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INTRODUÇÃO À TEOLOGIA II 2º MÓDULO NOÇÕES BÁSICAS DE ECLESIOLOGIA Pe. Adenilson S. Ferreira Apostila Ad usum scholarum 1 o . Semestre/2015 NOÇÕES BÁSICAS DE ECLESIOLOGIA 1 DELINEAMENTO Entende-se por “Eclesiologia” o tratado ou a parte da Teologia que estuda o mistério da Igreja: sua origem, sua natureza, sua constituição, sua missão, sua relação com o mundo e tantos outros aspectos relacionados com sua vida. Como observa Salvador Pié-Ninot, “os estudos atuais sobre a história da Eclesiologia estão de acordo em situar o verdadeiro nascimento do tratado ‘De Ecclesia’ na obra de Tiago de Viterbo, ‘De Regimine Christiano’, publicada em 1301-1302”1. Portanto, o referido tratado não remonta às origens do Cristianismo, mas, surgiu na Idade Média. Mesmo no Novo Testamento, ainda que várias passagens façam referência a sua existência, não se encontra qualquer sistematização de uma doutrina sobre a Igreja 2 . Isso não significa que anteriormente os cristãos não tivessem uma consciência viva, clara e precisa do que é a Igreja. De acordo com Pié-Ninot, nos primeiros séculos, a Eclesiologia era mais vida e consciência do que teologia sistemática 3 . Como a Igreja estava presente em todas as suas reflexões e ainda era uma presença fortemente afirmada na sociedade, um tratado particular sobre ela seria desnecessário 4 . Porém, parece evidente que seu surgimento se fez inevitável quando ela começou a ser questionada (por diversos fatores) na história: “em todas as épocas houve problemas com a Igreja. Nem poderia ser diferente quando a ação divina é veiculada pela atuação humana, sempre caracterizada por fraqueza, imperfeição, falibilidade e maldade”5. Somente na Idade Média [...] é que se firmou a necessidade de estudar de maneira orgânica, a Igreja, também sob o aspecto estritamente institucional. É verdade que o Oriente teve de enfrentar, muito cedo as dificuldades do cesaropapismo e combater suas batalhas para afirmar a autonomia institucional da Igreja diante do poder imperial. Mas a configuração gradual desses problemas, durante a segunda metade do primeiro milênio, não 1 PIÉ-NINOT, Salvador. Introdução à Eclesiologia. São Paulo: Loyola, 1998, p. 13. 2 Cf. LELL, Joachim. Igreja/Eclesiologia. In: EICHER, Peter (dir.). Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia. São Paulo: Paulus, 1993, p. 368. 3 Cf. PIÉ-NINOT, S. Introdução à Eclesiologia, op. cit., p. 14. 4 Cf. BOUYER, Louis. La Iglesia de Dios: Cuerpo de Cristo y Templo del Espíritu. Madrid: Studium, 1973, p. 19-20. 5 WIEDENHOFER, Siegfried. Eclesiologia. In: SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática. 4. ed. Petrópolis, Vozes: 2009, 4. v, p. 50. impediu nem perturbou a ampla e rica meditação que os grandes Padres da Igreja constantemente fizeram sobre a realidade eclesial, contemplando o mistério da graça e da eleição divina que nela assume forma e se manifesta. Fizeram-no utilizando principalmente imagens, semelhanças, metáforas, a linguagem da contemplação e da oração, e estavam pouco interessados em buscar, eventualmente, na filosofia política do mundo antigo, esquemas conceituais elaborados, nos quais pudessem enquadrar a Igreja e sua presença no mundo. O mistério da graça estava ali, onde não alcançavam os problemas institucionais, a presença de Cristo em seu corpo que é a Igreja, a ação do Espírito nela, sua correspondência ao desígnio salvífico do Pai, despertando a reflexão e ativando um discurso que, a respeito desses temas, se valia das linguagens da poesia e da mística, quando não mesmo da mitologia, mais do que dos raciocínios conceituais 6 . De qualquer forma, algumas perguntas parecem inevitáveis: O que é a Igreja? Por que tenho que crer nela? Por que aceitar sua mediação e não relacionar-se diretamente com Cristo? Que garantias há de que Cristo fundou a Igreja e de que ela não seja simplesmente uma iniciativa humana? Qual é sua finalidade? Ainda que não se pretenda oferecer um curso completo de Eclesiologia, mas, “noções básicas”, o presente estudo deverá se deter apenas a algumas questões: a origem e a natureza da Igreja, sua existência como condição para a fé em Cristo Jesus e, por fim, o estudo de um texto do então Cardeal Ratzinger sobre sua manifestação no mundo como “uma comunidade a caminho”. 2 A ORIGEM E A NATUREZA DA IGREJA Para compreender a origem e a natureza da Igreja, a Eclesiologia necessariamente deve considerar sua relação com Jesus. Para isso, parte-se do estudo da Igreja, enquanto fenômeno histórico originado no movimento de Jesus, para depois, proceder a análise de sua natureza a partir de algumas imagens e símbolos provenientes do Novo Testamento e da Tradição cristã. 2.1 Jesus, o Reino de Deus e a origem da Igreja A questão da origem da Igreja é um dos temas clássicos da Eclesiologia, porque, segundo Rufino Velasco, trata-se de um tema “fontal” e “radical”. Fontal (grifo do autor), não somente porque estuda a fonte original da Igreja, como algo que nos remete ao passado, mas sobretudo porque desta fonte a 6 DIANICH, Severino; NOCETI, Serena. Tratado sobre a Igreja. Aparecida: Santuário, 2007, p. 175-176. 4 Igreja continua nascendo sempre, e é portanto um tema de suma atualidade em qualquer momento histórico da Igreja. Radical (grifo do autor), porque se refere às raízes e fundações colocadas no princípio, base a partir de onde a Igreja deve crescer e para onde deve retornar sempre. Nesta perspectiva, nosso tema é de grande interesse em muitos sentidos: antes de tudo, por obrigar constantemente a Igreja a uma poda histórica de toda frondescência que não se nutra dessas raízes... 