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1 É POSSÍVEL O DIÁLOGO ENTRE FILOSOFIA E PSICANÁLISE? INTRODUÇÃO Nietzsche (1844-1900) e Freud (1859 – 1936) são filhos da Modernidade. Época re- ferenciada à uma visão de mundo, cujo estilo de vida, costumes ou organização social, que emergiram na Europa a partir do século XVII, e cuja influência tornou-se mundiali- zada, consiste num processo de racionaliza- ção de mundo que se manifesta de forma dual: quer pela contextualização ético-filosó- fica, quer pela materialização técnico-produ- tiva, justificada pela ideologia da burguesia e pela racionalidade de acumulação de riqueza do capitalismo liberal. Mas, segundo Bauman, apesar de terem nascido no contexto da “modernidade só- lida”, que tem início com o advento das transformações clássicas que mobilizaram a construção histórica de valores morais, cul- turais e políticos numa estratificação de vida DELLA CUNHA, Djason B. Psicólogo Clínico e Psi- canalista. Pós-Gradua- do em Teoria Psicanalí- tica e Filosofia Moral. Mestre em Antropolo- gia Social – França. Doutor em Direito Pú- blico - Brasil e Douto- rando em Filosofia, Es- panha. Publicado em 17/08/2017 2 social estável, ambos viveram e testemunharam do advento da “modernidade líquida”, caracterizada pela volatilidade da moder- nidade líquida”, caracterizada pela volatilidade da vida social e pela tangibilidade das relações humanas com forte repercussão de- sestabilizadora da ordem familiar, da política, da segurança e da garantia aos direitos fundamentais dos indivíduos, tornando im- provável os planos para modos de vida mais estáveis que se pu- dessem fazer em sociedades futuras. Por isso, seria incomum que estes excelentes pensadores não tivessem vivido uma relação de influência mútua, mesmo traba- lhando em campos diferentes de suas atividades profissionais. Ni- etzsche e Freud são considerados pós-modernos; portanto, con- temporâneos, em suas ideias, por terem vivido praticamente no mesmo ambiente cultural: uma Europa atravessada por crises tre- mendas e perspectivas futuras de mudança, que agitaram não so- mente a vida política, social e cultural, mas também a dimensão psicológica dos modos de pensar, sentir e agir. Tudo isso num en- redo de tessitura política revolucionária e de dimensão existencial, cognominado pelos alemães de “Zeitgeist” (O Espírito do Tem- po). Se por um lado, Nietzsche propõe uma filosofia perspecti- vista, que desclassifica a orientação filosófica tradicional do dis- curso de verdade, subsumido ao antagonismo entre realismo e ide- alismo1, ponderando que “não há fatos, apenas interpretações”; e anunciando o niilismo metafísico com a “morte Deus” e dos valo- res dogmáticos estabelecidos em sua época, Freud, por sua vez, 1 . Se para o realismo o real tem um caráter substantivado, compreendido como pré-constituído e, portanto, autônomo, cujo interpretação da cons- ciência dar-se-ia por espelhamento, para o idealismo, por sua vez, o real se expressa de forma identitária ao conteúdo mental de um sujeito, cuja validade se dá a partir da interioridade do Eu, ou seja, pelo entendimento intelectivo de uma consciência. 3 destrona a supremacia da consciência e coloca sob suspeita a iden- tidade pessoal do eu, classificando-o como “a representação falsa do desejo do outro”, inaugurando uma nova fase da ciência psico- lógica com a sua teoria do inconsciente, proclamando que o ho- mem é mais inconsciente que consciente. Neste sentido, os dois se aproximam e, apesar de produzirem interpretações por caminhos diferentes, ambos reconhecem a con- dição de assujeitamento do sujeito em suas idiossincráticas subje- tivações. Mas, qual era a ideia de sujeito plasmada pela orientação fi- losófica de Descartes na Modernidade sólida? Como fundador das premissas básicas que iriam permitir o desenvolvimento da filosofia moderna, Descartes foi um filósofo do século XVII que pensou o sujeito a partir do estabelecimento do caráter metódico da dúvida. Pare ele, o fato de não haver nada de seguro e firme no mundo e por se supor que todas as coisas são falsas, Descartes leva o Eu à categoria de excelência; pois, seria