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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 465 CHACRA APM e cols. Classificação das dislipidemias INTRODUÇÃO Há cerca de 40 anos, a comunidade científica reco- nheceu a necessidade de se introduzir uma classificação das dislipidemias, no intuito de ordenar os defeitos meta- bólicos então conhecidos. Essa classificação permitiu que se criasse uma linguagem científica universal, facilitando o diagnóstico, o tratamento, bem como a evolução e o prognóstico das dislipidemias. Nesse sentido, com base nos métodos laboratoriais validados na época, a Organi- zação Mundial da Saúde referendou a classificação feno- típica de Fredrickson e colaboradores(1), em 1970, que ainda hoje constitui um método prático de se identificar eventual defeito lipídico metabólico. Além da classificação fenotípica, as dislipidemias são classificadas de acordo com as determinações bioquími- cas e sua etiologia. A Tabela 1 apresenta os valores nor- mais do perfil lipídico em indivíduos com mais de 20 anos de idade. CLASSIFICAÇÃO BIOQUÍMICA A classificação bioquímica(2) considera a determina- ção do colesterol total, dos triglicérides e do colesterol de lipoproteína de alta densidade (HDL-colesterol) por meio de métodos diretos de determinação. Não discrimina os padrões das diferentes lipoproteínas. Compreende qua- tro tipos principais bem definidos: CLASSIFICAÇÃO DAS DISLIPIDEMIAS ANA PAULA MARTE CHACRA, JAYME DIAMENT, NEUSA A. FORTI Unidade Clínica de Dislipidemias – Instituto do Coração (InCor) – HC-FMUSP Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 – Bloco II – 2º andar – sala 4 – Cerqueira César – CEP 05403-900 – São Paulo – SP Os autores ressaltam a importância de uma classificação das dislipidemias acei- ta pela comunidade científica, o que facilita o estabelecimento do diagnóstico e a melhor terapêutica, bem como o prognóstico das mesmas. Além da propedêutica dos distúrbios lipoprotéicos, são abordados aspectos genéticos das principais disli- pidemias. Palavras-chave: lipoproteínas séricas, dislipidemias, classificação, etiologia. (Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;6:465-72) RSCESP (72594)-1569 a) Hipercolesterolemia isolada: elevação isolada do co- lesterol total, que corresponde ao aumento do colesterol de lipoproteína de baixa densidade (LDL-colesterol). b) Hipertrigliceridemia isolada: elevação isolada dos tri- glicérides, que reflete o aumento das partículas de lipo- proteína de densidade muito baixa (VLDL) ou dos quilo- mícrons ou de ambos. c) Hiperlipidemia mista: valores aumentados de coleste- rol total e triglicérides, em proporções variáveis. d) HDL-colesterol baixo: isolado ou em associação com aumento de LDL-colesterol ou de triglicérides. CLASSIFICAÇÃO FENOTÍPICA A classificação proposta por Fredrickson e colabora- dores(1) (Tab. 2) foi baseada nos métodos de eletroforese e ultracentrifugação, além da aparência do plasma obtido de amostra no jejum, após 24 horas de repouso a 4oC (geladeira comum). Essa classificação considera as ca- tegorias das lipoproteínas(1, 3, 4) e admite os seguintes fe- nótipos: a) Tipo I: colesterol total normal ou pouco elevado e hi- pertrigliceridemia às custas do excesso de quilomícrons. A aparência do plasma de jejum, após 24 horas, apre- senta camada cremosa acima de uma coluna líquida de plasma transparente. Pela eletroforese, observa-se den- sa faixa de quilomícrons, e as demais faixas podem não ser visíveis. 466 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 CHACRA APM e cols. Classificação das dislipidemias b) Tipo IIa: aumento de colesterol total às custas da ele- vação das betalipoproteínas. O plasma de jejum, após 24 horas, mostra-se límpido. O colesterol está elevado e os triglicérides estão dentro dos valores normais. Na eletro- forese há uma faixa de betalipoproteínas intensamente coradas e na ultracentrifugação observa-se aumento dos níveis plasmáticos de LDL-colesterol, com VLDL-coleste- rol normal e HDL-colesterol variável. c) Tipo IIb: elevação plasmática concomitante do coleste- rol total e dos triglicérides às custas de aumento de pré- beta e betalipoproteínas. O plasma de jejum é geralmen- te turvo. A eletroforese mostra faixas de beta e pré-beta- lipoproteínas, intensamente coradas e separadas, e a ul- tracentrifugação exibe aumento da LDL e da VLDL. d) Tipo III: relativamente incomum, caracteriza-se por uma fração de VLDL com mobilidade eletroforética anormal; esse fenótipo é conhecido como doença da beta larga. O plasma de jejum, após 24 horas, é turvo, com leve cama- da cremosa na parte superior, que corresponde aos qui- lomícrons. A banda beta da eletroforese está alargada, correspondendo à elevação das lipoproteínas de densi- dade intermediária (IDL). As concentrações de colesterol total e triglicérides estão elevadas e a relação colesterol total/triglicérides é de aproximadamente 1. e) Tipo IV: aumento dos triglicérides em decorrência do acúmulo das pré-betalipoproteínas, correspondente à ele- vação das VLDL. O colesterol total é normal ou pouco aumentado, às custas do colesterol contido nas VLDL. O plasma tem aspecto turvo. f) Tipo V: colesterol total pouco aumentado e aumento Tabela 1. Valores de referência para o diagnóstico das dislipidemias em adultos > 20 anos. Lípides Valores Nível Colesterol total < 200 Ótimo 200-239 Limítrofe ≥ 240 Alto LDL-colesterol < 100 Ótimo 100-129 Desejável 130-159 Limítrofe 160-189 Alto ≥ 190 Muito alto HDL-colesterol < 40 Baixo > 60 Alto Triglicérides < 150 Ótimo 150-200 Limítrofe 201-499 Alto ≥ 500 Muito alto LDL-colesterol = colesterol de lipoproteína de baixa densidade; HDL-colesterol = colesterol de lipoproteína de alta densidade. importante dos triglicérides por elevação concomitante de quilomícrons e pré-betalipoproteínas. O plasma de jejum apresenta uma camada cremosa, superior, que corres- ponde aos quilomícrons, e outra turva, inferior, que cor- responde aos triglicérides endógenos. A classificação fenotípica não define a etiologia das dislipidemias, não diferencia as primárias das secundári- as, mas tem sido útil na caracterização dessas anormali- dades. A eletroforese de lipoproteínas é usada eventualmen- te a fim de diferenciar quando a elevação de triglicérides é procedente de fontes alimentares (triglicérides contidos nos quilomícrons) ou de partículas ricas em triglicérides de origem endógena (VLDL produzida pelo fígado, como, por exemplo, em indivíduos com alta ingestão de carboi- dratos)(5, 6). Entretanto, estabelecer o fenótipo das lipoproteínas plasmáticas não substitui o diagnóstico da etiologia da dislipidemia. Por serem métodos mais caros, tanto a eletroforese como a ultra-centrifugação não são feitas de rotina; a ele- troforese, como mencionado, tem