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ISSN 2176-1396 FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES: ALGUNS APONTAMENTOS Suzi Laura da Cunha 1 - Unochapecó Nadir Castilho Delizoicov 2 - Unochapecó Grupo de Trabalho - Didática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Nos últimos anos do século XX, nos mais variados setores profissionais e particularmente na universidade em países desenvolvidos, a questão da formação continuada tomou grande dimensão, como requisito para melhor qualificar o trabalho docente. As mudanças que veem ocorrendo exigem uma educação que possa atender às novas demandas. Neste cenário, é preciso repensar o papel do professor visualizando um novo formato na organização do trabalho escolar. Assim, este trabalho aborda a questão da formação do professor para a educação básica, com ênfase na formação continuada, pontuando algumas das características das diversas modalidades dessa formação implementada ao longo do tempo. Dados de pesquisa sobre a formação permanente de professores da modalidade de ensino de Educação de Jovens e Adultos (EJA), ocorrida na Rede Municipal de Chapecó, durante o movimento de reorientação curricular ocorrida no período de 1997 a 2004, são apresentados. Trata-se de um recorte de trabalho de pesquisa mais amplo. Sendo uma pesquisa de cunho qualitativo, as informações foram colhidas junto a professores da Rede de ensino que atuam na EJA, tendo o questionário e a entrevista semiestruturada como instrumentos de pesquisa. A formação permanente é apresentada como aquela com maior possibilidade de contribuir não somente para a alteração da prática docente, mas também para a formação do professor enquanto intelectual capaz de refletir sobre a própria prática. As ideias de Paulo Freire constituíram uma das principais referências teóricas que subsidiaram o processo de formação permanente analisado concebendo a formação permanente dos professores como momento fundamental de reflexão crítica sobre a prática. Palavras-chave: Formação de professor. EJA. Formação permanente. 1 Mestre em Educação pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), onde atua como professora na Licenciatura em Pedagogia. Participa como pesquisadora do grupo de pesquisa Ensino e formação de professores, cadastrado no CNPq. E-mail: suzilc@unochapeco.edu.br 2 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atua no PPGE da Unochapecó, é pesquisadora no grupo de pesquisa Ensino e formação de professores, cadastrado no CNPq. É professora colaboradora do PPPGECT/UFSC. E-mail: ridanc.nadir@gmail.com 11764 Introdução As questões relacionadas à formação de professores não são tema recente, essa discussão teve início mais sistematicamente no século XX (TANURI, 2000). Os primeiros docentes brasileiros receberiam uma formação baseada nos clássicos antigos, voltada a padrões da sociedade europeia cristã que privilegiavam a retórica como marca na formação de representantes da Companhia de Jesus. Essa formação, recebida em Portugal e mais tarde no Brasil, constituía a primeira e marcante influência externa na formação de professores da terra recém-conquistada. As primeiras menções de formação docente são datadas do século passado. De acordo com Tanuri (2000, p. 63): Antes que se fundassem escolas especificamente destinadas à formação de pessoal docente, encontra-se nas primeiras escolas de ensino mútuo – instaladas a partir de 1820 – (Bastos, 1997) – a preocupação de não somente ensinar as primeiras letras, mas de preparar docentes, instruindo-os no domínio do método. Essa foi realmente a primeira forma de preparação de professores. Na história da formação de professores no Brasil, inúmeras reformas sucederam-se ao longo do tempo, marcando a preocupação com a formação docente e o ensino (SAVIANI, 2009). De acordo com Gatti (2009), na última década, a preocupação com a formação de professores inseriu-se na pauta mundial das discussões sobre educação a partir de dois movimentos principais: o primeiro, as pressões do mundo do trabalho, que se vem estruturando em novas condições num modelo informatizado; o segundo, a constatação, pelos sistemas de governo, do precário desempenho escolar de grande parcela da população. Políticas públicas e ações políticas movimentam-se, então, na direção de reformas curriculares e de mudanças na formação dos docentes, dos formadores das novas gerações. A década de 1980 no Brasil é caracterizada pelo início da abertura política e pela participação massiva de movimentos sociais e sindicais, nas definições do futuro do Brasil, período este no qual são registradas grandes transformações sociais. Branco (2007) afirma que é a partir deste período que a escola inicia rompimento com o pensamento tecnicista que comandou a prática pedagógica durante os vinte anos da ditadura. Esse período da história dá início ao grande processo de democratização escolar, que vai incidir também com transformações na sociedade. 