ele o único capaz de produzir todas as coisas: as noções de lugar, sentido, figura, extensão e corpo. Para ele, o Eu é a causa do co- nhecimento, que se dá pelas regras lógicas do pensamento, que é propriamente racionalidade. Ao crer na razão, o eu, enquanto uni- dade e identidade, menospreza todas as outras formas de interpre- tação da vida. Neste sentido, a filosofia cartesiana contribui fortemente para a noção, quase paradigmática, de que mesmo que as opiniões, ideias e impressões mudem, o eu permanece sempre como predi- cado do sujeito, causador da ação do conhecimento. Ora, a inten- ção de Descartes é provar que se mesmo existisse um gênio ma- ligno que empregasse toda a sua astúcia para enganá-lo, falseando o conteúdo de seu pensamento, o seu pensar seria certamente ver- dadeiro. Logo, o sujeito é o próprio pensamento e pensamento in- dubitavelmente lógico. 4 Este modo de raciocinar de Descartes levaria à concepção de um pensamento filosófico que atribui ao sujeito a capacidade inata de pensar, atributo indispensável ao conhecimento, já que é o eu que não somente vê a coisa, mas que julga e estabelece a partir dela o critério de verdade. Neste caso, a verdade não depende do olhar que vê a coisa, ela é inerente ao juízo, como afirma na Se- gunda Meditação: “Nada admito agora que não seja obrigatoriamente verdadeiro: nada sou, então, a não ser uma coisa que pensa, ou seja, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são palavras cujo significado me era anteriormente desconhecido. Então, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente, mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa”2. Assim, ao eleger o eu do sujeito como uma interpretação me- tafísica de mundo, Descartes impõe um modo único e inquestio- nável de certeza que radicaliza a condição do sujeito ao longo dos séculos XVII e XVIII. Mas, esta noção radical de eu, proposta por Descartes, como “identidade, unidade e causa do pensamento” se- ria destronada pela genealogia como pelo pensamento psicanalí- tico. Apesar, porém, da genealogia também ser um modus inter- pretativo, ela “revela que a metafísica é na verdade, uma inter- pretação válida, mas necessariamente falsa da vida, é uma ilusão na medida em que crê que o conheci- mento produzido pelas noções de causalidade e pe- los princípios da lógica poderiam alcançar a ver- dade”3. 2 . DESCARTES, René. “Meditações Metafísicas” in col. Os Pensadores, Edi- tora Nova Cultural Ltda, SP, 1999, p. 261. 3 . MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Ed. Rocco, SP, 1985, 2ª ed., p. 37. 5 O fato é que, se por um lado, Nietzsche questiona o valor da moral, em sua obra Genealogia da Moral, destacando a má cons- ciência da linguagem, Freud, por sua vez, em o Mal-Estar na Ci- vilização, ressalta o sentimento inconsciente da culpa, consti- tuindo, pois, dois principais sintomas que não somente denunciam a existência de uma “patologia” que se irradiada moral para a cul- tura e desta para o psicológico e o somático, causa de nosso sofri- mento na sociedade líquida. Neste mesmo diapasão, ao comentar Nietzsche sobre os en- ganos da noção de sujeito, Angela Zamora explicita: “Após todas estas considerações, a crítica da noção de sujeito ainda merece outros apontamentos. Como já dissemos, partindo da ótica da vida, a no- ção de eu traçada pela metafísica ignora o fato de a vontade agir tanto no homem quanto no ser vivo em geral, operando, então, uma distinção entre proces- sos orgânicos e o homem. Ora, tal distinção não passa de ficção, posto que separa a causa e efeito da ação. Para Nietzsche, se se fala em sujeito, ele é uma produção posterior, ele é o resultado das lutas entre os diversos instintos presentes no corpo, atu- ando de forma contraditória. Habita no corpo uma pluralidade de forças que são ávidas de domínio, pois são vontades de potência, elas atestam que não é possível a existência de um eu único e contínuo – o que há são inúmeros eus que diferem entre si, visto que são instintos e pretendem dominar”4. Por outro lado, questionando a posição do sujeito instituída pela metafísica cartesiana, Freud vai alegar que há pensamentos 4 . ZAMORA, Ângela. A noção da dissolução do sujeito em Nietzsche. In Revista Pandora Brasil, nº 15, fevereiro de 2010. http://revistapandorabrasil.com/re- vista_pandora/nietzsche/angela.htm 6 que ocorrem no interior de nós mesmos que não pertence ao do- mínio do eu, os quais são regidos por outro tipo de registro psí- quico que condiciona em grande parte a nossa vida: trata-se do inconsciente. Porém, no afã de constituir a psicanálise como uma ciência, Freud não vai propriamente prescindir da noção de sujeito cartesiano, pois não chega a atribuir ao inconsciente o estatuto de sujeito, delegando a ele a causa da intencionalidade do agir, vai simplesmente produzir uma subversão do conceito de sujeito, con- cebendo-o não mais como uma identidade unifuncional e auto- consciente, mas sim dividido, ou seja, o sujeito metafísico cartesi- ano é agora visto como dotado de uma “parte” inconsciente que compromete a certeza de sua parte consciente. Essa, por sua vez, comporta desejos que se manifestam independentemente da von- tade e da consciência daquele. Contudo, é preciso esclarecer que ao declarar a existência dessa parte desconhecida do eu, Freud não elimina a responsabili- dade do sujeito pela prática de seus atos movidos pelo inconsci- ente. Na verdade, o inconsciente é a “qualidade psíquica” de pen- samentos que se manifestam como atos atribuídos, em última aná- lise, ao sujeito. A grande revolução de Freud foi ter comprovado clinicamente que o sujeito que age no mundo não está necessaria- mente consciente de suas intenções. Daí a exigência da psicanálise em não abdicar da responsabilização do sujeito por aquilo que pra- tica. Em regra, do ponto de vista da psicanálise, sujeito não é aquele que tem ampla e total consciência do que realiza; pelo con- trário, é aquele que responde por aquilo que faz sem saber o que está fazendo. Certamente são muitos os méritos das ideias trazidas à baila por estes dois autores que presenciaram e viveram os dramas do início da “sociedade líquida”. Ideias essas que permanecem hoje inteiramente atualizadas no quadro sofisticado da crise ética, mo- ral e emocional dos sujeitos do século XXI. 7 1. O QUE É PSICANÁLISE E QUAL A SUA UTILIDADE? É bastante frequente o uso da palavra psicanálise em nossa so- ciedade. E mais comum, ainda, é a frase “Freud explica”, dita de uma maneira que parece revelar a crença comum de que a psica- nálise tem uma explicação para fatos que fogem ao conhecimento imediato da consciência. Por outro lado, os meios de comunicação de massa estão sempre a trazer à discussão assuntos e questões da vida humana que suscitam um olhar, uma abordagem, ou mesmo, uma análise de fundo psicanalítico. Sem dúvida, ao lado da socio- logia e da psicologia, a psicanálise é uma das “ciências humanas” que se faz presente de forma marcante em nossa sociedade. Por- tanto, é do nosso interesse compreender o que ela significa, do que ela trata, de conhecer seus limites com o propósito de tentar me- lhor utilizá-los. Geralmente, considera-se que a psicanálise nasceu entre o sur- gimento dos “estudos sobre a histeria”, realizados por Sigmund Freud e Josef Breuer - publicados em 1895 - e aqueles da “ciência dos sonhos”, redigidos unicamente por Freud em 1900. Mas, é a Freud que se atribui, sem contestação, à paternidade da fundação da psicanálise, por ter sido ele o sistematizador de suas bases e regras teórico-práticas. Por isso, o domínio dos conceitos teóricos fundamentais por ele enunciados se apresenta necessário à com- preensão da psicanálise. Para começar, parece-me indispensável explicar o que é a psicanálise. Em seguida, passarei a tratar de al- guns conceitos chaves, considerados fundamentais à compreensão dos fenômenos psicanalíticos e de sua prática teórico-clínica. A Psicanálise é uma disciplina muito jovem. Nasceu nos fins do século XIX sob o impulso da genialidade criativa do médico judeu e neurologista Sigmund Freud (1859-1936). Surgiu sob o 8 influxo da Modernidade numa época que a psicologia da consci- ência era bastante insuficiente para tratar dos sintomas ligados à síndrome da histeria. Na busca de compreender e tratar de uma série de