
8 5 H . CANCIK,Wahrhe i t . . . p p . 7 9 - 8 0 . 
9 0 Ibid., pp . 88-89. 
5 1 H . SCHMÖKEL, Geschichte des alten Vorderasiens (Handbuch der Orientalistik, I I) Leiden 
1957, p . 150, cit. em H . CANCIK, Grundzüge... p. 6. 
9 2 H . A . HOFFNER, O. C., p p . 3 0 1 - 3 0 2 . 
352 DIDASKALIA 
Bronze Recente (1300-1200 a. C.)?! No entanto, desse chão 
aparentemente estéril é que iria brotar a mais rica historiografia do 
Oriente antigo. Se e em que medida também a «concepção israelita de 
história é única no seu género» 9 3 , há que ver. 
Só um Estado que faz ele próprio história está em condições de 
escrever história, opina E. Schwartz 9 4 com alguns orientalistas. Se 
assim é, Israel constituiuma excepção, pois soube debruçar-se sobre 
o seu passado e captá-lo com narrativas inolvidáveis muito antes 
de se organizar em Estado. Perguntemos aos Egípcios, aos Sumé-
rios ou aos Semitas que lhes sucederam na Mesopotâmia pelo seu 
passado pré-estatal, e a resposta será um silêncio opaco, impenetrável. 
Israel, ao contrário, reteve e elaborou muitos episódios da sua pré-
-história nomádica e das tentativas de penetração e sedentarização em 
Canaã. Refiro-me às sagas 9 5 da literatura hebraica antiga. 
Não há que elevar as sagas veterotestamentárias a estatuto 
historiográfico que efectivamente não têm. Mesmo as sagas de heróis 
do Livro do Juízes, carregadas de sentido político, só tocam, mas não 
ultrapassam, o limiar da história. Também não há que rebaixar e 
denegrir essas lendas, como se a História tivesse o monopólio de 
actualizar o passado. História e saga são duas formas distintas e 
igualmente legítimas de aflorar a Geschichte (de «geschehen», 
«acontecer»). Alheia ao preconceito «científico» da «objectividade», em 
união vivencial com os episódios que recorda, a saga conserva a 
Geschichte com uma riqueza e uma profundidade inacessível à fria 
contemplação da história. Saga é história/ Geschichte com todos os 
ingredientes vitais que fazem a consciência, a memória... a história de 
um p o v o 9 6 . 
Fortemente teológicas (Deus é o grande agente), as sagas vêem a 
história fundamentalmente como etiologia e como paradigma. 
Satisfazem a curiosidade intelectual respondendo a questões sobre a 
9 3 S . MOSCATI , O. c., ( n . 1 ) , p . 2 5 9 . 
9 4 Citado com aprovação em G. VON RAD, Der Anfang der Geschichtsschreibung im alten 
Israel (n. 10), p . 176; no mesmo sentido, O . KAISEE, Einleitung in das Alte Testament. E inführung 
in ihre Ergebnisse und Probleme, Gütersloh 1970 2 , p. 51; A. KAMMENHUBER, O. C., p. 149, per-
gunta, a propósito do primeiro texto historiográfico hitita, se «jenes grossartige Ereignis, das 
Anitta schildert, d . h . die erstmalige Ein igung der kleinen protohattischen Lokalfürstentümer 
nicht — neben einer besonderen Begabung des Darstellens — mitgewirkt haben konnte, um 
einen ebenfalls historischen Bericht zur schaffen». 
9 5 «lenda» seria talvez mais correcto, pois a «saga» escandinava não corresponde à «Sage» 
alemã (de «sagen», «dizer»), transformada apressadamente em «saga» nas línguas românicas; cf. P. 
GILBERT, Légende ou Saga?, V T 2 4 ( 1 9 7 4 ) 4 1 1 - 4 2 0 . 
9 6 Cf . G. VON RAD, Das erste Buch Mose. Genesis ( A T D 2/4), Gött ingen 1961 6 , 
pp . 23-26; Theologie des Alten Testaments, 1 4 , München 1962, p . 121. 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 353 
origem (ama ou amov) de insólitas realidades actuais. E servem ao 
ouvinte/leitor a «moral da história» (paradigma) 9 7 . 