11765 Os anos 1990 são denominados no Brasil como a “Década da Educação” e a formação de professores ganha importância em função das reformas educativas, por meio da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB n. 9394/96, que alicerçavam as reformas políticas do País (BRANCO, 2007). Com a promulgação da nova LDB, amplia-se a necessidade de processos de educação continuada. O artigo 67 estipula que os sistemas de ensino deverão promover a valorização dos profissionais da educação e em seu inciso II refere-se ao aperfeiçoamento profissional continuado como uma obrigação dos poderes públicos, inclusive propondo o licenciamento periódico remunerado para esse fim. Os Referenciais para a Formação de Professores, elaborados em 2002, indicam a necessidade de um novo perfil de professor, comprometido e que tenha a possibilidade de “elevar a qualidade da educação”, atrelando essas mudanças ao desenvolvimento do aluno enquanto sujeito histórico, capaz de responder aos desafios do mundo globalizado. Este mesmo documento destaca a importância de constituir novas habilidades na formação docente para uma sociedade em constante transformação. Para a discussão da temática proposta, este trabalho está assim organizado: inicialmente justifica-se a importância e a necessidade da formação continuada do professor na contemporaneidade; na sequencia apresentam-se alguns dos desafios enfrentados ao longo da história visando qualificar a atuação docente, sustentando a formação permanente, na concepção freireana, como conhecimento que busca atender não só a transformação da prática docente mas também a transformação do sujeito; finalmente apresenta-se a visão de professores sobre a formação permanente tendo como base dados de pesquisa realizada; nas considerações apontam-se características necessárias para o desenvolvimento de uma formação permanente de professores. A formação continuada de professores Na contemporaneidade, vivemos em uma sociedade onde o conhecimento se renova a uma velocidade jamais vista. Até bem pouco tempo era possível afirmar que o conhecimento passava de geração para geração sem grandes transformações. Hoje, o que aprendemos torna- se obsoleto num curto espaço de tempo, a cada dia surgem novas descobertas em campos específicos do conhecimento. A questão da qualidade do ensino, segundo Haddad (2005, p. 8-9), “depende da formação de seus professores [...] a questão é urgente, estratégica e reclama resposta nacional.” O documento elaborado pelo MEC (BRASIL, 1999) sobre os referenciais para a 11766 formação de professoresindica a necessidade de um novo perfil de professor comprometido e que tenha a possibilidade de “elevar a qualidade da educação”, atrelando essas mudanças ao desenvolvimento do aluno enquanto sujeito histórico, capaz de responder aos desafios do mundo globalizado, conforme dito anteriormente. Este mesmo documento destaca a importância de constituir novas habilidades na formação docente para uma sociedade em constante transformação e aponta que formação só é possível tendo a escola como espaço de reflexão, pois, desta forma, é possível articular as condições de trabalho e tempo dos professores (BRASIL, 1999). Essa preocupação é testemunhada também pelo Plano de Desenvolvimento da Educação, pelas Diretrizes do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, e pelo PDE, o qual propõe que o Distrito Federal, os Estados e os Municípios devam promover, em regime de colaboração, a formação inicial e continuada dos profissionais do magistério. A importância e o reconhecimento da necessidade da formação continuada e/ou permanente dos professores, que estimule a perspectiva crítico-reflexiva e o pensamento autônomo, é defendida por autores como Nóvoa (1995), Saviani (2000), Tardif (2002), Larrosa (2002), Mizukami (2002), Gatti (2008), Freire (1996), entre outros. Assim, a formação continuada é tema recorrente nas discussões e fóruns de eventos nacionais e internacionais. No Brasil, as discussões sobre a formação continuada ganham corpo no âmbito da academia ligada à questão da formação inicial e ao longo do tempo têm avançado, tornando- se um campo específico do conhecimento. Segundo Mizukami (2002, p. 28): A Formação continuada busca novos caminhos de desenvolvimento, deixando de ser reciclagem, como preconizava o modelo clássico, para tratar de problemas educacionais por meio de um trabalho de reflexividade sobre as práticas pedagógicas e de uma permanente (re)construção da identidade docente. A atualização constante em função das mudanças no conhecimento e no mundo do trabalho tornou-se necessidade premente. Essa necessidade incorporou-se aos setores da educação, o que exigiu o desenvolvimento de políticas nacionais ou regionais em resposta a problemas característicos de nosso sistema educacional (GATTI, 2008). O termo formação continuada é usado para definir o conjunto de formação vivenciado pelos profissionais da educação e que acontece paralelo ao exercício da docência (PERRENOUD, 1993). 11767 Atualizar-se, rever conceitos e (re) significar a prática pedagógica para poder responder às demandas sociais fazem parte das propostas de formação continuada. Porém, conhecer as novas teorias, estar ciente dos avanços na Ciência da Educação e poder discutir as tendências pedagógicas atuais, são conhecimentos que irão contribuir não somente na prática pedagógica em sala de aula do professor. (PERRENOUD, 1993, p. 200). A teoria é vista não somente como necessária para refletir sobre novas possibilidades de acesso ao conhecimento, mas também como instrumento para analisar a própria prática. Sem uma formação teórica constante e consistente, fica difícil compreender as questões que norteiam a vida escolar. A formação continuada deve ter a escola como espaço de reflexão, permitindo, assim, articular melhor as condições de trabalho e tempo dos professores É no cotidiano da escola que propostas de mudança devem ser levantadas, discutidas e concretizadas, garantindo um grupo formativo que promova a tomada de consciência para a construção da escola democrática (SAVIANI, 2000). O relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI, organizado pela Unesco (DELORS, 1998), indica que para melhorar a qualidade da educação é essencial “melhorar o recrutamento, a formação, o estatuto social e as condições de trabalho dos professores”, de modo que os professores possam “responder ao que deles se espera”. A formação continuada se faz necessária uma vez que, segundo Nóvoa (1995), os professores enfrentam situações com características únicas e, para isso, exigem respostas únicas, e a formação inicial não dá conta de discutir especificidades da realidade de cada escola do sistema educacional brasileiro. Neste cenário, a formação continuada de professores se configura como uma necessidade premente, devendo estimular a perspectiva crítico-reflexiva e o pensamento autônomo para que o docente possa enfrentar os problemas não somente da sua sala de aula, mas também refletir sobre questões mais amplas da educação brasileira. Desafios na formação continuada de professores Ao longo da história, a formação continuada de professores buscou qualificar o professor para o desempenho de suas atividades visando atender demandas de cada época. Diferentes concepções de educação, de sociedade e de distintas tendências epistemológicas permearam a formação do professor, quer seja inicial, quer seja continuada. Um dos conceitos utilizados para designar a formação do professor após a formação inicial foi reciclagem, que na década de 1980 foi muito empregado no meio educacional para caracterizar cursos rápidos e superficiais. Atualmente, pela sua conotação de movimento 11768 circular, mais adequado a coisas do que a pessoas, é pouco utilizado. Treinamento é um termo empregado na área de recursos humanos e, por vezes, no campo da educação. Tem como objetivo programar cursos para treinar os sujeitos a partir de modelos a serem seguidos. No entanto, para Hypolitto (1999), treinar pressupõe repetição mecânica e passividade, tem sentido de adestramento com o