utilidade na presença de hipertrigliceridemias graves e é também indicada na suspeita diagnóstica da dislipidemia tipo III(6). CLASSIFICAÇÃO ETIOLÓGICA Diante de concentrações anormais de lípides no plas- ma, é necessária a identificação das causas da dislipide- mia. De acordo com sua etiologia, as dislipidemias são Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 467 CHACRA APM e cols. Classificação das dislipidemias classificadas como primári- as ou secundárias. Dislipidemias primárias As dislipidemias primá- rias caracterizam-se por au- mento ou diminuição dos lí- pides plasmáticos, resultan- tes de alterações genéticas que interferem com os me- canismos de síntese ou re- Tabela 2. Classificação fenotípica das hiperlipidemias (Fredrickson). Lipoproteínas Lípides Aparência (principal alteração) (valores mais comuns) do plasma Fenótipo QM VLDL IDL LDL CT (mg/dl) TG (mg/dl) ou soro Tipo I ↑↑↑ 160-400 1.500-5.000 Sobrenadante cremoso Tipo IIa ↑ a ↑↑↑ > 240 < 200Transparente Tipo IIb ↑ a ↑↑ ↑ a ↑↑↑ 240-500 200-500 Turvo Tipo III ↑↑ a ↑↑↑ 300-600 300-600 Turvo Tipo IV ↑ a ↑↑↑ < 240 300-1.000 Turvo Tipo V ↑ a ↑↑↑ ↑ a ↑↑↑ 160-400 1.500-5.000 Camada superior cremosa Camada inferior turva QM = quilomícron; VLDL = lipoproteína de densidade muito baixa; IDL = lipoproteína de densidade intermediária; CT = colesterol total; TG = triglicérides. moção das lipoproteínas circulantes. Algumas dessas dislipidemias manifestam-se em função da influência ambiental, incluindo dieta inadequada e/ou sedentaris- mo. As dislipidemias primárias englobam as hiperlipide- mias e as hipolipidemias. Serão abordadas, a seguir, as principais hiperlipidemias genéticas. Hipercolesterolemia familiar A hipercolesterolemia familiar é uma doença genéti- ca, com transmissão autossômica dominante, o que con- fere dois genótipos: os homozigóticos, que praticamente não expressam receptores para remoção do LDL-coles- terol, com níveis muito elevados de colesterol plasmático, e os heterozigóticos, com expressão parcial dos recepto- res e níveis de colesterol não tão elevados como na for- ma heterozigótica. A heterozigótica é mais freqüente e acomete cerca de 1:500 pessoas da população; a forma homozigótica, muito rara, tem prevalência de 1:1.000.000(7). A concentração plasmática de LDL-coles- terol, nos heterozigóticos, oscila entre 250 mg/dl e 450 mg/dl. Nos homozigóticos, esses valores são mais pro- nunciados, podendo-se observar níveis entre 550 mg/dl e 950 mg/dl. Xantomas tuberosos na face dorsal das mãos, nos joelhos, nos cotovelos e no tendão de Aquiles, além de xantelasma e arco córneo lipídico, são sinais do exa- me físico considerados patognomônicos dessa doença. O fenótipo da hipercolesterolemia familiar é IIa. A impor- tância do diagnóstico precoce e da instituição do trata- mento adequado decorre do conhecimento da história natural da doença. Em sua forma heterozigótica, calcula- se que homens com 50 anos de idade ou mais apresen- tem risco elevado de doença coronariana (de 50%), en- quanto em mulheres o risco estimado é de 30% antes dos 60 anos de idade. Na forma homozigótica, mais gra- ve, observa-se doença arterial coronariana e até óbito já na primeira infância(7). Defeito familiar da apo B O defeito familiar da apo B é uma alteração genética que se caracteriza por uma única mutação da apo B-100, defeito que impede que essa apolipoproteína seja reco- nhecida pelo receptor; assim, não se estabelece a liga- ção entre a apo B100 e o receptor da LDL, o que resulta em elevação dos níveis de colesterol total e de LDL-co- lesterol. A freqüência dessa doença é de 1:500 e 1:750 em indivíduos brancos com hipercolesterolemia. Em po- pulações não selecionadas e de etnia diversa, a preva- lência é de 0,08%. O quadro clínico dos pacientes homo- zigóticos e heterozigóticos com defeito familiar da apo B é muito semelhante ao de hipercolesterolemia familiar, com níveis elevados de LDL-colesterol, xantomas e do- ença coronariana precoce. Apesar da semelhança, os níveis de colesterol são menos elevados e as manifesta- ções clínicas são menos intensas no defeito familiar da apo B, quando comparados à hipercolesterolemia famili- ar. Esse fenótipo menos grave deve-se ao fato de que a ligação da apo B com o receptor da LDL é defeituosa, mas não ausente. Clinicamente, o defeito familiar da apo B é indistinguível da hipercolesterolemia familiar e o tratamen- to é semelhante ao da hipercolesterolemia familiar(8). Hiperlipidemia familiar combinada A hiperlipidemia familiar combinada é uma das hiper- 468 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 CHACRA APM e cols. Classificação das dislipidemias lipidemias mais comuns, com prevalência aproxima- da de 2%, além de ser cau- sa freqüente de doença co- ronariana precoce (20% dos pacientes jovens com infarto do miocárdio apre- sentam hiperlipidemia fami- liar combinada). Foi reco- nhecida em 1973 por Gol- dstein e colaboradores(9) em estudo de famílias com do- ença coronariana precoce. A hiperlipidemia familiar com- binada caracteriza-se por níveis elevados de triglicérides ou colesterol ou ambos, com padrão aparente de heran- ça autossômica dominante. Como peculiaridade, obser- va-se fenótipo variável no grupamento familiar, ora tipo IIa ora IIb ou IV(10). Hipertrigliceridemia familiar Sua herança é autossômica dominante, com penetra- ção variável. É decorrente do acúmulo, no plasma, de lipoproteínas ricas em triglicérides (VLDL e IDL), que re- sulta tanto do aumento da produção hepática como da diminuição da depuração plasmática. O mecanismo res- ponsável pela doença ainda não é conhecido. O aumento da produção hepática dos triglicérides estaria relaciona- do à resistência à insulina, e é semelhante ao observado após o consumo aumentado de hidratos de carbono e de álcool. O fenótipo correspondente é o tipo IV(10). Disbetalipoproteinemia A hiperlipoproteinemia tipo III, também conhecida como disbetalipoproteinemia, é caracterizada por aumento das concentrações plasmáticas de colesterol total e trigli- cérides, causado pelo acúmulo, no plasma, dos rema- nescentes das lipoproteínas ricas em triglicérides. O acú- mulo de remanescentes, na circulação, decorre da dimi- nuição da afinidade entre a apo E, presente nas lipopro- teínas remanescentes, e o receptor hepático B/E. Esses pacientes apresentam o genótipo E2/E2 e a transmissão desse alelo é autossômica recessiva(11, 12). O genótipo E2/ E2 ocorre com freqüência relativamente alta na popula- ção (cerca de 1:100). No entanto, o fenótipo da hiperlipo- proteinemia tipo III é relativamente raro, desenvolvendo- se apenas entre 1:10 e 1:100 dos portadores do genótipo homozigoto. A dislipidemia, para se manifestar, necessita da presença de um fator secundário, como, por exemplo, alguma alteração