Passando às produções historiográficas, afloremos rapidamente 
três, porventura as mais significativas: uma monografia («História da 
Sucessão de David»), uma história da nação até à entrada em Canaã, 
pelo menos («História Javeísta») e a história das vicissitudes de seis 
séculos, da sedentarização à monarquia, da afirmação ao cambalear e ao 
finar dos reinos judaicos («História Deuteronomista»), 
Tida justamente como o «trecho preferido dos exegetas» 9 8 e a 
«obra mais bela da arte narrativa hebraica» 9 9, a História da Sucessão 
não se limita a evocar e apresentar os acontecimentos — David a 
caminhar para o fim, como homem e como rei, o trono ameaçado, a 
sucessão dada vez mais intrincada. Procura desvendar os móbeis dos 
agentes, recortar as personalidades, salientar as repercussões. Jamais se 
atingira em Israel tal perfeição no domínio de intrigas, caracteres, 
questões jurídicas. Nunca se urdira semelhante teia de acontecimentos, 
sem modelo nem blocos pré-construídos, com príncipes, espiões, 
soldados, até mulheres... a primeira vez que alguém, antes de 
Heródoto, julga as mulheres capazes de entrar na história 1 0 ° . 
E que frescura de mentalidade histórica e de humanismo! Agem 
homens, com personalidade e responsabilidade própria, homens de 
carne e osso, adúlteros, incestuosos, assassinos, manhosos e sedentos de 
poder... não figuras de santos, envoltas em nuvens de incenso. «Não 
acontece nenhum milagre, não surge nenhum chefe carismático, mas 
os acontecimentos desenrolam-se segundo as suas leis imanentes. (...) 
. . .os acontecimentos seguem seu curso sem que se perceba a menor 
falha no nexo causal terreno» 1 0 1 . Quem acabou de ler as sagas não 
pode deixar de estranhar esta ausência de Deus. Mas, afinal, Deus está 
lá e... conduz a história (2 Sam 11, 27; 12, 24; 17, 14). C o m o ' 
Imperceptivelmente, por meio das causas segundas. 
Isto não é apenas uma nova concepção teológica. E também uma 
nova concepção da história, devolvida à inteira responsabilidade do 
homem. Quem assim pensa e escreve quebrou definitivamente as 
9 7 R . SMBND, Elemente alttestamentlichen Geschichtsdenkens (n. 15), pp . 10-23. 
9 8 L . R O S T , Die Überlieferung von der Thronnachfolge Davids ( B W A N T III/3), Stuttgart 
1926, p. 83 = ID., Das kleine geschichtliche Credo und andere Studien zum Alten Testament, 
Heidelberg 1965, pp . 191-192: «Lieblingsstück der Exegeten», com aspas no original. Citarei 
doravante segundo a reimpressão. 
9 9 Ibid., p. 244. 
>0° H . CANCIK, Grundzüge... p . 106. 
G. VON RAD, Der Anfang... p. 185. 
354 DIDASKALIA 
amarras que o ligavam às antigas instituições sacrais; respira a atmosfera 
envolvente do iluminismo salomónico, numa profanidade inteira-
mente desmitificada. 
Sensivelmente contemporânea deve ser a «Históriajaveísta»1 0 2, de 
esquema (tempos primordiais, dilúvio, tempos históricos) e finalidade 
(legitimar as pretensões hegemónicas da dinastia reinante) semelhantes 
aos da Lista de Reis suméria. Mas, se o modelo é mesopotâmico, que 
tranformações não sofreu nas mãos talentosas do Javeísta! 1 0 3 Uma lista 
seca tranforma-se em narrativa dinâmica. Rudimentos de história 
nacional (o mundo era a Suméria...) dão lugar a uma história mundial, 
cujos horizontes vão da Mesopotâmia ao Egipto (Gn 12) e onde cabem 
Arameus, Amonitas, Moabitas, Edomitas, Quenitas e Filisteus. De uns 
farrapos de história política nasce uma história cultural e das 
mentalidades. 