7 O entendimento tradicional sobre a origem da Igreja se fixou basicamente em demonstrar sua fundação como obra do próprio Jesus. Para ser mais preciso, os manuais clássicos afirmam que o Filho de Deus sabia, desde o início, que tinha de fundar a Igreja. Aliás, asseveram que esta é a grande obra para qual foi enviado ao mundo: edificar sua Igreja 8 . É claro que esse enfoque levanta muitos problemas na atualidade 9 . Ainda que não haja espaço para apresentar todas as críticas feitas a ele ao longo da história, cabe expor, sumariamente, uma das questões de maior relevância: Pergunta-se se é possível falar-se de uma instituição da Igreja por um Jesus pré-pascal, ou então se se deve pensar no evento da eclesiogênese como posterior à Páscoa. Em outras palavras, se existe um anúncio que dá vida à Igreja, é ele o anúncio do Reino que constituiu o coração da pregação de Jesus, ou então o anúncio de sua ressurreição, feito pelos discípulos? 10 Torna-se muito comum na atualidade a oposição entre Jesus Cristo e a Igreja. Por exemplo, no início do século XX, o teólogo e filósofo francês Alfred Loisy (1857-1940), modernista, afirmara: “Jesus pregou o reino de Deus, e o que veio foi a Igreja”11. Com essa frase, quis dar a entender que a Igreja não foi desejada por Deus. Segundo o Cardeal Joseph Ratzinger, é possível compreender o pensamento de Loisy, quando se observa que Jesus, em sua mensagem, não anunciou imediatamente o advento da Igreja, mas do Reino de Deus. Pode-se constatar ainda alguns dados estatísticos: existem 122 passagens do Novo Testamento sobre o Reino de Deus (das quais 99 pertencem aos Evangelhos Sinóticos e 90 são diretamente palavras de Jesus) 12 . Além disso, é curioso “o fato de os evangelhos não falarem de Igreja, a não ser por apenas duas vezes (Mt 16,18 e 18,17), e em uma delasa Igreja é anunciada como um 7 Cf. VELASCO, Rufino. A Igreja de Jesus: Processo histórico de Consciência Eclesial. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 23. 8 Cf. IDEM. Ibidem, p. 17. 9 Cf. IDEM. Ibidem, p. 19-22. 10 DIANICH, S.; NOCETI, S. Tratado sobre a Igreja, op. cit., p. 236. 11 LOISY, Alfred. L’évangile et l’Église. Paris: Picard, 1902, p. 111. 12 Cf. RATZINGER, Joseph. Compreender a Igreja hoje: vocação para a comunhão. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 13-14. acontecimento futuro, não como algo já existente”13. Mas, esse último aspecto não seria um problema: “indicar como sua origem o tempo depois da Páscoa, não significa dizer que ela é estranha aos projetos de Cristo, mas significa vê-la inteiramente solidificada pela mudança decisiva que a obra do Senhor sofre em sua morte e ressurreição”14. Mas, será preciso retomar essa questão depois. De qualquer forma, o interesse pela questão foi suscitado pelo fato de se haver suspeitado que a pregação de Jesus, na verdade, é incompatível com a existência da Igreja, que teria tido sua origem não nele, mas até contra sua vontade, porque o objeto único e imediato do anúncio do Reino... 15 Assim, a questão a ser investigada é se a fundação da Igreja corresponde ou não à intenção de Cristo. Para isso, faz-se necessário buscar o testemunho do Novo Testamento, a partir da consideração de alguns fatos – ao menos os que parecem mais relevantes. De acordo com os Santos Evangelhos, realmente, o Senhor Jesus começou sua obra proclamando a iminência do Reino de Deus e convidando o povo à conversão (cf. Mc 1,14s) 16 . Porém, tal proclamação inaugurou um movimento peculiar: na Palestina, no século primeiro da era cristã, no contexto de seu povo judeu, iniciou um grupo de discípulos que desencadeou o processo histórico assumido como origem e fundamento da Igreja 17 . Portanto, “é inegável que a pregação de Jesus reuniu muitas pessoas, desde a multidão dos simpatizantes que se ajuntou ao grupo maior dos discípulos, até o grupo escolhido dos Doze”18. Como observa Joseph Ratzinger, ... Jesus, plenamente, nunca se entende como indivíduo isolado. Ele veio, com efeito, para congregar os que estavam dispersos (cf. Jo 11,52; Mt 12,30). Por isto toda a sua obra consiste em reunir o novo povo. Aqui aparecem já dois elementos de grande importância para a compreensão futura da Igreja: o dinamismo do tornarem-se Um, da mútua aproximação através do encontro com Deus, é, para Jesus, específico do novo povo de Deus. E mais ainda: o mais íntimo ponto de reunião deste novo povo é Cristo: este povo só se tornará verdadeiramente povo enquanto for chamado por Cristo e responder à sua chamada, à sua Pessoa 19 . 13 DIANICH, S.; NOCETI, S. Tratado sobre a Igreja, op. cit., p. 236. 14 Cf. IDEM. Ibidem, p. 237. 15 IDEM, Ibidem, loc. cit. 16 Cf. VELASCO, R. A Igreja de Jesus, op. cit., p. 23. 17 Cf. IDEM. Ibidem, p. 23-24. 18 DIANICH, S.; NOCETI, S. Tratado sobre a Igreja, op. cit., p. 236. 19 Cf. RATZINGER, J. Compreender a Igreja hoje, op. cit., p. 14. 