metabólica que aumente a produção das VLDL, tal como obesidade, diabetes melito, hipoti- reoidismo e consumo elevado de álcool(13). O quadro clí- nico característico é a presença de xantomas palmares e plantares, bem como o desenvolvimento precoce de do- ença coronariana. Síndrome da hiperquilomicronemia É conseqüente a mutações nos genes que codificam a lipase lipoprotéica, enzima que tem a função de hidroli- sar os triglicérides das lipoproteínas ricas em triglicéri- des, principalmente os quilomícrons. Essas mutações são transmitidas de forma recessiva. A freqüência dos homo- zigóticos ou heterozigóticos compostos para essas mu- tações é de 1:1.000.000(14). A deficiência parcial da lipase lipoprotéica (heterozi- gotos) provoca hipertrigliceridemia, que se acentua na presença de fatores ambientais como obesidade ou se- dentarismo. Sua prevalência é de 1:500 indivíduos, na população em geral, ou de 1:40, como observado em al- gumas áreas do Canadá. São descritas mais de 60 muta- ções que cursam com a deficiência da lipase lipoprotéica. De forma mais rara, como causas potenciais da síndro- me da hiperquilomicronemia, descrevem-se a deficiência da apo C-II ou a existência de um inibidor circulante da lipase lipoprotéica. Vale lembrar que a apo CII é uma co- enzima que estimula a atividade da lipase lipoprotéica. A deficiência da lipase lipoprotéica é reconhecida na infân- cia ou adolescência na sua forma homozigótica, na qual se observa grave hipertrigliceridemia, com níveis plas- máticos acima de 1.000 mg/dl, no jejum, alcançando even- tualmente valores acima de 10.000 mg/dl, principalmente após refeições gordurosas, pelo excesso de quilomícrons na circulação. O colesterol plasmático pode estar normal ou pouco elevado e o HDL-colesterol, reduzido. Existe acúmulo de quilomícrons tanto no jejum como no período pós-prandial. A síndrome da hiperquilomicronemia cor- responde, na classificação fenotípica, aos tipos I e V. Acompanhando a acentuada hipertrigliceridemia, pode- se observar dor abdominal recorrente,acompanhada ou não de pancreatite aguda, xantomas eruptivos, li- pemia retiniana, além de hepato e esplenomegalia. Os xantomas eruptivos são lesões papulosas pequenas e amareladas, que se localizam geralmente no dorso e na face extensora de braços e pernas, os quais resul- tam da fagocitose dos quilomícrons pelos macrófagos localizados na pele. A regressão dos xantomas erupti- vos ocorre após a diminuição das concentrações plas- máticas de triglicérides.(14) Dislipidemias secundárias As dislipidemias secundárias resultam, por sua vez, em alterações das concentrações plasmáticas das li- poproteínas, secundárias a uma causa específica, seja às custas de efeito colateral de medicamentos seja às custas de outras doenças ou de hábitos de vida inade- quados. A detecção de uma causa secundária de disli- pidemia é de grande importância diagnóstica, pelas suas implicações terapêuticas. As etiologias das disli- pidemias secundárias podem ser agrupadas em disli- pidemias secundárias a doenças, dislipidemias secun- dárias a medicamentos, e dislipidemias secundárias a hábitos de vida inadequados. Dislipidemias secundárias a doenças As dislipidemias secundárias a doenças estão apre- Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 469 CHACRA APM e cols. Classificação das dislipidemias sentadas na Tabela 3. a) Diabetes melito do tipo II: as anormalidades lipídi- cas em portadores de dia- betes melito do tipo II re- sultam da obesidade ab- dominal e da resistência à insulina. São caracteriza- das por hipertrigliceride- mia, baixos níveis de HDL- colesterol e presença de LDL pequenas e densas. Os fenótipos são variáveis, dependendo da alteração lipídica predominante (IIb, IV e V). Dois defeitos acar- retam aumento de VLDL: 1) superprodução; e 2) lipóli- se diminuída das partículas de VLDL. O primeiro me- canismo é secundário à elevação dos ácidos graxos livres e da glicemia, o que estimula a síntese de VLDL. O segundo resulta da deficiência relativa de insulina, uma vez que a insulina estimula a ação da lipase lipo- protéica(15). b) Hipotireoidismo: a dislipidemia do hipotireoidismo é caracterizada pelo aumento das concentrações plas- máticas do LDL-colesterol, conseqüente ao decrésci- mo do número de receptores hepáticos para a remo- ção dessas partículas. Nos indivíduos com hipotireoi- dismo e obesos, observa-se hipertrigliceridemia em decorrência da hiperprodução de VLDL, pelos seguin- tes mecanismos: 1) aumento da produção hepática das partículas de VLDL; 2) lipólise diminuída dos triglicéri- des séricos; e c) alguns indivíduos com o genótipo E- 2/E-2 têm remoção lenta dos remanescentes de VLDL, podendo expressar o fenótipo tipo III(16). As alterações nos lípides plasmáticos ocorrem tanto no hipotireoidis- mo manifesto clinicamente como na forma subclínica. Em estudo com 1.210 pacientes com colesterol total aci- ma de 200 mg/dl, a prevalência de hipotireoidismo mani- festo clinicamente foi de 1,3% e de hipotireoidismo sub- clínico, de 11,2%. Assim, a avaliação funcional da tireói- de deve ser feita quando detectada a dislipidemia(17). c) Síndrome nefrótica: tanto a hipercolesterolemia como a hipertrigliceridemia são observadas na síndrome nefrótica. Em estudo com 100 pacientes com síndro- me nefrótica e hipercolesterolemia, foram observados níveis plasmáticos de colesterol total > 200 mg/dl em 87%, dos quais o colesterol total era > 300 mg/dl em 53% e o colesterol total, > 400 mg/dl em 25%. Estudos “in vitro” demonstraram que a pressão oncótica baixa do plasma, própria da síndrome nefrótica, estimula di- retamente a transcrição do gene da apo B, aumentan- do a síntese das lipoproteínas que contêm apo B. A redução do catabolismo tem papel importante na fisio- patologia da dislipidemia observada na síndrome ne- frótica. Muitos pacientes apresentam hiperlipidemia mista, embora ocorra predomínio de hipertrigliceride- mia. A regressão da síndrome nefrótica, espontânea ou após tratamento medicamentoso, reverte a dislipi- demia(18). d) Insuficiência renal crônica: a hipertrigliceridemia, em pacientes com insuficiência renal crônica, ocorre em 30% a 50% dos casos(19). As anormalidades no meta- bolismo lipídico ocorrem também nos portadores de insuficiência renal crônica em diálise e após transplan- te renal. O achado mais comum na insuficiência renal crônica, dialítica ou não-dialítica, é a hipertrigliceride- mia, com o colesterol total próximo aos valores nor- mais, talvez pelo estado de desnutrição em alguns pa- cientes. A elevação dos níveis plasmáticos de triglicé- Tabela 3. Dislipidemias secundárias a doenças. Lipoproteínas (principal alteração) Causa CT TG HDL-colesterol 1. Diabetes —— ↑ ↓ 2. Hipotireoidismo ↑↑ ↑ ↑ ou ↓ 3. Doenças renais - Síndrome nefrótica ↑ ↑ — - Insuficiência renal crônica ↑ ↑ — 4. Hepatopatias colestáticas crônicas ↑ a ↑↑↑↑↑ Normal ↑↑ - > ↓ ou leve ↑ 5. Obesidade ↑ ↑↑ ↓ 6. Anorexia nervosa ↑ —— —— 7. Bulimia ↑ ↑ -—- CT = colesterol total; TG = triglicérides; HDL-colesterol = colesterol de lipoproteína de alta densidade. 