Também aqui a história é devolvida ao homem. O próprio 
objecto da «História Javeísta», sobretudo na introdução das Origens, 
é o homem com os seus problemas (o bem e o mal, o trabalho e a dor, 
os avanços culturais de mistura com retrocessos morais... suprema 
ambiguidade do progresso!), o homem, não a realeza e as suas 
ambições («Lista de Reis»), não as instituições e os lugares sagrados 
(«Crónica deWeidner»). 
E também aqui teoria da história continua a ser teologia da 
história. Mesmo sem milagres, até na mais retinta profanidade, era 
óbvio que Deus conduzia a história. A questão estava em saber «como» 
e «em que direcção». Ao primeiro quesito estava já dada resposta 
(História da Sucessão): no curso normal dos acontecimentos. «Em que 
direcção» via-se agora: do mare tnagnum de povos para Abraão, e deste, 
rumo à posse de Canaã. E com isto surgia uma novidade absoluta, não 
só em Israel com em toda a Antiguidade Oriental: história não é 
amálgama de eventos desconexos; tem uma unidade global; obedece a 
um plano. O Javeísta consegue captar a dinâmica, mais, a dialéctica da 
história, feita de realizações, fracassos e adiamentos até descansar na 
posse tranquila de Canaã. A posse da «terra», meta final dos patriarcas 
1 0 2 N ã o convencem as tentativas recentes de J . V A N SETERS, Abraham in History ia 
Tradition, N e w Haven, Conn . /London 1 9 7 5 , A . M E I N H O I D , Die Gattung der Josephsgeschichte und 
des Estherbuches; Diasporanovelle, I , Z A W 87 (1975) 3 0 6 - 3 2 4 ; II , ibid., 8 8 (1976) 7 2 - 9 3 e H H . 
SCHMID, Der sogenannte Jahwist. Beobachtungen u n Fragen zur Pentateuchforschung,ZUrich 
1976, no sentido de baixar a data de J (da era davídico-salomónica para o sec. v i a. C.) ou de pôr 
e m dúvida a sua própria existêntia. 
1 0 3 E . A . SPEISER, Genesis (AB 1 ) , Garden City , N . Y . , 1 9 6 4 p. XXVII : «If so much in the 
Book of Genesis remains vivid and memorable to this day, the reason is not metely the content 
of the tales but , in large measure as well, the matchless w a y in whicht J has told them». 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 355 
seminómadas, é adiada era quatrocentos anos para caber em sorte ao 
povo das doze tribos. 
A «História Deuteronomista» 1 0 4, se é verdade que o problema de 
interpretar a história nasce com o fracasso 1 0 5 , estava em condições 
ideais para teorizar. E de facto oferece uma «teoria da história de 
Israel». Teoria simples, mas teoria apesar de tudo e de certo modo 
adequada, pois explicita em categorias de pensar histórico um mundo 
complexo de vivências e acontecimentos. Basta considerar o prólogo 
do Livro dos Juizes (Jz 2) ou as considerações sobre a queda de 
Samaria (2 Re 17,7 ss). Quantas personagens, quantos lugares, quanto 
tempo não se comprimem nos juízos abstractos das formulações 
genéricas! 1 0 6. Procura-se captar o «sentido autêntico» da história de 
Israel à luz de seiscentos anos de acontecimentos e da sua reprodução 
em dezenas de documentos, escritos e orais. Acaba por se escrever 
uma grandiosa teodiceia em forma de narrativa: Deus foi reagindo à 
apostasia crescente com avisos e castigos e, finalmente, quando estes 
não resultaram, com a aniquilação completa 1 0 7 . 
Mais uma vez teoria da história é teologia da história. Só ainda 
não satisfazem as respostas dadas até aí ao «como» da direcção divina. 