objetivo de corrigir desvios ou solucionar falhas para atingir a eficiência. Capacitação foi outro termo utilizado na formação do professor em serviço, já nos anos de 1970 surgiram propostas em que predominava a venda de pacotes ou a apresentação de propostas prontas ditas inovadoras, com o objetivo de revolucionar as práticas pedagógicas (HYPOLITTO, 1999). O termo aperfeiçoamento foi utilizado com a intenção de tornar o sujeito completo e acabado, “tais cursos de aperfeiçoamento, constituíram muitas vezes, o fiel da balança, quando da atribuição de aulas aos docentes da rede pública, pois reforçavam a titulação do portador” (HYPOLITTO, 1999, p. 102). A formação permanente é vista como uma formação constante, pois a formação do professor “não se constrói por acumulação de cursos, de conhecimentos ou de técnicas, mas sim, através de um trabalho de reflexão crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente da identidade pessoal” (NÓVOA, 1995, p. 25). As características atuais do mundo do trabalho e as novas formas de organização da produção numa velocidade cada vez maior impõem a formação constante de profissionais de todas as áreas. Neste sentido, há uma cobrança de que a escola garanta as habilidades e atitudes que tornem o trabalhador preparado para aprender sempre e de forma autônoma (FRIGOTTO, 2002). Como já dito neste trabalho, a necessidade da formação continuada é consenso na comunidade científica que estuda a formação e a atuação do professor. Neste sentido, há de se considerar a viabilidade desse processo no âmbito das escolas públicas brasileiras. Vale ressaltar que as ações pontuais, tais como, cursos eventuais, palestras e encontros esporádicos, entre outros dessa natureza, muitas vezes descoladas das reais necessidades das escolas e das práticas efetivas dos professores, já deu sinais de seu esgotamento, uma vez que isolados não são capazes de alterar o pensar e o agir do professor. Assim, faz-se necessário construir processos de formação com o envolvimento dos docentes com um formato permanente e continuado de forma a não somente dar respostas efetivas às problemáticas da escola,mas contribuir para que o professor possa adquirir base teórica que lhe permita refletir sobre a ação pedagógica e numa discussão coletiva buscar meios de transformá-la. 11769 É necessário promover momentos de formação que tenham como objetivo constituir sujeitos pensantes, conscientes do seu papel na atual sociedade. A proposta dos Referenciais para a Formação de Professores (BRASIL, 1999, p. 18) aponta a necessidade de “construção de um novo perfil profissional de professor, pois a formação dos professores de hoje não contribuem para que seus alunos se desenvolvam como pessoas e participem como cidadãos.” Perrenoud (1999) refere-se à formação continuada como um aspecto indissociável à pratica docente e sua historicidade, os processos de formação do professor necessitam acompanhar a evolução das práticas transformando-se em espaço de formação permanente, que possibilite a discussão da realidade. A formação continuada com essas características considera o professor sujeito de sua prática e pressupõe um posicionamento frente às relações estabelecidas com o ensino e a produção do conhecimento. A reflexão possibilita transformar o mal-estar, a revolta, o desânimo, em problemas, os quais podem ser diagnosticados e até resolvidos com mais consciência, com mais método. Ou seja, uma prática reflexiva nas reuniões pedagógicas, nas entrevistas com a coordenação pedagógica, nos cursos de aperfeiçoamento, nos conselhos de classe, etc... - leva a uma relação ativa e não queixosa com os problemas e dificuldades. (PERRENOUD, 1999, p. 68). De acordo com Perrenoud (1999), a reflexão constante sobre a prática é um caminho promissor para poder contribuir para reinventar as atividades cotidianas da escola e reconstruir o trabalho docente. Refletir sobre a prática não se reduz à formação de competências e habilidades imediatistas, pontuais e individualistas, mas à necessidade de uma reflexão que estimule o senso crítico e que este ultrapasse as paredes da sala de aula e alcance toda a sociedade. A reflexão, conceito presente nas obras de Freire, surge da curiosidade sobre a prática docente e vai transformando-se em reflexão crítica, que deve constituir-se no eixo direcionador da formação permanente