470 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 CHACRA APM e cols. Classificação das dislipidemias rides é conseqüente à re- dução da atividade da li- pase lipoprotéica e da li- pase hepática, que podem contribuir para o decrésci- mo da remoção das lipo- proteínas ricas em triglicé- rides(20). e) Hepatopatias colestáti- cas crônicas: cirrose biliar, colangite esclerosante e outras hepatopatias que cursam com colestase podem ser acompanhadas de hipercolesterolemia significativa. Entretanto, em um re- lato de 284 pacientes, a faixa de valores do colesterol total foi bem ampla, variando entre 120 mg/dl e 1.775 mg/dl. Não houve correlação entre o colesterol total e os níveis de bilirrubina. O perfil lipídico demonstrou não só elevação do LDL-colesterol mas também elevação significativa do HDL-colesterol nos estágios iniciais da doença; os níveis de triglicérides mantiveram-se nor- mais ou pouco elevados(21). f) Obesidade: as alterações lipídicas incluem elevação dos triglicérides plasmáticos, redução do HDL-coleste- rol e, principalmente na obesidade abdominal, presen- ça de LDL-colesterol pequena e densa(22). g) Síndrome de Cushing: o hipercortisolismo está as- sociado a níveis elevados de LDL-colesterol e triglicé- rides(23). Dislipidemias secundárias a medicamentos Alguns anti-hipertensivos podem causar efeitos ad- versos nos níveis séricos lipídicos. Outras drogas, como os corticosteróides, aumentam tanto os níveis de co- lesterol como os de triglicérides. A isotretinoína utiliza- da para a acne grave com freqüência causa dislipide- mia mista, geralmente associada à redução do HDL- colesterol. Os medicamentos que afetam desfavoravel- mente os lípides séricos têm seu efeito mais acentua- do nos pacientes com distúrbios lipídicos prévios. Os inibidores de protease também se associam a dislipi- demias (aumento dos triglicérides e diminuição do HDL- colesterol). A Tabela 4 ilustra os principais grupos de medicamentos que causam dislipidemias, bem como o tipo de alteração lipídica encontrada(24). Dislipidemias secundárias a hábitos de vida inadequados a) Tabagismo: o fumo causa reduções em graus variá- veis do HDL-colesterol e pode induzir resistência à in- sulina. No estudo “Bezafibrate Infarction Prevention Study Group”, o HDL-colesterol médio foi de 39,6 mg/ dl em não-fumantes e de 35 mg/dl em fumantes(25). b) Etilismo: a ingestão alcoólica excessiva é freqüente- mente acompanhada do aumento dos triglicérides e do HDL-colesterol(23). Tabela 4. Dislipidemias secundárias a medicamentos. Lipoproteínas (principal alteração) Medicamento CT TG HDL-colesterol Diuréticos —— ↑ ↓ Betabloqueadores —— ↑ ↓ Anticoncepcionais ↑ ↑ — Corticosteróides ↑ ↑ — Anabolizantes ↑ —— ↓ Estrógenos** → ↑ → ↓ Progestágenos ** → ↑ → ↓ Isotretinoína ↑ ↑ ↑ Ciclosporinas ↑ ↑↑ ↑ Inibidores de protease ↑ ↑↑↑ ↓ ** Efeitos dependem do tipo de estrógeno e progestágeno e da via de administração. CT = colesterol total; TG = triglicérides; HDL-colesterol = colesterol de lipoproteína de alta densidade. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 471 CHACRA APM e cols. Classificação das dislipidemias REFERÊNCIAS 1. Classification of hyperlipidaemias and hyperlipopro- teinaemias. Bull World Health Org. 1970;43:891-915. 2. III Diretrizes Brasileiras Sobre Dislipidemias e Dire- triz de Prevenção da Aterosclerose do Departamen- to de Aterosclerose da Sociedade Brasileira de Car- diologia. Arq Bras Cardiol. 2001;77 Suppl III:1-48. 3. Kuo PT. Plasma lipids and atherosclerosis. 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Atualmente, a aterosclerose é compreendida como uma doença inflamatória e não meramente como um acúmulo passivo de lípides na parede arterial. O pro- cesso inflamatório crônico envolvendo o endotélio ar- terial e que culmina com as complicações da ateros- clerose pode ser causado por uma resposta inflamató- ria ou por fatores como o estresse oxidativo desenca- deados por partículas de lipoproteína de baixa densi- DISLIPIDEMIA, INFLAMAÇÃO E ATEROSCLEROSE RENATA GOMES DE ARAÚJO, ANTONIO CASELLA FILHO, TATIANA DE FÁTIMA GONÇALVES GALVÃO, ANTONIO CARLOS PALANDRI CHAGAS Unidade Clínica de Aterosclerose – Instituto do Coração (InCor) – HC-FMUSP Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 – Cerqueira César – CEP 05403-900 – São Paulo – SP Atualmente, entende-se o processo aterosclerótico não apenas como decorrên- cia do acúmulo de lípides nas paredes dos vasos, mas também como conseqüência da disfunção endotelial e da ativação do sistema inflamatório. A descoberta de que o endotélio sintetiza importantes vasodilatadores, tais como o fator relaxante deriva- do do endotélio e a prostaciclina, despertou enorme interesse na função endotelial e em seu papel sobre o controle vascular, tanto em situações fisiológicas como em processos patológicos, como as síndromes coronarianas agudas. Atualmente, sabe- se que o endotélio influencia não somente o tônus vascular, mas também o remode- lamento vascular, por meio da produção de substâncias promotoras e inibidoras de seu crescimento, e os processos de hemostasia e trombose, por meio de efeitos antiplaquetários, anticoagulantes e fibrinolíticos. Além de sofrer influência e de estar suscetível à ação de substâncias inflamatórias, sabe-se que a perda de continuida- de da placa e a resultante trombose coronariana são a base fisiopatológica da mai- oria dos casos de síndromes coronarianas agudas. Palavras-chave: aterosclerose, dislipidemia, inflamação, doença arterial coronaria- na. (Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo;2005;6:473-81) RSCESP (72594)-1570 dade (LDL) oxidada, infecção crônica e formação de radicais livres, entre outros.O envolvimento da infla- mação na aterosclerose também torna o processo in- flamatório um alvo potencial para o tratamento e a pre- venção da doença arterial coronariana(2). ATEROSCLEROSE E LESÃO ENDOTELIAL A disfunção endotelial é implicada na fisiopatologia das doenças cardiovasculares, incluindo: hipertensão, doença arterial coronariana, insuficiência cardíaca crô- nica, doença arterial periférica, diabetes, e insuficiên- cia renal crônica. A disfunção endotelial foi identificada inicialmente como vasodilatação diminuída a estímu- los específicos, tais como acetilcolina ou bradicinina. Nos últimos anos, porém, comprovou-se que o termo disfunção endotelial incluiria não somente a vasodila- 474 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 ARAÚJO RG e cols. Dislipidemia, inflamação