fenômenos ligados aos sintomas histéricos, Freud descobriu que neles intervi- nham processos psíquicos inconscientes que remontavam à sexu- alidade infantil. A análise de sonhos de alguns de seus pacientes lhe confirmaram o caráter extensivo desta determinação inconsciente, presente na sintomatologia dos fenômenos histéricos e dos lapsos, atos falhos, chistes, o que evidenciavam a insuficiência da psico- logia da época na explicação destes fenômenos. Por outro lado, desde a fundação da psicanálise, no final do século XIX, Freud instala uma prática terapêutica que tem como eixo de ação um conjunto de conceitos, de indicações e de regras técnicas que justificam o tratamento de pessoas que sofrem de sin- tomas psíquicos. Sendo o primeiro a descobrir o funcionamento psíquico do inconsciente e a universalidade de suas leis, Freud postula que a terapêutica psicanalítica difere substancialmente da prática psiquiátrica e neurológica. Reportando-nos ao âmbito e relações da Psiquiatria com a Psi- canálise, verifica-se que a situação ocupada por ambas no espaço clínico, em geral, é de complementaridade e de inteira autonomia profissional. Isto significa dizer que a Psicanálise não se constitui numa subespecialidade da Psiquiatria, nem tampouco é uma espe- cialização médica. A relação entre os dois campos de conheci- mento se situa na esfera da afinidade, uma vez que, fundamental- mente, tanto uma quanto a outra cuidam de partes inconfundíveis do psiquismo e se definem por objetivos e perspectivas diferentes. Assim, do ponto de vista do psiquismo, os problemas da mente podem ser classificados em dois tipos básicos: estruturais e não- 9 estruturais. As enfermidades estruturais são, em regra, classifica- das como psicogênicas e neurológicas, sendo seu estudo e terapêu- tica competência da Psiquiatria e Neurologia, respectivamente. O termo psicogênico aqui se refere à origem psicológica de uma ca- racterística ou perturbação do comportamento humano, v.g. fato- res emocionais, cognitivos, motivacionais, conscientes ou incons- cientes. Diz respeito, ainda, a problemas estruturais da mente, ouseja, a toda “enfermidade” que, podendo ser funcional e degene- rativa, lesa a estrutura psíquica. As ditas patologias não-estruturais competem à Psicanálise. Mas, em que consiste fundamentalmente a diferença entre as patologias estruturais e não-estruturais? Do ponto de vista conceitual, a patologia estrutural é toda en- fermidade que, de certo modo, lesiona a estrutura da mente, po- dendo essa “lesão” ser funcional ou degenerativa. No âmbito es- trutural se situam todas as psicoses, transtornos, oligofrenias, sur- tos, neuropatias, etc. Com relação às neuropatias, o conceito es- trutural sofre variação na medida em que essas enfermidades são pensadas como afetações do organismo sem levar em considera- ção o psiquismo. Por outro lado, as patologias não-estruturais são transtornos do psiquismo em que não há presença de lesão, quer seja funcional ou degenerativa. São tipificadas como “neuroses”, uma vez que não sendo estruturais, resultam de experiências, vivências, trau- mas, recalques, etc., sobretudo relacionados com a fixação da li- bido, fixação problemática. Basicamente, existem duas referências conceituas quanto à atu- ação da psiquiatria. De um lado, encontram-se os que a conside- ram um ramo especializado da Medicina, ocupando-se, sobretudo, 10 do conhecimento e da terapia dos transtornos (doenças) da adap- tação da personalidade, em seus aspectos intra e interpessoal (con- ceito restrito). Do outro, encontram-se os que defendem que a Psi- quiatria tem uma atividade médica de natureza multidisciplinar, fundamentada na Biologia humana, na Neurofisiologia, na Biolo- gia cerebral, na Psicologia normal e patológica, na Antropologia e na Sociologia, destinada a prevenir, diagnosticar e tratar os trans- tornos psiquiátricos. A primeira referência procura subjugar a Psiquiatria ao modelo organogenético que reduz direta ou indiretamente o transtorno psi- quiátrico a uma doença corporal do cérebro, limitando-se a uma visão descritiva do distúrbio mental. A segunda, entretanto, amparada por uma concepção