6 Como fora afirmado nos estudos de Cristologia, todos os exegetas estão de acordo que a pregação de Jesus está centrada no anúncio do Reino de Deus. Porém, não se pode negligenciar que Jesus, junto com a pregação do Reino, buscava ao mesmo tempo a formação de uma comunidade, pois concebia a realização do Reino de Deus numa comunidade unida à sua Pessoa. De fato, os Evangelhos falam claramente que Jesus busca formar um grupo de discípulos. Para a verificação da causa em epígrafe, esse dado é de suma importância. Segundo Velasco, a formação desse grupo encontra-se entre o que se pode chamar “experiências fundantes da Igreja”, pois sua constituição pode ser assumida como “ponto de partida” de seu movimento (Mt 4,17-22; Mc 1,14-20; Lc 5,1-11). Conforme o referido autor, esse grupo é tão importante que, por meio dele, Jesus chega até nós por meio de sua mensagem e conteúdo de sua vida histórica. Assim, É de suma importância guardar isto e compreender seu alcance eclesiológico. Graças a este grupo, Jesus chega até nós: sua mensagem e o conteúdo de sua histórica. O grupo é parte integrante da proclamação do reino em que se concentra toda a atividade de Jesus: “para que sejam seus companheiros, e para os enviar a pregar a mensagem do reino de Deus” (Mc 3,14). É no grupo que se começa a pôr em prática aquilo que significa o reino de Deus, suas exigências concretas 20 . Dessa forma, o Evangelho deixa a entender que há uma “comunidade” que deriva de Jesus: o grupo de seus discípulos. Um grupo que não pode ser considerado amorfo, destituído de organização. Como observa Ratzinger, “em seu centro se encontra o núcleo claramente definido dos Doze, aos quais, segundo S. Lucas (10,1-20), se acrescenta ainda o círculo dos setenta ou setenta e dois discípulos”21. Para Ratzinger, a instituição dos “Doze” revela de alguma forma a vontade de Cristo de reunir ao redor de si um novo povo (cf. Mc 3,13-19; Lc 6, 12-19; Mt 10,1-4; At 1,13). Seu chamado pode ser entendido como a expressão de seu desejo de fundar o “novo Israel”. Não se pode esquecer que o antigo povo era constituído em “Doze tribos”, a partir dos “Doze filhos” de Jacó. Logo, Jesus se apresenta como patriarca de um novo Israel. De fato, a esse número é dada muita importância na Igreja primitiva 22 , de tal modo que aos apóstolos simplesmente são chamados de “os Doze”. Sua primeira missão consiste simplesmente em ser 20 Cf. VELASCO, R. A Igreja de Jesus, op. cit., p. 29. 21 RATZINGER, J. Compreender a Igreja hoje, op. cit., p. 14. 22 Esse número que os reúne em uma comunidade claramente delimitada, é de tal importância, que é completado outra vez depois da traição de Judas (At 1,15-26). Doze, e a ela se acrescentam, logo a seguir mais duas funções: “para estarem com ele e para enviá-los” (Mc 3,14)23. Os Doze são enviados por Cristo para continuarem sua missão (Jo 17,18; 20,21). Desse modo, entende-se que os apóstolos são instituídos para continuarem a mesma missão de Cristo e por encargo de Cristo: Jesus dissera que quem o via, via o Pai (Jo 14,9), agora diz que quem escuta os apóstolos, a Ele escuta, e quem os despreza, a Ele despreza (Lc 10,16). Portanto, esse chamado deve ser entendido como um chamamento para uma nova convocação de Israel diante da iminente vinda do Reino de Deus. É claro que não se deve resumir tal grupo aos Doze. Mesmo que não seja possível determinar com exatidão o número dos discípulos do Senhor, são mais numerosos que os seus seguidores em sentido estrito. Além disso, não se pode esquecer que muitos o abandonaram (Jo 6,66) 24 . Por sua vez, o grupo dos Setenta ou Setenta e Dois, do qual São Lucas fala, completa esse simbolismo: setenta ou setenta e dois era, segundo a tradição judaica (Gn 10; Ex 1,5; Dt 32,8), o número das nações do mundo. Os setenta e dois discípulos significam que Jesus reivindica para si toda a humanidade, que deve tornar-se sua discípula: são o sinal que o novo Israel abrangerá todos os povos da terra 25 . Com efeito, Ele veio congregar “os que estavam dispersos” (cf. Jo 11,52 e Mt 12,30). Toda a sua obra consiste em “reunir” um novo povo. Na sua pregação usou muitas imagens para falar da congregação do povo de Deus, como por exemplo, em Mc 14,27 e em Lc 12,32, fala de rebanho. Deve-se notar ainda que, em primeiro lugar, o Reino chega para o Povo de Deus, o “velho Israel” que o rejeita.Diante dessa rejeição, nasce o “novo Israel” que o acolhe na fé. Esse dado pode ser comprovado quando se lê nas Sagradas Escrituras que Jesus Cristo quis reunir a todo Israel como “a galinha a seus pintainhos” (Lc 13,34), porém não quiseram. Ainda na parábola dos vinhateiros homicidas, diz claramente: “tirar-vos-ão o reino de Deus para dá-lo a um povo que dê seus frutos” (Mt 21,43). Em outra parábola menciona que os primeiros convidados à festa não quiseram entrar, por isso, convoca a todos os que se encontram pelos caminhos (cf. Mt 22,1-6). Logo, pode-se entender que um novo povo surge pela aceitação do Reino que chega com a sua Pessoa. A Igreja no Novo Testamento é a comunidade que o Reino cria diante da rejeição de Israel. 23 RATZINGER, J. Compreender a Igreja hoje, op. cit., p. 15. 24 Cf. VELASCO, R. A Igreja de Jesus, op. cit., p. 30. 25 RATZINGER, J. Compreender a Igreja hoje, op. cit., p. 15. 8 E, por fim, o último dado: a instituição da Eucaristia na Última Ceia, na noite anterior à sua Paixão. Trata-se da conclusão de uma aliança e, como aliança, é fundação concreta de um novo povo que se torna povo por sua aliança com Deus, através da comunhão no corpo e no sangue de Jesus. Ele incorporou em sua pregação a ideia de aliança proveniente do Antigo Testamento, mas, com um novo centro: “ser um” no Corpo dele26. Assim sendo, ao longo de sua vida, o Senhor Jesus foi colocando as bases de uma Igreja que se manifestaria propriamente no dia de Pentecostes (At 2,1-13). Por isso, não existe oposição entre o Reino que Cristo buscou e a Igreja que convocou. A Igreja vem a ser, sobretudo, o germe e o princípio do Reino. Na verdade, a Igreja pode ser assumida como presença e comunidade que o Reino cria. Ela nasce como resultado da proclamação do Reino, pois, a partir dela, inicia-se na Palestina o que se pode chamar “movimento de Jesus”. 