Com um abandono do profano que lembra a evolução da 
historiografia hitita, respondem os Deuteronomistas: Deus intervém 
na história pela palavra autêntica dos seus profetas 1 0 8 . E assim se 
1 0 4 Reconstituída por M . N o t h , Überliejcrungsgeschichtliche Studien, Halle 1 9 4 3 Tübingen 
e Darmstadt 1967 3 . Uso a edição de Darmstadt . Contrar iamente a M . N o t h (um só autor da 
«História Deuteronomista»), H . W e i p p e r t , Die «deuteronomistischem Beurteilungen der Könige von 
Israel und Juda und dos Problem der Redaktion der Königsbücher, e m Biblica 5 3 ( 1 9 7 2 ) 3 0 1 - 3 3 9 supõe 
pelo menos três redactores para os Livros dos Reis . S. M i t t m a n n , Deuteronomium. 
Literarkritisch und traditionsgeschichtlich untersucht ( B Z Ä W 139), Berlin 1975, com uma 
proposta inovadora (já na história da redacção o Deute ronómio está l igado tanto ao Pentateuco 
como ao bloco Josué-Reis) ainda não abalou seriamente a reconstituição de M . N o t h . Para u m 
balanço da discussão científica cf. E . J bnni , Zwei Jahrzehnte Forschung an den Büchern Josua bis 
Könige, T R u 2 7 ( 1 9 6 1 ) 9 7 - 1 1 8 , 1 4 2 - 1 4 6 ; F. L a n g l a m e t , recensão conjunta de R . Smend, Das 
Gesetz un die Völker, e m H . W . W o l f f (ed.)., Probleme biblischer Theologie, Festschrift f ü r 
Gerhard v o n R a d , München 1 9 7 1 , pp . 4 9 4 - 5 0 9 ; T . V e i j o l a , Das Königtum in der Beurteilung der 
deuteronomistischen Historiographie, Helsinki 1 9 7 7 ; B . C . B i r c h , The Rise of the Israelite Monarchy, 
Missoula, Montana, 1 9 7 6 , em R B 8 5 ( 1 9 7 8 ) 2 7 7 - 3 0 0 . 
1 0 5 J . Hempel, Die Mehrdeutigkeit der Geschichte als Problem der prophetischen Theologie, 
citado em M . W eippbrt , Fragen des israelitischen Geschichtsbewusstseins, V T 2 3 ( 1 9 7 3 ) 4 2 5 . D e 
modo: semelhante, A . A l t , Die Deutung der Weltgeschichte im Alten Testament, S T K 5 6 ( 1 9 5 9 ) 
130 = ID., Zur Geschichte des Volkes Israel, München 1979, p. 441: a interpretação da história 
mundial em Israel é «eine unter den Schmerzen des Erlebens und Erleidens unter W e h e n 
geborene neue Einsicht...» 
1 0 6 H . C a n c i k , Grundzüge... p. 3 9 . 
1 0 7 M . N o t h , O. c., p . 1 0 0 . 
1 0 8 G. von Rad, Die deuteronomistische Geschichtstheologie in den Königsbiichern, e m 
Gesammelte Studien. , pp. 189-204. 
356 DIDASKALIA 
transforma toda aquela história num «único, monstruoso vactícinium 
ex eventrn109. 
Teoria da história, teodiceia e profecia em marcha, a «História 
Deuteronomista» persegue objectivos concretos. Interessam-lhe sobre-
maneira as lições da história. Também ela é uma etiologia e um 
paradigma: etiogia da Palestina perdida (J era a da posse) e paradigma 
das condições fundamentais para reencontrar e continuar a história 
nacional 1 1 0 . Havia exemplos de crises graves: a passagem à 
sedentarização (Jz), a instauração da monarquia (1 Sam). Nessas 
situações desesperadas, a solução foi reconhecer a apostasia e voltar a 
Javé. É o que agora, com a independência perdida e a população 
desterrada, os Deuteronomistas não se cansam de pregar: iub, 
«converter-se», «voltar-se» ocorre constantemente nos seus discursos 1 1 1. 