psicodi- nâmica, encara a doença psiquiátrica como distúrbio do homem total, além de ser um fato médico é igualmente um acontecimento social e cultural, um “fenômeno de plurideterminismo de ponde- ração variável”, englobando todos os modelos psiquiátricos dispo- níveis: médico, organogenético, psicogenético, psicanalítico, fe- nomenológico e sociogenético. Mas, o fato é que, mesmo sob o crivo dessa contenda concei- tual e metodológica, a Psiquiatria: a) Constitui-se em especialidade da Medicina que inter- vém no campo da saúde mental; b) b) Dedica-se à terapêutica, em especial, das perturba- ções graves do psiquismo; c) c) Tem por objeto de estudo e tratamento os transtornos psicogênicos, isto é, os transtornos estruturais da mente. No que concerne à psicanálise, esta não constitui especialidade da Medicina, nem subespecialização da Psiquiatria. Sua prática 11 está alicerçada em uma definição complexa de terapêutica articu- lada em três níveis distintos de abordagens: uma teoria geral do psiquismo, uma psicoterapia e um método de investigação. Como teoria geral do psiquismo, ela se constitui numa tenta- tiva de compreensão da personalidade humana em toda sua com- plexidade, perspectivando, para além da consciência, os diferentes aspectos da realidade psíquica inconsciente. Esta tentativa é ali- mentada por um procedimento de investigação que pouco a pouco permite armazenar um acúmulo sistemático de conhecimentos so- bre a mente que gradualmente está se tornando uma nova ciência. Ao conjunto destes modelos conceptuais, Freud denomina de ME- TAPSICOLOGIA, cuja sistematização se dá por integrar três va- riáveis psicodinâmicas: a) O aspecto dinâmico das pulsões e dos conflitos que se estabelecem; b) O aspecto tópico ou estrutural das zonas e estruturas que caracterizam o seu funcionamento; c) O aspecto econômico, que toma em consideração a gestão e investimento das energias pulsionais; d) O aspecto genético que identifica os grandes mo- mentos e transformações através dos quais o indiví- duo constrói e estrutura a sua personalidade. Como psicoterapia, a psicanálise instaura a compreensão de que a “cura” só se dá com a revivência e resolução do conflito anteriormente mal resolvido. Seria como se ocorresse uma ca- tarse, isto é, a libertação dessa força perturbativa. Porém, rapida- mente Freud percebe, em especial com a paciente Anna O, que é nessa revivência e resolução, agora por transferência para a figura do psicanalista, que consiste a terapia psicanalítica. De modo que 12 os fenômenos psíquicos inconscientes, mais ou menos inacessí- veis, podem converter-se em objeto de uma investigação rigorosa através de um procedimento que Freud define como “Associação Livre” e que, utilizado no quadro bem definido da situação analí- tica, torna-se a “regra fundamental” que permite ao analisando di- zer tudo o que lhe vem ao espírito. De modo que, os fenômenos aparecem e se organizam centrados na relação dita transferencial com o analista, constituindo, assim, o processo analítico. E como método, constitui uma tekné de sistematização de pro- cessos mentais inconscientes, praticamente inacessíveis de outra forma, que trata da interpretação especificamente de vivências in- ternas e profundas como pensamentos, sentimentos, emoções, fan- tasias e sonhos, para o tratamento das neuroses. Com a morte de Freud, a psicanálise adquire uma nova orien- tação e se volta predominantemente para a observação direta da criança e o estudo da relação precoce; a redução da importância sexual e o desenvolvimento do tema das relações de objeto. Apesar de várias críticas aos seus postulados, o movimento psi- canalítico se fortalece ao longo dos anos, apesar de alguns impas- ses, e hoje parece constituir uma das formulações teóricas mais importantes na compreensão do homem em suas diferentes dimen- sões. Mesmo considerando o grau de complexidade desta prática, pode-se afirmar que à psicanálise compete o estudo e o tratamento dos transtornos neuróticos, isto é, das “síndromes” não-estruturais, de origem social e culturalmente assimiladas, embora hoje com- porte também abordagens de estruturas psicóticas em seu