e aterosclerose tação reduzida, mas um estado também pró-infla- matório e pró-trombótico(2). O endotélio, maior ór- gão do corpo, é posiciona- do estrategicamente entre a parede dos vasos san- guíneos. Detecta estímu- los mecânicos, tais como o “shear stress”, e estímu- los hormonais, tais como substâncias vasoativas. As substâncias vasodilatadoras produzidas pelo endoté- lio são o óxido nítrico (NO), a prostaciclina, os fatores hiperpolarizantes derivados do endotélio e o peptídeo natriurético tipo-C(3). A endotelina-1 (ET-1), a angioten- sina II, o tromboxano A2 e as espécies reativas de oxi- gênio são as substâncias que, agindo sobre o endoté- lio, promovem a vasoconstrição. Os moduladores infla- matórios incluem o NO, a molécula de adesão interce- lular-1 (ICAM-1), a molécula de adesão vascular-1 (VCAM-1), a E-selectina e o NFκ-B(3). A modulação da homeostase é realizada pela liberação e pela ação, no endotélio, de fatores tais como ativador plasminogê- nio, fator de inibição tecidual e fator de von Willebrand, assim como pela liberação de NO, prostaciclina, trom- boxano A2, inibidor do ativador do plasminogênio e fi- brinogênio. O endotélio contribui também na mitogê- nese, na angiogênese e no controle da permeabilida- de vascular(3). Assim, as células endoteliais desempenham diver- sas funções fisiológicas na manutenção da integrida- de da parede vascular, constituindo barreira permeá- vel através da qual ocorre difusão e trocas ou trans- porte ativo de diversas substâncias, além de atuar como superfície não-trombogênica e não-aderente para pla- quetas e leucócitos, e no controle da vasomotricidade. Esse mecanismo está comprometido em pacientes ate- roscleróticos, muito provavelmente pelos efeitos dele- térios diretos dos níveis plasmáticos elevados de LDL- colesterol sobre o endotélio vascular; assim, nos paci- entes portadores de doença arterial coronariana, há predomínio das respostas vasoconstritoras influenci- ando a patogênese da isquemia(4). Até alguns anos atrás, o desnudamento do endotélio era considerado o responsável por ocasionar a adesão plaquetária, a de- granulação e a liberação de mediadores fibrinogêni- cos, tais como o fator de crescimento derivado de pla- quetas (PDGF)(5). Atualmente, sabe-se que a forma- ção do ateroma pode ocorrer sem descamação endo- telial, mas sim na presença de disfunção do endoté- lio(6, 7). O processo aterosclerótico inicia-se com a agres- são do endotélio por fatores diversos, como estresse mecânico e por oxidação do LDL-colesterol. O endoté- lio encontra-se lesado, mas sem alteração morfológi- ca. Essa disfunção endotelial propicia o aumento da permeabilidade ao LDL-colesterol, ocorrendo, assim, maior oxidação e aumento da concentração de LDL- colesterol oxidado e retido nos proteoglicanos (a oxi- dação decorre do aumento de espécies reativas de oxigênio). A oxidação estimula a adesão de moléculas de adesão leucocitária na superfície endotelial, sendo essas moléculas responsáveis pela atração de monó- citos e linfócitos para a parede arterial(8). Além da alteração de permeabilidade, que provoca aprisionamento da LDL no espaço subendotelial, sabe- se que, nas lesões ateroscleróticas iniciais, células en- doteliais ou leucócitos que infiltram o endotélio podem ativar mediadores inflamatórios, como, por exemplo, o PDGF, o fator de crescimento de fibroblastos (FGF) e os fatores de crescimento similares à insulina (IGF)(9). Assim, a incessante discussão sobre a iniciação da lesão aterosclerótica suscita o potencial papel das ci- tocinas inflamatórias nesse processo. Essas proteínas mediadoras também podem ter importante papel na re- gulação da expressão de fatores de crescimento por células endoteliais e leucócitos. Cita-se, como exem- plo, uma dessas citocinas, a interleucina-1 (IL-1), que pode estimular o aumento da produção de PDGF por células musculares lisas vasculares humanas e a mai- or expressão de FGF por células musculares lisas hu- manas(10). Como as células endoteliais são suscetíveis à regulação tanto positiva como negativa, alguns me- diadores podem inibir funções pró-aterogênicas das células musculares lisas. O fator de crescimento e trans- formação beta (TGF-β), por exemplo, pode limitar a proliferação da célula muscular lisa, enquanto promo- ve aumento da produção de matriz extracelular. O in- terferon gama (IFN-γ), uma citocina derivada de linfó- citos T ativados, pode reduzir a proliferação de células musculares lisas. Então, o acúmulo de células muscu- lares lisas no local da placa aterosclerótica em forma- ção depende do balanço entre estímulos promotores e inibidores do crescimento(11). O endotélio, como foi citado anteriormente, possui ação controladora da mitogênese e da angiogênese. Nos últimos anos, tem-se estudado a ação do endoté- lio no estímulo à formação do “vasa vasorum”; diver- sos estudos sugerem que a neovascularização contri- bui para o crescimento de lesões ateroscleróticas, sen- do um fator-chave na instabilização da placa, condu- zindo à ruptura. Estudos relevantes focalizaram o pa- pel do fator endotelial de crescimento vascular (VEGF) na formação do “vasa vasorum”. Essa neovasculariza- ção é derivada do “vasa vasorum” da adventícia e pode também ser denominada microangiopatia intimal. A res- posta angiogênica inicial pelo “vasa vasorum” da ad- ventícia é estimulada pela hipoxia e pela isquemia que ocorre no processo de remodelamento e espessamen- Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 475 ARAÚJO RG e cols. Dislipidemia, inflamação e aterosclerose to das camadas íntima e média, o que dificulta a di- fusão de substâncias. Essa hipoxia induz a for- mação do “vasa vasorum” ao estimular a Hif-1 e a VEGF. O processo infla- matório presente na placa também induz a neovas- cularização, pelo fato de os macrófagos serem fon- tes ricas de VEGF e outros reguladores da angiogênese(12). A importância desses microvasos na formação da placa encontra sustentação no fato de esses microva- sos expressarem as moléculas da adesão (ICAM-1, VCAM-1, E-selectina, CD40), o que facilitaria a migra- ção transendotelial de células inflamatórias(13). O CD40 é um receptor de superfície celular que pertence à fa- mília dos receptores do fator de necrose tumoral (TNF) e que, apesar de ter sido inicialmente identificada e funcionalmente caracterizada em células linfocitárias tipo B, é encontrada em outras células, entre as quais se encontram as endoteliais, desenvolvendo importan- te papel na regulação de respostas imunes e inflama- tórias(14). A associação entre a neovascularização e a ateros- clerose foi confirmada em análise histopatológica em amostras de placas ateroscleróticas de humanos e nas artérias coronárias de primatas, demonstrando a cor- relação entre a extensão da aterosclerose e a neovas- cularização. Foi observado que, em primatas ateros- cleróticos, o sangue que fluía pelo “vasa vasorum” era mais hipercolesterolêmico quando comparado com o sangue de outras regiões,e que a suspensão da dieta hipercolesterolêmica foi associada à regressão da pla- ca e à diminuição do “vasa vasorum”, assim como à diminuição do volume de sangue que corria por essa neovascularização.