2.2 Um fenômeno histórico que remonta a Jesus Depois das considerações anteriores, resta somente verificar que a Igreja é também um fenômeno histórico que remonta a Jesus. Segundo Luigi Giussani, “a Igreja é um fenômeno histórico: emergiu, como que ‘veio à tona’ no fluxo da história em um determinado instante”27. Assim, após a Ressurreição do Senhor, num número sempre crescente, homens e mulheres aderiram a Cristo na fé. Por isso, historicamente, quem fala da Igreja terá de interpretá-la como o agrupamento religioso surgido imediatamente depois do movimento iniciado por Jesus na Palestina 28 . Nos últimos dois mil anos a vida de milhões de homens e mulheres, o desenvolvimento da cultura, a história das ideias e a organização social têm sido marcados, particularmente no Ocidente, mas não só, pela presença e pela ação de um agrupamento religioso que se auto definiu “Igreja”, nascida a partir da pregação de Jesus de Nazaré 29 . Por um lado, tranquilamente se aceita que a Igreja, desde suas origens, manifesta- se como uma realidade comunitária sociologicamente identificável. Talvez seja essa a primeira evidência para quem se aproxima do Cristianismo 30 . Por outro lado – e, talvez aí 26 Cf. IDEM. Ibidem, p. 16-17. 27 Cf. GIUSSANI, Luigi. Por que a Igreja?: Terceiro volume do percurso. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 112. 28 Cf. LELL, J. Igreja/Eclesiologia. In: EICHER, Peter (dir.). Dicionário de Conceitos, op. cit., p. 375. 29 DIANICH, S.; NOCETI, S. Tratado sobre a Igreja, op. cit., p. 13. 30 Cf. GIUSSANI, L. Por que a Igreja?, op. cit., p. 124. esteja a questão mais delicada, – um dos grandes problemas consiste em aceitar como ela se coloca na história, ou seja, aquilo que ela diz de si mesma 31 . Nesse horizonte, como observa Salvador Pié-Ninot, “a questão da formação da Igreja e de sua relação com Jesus é fundamental para a fé cristã”32. A Igreja se coloca na história, antes de tudo, como relação com o Cristo vivo. Qualquer outra reflexão, qualquer outra consideração vem depois desta postura originária. Lucas, nos Atos dos Apóstolos, delineia o quadro de um grupo de pessoas que continuou a subsistir como comunidade a partir dos dias da vida terrena de Jesus no período pós-pascal. Eles teriam tido, pelo contrário, todas as razões para uma dissolução daquela agregação, nascida enquanto seguiam um homem excepcional. Com a morte d'Ele, se tivesse sido destruída aquela presença ao redor da qual girava o seu estar-junto, teria sido compreensível também uma definitiva dispersão do grupo dos discípulos 33 . Dessa forma, da análise do texto supracitado, é possível compreender a Igreja como uma realidade pós-pascal 34 . Certamente, os apóstolos, depois do evento pascal, teriam suficientes motivos para uma dissolução daquela agregação inicial nascida enquanto seguiam um homem excepcional. Em princípio sua morte os deixou desorientados. Porém, além do medo, da dor do que lhes havia acontecido, a partir da certeza da ressureição, da convicção de sua presença, os apóstolos mostraram-se um grupo que se reforçava cada vez mais e se estabelecia 35 . Como observa Giussani, o início da Igreja é precisamente esse grupo de discípulos, essa “turminha de amigos” que, após a morte de Cristo, permanecem juntos do mesmo modo. Isso porque Cristo ressuscitou e se fazia presente no meio deles. Eles puderam experimentar que Cristo permanece na história, na vida do homem, de forma pessoal e real, com um rosto histórico, vivo, da comunidade cristã, da Igreja. Deus veio ao mundo para permanecer no mundo ainda que de maneira invisível. Ele é o “Deus conosco” (cf. Is 7,14; Mt 1,21-23). As narrações que trazem os evangelhos e Atos Apóstolos testemunham simplesmente uma presença familiar que continua e é tradução em fato da expressão “Deus conosco”36. 31 Cf. IDEM. Ibidem, p. 112. 32 PIÉ-NINOT, S. Introdução à Eclesiologia, op. cit., p. 39. 33 GIUSSANI, L. Por que a Igreja?, op. cit., p. 113. 34 Cf. VELASCO, R. A Igreja de Jesus, op. cit., p. 23. 35 Cf. GIUSSANI, L. Por que a Igreja?, op. cit., p. 113-114. 36 Cf. IDEM. Ibidem, p. 115-116. 10 Além disso, Jesus lhes havia garantido a sua presença: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20). Desde o início, apoiada nessa promessa, a Igreja sente a si mesma como a comunidade de Jesus. Destarte, “o conteúdo da autoconsciência da Igreja das origens está no fato de que ela é a continuidade de Cristo na história”37. Dito isso, pode-se concluir tranquilamente com Salvador Pie-Ninot, que “a Igreja não se reduz a uma mera realidade histórica e sociológica, nem a uma mera comunidade espiritual e invisível”38. Trata-se de uma realidade em que coexistem os aspectos visível e invisível. Essa questão poderá ser melhor compreendida a partir do que segue. 2.3 A natureza da Igreja Em relação à natureza da Igreja, na tentativa de entrever em que consiste o fenômeno histórico em estudo, faz-se mister a consideração de alguns conceitos fundamentais e imagens provenientes do Novo Testamento e da Tradição cristã. Etimologicamente, o termo grego ekklesía (h¨ e)kklhsi¢a), do qual deriva o termo latino ecclesia, do qual provém Igreja, na Septuaginta, traduz sempre a expressão hebraica qahal, que significa “aviso de convocação” e “assembleia reunida”. No Novo Testamento, a frequência do termo se tornará progressiva, pelo uso evangélico exclusivo presente em Mt 16,18; 18,17, até às 144 vezes em que é usada no restante do Novo Testamento 39 .Convém admitir que não é tão fácil elaborar uma definição sobre a Igreja, porque é impossível reunir numa definição toda sua riqueza. Normalmente, para explicar o que é a Igreja, costuma-se usar o recurso de algumas imagens e símbolos que ajudam a entender o seu mistério. Aqui são apresentadas quatro imagens: (1) Igreja, Povo de Deus; (2) Igreja, Corpo de Cristo; (3) Igreja, Templo do Espírito Santo e, por fim, (4) Igreja, Sacramento Universal de Salvação. 