manejo terapêutico. A psicanálise é, portanto, uma disciplina da contemporanei- dade voltada para compreender as manifestações psíquicas dos in- divíduos que vivenciam hoje, mais do que nunca, uma experiência 13 de “mal-estar” permanente, num mundo cada vez mais fragmen- tado e sem sentido, sem reservas morais, onde não há lugar para a virtude nem para o autoconhecimento. Com efeito, o homem do século XXI está marcadamente con- denado a viver uma existência sem esperança, uma experiência social de exclusão, numa sociedade cada vez mais mercantilista e superficial onde o consumismo desenfreado corrompe sua alma e lhe produz novas neuroses. Diante de tudo isso, a psicanálise é chamada a traçar seu novo futuro e a enfrentar a dramática polui- ção psíquica com que se depara o sujeito contemporâneo, cujas neuroses têm suas causas, certamente, enraizadas na lógica desar- razoada e inumana do capitalismo. A psicanálise é, exatamente, o inverso da sociedade capitalista, colocando o ser humano no meio de suas teorias e atribuindo novamente à palavra o seu sentido, tornando o homem mais humilde e mais consciente do processo de automutilação da sociedade capitalista. Obviamente, o psicana- lista não tem a pretensão de transformar a vida do homem num paraíso. Mas, ajudá-loa viver melhor é um propósito que ela tem como realizar: elucidando a significação inconsciente das condu- tas (atos e sintomas) conscientes. É, portanto, dentro desta visão que se justificam os conceitos teórico-práticos fundamentais à le- gitimidade e efetivação da prática clínica da psicanálise e das psi- coterapias de orientação psicanalítica. Por outro lado, diante da exigência de uma prática terapêutica, postula Freud em seus escritos sobre Análise terminável e inter- minável (1937): “A experiência analítica ensinou-nos que o melhor é sempre inimigo do bom e que, em todas as fases do restabelecimento do paciente, temos de lutar contra sua inércia, que está pronta a se contentar com uma solução 14 incompleta. (...) Analisar talvez seja a terceira das pro- fissões ‘impossíveis’, nas quais, logo de início, pode- se ter a certeza de um sucesso limitado. As duas outras, conhecidas há muito mais tempo, são educar e gover- nar”3. Quadro Sinóptico de Diferenciação entre Psiquiatria, Neurologia, Psicologia e Psicanálise PSIQUIATRIA NEUROLOGIA a) Especialidade da medicina que intervém no campo da sa- úde mental; b) Dedica-se à terapêutica, em especial, das perturbações graves do psiquismo; c) Tem por objeto de estudo e tratamento os transtornos psi- cogênicos, isto é, os transtor- nos estruturais do psiquismo; d) O método privilegiado de in- tervenção terapêutica se dá via medicação alopática. a) Especialidade da medicina que desenvolve estudos e inter- venções que têm como área de interesse o cérebro humano, particularmente no diagnós- tico e tratamento das ocorrên- cias em nível cerebral; b) Compete o estudo das doenças do sistema nervoso central, periférico e autônomo. Ou se- ja, o estudo das patologias es- truturais neurológicas; c) O método de tratamento se dá via intervenção cirúrgica e medicação alopática. 3 FREUD, Sigmund. “Análise terminável e interminável”. São Paulo, IMAGO, 1937, p. 150 – 151. 15 PSICOLOGIA PSICANÁLISE a) Estuda os aspectos gerais que caracterizam o compor- tamento de todos os indiví- duos (percepção, aprendiza- gem, motivação); b) Tem também por objeto de estudo a construção de ins- trumentos de avaliação dos fenômenos psicológicos; c) Os métodos de tratamento se dão via psicoterapias não - medicamentosas. a) O aspecto dinâmico das pul- sões e dos conflitos que se es- tabelecem; b) O aspecto tópico, as zonas e estruturas que caracterizam o seu funcionamento; c) O aspecto econômico, que toma em consideração a gestão e investimento das energias pulsionais; d) E, ainda, o aspecto genético que identifica os grandes mo- mentos e transformações atra- vés dos quais o indivíduo constrói e estrutura a sua per- sonalidade; e) O método de intervenção tera- pêutica se dá via terapia não- medicamentosa. 