(15) OXIDAÇÃO DA LDL A disfunção endotelial, como abordado anteriormen- te, foi comprovada como o evento inicial em modelos de hipercolesterolemia, em estudos experimentais. A lesão ao endotélio resulta em aumento de permeabili- dade endotelial a lipoproteínas e outros constituintes plasmáticos. Essa disfunção endotelial causaria inicialmente au- mento de permeabilidade ao LDL-colesterol no espa- ço subendotelial e surgimento de moléculas de ade- são leucocitária na superfície endotelial. Essas molé- culas são responsáveis pela atração de monócitos e linfócitos para a parede arterial. O recrutamento de leu- cócitos mononucleares para a íntima é um evento pre- coce demonstrado no início da formação do ateroma. Essas moléculas de adesão são divididas em diversos grupos, mas a molécula de adesão da célula vascular- 1 (VCAM-1) é de particular interesse nos estágios ini- ciais da aterosclerose(16). As alterações que se seguem no LDL-colesterol apri- sionado foram propostas em vários estudos no início da década de 1980, e baseiam a “hipótese oxidativa” da aterogênese, segundo a qual a LDL oxidada é im- portante, e possivelmente obrigatória, na patogênese da lesão aterosclerótica(17). O transporte do LDL-coles- terol da corrente sanguínea para o espaço subendote- lial é um processo passivo e ocorre de maneira direta- mente proporcional a sua concentração no sangue(18). O processo de oxidação da lipoproteína inicia-se por meio de produtos oxidativos das células da parede ar- terial, como endotélio, células musculares lisas e ma- crófagos. Nessa primeira fase da oxidação, apenas a fração lipídica da lipoproteína é alterada, mantendo-se íntegra a apolipoproteína B, fração protéica da molé- cula(19, 20). Após esse processo inicial de oxidação, a partícula de LDL torna-se levemente oxidada. Berliner e colaboradores(21) demonstraram que a LDL levemen- te oxidada induz maior adesão de monócitos, mas não de neutrófilos, às células endoteliais. Isso ocorre pelo aumento da expressão das moléculas de adesão e de proteínas quimiotáticas, como a proteína quimiotática de monócitos-1 (MCP-1). Há ainda estímulo para se- creção de fatores estimuladores, como o fator estimu- lador de colônia monocitária (MCS-F), que estimulam a migração e a diferenciação de monócitos em macró- fagos. A oxidação aumentada promove maior atividade dos macrófagos. Recentemente, considerável esclare- cimento a respeito da base molecular do acúmulo lipí- dico pelos macrófagos vem sendo obtido. Várias molé- culas da superfície celular, que se ligam seletivamente a formas modificadas de lipoproteínas (seja por pero- xidação seja por lipólise ou proteólise), foram identifi- cadas. Elas incluem os receptores “scavenger” de ma- crófagos(22), o CD-36(23) e o CD68(24). Nessa segunda fase da oxidação, a fração protéica da lipoproteína também torna-se alterada. A LDL é dita então oxidada. Essa molécula passa a ser reconheci- da por receptores “scavenger” e CD-36(22-24) na superfí- cie dos macrófagos, que englobam as moléculas de lipoproteína e se tornam ricos em conteúdo lipídico. Essas células, chamadas células espumosas, são ca- racterísticas da estria gordurosa, que é a lesão mais precoce reconhecida no início da aterosclerose. Evidências recentes indicam que a lesão endotelial decorre da atividade aumentada da LOx-1, que é o prin- cipal receptor da LDL oxidada, por promover a forma- ção de radicais superóxido, diminuir a concentração de óxido nítrico e ativar o fator de transcrição nuclear NFκ- B(25). 476 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 ARAÚJO RG e cols. Dislipidemia, inflamação e aterosclerose ATEROSCLEROSE E IN- FLAMAÇÃO O conceito clássico de aterosclerose como so- mente parte de uma de- sordem do metabolismo e da deposição lipídica ob- teve, no passado, grande aceitação. Entretanto, a história natural da aterogê- nese estende-se além da dislipidemia. Além disso, a ligação da desordem lipídica ao envolvimento vascular durante a aterogênese e as subsequentes manifesta- ções clínicas por si só já indicam fisiopatologia bem mais complexa que mera deposição lipídica(26). Recentemente, emergiu o conceito de aterosclero- se como uma doença inflamatória, multifatorial, que en- volve processos inflamatórios do início até um evento final, como, por exemplo, a ruptura de placa ateroscle- rótica, e de que o endotélio influencia não somente o tônus vascular pela produção de substâncias promoto- ras e inibidoras de seu crescimento mas também o ba- lanço entre fatores pró-trombóticos e trombogênicos na interface lúmen-parede do vaso, principalmente com a importante função de regular o processo inflamatório na parede do vaso(26). O processo inflamatório está presente desde o iní- cio da formação da placa aterosclerótica, com o pro- cesso de oxidação do LDL-colesterol ativando macró- fagos e adesão leucocitária. As lesões ateroscleróti- cas caracterizadas como placas surgem, na maioria dos casos, a partir da segunda década de vida, após vários anos de evolução da doença. São formadas por um núcleo acelular de lípides e substâncias necróti- cas, circundado pelas chamadas células espumosas (células que englobam grandes quantidades de lipíde- os, correspondendo a macrófagos), e, mais externa- mente, por uma capa fibrosa composta de fibras mus- culares lisas e tecido conjuntivo fibroso. Além do infil- trado inflamatório linfo-histiocitário, pode haver ainda vasos neoformados e deposição de cálcio no centro lipídico-necrótico, em quantidade variável de placa para placa e de indivíduo para indivíduo. Nos últimos anos foi demonstrado que na fase inicial do processo atero- gênico ocorre a expressão de várias moléculas de ade- são na superfície de células endoteliais, que essas mo- léculas modulam a interação do endotélio vascular com os leucócitos, e que esse recrutamento de leucócitos mononucleares para a camada íntima dos vasos é um evento celular precoce que ocorre no ateroma em for- mação(27). Assim, após a ativação leucocitária, moléculas en- doteliais, tais como as moléculas de adesão intercelu- lar (ICAM-1 e ICAM-2) e a molécula de adesão da cé- lula vascular (VCAM-1), começam a participar do pro- cesso de ativação inflamatória, podendo inclusive ser utilizadas como marcadoras do processo inflamatório. Essas moléculas permitem adesão estável dos leucó- citos e sua subseqüente passagem