2.3.1 Igreja como Povo de Deus A partir de 1930, alguns estudos exegéticos sistemáticos deram início à recuperação, ao menos na Teologia católica, de uma categoria interpretativa para a 37 Cf. IDEM. Ibidem, p. 120. 38 PIÉ-NINOT, S. Introdução à Eclesiologia, op. cit., p. 11. 39 Cf. IDEM. Ibidem, p. 27. compreensão do mistério da Igreja: “povo de Deus”. Desde o século V, a expressão continuava presente nos textos litúrgicos, mas, desapareceu dos tratados teológicos. 40 Depois, somente no século XX, essa imagem seria recuperada em grande apreço pelo Concílio Vaticano II (1963-1965). Trata-se de uma compreensão originada nas fontes mesmas da revelação cristã, pois, enquanto povo de Deus, a Igreja recebe seu conceito fundamental do autoconceito que se desenvolveu, no Antigo Testamento, em Israel, o antigo povo da Aliança. Tal entendimento parte da consideração “pessoal e histórica” da Igreja e, ao mesmo tempo, é consequência do fato de que ela se reconhece constituída como “comunidade” pelo próprio Deus. Logo, esse conceito permite, em primeiro lugar, a percepção da natureza comunitária e histórica da Igreja, porque, historicamente, a Igreja se originou do povo de Israel. Com este autoconceito da Igreja, retomado conscientemente e lançado para o primeiro plano pelo Concílio Vaticano II (“Povo de Deus”: LG capítulo II “De populo Dei”) é trazido à lembrança, em primeiro lugar (grifo do autor), a natureza pessoal e histórica da Igreja: essa comunidade de crentes não se entende como resultado de processos naturais necessários, não como auto explicação da vida na natureza, no consciente, na sociedade ou na história, mas como consequência de um ato de dedicação divino na história, que acontece a partir da liberdade indisponível do amor e a qual apela para a liberdade do ser humano. A forma de socialidade dessa fé, portanto, é pessoal-libertária e apresenta estrutura histórica. Enquanto povo de Deus, a Igreja recebe seu conceito fundamental concretamente do autoconceito que se desenvolveu ao longo de séculos no povo da aliança Israel: esse povo se sabe constituído como comunidade pelo próprio Deus 41 . Desse modo, a Igreja mostra-se um povo que, como Israel, tem sua origem não na decisão de seus membros, mas, na vocação de Deus. Quando se analisa a “História da Salvação” narrada na Bíblia, percebe-se claramente que Deus não quis salvar os homens individualmente, mas como um “povo que ele conquistou” (1Pd 2,9). Aprouve, no entanto, a Deus santificar e salvar os homens, não individualmente, excluindo toda a relação entre os mesmos, mas formando com eles um povo, que o conhecesse na verdade e o servisse em santidade. E assim escolheu Israel para seu povo, estabeleceu com ele uma aliança, e o foi instruindo gradualmente, manifestando, na própria história do povo, a si mesmo e os desígnios da sua vontade e santificando-o para si. Tudo isto aconteceu como preparação e figura daquela aliança nova e perfeita, que haveria de ser selada em Cristo, e da revelação mais plena que havia de ser comunicada pelo próprio Verbo de Deus, feito carne. “Eis que dias virão, 40 Cf. DIANICH, S.; NOCETI, S. Tratado sobre a Igreja, op. cit., p. 78-79. 41 Cf. WIEDENHOFER, S. Eclesiologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática, op. cit., p. 89. 12 oráculo de Javé, em que selarei com a casa de Israel (e com a casa de Judá) uma aliança nova... Eu porei minha lei no seu seio e a escreverei no seu coração. Então eu serei o seu Deus e eles serão meu povo. Todos me conhecerão dos menores aos maiores, oráculo de Javé” (Jr 31,31-34). Cristo estabeleceu este novo pacto, isto é, a nova aliança do seu sangue (cf. 1Cor 11,25), formando, dos judeus e dos gentios, um povo que realizasse a sua própria unidade, não segundo a carne mas no Espírito, e constituísse o novo povo de Deus 42 . Dessa feita, como Israel, a Igreja sabe-se propriedade de um Deus que a chama a servi-lo em santidade, com a incumbência de levar a própria experiência de Deus e do seu poder aos outros deste mundo. Assim o povo messiânico, ainda que não abranja de fato todos os homens e repetidas vezes se pareça com um pequeno rebanho, é para toda a humanidade um germe validíssimo de unidade, de esperança e de salvação. Constituído por Cristo numa comunhão de vida, de caridade e de verdade, é assumido por ele para ser instrumento da redenção universal, e como luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5,13-16), é enviado ao mundo inteiro 43 . Além disso, a noção de “povo de Deus” tem a vantagem de apresentar a igual dignidade de todos os membros batizados. Cristo Senhor, Pontífice tomado de entre os homens (cf. Hb 5,1-5), fez do novo povo “um reino de sacerdotes para Deus, seu Pai” (cf. Ap 1,6; cf. 5,9- 10). Com efeito, pela regeneração e unção do Espírito Santo, os batizados são consagrados para serem edifício espiritual e sacerdócio santo, a fim de, por todas as obras do cristão, oferecerem sacrifícios espirituais e proclamarem as grandezas daquele que das trevas os chamou para a sua luz maravilhosa (cf. 1Pd 2,4-10). Assim, todos os discípulos de Cristo, perseverando juntos na oração e no louvor de Deus (cf. At 2,42-47), ofereçam-se a si mesmos como hóstia viva, santa, agradável a Deus (cf. Rm 12,1); dêem testemunho de Cristo em toda a parte; e, àqueles que por isso se interessarem, falem da esperança, que está neles, da vida eterna (cf. 1Pd 3,15) 44 . Essa concepção ajudou sobretudo a superar a visão de uma Igreja eivada no hierarquismo 45, pois ressaltou que “qualquer que seja a sua condição ou estado, são chamados pelo Senhor a procurarem, cada um por seu caminho, a perfeição daquela santidade pela qual 42 CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Apostólica Lumen Gentium, n. 9. In: Documentos do Concílio Vaticano II, op. cit., p. 112-113. 