2. O QUE É A FILOSOFIA E SUA UTILIDADE? A filosofia é uma disciplina de caráter dialógico aberto per- manentemente ao encontro interdisciplinar com outras ciências. A ênfase deste diálogo interdisciplinar fica evidente quando se in- daga sobre o objeto de estudo da filosofia, pois sugere uma condi- ção de reflexão epistemológica na medida em que busca conhecer. Neste caso, a interdisciplinaridade é a visão epistemológica mais adequada para se pensar a investigação, a construção e a transmis- são do conhecimento em filosofia. 16 Neste sentido, a interdisciplinaridade pode ser tomada na acepção de um “princípio mediador de comunicação entre as dife- rentes disciplinas, como elemento teórico-metodológico da dife- rença e da criatividade”4. É como diz Heráclito, “o importante não é saber muitas coisas (a polimathéia), mas saber o necessário, isto é, que tudo é um”5, ou seja, que as coisas estão intimamente liga- das numa relação dialógica de reciprocidade e que a lei da unidade compreende necessariamente o múltiplo de todas as coisas. Ao longo da história da Psicanálise, a Filosofia lhe tem sido muito útil. Da mesma forma que a Psicanálise tem procurado in- terpretar as leituras do discurso filosófico – como foi o caso de Freud e de Lacan -, a Filosofia, por sua vez, tem questionado o discurso psicanalítico. O contexto nos mostra que a Psicanálise se utilizou apropriadamente dos relatos filosóficos dos mitos – al- guns deles importantes para a própria fundação da psicanálise -, além de enunciar uma série de pressupostos sobre a subjetividade a partir de análises e de referências epistemológicas da filosofia, que permitiram tecer leituras sobre o psiquismo. Do mesmo modo, o discurso freudiano e lacaniano tem assumido um destaque rele- vante nos estudos da Filosofia. Apesar de Freud rejeitar parcialmente certas posições filosó- ficas na construção do pensamento psicanalítico, por temer que o discurso filosófico fosse um entrave ao reconhecimento da psica- nálise em sua veracidade científica, dada a exigência dos cânones positivistas da época, ele em seus desdobramentos teóricos deli- neou uma certa interlocução com a filosofia, ligando-se ao dis- curso filosófico para matizar e ordenar suas teorias. 4 ETGES, Norberto J. Produção do conhecimento e interdisciplinaridade. Brasí- lia: Rumo, 1993, p. 18. 5 HERÁCLITO, frag. 41. Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1973, p. 89. 17 Contrariamente a Freud, que se manteve cuidadosamente à distância da Filosofia, Lacan foi mais extensivo no trato com os estudos da Filosofia, abraçando-a com veemência em seu projeto psicanalítico, buscando abordar a questão da determinação do psi- quismo pelo viés da urdidura filosófica, ligando indissoluvelmente a técnica psicanalítica à ética filosófica. É, especialmente, na Filosofia Política que Lacan vai buscar alguns referenciais de significação filosófica – além de outros igualmente relevantes extraídos da etologia, linguística, antropo- logia e sociologia - para formular suas próprias questões acerca da teorização da estrutura psíquica do sujeito e organizar a inteligibi- lidade da “psicologia concreta” que se propõe a construir. É, com essa visão de “objetivação do sujeito”, que Lacan inventa novos conceitos e dá à psicose um novo destino terapêutico, compreen- dendo sua significação sob a ótica do contexto social e do conflito familiar em sua tensão original. É preciso, porém, destacar que mesmo sofrendo influência da filosofia em suas elaborações teóricas, a Psicanálise realiza algo que marca de forma definitiva a sua presença na modernidade: a subversão do sujeito moderno, e por ter se constituído como uma clínica dele. Além do que falar de sujeito moderno é referir-se à investigação científica. Neste ponto, a Psicanálise é uma disciplina que se define e se nivela pela investigação científica, região em que se situa a problemática do sujeito moderno, e não pela filoso- fia. O sujeito moderno surge, inexoravelmente, em razão do ad- vento da atividade científica. Neste sentido, pondera Calazans: “A filosofia, por sua vez, não é inteiramente com- patível com a lógica de um mundo científico. (...) 