pela camada de células endoteliais(27). Em caso de estresse oxidativo, a modificação de lipoproteínas na parede vascular pode gerar citocinas que induzem a expressão de moléculas de adesão, incluindo a VCAM-1. Os leucócitos circu- lam no sangue como células de forma livre e não ade- rentes, as quais, após receberem estímulos apropria- dos, apresentam um fenômeno de rolamento na pare- de vascular, aderindo-se firmemente à superfície en- dotelial. As moléculas de adesão celular fazem parte do recrutamento das células inflamatórias responsá- veis pelo desenvolvimento do ateroma da parede vas- cular(28). Os leucócitos mononucleares, após entrarem no ate- roma nascente por meio de adesão às células endote- liais e penetração na camada íntima por diapedese entre as junções intercelulares, iniciam a captação de lípides modificados, principalmente o LDL-oxidado pe- las espécies reativas de oxigênio (EROS) produzido pelo estresse oxidativo, e se transformam em células espumosas(26, 29). Entretanto, esse acúmulo de macró- fagos dentro da camada íntima significa um primeiro estágio, que predispõe à progressão do ateroma e à evolução para uma placa mais fibrosa e eventualmen- te mais complicada, que pode ocasionar conseqüênci- as clínicas. As estriasgordurosas observadas nos es- tágios iniciais da doença, e que traduzem o acúmulo de células espumosas, pode ser reversível e não cau- sar conseqüências clínicas(30). A oxidação de lipoprote- ínas, como o LDL-colesterol, constitui, portanto, fator de risco importante para inflamação no processo ate- rosclerótico. Esse fato pode ser comprovado em vários estudos clínicos, nos quais foram encontrados níveis significantemente elevados dessas moléculas em ca- sos de infarto agudo do miocárdio(31, 32). Entre as alterações causadas pela presença de LDL- oxidada está também a produção de interleucina-1 (IL- 1), que estimula a migração e a proliferação das célu- las musculares lisas da camada média arterial. Estas, ao migrarem para a íntima, passam a produzir não só citocinas e fatores de crescimento como também a matriz extracelular, que formará parte da capa fibrosa da placa aterosclerótica madura(33). A incessante discussão sobre a iniciação da lesão aterosclerótica suscita o potencial papel das citocinas inflamatórias nesse processo(29). Essas proteínas me- diadoras também podem ter importante papel na regu- lação da expressão de fatores de crescimento por cé- lulas endoteliais e leucócitos. Além do adelgaçamento e fraqueza da capa fibrosa Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 477 ARAÚJO RG e cols. Dislipidemia, inflamação e aterosclerose da placa e do acúmulo de macrófagos e células T, uma diminuição relativa de células musculares lisas pode caracterizar a ruptu- ra da placa. A morte de células musculares lisas, provavelmente por apopto- se, pode contribuir para a escassez de células mus- culares lisas nessas regi- ões da placa e promover seu enfraquecimento, pois foi evidenciado que na pla- ca ateromatosa existem células musculares lisas com DNA fragmentado, o que é característico da morte celular programada(34, 35). Estudos “in vitro” têm estabelecido que ci- tocinas inflamatórias podem “disparar” o programa de morte celular por apoptose em células musculares lisas vasculares humanas(36). ANGIOTENSINA E ATEROSCLEROSE Existem evidências crescentes indicando que a an- giotensina e a endotelina-1 promovem e aceleram o processo aterosclerótico por meio de mecanismos in- flamatórios, envolvendo interações complexas entre cé- lulas inflamatórias, tais como neutrófilos, linfócitos, monócitos/macrófagos e célula lisa vascular. Essa in- teração resulta em resposta inflamatória nas células vasculares com a expressão aumentada de moléculas da adesão, de citocinas, de metaloproteinases e de fatores do crescimento(37). O fator de transcrição nucle- ar NFκ-B é considerado o principal modulador de infla- mação, mediando a maioria das respostas inflamatóri- as vasculares(37). O NFκ-B é ativado por estímulos nu- merosos, tais como citocinas, ativadores da proteína quinase e, sobretudo, espécies reativas de oxigênio. Após a ativação do NFκ-B, ocorre a transcrição dos genes envolvidos na patogênese da lesão inflamató- ria. Esses genes, certamente, codificam a formação de citocinas, tais como interleucina-6 e fator de necrose tumoral alfa (TNFα), quimiocinas, tais como a proteína quimiotática 1 do monócito (MCP-1), as moléculas de adesão intercelular-1 (ICAM-1 e ICAM-2) e a molécula de adesão da célula vascular (VCAM-1), que também participarão do processo de ativação inflamatória(38). Em modelo experimental do processo de ateroscle- rose em artéria femoral de coelho, Hernandez-Presa e colaboradores(39) observaram atividade aumentada do NFκ-B coincidente a infiltração dos macrófagos e ex- pressão aumentada do gene MCP-1 no neoíntima. Ex- pressão aumentada de genes inflamatórios vasculares, tais como VCAM-1, também foi observada na aorta de ratos que receberam angiotensina II(40). A angiotensina II aumentou a expressão do RNA mensageiro do VCAM- 1, sendo o NFκ-B o mecanismo de transcrição. Simi- larmente, Pueyo e colaboradores(41) demonstraram que, em células endoteliais de rato, a expressão VCAM-1 foi diretamente estimulada pela angiotensina II e pela ativação do NFκ-B, e que o fator da transcrição foi ati- vado pelo aumento do estresse oxidativo intracelular. A ativação da expressão das moléculas de adesão pela angiotensina II e o NFκ-B é de particular impor- tância, pois essas moléculas, principalmente VCAM-1, desempenham papel importante nos estágios iniciais da aterosclerose. A VCAM-1 liga-se ao antígeno tar- dio-4 (VLA-4), expresso seletivamente por vários tipos de leucócitos recrutados durante a formação das estri- as gordurosas, as quais são as lesões precursoras do ateroma.