Pelo volume de materiais manuseados, pelos grandes lapsos de 
tempo tratados numa só obra, pela investigação do modo de agir de 
Deus, pelo espaço reservado aos homens, a historiografia israelita é 
única no mundo oriental. Não difere das suas congéneres na 
concepção linear do tempo, nem no carácter pragmático, nem na 
dimensão teológica global. A sua especificidade está em abrir os olhos 
para a dialéctica e até para o mistério 1 1 2 da história. E na ideia de um 
plano executado por homens livres sob a alta direcção de Deus, que até 
escreve direito por linhas tortas (Gn 50, 20). O historiador moderno 
apreciará sobretudo dois traços: a profanidade dos escritores 
salomónicos 1 1 3 e a preocupação de objectividade dos Deuterono-
mistas 1 1 4 . 
1 0 9 H . C a n c i e , Grundzüge... p. 4 0 . 
1 1 0 R . Smend, Elemente... p . 27. 
1 1 1 H . W . W o l f f , Das Kerygma des deuteronomistischen Geschichtswerks, e m Gesammelte 
Studien zum Alten Testament (TB 22), München 1964, pp . 308-324. 
1 1 2 L. D b l e k a t , Tendenz und Theologie in der David-Salomo-Erzählung, em Das ferne und 
nahe Wort (Feztschrift flir Leonard Rost) , B Z A W 105, Berlin 1967, p. 28: os pontos fulcrais da 
História da Sucessão «erklären nicht, w a r u m die Herrschaft fest in Salomos H a n d lag, sondern 
lassen diese Tatsache vielmehr als unerklärlich, als ein Ärgernis erscheinen. Eben dies ist offenbar 
die Absicht der Erzählung». 
1 1 3 Salientada por E. M e y e k , Geschichte des Altertums, II, 2 3 , pp . 2 8 5 - 2 8 6 : «(Es) zeigt sich 
hier in geradezu groteskerWeise die in der Weltgeschichte wal tende Ironie, dass diese durch u n d 
durch profanen Texte (História da Sucessão) d e m Juden tum u n d d e m Chris tentum als heilige 
Schriften gelten...» 
1 1 4 O Deuteronomista raras vezes toma a palavra. Prefere deixar falar as antigas tradições, 
ainda que opostas às suas ideias fundamentais . Assim, narra sem objecção e sem crítica vários 
actos de culto fora de Jerusalém, sobretudo antes de Salomão construir o templo: em Silo (1 Sam 
1-2), em Gabaon (1 R e 3), em Of ra (Jz 6,11-24). Cf. M . N o t h , O. C., pp. 95,106-107. 
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 357 
VI 
Dentro dos seus condicionalismos culturais, a começar pela 
mundividência teológica, o Próximo Oriente antigo produziu não só 
documentação histórica mas elaborações historiográficas baseadas em 
fontes. Se esse é dificilmente o caso de Mesopotâmios e Egípcios, os 
Hititas e sobretudo os Israelitas souberam criar obras literárias em que 
os eventos do passado revivem nas suas complexas determinantes 
políticas, sociais, familiares, humanas e religiosas. Não foram 
sociedades fechadas em pensar mágico ou mítico, cúltico ou cíclico. 
O que H. Cancik afirma para o 2.° milénio a. C. é mais exacto para 
Israel do 1.° milénio: «Em determinados círculos destas sociedades, nas 
diversas culturas com força diversa, vivia uma consciência histórica que 
se articulouem várias formas de historiografia» 1 1 5. 
Não encontramos aí nada de semelhante a Tucídides. Descrever 
povos estrangeiros por si próprios, como faz Heródoto nas suas 
«Histórias Persas», não ocorre no Oriente Antigo. Mas é injusto erguer 
biombos ou cavar abismos ilusórios entre a historiografia oriental e a 
clássica. Ouçam-se apenas classicistas. 
A. Momigliano censura K. von Fr i tz 1 1 6 por omitir a historio-
grafia oriental no estudo da grega: «A questão do aparecimento dos 
géneros historiográficos é inseparável da questão das relações entre a 
historiografia grega e a oriental» 1 1 7. H. Stasburger, apoiado nos 
relatos da conquista de Sardes (1,86) e da queda de Mileto (6,19), diz 
que Hérodoto não encontrou uma posição filosófica segura entre a 
interpretação teológica tradicional e a política-racional moderna 1 1 8 . 