18 A tarefa da filosofia moderna é tentar tratar as ques- tões científicas em termos de valor para poder le- gislar, do exterior, sobre a ciência. Em outros ter- mos: a tarefa da filosofia é encontrar uma maneira de assegurar o fundamento universal do mundo moderno unificando o campo de problemasde ob- jetivação com o campo de problemas de valores”6. No caso da psicanálise, mesmo tendo a mesma preocupação que a filosofia e as outras ciências humanas sobre o “problema da validade dos valores”, ela “assume outro princípio de colocação da questão: não a coloca em termos de uma função realista, mas em termos do que poderíamos chamar de função histórica. (...) Ela não vai buscar uma fundamenta- ção a priori que escape à experiência, nem vai bus- car uma ‘realidade psicológica’ que se imponha a todos. A psicanálise vai pensar o fracasso dessas duas propostas em dar conta dessa questão. A dis- puta quanto ao tratamento a ser dado a essa questão só pode surgir no mundo moderno. Pode-se daí ex- trair o problema que caracteriza a modernidade: sem poder apelar a Deus e à cosmologia aristoté- lica, por um lado, e sem poder apelar à ciência, por outro, como tomar uma decisão com segurança?”7. Este questionamento, que se faz presente de modo marcante no cenário da existência no mundo contemporâneo, faz com que a psicanálise assuma uma posição de realce diante da exigência que se põe ao sujeito de encontrar o fundamento do conhecimento e da 6 CALAZANS, Roberto. Sentido da subversão do sujeito pela psicaná- lise, p. 2-3, in http://www.uff.br/ichf/publicacoes/revista-psi-arti- gos/2004-2-Cap8.pdf. Aceito em novembro/2004. 7 Idem. Ibid., p. 4-5. 19 ação moral, em uma realidade cada vez mais desorientada, em que todas as referências estão perdidas, e que ele só tem a si mesmo como resposta possível. Neste caso, “situar o sentido da subversão do sujeito promovida pela psicanálise permite apontar para o problema que ela pretende tratar: ser uma clínica do fracasso dos processos identificatórios que serviriam de ori- entação no registro dos problemas éticos”8. Neste sentido, a clínica psicanalítica encontra sua justificação na medida em que exclui de sua atividade qualquer consideração de valor, atribuindo a este procedimento um qualificativo cientí- fico, e, por outro, problematizar a condição do sujeito contempo- râneo a partir de uma visão ética, por tratar de questões que justa- mente a ciência não consegue dar conta. Daí, a possibilidade do diálogo entre a filosofia e a psicaná- lise, uma vez que ambas estão implicadas a tratar do sentido da subversão do sujeito, na medida em que ambas se permitem ava- liar dois aspectos que se colocam no contexto da atualidade: pri- meiro, se há mesmo “novos fenômenos” que colocariam a clínica psicanalítica sob suspeita; e, segundo, se a filosofia contemporâ- nea teria maturidade avaliativa para colocar em questão a subver- são do sujeito promovida pela psicanálise, diante das novas pro- posições que afirmam da existência de uma nova subjetividade e de novos fenômenos clínicos que exigiriam a construção na filo- sofia de um movimento de recuperação da libertação do sujeito, por um lado, e de uma nova práxis psicanalítica capaz de ressituar as demandas desse novo sujeito, de outro, no trajeto de identifica- ções fugazes da pós-modernidade. 8 Idem, ibid., p. 7. 20 Referências CALAZANS, Roberto. Sentido da subversão do sujeito pela psicanálise, p. 2-3, in http://www.uff.br/ichf/publicacoes/revista-psi-artigos/2004-2- Cap8.pdf. Aceito em novembro/2004. DESCARTES, René. “Meditações Metafísicas” in col. Os Pensadores, Editora Nova Cultural Ltda, SP, 1999. ETGES, Norberto J. Produção do conhecimento e interdisciplinaridade. Brasília: Rumo, 1993. FREUD, Sigmund. “Análise terminável e interminável”. São Paulo, IMAGO, 1937. HERÁCLITO, frag. 41. Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1973. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Ed. Rocco, SP, 1985, 2ª ed. ZAMORA, Ângela. A noção da dissolução do sujeito em Nietzsche. In Revista Pandora Brasil, nº 15, fevereiro de 2010. http://revistapandorabrasil.com/re- vista_pandora/nietzsche/angela.htm (Consulta realizada em 18/08/2017).
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