de professores. Para Freire, a reflexão é o movimento realizado entre o fazer e o pensar, entre o pensar e o fazer, ou seja, no ‘pensar para o fazer’ e no ‘pensar sobre o fazer’. Nesta direção, a reflexão surge da curiosidade sobre a prática docente. Essa curiosidade inicialmente é ingênua. No entanto, com o exercício constante, a curiosidade vai se transformando em crítica. Desta forma, a reflexão crítica permanente deve constituir-se como orientação prioritária para a formação continuada dos professores que buscam a transformação através de sua prática educativa. (SILVA; ARAÚJO, 2005, p. 4). Segundo Freire (1996), a “condição de inacabamento do ser humano e consciência desse inacabamento” sustenta a concepção de formação permanente de professores. Freire 11770 (1996) afirma, ainda, que formar vai além do movimento de apenas treinar, pois pressupõe um sujeito em constante transformação num movimento permanente de procura e de curiosidade. A formação permanente do professor necessita ser organizada levando em conta as demandas de um currículo construído coletivamente, a partir das contradições vividas por docentes e alunos no cotidiano escolar. Desta forma: A educação é permanente não porque certa linha ideológica ou certa posição política ou certo interesse econômico o exijam. A educação é permanente na razão, de um lado, da finitude do ser humano, de outro, da consciência que ele tem de finitude. Mas ainda, pelo fato de, ao longo da história, ter incorporado à sua natureza não apenas saber que vivia mas saber que sabia e, assim, saber que podia saber mais. A educação e a formação permanente se fundam aí. (FREIRE, 1996, p. 20). Assim, o objetivo central deste trabalho é sustentar a formação permanente como uma modalidade que difere de ações pontuais, pois estas não são suficientes para promover transformações efetivas no pensar e no agir do professor. Para tanto, apresenta-se o recorte de uma pesquisa qualitativa realizada no âmbito de uma dissertação de mestrado (CUNHA, 2014), que teve como objeto de análise a formação permanente de professores da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no município de Chapecó (SC), ocorrida durante os períodos de 1997 a 2004. A visão dos professores sobre a formação permanente Os dados de pesquisa aqui apresentados foram coletados junto a professores que atuavam na EJA da rede municipal de ensino de Chapecó e que passaram por um processo de formação permanente sistematicamente organizada e fundamentada na concepção de educação de Paulo Freire, durante o processo de reorientação curricular, ocorrido no período de 1997 a 2004. Trata-se de pesquisa qualitativa cujos instrumentos para a coleta de dados foram o questionário e a entrevista semiestruturada, essa necessária para o aprofundamento de alguns dados. Aos 11 professores que concordaram em participar da pesquisa foi encaminhado o termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme exigência do Comitê de Ética. Esses professores atuam em distintas disciplinas, tais como Ciências, Geografia, Artes, Matemática, Língua Portuguesa, Língua Espanhola, na Coordenação da EJA e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Esses docentes tinham, na época da formação permanente, 20% da carga horária de trabalho para dedicação a estudos, planejamento e avaliação das práticas escolares. Esse processo de formação foi acompanhamento pela equipe pedagógica, e outras atividades 11771 eram também desenvolvidas, tais como, seminários, oficinas, palestras, que contribuíam para o embasamento teórico. Esse tempo de pensar e repensar as questões pedagógicas da escola permitia um trabalho coletivo, integrado, visando à melhoria do ensino. Esse processo de formação permanente, criado em 1997 no município de Chapecó, tinha como eixo norteador os princípios da concepção freireana de educação a partir de um processo de ação-reflexão- ação da prática pedagógica. Para este artigo foram considerados apenas os dados coletados através da entrevista semiestruturada realizada com quatro professores que se dispuseram a colaborar com o estudo. Os professores estão identificados por letras do alfabeto e os dados obtidos foram submetidos à análise de conteúdo (BARDIN, 2009). Para a concepção de educação e de formação continuada que subsidiou a formação dos docentes da EJA, não basta apenas