43 IDEM. Ibidem, n. 9, p. 114. 44 IDEM. Ibidem, n. 10, p. 115. 45 Cf. PIÉ-NINOT, S. Introdução à Eclesiologia, op. cit., p. 30. é perfeito o próprio Pai celeste”46. Consequentemente, o conceito de “povo de Deus” coloca em evidência que todos os membros formam uma comunhão igualitária, pois, “salvação” significa também unidade, comunhão, conciliação e unificação 47 . À guisa de conclusão, pode-se dizer que, ainda que a expressão “povo de Deus” não seja tão frequente no Novo Testamento a respeito da Igreja, mesmo assim possui um caráter essencial 48: “a Igreja é povo de Deus, porque realiza a vocação universal a que era chamado Israel pelo seu Deus, o qual, sendo único, queria ser também o Deus de todos os homens”49. 2.3.2 A Igreja como Corpo de Cristo Em sua Primeira Carta aos Coríntios (12,12), São Paulo faz a seguinte afirmação: “como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo”. Como se pode notar, no versículo citado, São Paulo oferece as bases para a consideração da Igreja como Corpo de Cristo. Comumente,o referido versículo tem sido interpretado como afirmação de que na Igreja de Cristo existe a questão pluralidade a serviço da unidade. É verdade. Porém, não é essa a questão fundamental. A comparação da Igreja com um corpo lança, sobretudo, uma luz particular sobre sua íntima ligação com Cristo. Portanto, não se trata somente de uma diversidade funcional, mas, antes de tudo, de uma compreensão que manifesta correlação e interdependência 50 . Dessa forma, a Igreja não está somente reunida à volta de Jesus: está unificada nele, no seu Corpo. Por isso, segundo Joseph Ratzinger, no Novo Testamento, a ideia de povo de Deus não pode ser concebida de forma isolada da Cristologia 51 . No Novo Testamento, como observa Wiedenhofer, o novo Templo é o Corpo do Senhor: Assim como Israel era uno por meio do templo e de suas reuniões de culto divino, as comunidades de cristãos geograficamente dispersas se tornam unas a partir do novo templo, do corpo do Senhor (Mc 14,58 par.; 15,29s 46 CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Apostólica Lumen Gentium, op. cit., n. 11, p. 117. 47 Cf. WIEDENHOFER, S. Eclesiologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática, op. cit., p. 90. 48 Cf. DIANICH, S.; NOCETI, S. Tratado sobre a Igreja, op. cit., p. 269. 49 PIÉ-NINOT, S. Introdução à Eclesiologia, op. cit., p. 32. 50 Cf. Bíblia do Peregrino: Edição de estudo. São Paulo: Paulus, 2002, nota referente a 1Cor 12,12-30. 51 RATZINGER, J. Compreender a Igreja hoje, op. cit., p. 19. 14 par.; Jo 2,19). Eles são unos na reunião de culto divino na qual comem o pão uno que os transforma em um só corpo (1Cor 10,17) 52 . Como se pode notar, essa ideia expressa não só o sentido de diversidade de funções e de encargos que se dão na Igreja com o fim de salvação. Em primeiro lugar, coloca- se em relevo o mistério da união dos batizados em Cristo. A Igreja é apresentada como íntima comunhão com Cristo. É um povo que crê em Cristo, que está batizado no seu nome e vive de seu Corpo Eucarístico 53 . Desde o início, Jesus associou seus discípulos à sua vida, revelou-lhes o Mistério do Reino, deu-lhes participar de sua missão, de sua alegria e de seus sofrimentos. Jesus fala de uma comunhão ainda mais íntima entre Ele e os que o seguiriam: “Permanecei em mim, como eu em vós.... Eu sou a videira, vós os ramos” (Jo 15, 4-5). E anuncia uma comunhão misteriosa e real entre o seu próprio Corpo e o nosso: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele” (Jo 6, 56)54. Portanto, a Igreja é Corpo de Cristo, porque torna os seus membros participantes da mesma vida e do mesmo Espírito de Cristo. O cristão participa da vida de Cristo, porque a ele é incorporado por meio do batismo. O segundo aspecto a ser salientado está no reconhecimento de que a Igreja somente é Corpo de Cristo porque tem a Cristo como cabeça. Assim, de Cristo procede todo o “fluxo vital” de seus membros. Cristo “é a Cabeça do Corpo que é a Igreja” (Cl 1,18). Ele é o Princípio da criação e da redenção. Elevado na glória do Pai, “Ele tem em tudo a primazia” (Cl 1,18), principalmente sobre a Igreja, por meio da qual estende seu reino sobre todas as coisas 55 . Contudo, a unidade de Cristo e da Igreja, Cabeça e membros do Corpo, implica também a distinção entre ambos, numa relação pessoal. Esse é o terceiro aspecto, muitas vezes, expresso pela imagem do esposo e da esposa. O tema de Cristo Esposo da Igreja foi preparado pelos profetas e anunciado por João Batista. O próprio Senhor se designou como “o Esposo” (Mc 2, 19). O Apóstolo apresenta a Igreja e cada fiel, membro do seu Corpo, como uma esposa “desposada” com Cristo Senhor, para formar com Ele um só Espírito (1Cor 6,15-16). Ela é a Esposa imaculada do Cordeiro imaculado (Ap 22,17) a qual “Cristo amou, pela qual se entregou a fim de santificá-la” (Ef 5, 26), 52 WIEDENHOFER, S. Eclesiologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática, op. cit., p. 90. 53 Cf. IDEM. Ibidem, loc. cit. 54 Catecismo da Igreja Católica, op. cit., p. 226-227, n. 787. 55 Ibidem, p. 228, n. 792. que associou a si por uma Aliança eterna, e da qual não cessa de cuidar como de seu próprio Corpo (Ef 5,29) 56 . De acordo com Ratzinger, a Igreja é Corpo de Cristo da mesma maneira em que a mulher e o marido são um só corpo ou uma só carne. Esse fator fica mais claro quando o referido autor explica que, mesmo em sua união espiritual e corporal indissolúvel, não se misturam nem se confundem 57 . Em suma, com a imagem do Corpo de Cristo, deseja-se colocar em relevo mais especificamente três aspectos eclesiológicos, a saber: (1) a unidade de todos os membros entre si, pela união a Cristo; (2) o fato de que Cristo é Cabeça da Igreja e, ainda, (3) a partir da imagem da Igreja como Esposa de Cristo, a distinção entre ambos, numa relação pessoal e amorosa. 