Neste ponto, o primeiro historiador seria também «o último 
representante da era arcaica» 1 1 9. Aí está o cordão umbilical da 
interpretação teológica a ligar a historiografia clássica à pré-clássica. 
Se a «história teocrática» de Collingwood fosse negação da história, 
teríamos de adiar para Tucídides a paternidade dessa ciência... para, 
mesmo aí, ficarmos quase engasgados, ao engolir Alexandre como 
filho de Zeus e descendente de Hércules e Aquiles. 
1 1 6 H . Cancik,W a h r h e i t . . . , p. 5 1 . 
1 1 6 Cf . supra, n . 3. 
1 1 7 E m G n o m o n 44 (1972) 207, citado cm H . C a n c i k , Grundzüge... p. 6 9 , n . 9 . 
1 1 8 H . Strasburges, o. C., p p . 5 4 , 7 0 - 7 1 . 
1 1 9 Ibid., p. 70: «Von einem echten Primat der theologischen Geschichtsschreibung kann 
man , w e n n ich nicht irre, nu r bei Herodo t sprechen; der erste Historiker ist in dieser Hinsicht 
zugleich der letzte Repräsentant des archaischen Zeitalters». 
358 DIDASKALIA 
Para debater até ao fundo o papel dos deuses ou de Deus na 
história, teríamos de deixar esta pela metafísica. E também aqui 
poderíamos evocar um clássico — o grande Homero — e um seu 
intérprete moderno. A intervenção dos deuses nas epopeias homéricas 
não empobrece a interpretação da história, antes a considera «na sua 
significação absoluta» e na conexão universal do mundo. «Desse 
modo, surge à plena luz a limitação, a miopia e a dependência das 
acções humanas em relação aos decretos hiper-humanos e inson-
dáveis» 1 2 0 . 
A tendência marcadamente pragmática da historiografia oriental 
tem excelente continuidade em Tucídides e Políbio, que vêem na 
história a grande mestra da acção política e militar, e em Salústio e 
Tácito, que se comprazem em apresentar exemplos edificantes ou 
repugnantes da vida m o r a l 1 2 1 . 
A melhor maneira de julgar a historiografia e a ideia de história da 
Antiguidade Oriental não é, porém, comparando-as com as clássicas 
ou as modernas, mas enquandrando-as no seu ambiente cultural e nos 
pressupostos essenciais de qualquer actividade historiográfica. A histo-
riografia oriental é produto da sua época, como a história da Igreja de 
Eusébio era filha da apologética e a dos tempos modernos se reconhece 
na filosofia racionalista 1 2 2. O Iluminismo pôs termo a cerca de quatro 
milénios de teologia da história e transformou o melhor que pôde a 
ideia cristã de história: a criação passou a evolução; Jesus Cristo 
a consciência histórica da humanidade; a expectação do fim da história 
veio dar, em algumas versões atraentes, a teoria do progresso gradual. 
O resultado final foi outra escatologia dogmática 1 2 3 , posto que 
atenuada e humanizada. 
Resta ver aonde a evolução vai dar e se a filosofia, a teologia, a 
história ou a sociologia prevalecerão na interpretação das acções 
humanas. Facto é que a teologia da história se manteve por bons quatro 
milénios. A filosofia da história, sua sucessora, parece não chegar aos 
quatro séculos... 1 2 4 
JOSÉ NUNES CARREIRA 
120 w . J a e g e r , Paideia, trad., Lisboa s. d. , p. 74. 
1 2 1 Cf . H . S t r a s b u r g e r , O. c., pp . 52-53. 
1 2 2 H . v o n C ampenhausen, Les Pàresgrecs, trad., Paris 1 9 6 3 , p . 8 6 . 
1 2 3 P . S c h u b e r t , The Twentieth-Century West and the Ancient Near East, em R . C . D e n -
tan (ed.), o. c„ pp . 310-317. 
1 2 4 J . L b G o f f - P . N o r a , Fazer História, I, trad., Lisboa, 1 9 7 7 , p. 11 : « A história nova, que 
recusa mais resolutamente do que nunca a filosofia da história...»

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