refletir sobre a prática pedagógica visando transformá-la, é necessário refletir criticamente de modo contínuo e permanente apoiado em teoria consistente para que se possa visualizar possibilidades de mudanças além da prática, ou seja, no próprio modo de pensar e de agir dos sujeitos envolvidos no processo. Possivelmente, devido a práticas tradicionais de formação continuada vivenciada pelos professores, dificuldades e desafios foram enfrentados durante a implementação de um novo processo de formação, como testemunha o depoimento de um dos professores: “[...] houve resistência, sim, por medo do novo, por falta de consciência, por não acreditar. [...] Outros continuaram resistindo e fazendo por fazer o seu trabalho [...].” (P17). Ou seja: Implantar o próprio processo foi desafiador. Era mexer com uma realidade arraigada, viciada, acomodada e ‘exigir’ que lêssemos, discutíssemos, produzíssemos, planejássemos juntos. E ‘ao sair do território’ onde nós achávamos experts, [...], foi doloroso, aliás, muitos não saíram [...]. (P11). É natural que os professores apresentem resistência, pois possuemuma bagagem de conhecimento e certezas sobre a prática docente, decorrente de sua própria história de vida e, assim, têm resistência em mudar o que está cristalizado, a concepção tradicional de educação estava impregnada na prática desses professores. Conforme um deles: [...] lembro que a maior dificuldade era a mudança ‘de tudo o que eu tenho pronto’ agora tudo precisa ser construído com o aluno [...] isso foi muito difícil. [...] a formação continuada me desafiou a estudar mais profundamente, produzir os textos para trabalhar com os alunos deixando um pouco de lado os livros didáticos. (P8). Está claro que não se pode deixar de considerar que há professores que, mesmo com práticas tradicionais, dão boas aulas e conseguem fazer com que o aluno aprenda, porém, 11772 como adverte Libâneo (2000), esses docentes não têm consciência de que o aprendizado mais efetivo ocorre quando o aluno lida com os conhecimentos de forma independente. Tinha uma proposta definida e era essa que estudávamos, o estudo era constante, toda semana, [...]. O que mais marcou foi que durante este período que trabalhei na EJA, aprendi mais com a formação mais do que com meu tempo de faculdade. (P9). Na visão da professora P9, a formação continuada forneceu subsídios não somente para a atuação docente, mas também para a formação do ser humano enquanto cidadão, que ensina e que aprende. Freire (1996) afirma que não é possível ensinar sem aprender, já que o ato de ensinar exige a existência de quem ensina e de quem aprende. Na formação continuada, faz-se necessário refletir criticamente e de modo permanente a prática pedagógica docente com o apoio de teoria consistente para que os professores possam sentirem-se seguros e, assim, visualizarem possibilidades de mudança. A reflexão constante entre teoria e prática num movimento dialético envolve o fazer e o pensar sobre este fazer. A formação permanente dos professores é o momento fundamental de reflexão crítica sobre a prática. “É pensando criticamente a prática de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática” (FREIRE, 1996, p. 18). A reflexão surge a partir da curiosidade sobre a prática docente. Essa curiosidade inicialmente é ingênua, transforma-se em crítica, na medida em que vai fazendo o movimento de reflexão sobre a ação. O importante é que o refletir sobre a ação, neste caso, seja um instrumento dinamizador entre teoria e prática, pois não basta apenas pensar e refletir, é preciso que essa reflexão leve o profissional a uma ação transformadora (FREIRE, 1996). Para Paulo Freire (1996), a visão ingênua da realidade torna os sujeitos escravos, pois, não sabendo que podem transformá-la, ficam submetidos a ela. Essa descrença impede a intervenção no meio, visando uma transformação. Portanto: [...] você, eu, um sem-número de educadores sabemos todos que a educação não é a chave das transformações do mundo, mas sabemos também que as mudanças do mundo são um que fazer educativo em si mesmas. Sabemos que a educação não pode tudo, mas pode alguma coisa. Sua força reside exatamente na sua fraqueza. Cabe a nós pôr sua força a serviço de nossos sonhos. (LIBÂNEO, 2000, p. 126). Freire e Shor (1990) afirmam que a educação libertadora se constitui num estímulo