2.3.3 Igreja, Templo do Espírito Santo A terceira imagem oferecida para a compreensão do mistério da Igreja também é oriunda dos escritos paulinos: a Igreja como “Templo do Espírito Santo”. Em sua Segunda Carta aos Coríntios (6,16), São Paulo diz claramente: “nós somos templos o Templo do Deus vivo”. Mas, o ensinamento de que os cristãos são “Templo de Deus” aparece também em outras passagens do corpo paulino. Na Primeira Carta aos Corintos (3,16s), São Paulo questiona os cristãos: “Acaso não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?”. Na mesma carta pergunta ainda: “Acaso ignorais que vosso corpo é templo do Espírito Santo que mora em vós e que recebestes de Deus? Ignorais que não pertenceis a vós mesmos?” (6,19s). Desse modo, desde o início, a Igreja se entende numa explícita relação com o Espírito do Senhor. Como observa Wiedenhofer, a nova comunidade religiosa, necessariamente teve de se entender a partir da atuação do Espírito de Deus: No encontro com o Ressurreto os discípulos também passaram por nova experiência consigo mesmos: a pessoa que entra no espaço de vida do Ressurreto passa por uma transformação interior: libertada do pecado, da lei e da morte, torna-se nova criatura. Diante do pano de fundo das promessas de Israel os discípulos tiveram que entender essa nova experiência da recriadora força de vida e poder de vida de Deus corno expressão do derramamento escatológico do Espírito de Deus. Uma vez que a experiência da nova comunhão estava muitíssimo ligada justamente com essa nova experiência conjunta do Espírito, a nova comunidade religiosa 56 Ibidem, p. 229, n. 796. 57 RATZINGER, J. Compreender a Igreja hoje, op. cit., p. 22. 16 necessariamente teve que se entender a partir da atuação do Espírito de Deus, corno criatura do Espírito 58 . Se a Igreja é experimentada e entendida como obra do Espírito criador de Deus, toda a estrutura institucional só tem sentido em dependência e em função da atuação do Espírito 59 . Perceba-se que o Catecismo da Igreja Católica trata da dimensão carismática da Igreja, apresentado o Espírito do Senhor como o princípio vital de todo o edifício espiritual que é Igreja: O Espírito Santo é o “Princípio de toda ação vital e verdadeiramente salutar em cada uma das diversas partes do Corpo”. Ele opera de múltiplas maneiras a edificação do Corpo inteiro na caridade: pela Palavra de Deus, “que tem o poder de edificar” (At 20, 32); pelo Batismo, por meio do qual forma o Corpo de Cristo (1Cor 12,13); pelos sacramentos, que proporcionam crescimento e cura aos membrosde Cristo; pela “graça concedida aos Apóstolos que ocupa o primeiro lugar entre seus dons”; pelas virtudes que fazem agir segundo o bem; e, enfim, pelas múltiplas graças especiais (chamadas “carismas”), por meio das quais “torna os fiéis aptos e prontos a tomarem sobre si os vários trabalhos e ofícios que contribuem para a renovação e maior implemento da Igreja”60. Porque o Espírito Santo é o princípio vital da Igreja, há diversos carismas. Tais carismas, quer extraordinários ou mesmo os mais simples e humildes, estão ordenados à edificação da comunidade eclesial, ao bem dos homens e às necessidades do mundo. Assim, entende-se que os carismas cooperam para o “bem comum” (1Cor 12,7)61. Em síntese, pode-se dizer que a Igreja é Templo do Espírito Santo, porque está ligada a uma realidade interior, dinâmica e profunda. E, sobretudo, porque a apresenta como uma comunidade de salvação marcada por uma estrutura carismática 62 . 2.3.4 Igreja, Sacramento Universal de Salvação Entre as solenes declarações do Concílio Vaticano II a respeito da natureza da Igreja, encontra-se aquela em que se afirma que, em Cristo, a Igreja é “como um sacramento ou sinal ou instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”63. Segundo Pié-Ninot, 58 WIEDENHOFER, S. Eclesiologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática, op. cit., p. 91. 59 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Apostólica Lumen Gentium, op. cit., n. 8, p. 110. 60 Catecismo da Igreja Católica, op. cit., p. 230-231, n. 798. 61 Cf. Catecismo da Igreja Católica, op. cit., p. 231, n. 799-801. 62 Cf. WIEDENHOFER, S. Eclesiologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática, op. cit., p. 92. 63 CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Apostólica Lumen Gentium, op. cit., n. 1, p. 102. a fonte desse conceito, utilizado aqui analogicamente, deve ser buscada na teologia patrística para a qual o termo latino sacramentam traduzia o conceito bíblico de mysterium que, de acordo com o que vem explicado no próprio Vaticano II, não é algo incognoscível e obscuro, mas na Bíblia é equivalente a uma realidade divina portadora de salvação, que se revela de modo visível. O concílio, empregando esse conceito de sacramento, quer exprimir a dupla dimensão da Igreja, humana e divina, visível e invisível, que faz com que ela seja, já em si mesma, e em virtude da lei da encarnação pela qual o visível é mediação do invisível, “uma realidade complexa”64. Desse modo, quando se fala do “mistério” da Igreja, quer se afirmar que a mesma consiste numa “realidade complexa”, na qual há a fusão de um elemento humano e outro divino, onde o visível comunica o invisível. Trata-se de duas dimensões inseparáveis 65 . Pode-se dizer que, dentre os textos do Concílio Vaticano II, essa é a descrição mais significativa da Igreja. Tal afirmação aparece num contexto claramente cristológico, ou seja, mostra que a Igreja existe numa total relação a Cristo 66 . Dessa forma, essa compreensão permite dizer que a Igreja é sacramento, ou seja, sinal visível e eficaz da salvação que vem por meio de Jesus Cristo. Deus convocou a assembléia dos que em Jesus vêem, com fé, o autor da salvação e o princípio da unidade e da paz, e com eles constituiu a Igreja, a fim de que ela seja, para todos e cada um, o sacramento visível desta unidade salvadora 67 . Como se pode notar, essa imagem não nega que Cristo é a única fonte de salvação, mas, afirma que a Igreja é também necessária para a mesma: Em primeiro lugar, é aos fiéis católicos que o santo Concílio dirige o pensamento. Apoiado na Sagrada Escritura e na Tradição, ensina que esta Igreja, peregrina na terra, é necessária para a salvação. Só Cristo é mediador e caminho de salvação: ora, ele torna-se-nos presente no seu corpo que é a Igreja; e, ao inculcar expressamente a necessidade da fé e do batismo (cf. Mc 16,16; Jo 3,5), ao mesmo tempo corroborou a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pela porta do batismo 68 . Note-se que Karl Rahner considera a Igreja muito mais do que organização social para colimar fins religiosos. Isso porque a considera como algo que tem a ver com a essência do Cristianismo. Para o autor mencionado, a Igreja é também uma questão de fé e uma parte do Cristianismo enquanto evento salvífico, pois, não se pode excluir a comunitariedade, a 64 PIÉ-NINOT, S. Introdução à Eclesiologia, op. cit., p. 30. 65 Cf. Cf. VELASCO, R. A Igreja de Jesus, op. cit., p. 245. 66 PIÉ-NINOT, S. Introdução à Eclesiologia, op. cit., p. 29. 67 CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Apostólica Lumen Gentium, op. cit., n. 9, p. 114. 68 IDEM, Ibidem, n. 14, p. 121. 18 sociabilidade e a intercomunicação da natureza do homem, nem sequer enquanto sujeito religioso da relação para com Deus 69 . Segundo Rahner, Com base na natureza do homem, na natureza de Deus e na natureza da relação do homem para com corretamente entendido, não é possível excluir a sociabilidade da natureza da religião. Essa lhe pertence porque o homem se acha em relação, em todas as suas dimensões, com este Deus único da salvação de todo homem. De outra forma a religião tornar-se-ia negócio meramente privado e deixaria de ser religião 70 . Em síntese, a Igreja é sacramento ou sinal da salvação somente em Cristo. Isso quer dizer que sempre aponta para além de si, ou seja, para Jesus Cristo 71 . 3 A IGREJA: CONDIÇÃO DA FÉ CRISTà Após sua ressurreição, o Senhor Jesus confiou a seus discípulos, como missão, o anúncio e o testemunho do Evangelho: “Ide, pois, fazer discípulos entre todas as nações e batizai-os em nome do Pai, do filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19). No contexto desse versículo anteriormente citado, a expressão “fazer discípulos” tem o sentido de “ensinar”72. Como observa Siegfried Wiedenhofer, “sem pregação e sem incumbência de pregação não há fé salvadora”73. Na verdade, parece que o mencionado autor faz referência ao texto da Carta aos Romanos (10, 14-18): Ora, como invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele que não ouviram? E como o ouvirão, se ninguém o proclamar? E como o proclamarão, se não houver enviados? Assim é que está escrito: “Quão benvindos os pés dos que anunciam boas novas!”. Mas nem todos obedeceram à Boa Nova, pois Isaías diz: “Senhor, quem acreditou em nossa pregação?” Logo, a fé vem pela pregação e a pregação, pela palavra de Cristo. Então, eu pergunto: Será que eles não ouviram? Certo que ouviram, pois a voz deles se espalhou por toda a terra e as suas palavras chegaram aos confins do mundo. Como se pode notar, o autor da Carta aos Romanos trata da dinâmica da transmissão da fé. Siegfried Wiedenhofer, de uma forma muito simples, explica em que essa 69 RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé: Introdução ao conceito de Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1989, p. 400-401. 70 IDEM. Ibidem, p. 401. 71 Cf. WIEDENHOFER, S. Eclesiologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática, op. cit., p. 96-97. 72 Cf. Bíblia Sagrada: Tradução da CNBB. 6. ed. Brasília: Edições CNBB, 2007, nota referente a Mt 24,19. 73 WIEDENHOFER, S. Eclesiologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática, op. cit., p. 50. dinâmica consiste: “a pessoa só passa a ter fé pelo fato de outros a terem vivido, narrado, proclamado e ensinado essa fé”74 . Dessa forma, no Novo Testamento, o Evangelho é anunciado, veiculado e fixado pela fé das testemunhas apostólicas e comunidades. Assim, convém admitirque o anúncio da palavra de Deus acontece em responsabilidade e fé da comunidade eclesial. Essa é sua primeira missão, sua primeira incumbência. Além disso, Wiedenhofer afirma ainda que “somente se aprende a fé [...] sob a condição prévia de que já existe uma comunhão dos crentes e de a própria pessoa tornar-se parte dessa comunhão”75. Certamente, em todas as religiões, a fé só é possível como uma fé conjunta. Isso quer dizer que, geralmente, ninguém inventa sua própria fé. Assim, pode-se afirmar, com certeza, que a fé cristã só é possível como participação na fé da Igreja, dentro da Igreja. Nessa perspectiva, a Igreja aparece com uma determinada tarefa e, como consequência dessa, constituída a partir de certa estrutura e forma de organização, com o objetivo de garantir a experiência cristã de Deus, vivida ao longo dos dois milênios de sua história 76 . 74 IDEM. Ibidem, p. 54. 75 IDEM. Ibidem, loc. cit. 76 WIEDENHOFER, S. Eclesiologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática, op. cit., p. 54-55.
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