para as pessoas se mobilizarem, se organizarem e se “empoderarem”, os envolvidos se ajudam num esforço comum de conhecer e reconhecer o espaço de atuação. O conhecimento é uma construção social, que está necessariamente interligada ao coletivo. No trabalho coletivo 11773 instigamos o senso da contradição e da oposição ao outro ser humano, mas também reafirmamos nossos princípios e concepções. Assim: O processo de planejamento coletivo e troca de experiência contribuiu e muito para o meu crescimento profissional. [...] O processo interdisciplinar exigia a participação, envolvimento e diálogo entre os educadores e isso exigia rever os conceitos e de fato avaliar o que seria significativo para socializar. (P17). O planejamento de forma coletiva e indisciplinar exigiam do grupo envolvido um diálogo constante que, segundo Freire (1996), é um componente essencial na educação comprometida com a construção de personalidades democráticas. A educação realizada mediante o exercício do diálogo, fundada na prática permanente do diálogo, seria a educação mais favorável à formação e ao desenvolvimento de “atitudes de aceitação do outro e de tolerância diante dos eventuais desacordos” (FREIRE, 1996). Freire (1996) compreende o diálogo necessário à prática educativa da seguinte forma: a experiência dialógica estimula o homem a investigar criticamente o mundo, na intenção de transformá-lo. A dialogicidade exige que o homem se mantenha em uma relação de respeito perante a liberdade do outro, portanto, requer uma relação construída não pela força da opressão e submissão, mas pela capacidade de dialogar (FREIRE, 1996). A dialogicidade freireana tem por objeto o respeito ao princípio do ato educativo humano, em que os homens se educam no coletivo. Neste caso, para Paulo Freire não existe aquele que somente ensina e aquele que só aprende. Todos são sujeitos das ideias e comportamentos que vai compor o todo do trabalho que será produzido (FREIRE, 1996). Pelos elementos apresentados pelas professoras, foi possível perceber que o processo de formação vivenciado por elas foi capaz de, através da reflexão sistematizada, ponto-chave da formação permanente, fazê-las alterar a prática, alteração essa decorrente da transformação ocorrida no modo de pensar e agir, consequência da conscientização da necessidade de mudança, que só foi possível depois de um mergulho profundo na teoria, nas discussões, enfim, nas reflexões ocorridas no interior do grupo de docentes. Uma possibilidade concreta dos professores acessarem o conhecimento historicamente construído e avançarem para além da sua formação específica é necessariamente a formação permanente, ou seja, os debates, as leituras e as reflexões vão tornar o professor mais seguro da sua função e, consequentemente, melhorar seu desempenho como sujeito que ensina e que aprende. 11774 Considerações Os dados aqui apresentados, que é parte de um estudo mais amplo, possibilitou afirmar que entre as modalidades de formação continuada de professores ocorrida ao longo do tempo, a formação permanente, como a realizada no município de Chapecó (SC), no período entre 1997 e 2004, durante o movimento de reorientação curricular, é a que oferece maiores oportunidades para a transformação do pensar e do agir docente, culminando numa significativa mudança na prática dos docentes. As condições objetivas de trabalho como a carga horária destinada à formação docente e a permanente assessoria permitiram uma qualificada reflexão-ação sobre a própria prática. Nesse processo, os problemas e as dificuldades do cotidiano, tais como trabalhar de forma diferenciada daquela tradicional, enfrentar um trabalho interdisciplinar, apropriar-se de novas teorias e lidar com o cotidiano escolar, são questões que, quando discutidas no coletivo, ganharam outra configuração e qualidade, ajudando os docentes a enfrentarem as dificuldades e a resistência ao novo apresentada por muitos professores. A formação continuada baseada em cursos de atualização, palestras, oficinas, minicursos, entre outros, não é suficiente quando se deseja alterar significativamente a prática pedagógica, assim como o pensar e o agir docente de forma consistente e consciente. REFERÊNCIAS BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; LDA, 2009.BRANCO, Cristina. 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