(42) A angiotensina II também interfere no processo ate- rosclerótico, por induzir o estresse oxidativo por meio da produção de espécie reativa de oxigênio, pela ativa- ção NADH/NADPH(43). Por sua vez, as espécies reati- vas de oxigênio agem como mensageiros de transdu- ção do sinal para diversos fatores importantes de trans- crição, tais como NFκ-B e ativador da proteína-1, su- blinhando o papel do NFκ-B como mediador da angio- tensina II induzindo lesão inflamatória. Todos esses fatores demonstram que o NFκ-B é o mediador principal da regulação da expressão da an- giotensina, que ele estimula a expressão das molécu- las de adesão e citocinas inflamatórias, e que o estres- se oxidativo está envolvido diretamente na ativação da angiotensina II e do NFκ-B. IMPLICAÇÕES CLÍNICAS A disfunção endotelial em artérias coronárias, as- sociada a eventos cardiovasculares, quando avaliada de forma não-invasiva em artérias periféricas pode pre- dizer eventos coronarianos em indivíduos com ou sem doença arterial coronariana. A disfunção endotelial foi associada a risco elevado de aterosclerose em crianças e adultos jovens livres de sintomas, bem como em indivíduos com anteceden- tes familiares de diabetes melito do tipo II, e a lesão endotelial correlacionou-se a resistência à insulina(3). Além da análise da função endotelial como preditor de aterosclerose, pesquisas recentes evidenciam que mar- cadores envolvidos na disfunção endotelial e marca- dores de inflamação podem ser preditores de eventos cardiovasculares(28). As moléculas VCAM-1 soluto e in- terleucina-1 predisseram a morte cardiovascular nos pacientes com doença arterial coronariana independen- temente de outros fatores de risco(28). Além da importância dos marcadores inflamatórios como preditores de aterosclerose, o envolvimento da inflamação na doença aterosclerótica tornou-se alvo terapêutico. Os bloqueadores dos receptores da angi- 478 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 ARAÚJO RG e cols. Dislipidemia, inflamação e aterosclerose Figura 2. NFκ-B é o mediador prin- cipal da regulação da expressão da angiotensina, e esta, por sua vez, es- timula a expressão das moléculas de adesão e citocinas inflamatórias. (Modificado de Collins e colaborado- res(50).) Figura 1. Papel da lipoproteína de bai- xa densidade (LDL) na aterogênese. otensina e os inibidores da enzima conversora da an- giotensina demonstraram restaurar a função endote- lial, e os mecanismos pro- váveis para essa melhora da função podem ser ex- plicados pela redução da oxidação e da inflamação que ocorre na doença ate- rosclerótica(44). As estati- nas provaram ter efeitos benéficos na disfunção endotelial por diminuírem a oxidação lipídica e também por seus efeitos pleiotrópi- cos antiinflamatórios(45), e também por inibir a regula- ção excessiva da LOX-1 e por aumentar a expressão da eNOS nas células endoteliais. Um aspecto fascinante que está emergindo na pes- quisa da função endotelial é a utilização de células pro- genitoras endoteliais, as células da medula óssea pri- mitivas que têm a habilidade de se diferenciar em célu- las endoteliais e de ter papel fisiológico no reparo das lesões endoteliais(46). Os níveis circulantesde células progenitoras endoteliais correlacionam-se inversamente com o grau de disfunção endotelial em humanos em vários graus de risco cardiovascular(47). É interessante constatar que a expressão dos eNOS nas células da medula óssea desempenha papel essencial no recru- tamento de células progenitoras endoteliais(48). Estudos recentes comprovaram que a terapia com estatinas aumenta o número de circulantes de células progeni- toras endoteliais(49). Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 479 ARAÚJO RG e cols. Dislipidemia, inflamação e aterosclerose REFERÊNCIAS 1. Dzau VJ. Markers of malign across the cardiovascu- lar continuum: interpretation and application: intro- duction. Circulation. 2004;109(25) Suppl:IV1-IV2. 2. Libby P, Ridker PM, Maseri A. Inflammation and athe- rosclerosis. Circulation. 2002;105:1134-43. 3. Dierk H, Schiffrin E, Schiffrin EL. Endothelial dys- function. J Am Soc Nephrol. 2004;15:1983-92. 4. Bassange E, Busse R. Endothelial modulation of co- ronary tone. Progr Cardiovasc Dis. 1988;30:349-80. 5. Ross R, Glomset JA. The pathogesis of atheroscle- rosis. I. N Engl J Med. 1976;295:369-77. 6. Joris T, Nunnari JJ, Krolikowski FJ, Majno G. Studies on the pathogenesis of atherosclerosis. I. 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The finding that the endothelium synthetizes important vasodilators, such as the endothelium- derived relaxing factor and the prostacyclin, had promoted enormous interest addres- sed to the endothelium function and its role on the vascular control, both in physiolo- gical situations and pathological processes (e.g., acute coronary syndromes). Cur- rently, it’s known that the endothelium not only influences the vascular tonus, but also the vascular remodeling, through the production of promotional and inhibitor growth substances, and the processes of modulation of hemostasis and thrombo- ses, through the inhibition of platelet aggregation, anticoagulant and fribinolytic effects. Besides suffering influence and being susceptible to inflammatory substance action, it’s known that the loss of continuity of the plaque and the resulting coronary throm- boses are the pathophysiologic basis of the majority of the cases of acute coronary syndromes. Key words: atherosclerosis, hypercholesterolaemia, inflammation, coronary heart disease. (Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo;2005;6:473-81) RSCESP (72594)-1570 480 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 ARAÚJO RG e cols. Dislipidemia, inflamação e aterosclerose formation. Cardiovasc Di- abetol. 2004;3:1. 14. Van K. Functions of CD40 on B cells, dendritic cells and other cells. Curr Opin Immunol. 1997;9(3): 330-7. 15. Faggioto W, Ross R. Studies of hypercholeste- rolemia in the nonhuman primate. Changes that lead to fatty streak formation. Arteriosclerosis. 1984;4:323-40. 16. Faxon DP, Fuster V, Libby P, Beckman JA, Hiatt WR, Thompson RW, et al. Atherosclerotic Vascular Dise- ase Conference: Writing Group III: Pathophysiology. Circulation. 2004;109(21):2617-25. 17. Libby P. Vascular biology of atherosclerosis: overvi- ew and state of the art. Am J Cardiol. 2003;91(3A):3A-6A. 18. Schwenke DC, Carew TE. 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Em 1988, Reaven introduziu o termo síndrome X e identificou a resistência à insulina, definida como a me- nor captação da glicose pelos tecidos periféricos, como o substrato fisiopatológico comum da síndrome. Outros si- nônimos têm sido utilizados para denominar essa cons- telação de fatores de risco (dislipidemia, resistência à in- sulina, hipertensão e obesidade), tais como síndrome plu- rimetabólica, síndrome da resistência à insulina e quarte- to mortal, entre outros. Em 1998, a Organização Mundial da Saúde estabeleceu o termo unificado síndrome meta- bólica, pois estudos não identificaram a presença de re- sistência à insulina como único fator causal de todos os componentes da síndrome. A patogênese da síndrome é multifatorial, sendo a obe- sidade, a vida sedentária, a dieta e a interação com fato- SÍNDROME METABÓLICA MARCIO HIROSHI MINAME, ANA PAULA MARTE CHACRA Unidade Clínica de Dislipidemias – Instituto do Coração (InCor) – HC-FMUSP Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 – Bloco II – 2º andar – sala 4 – Cerqueira César – CEP 05403-900 – São Paulo – SP Os autores descrevem os novos critérios diagnósticos para síndrome metabólica propostos pela “International Diabetes Federation”, além de comentarem sobre o papel da resistência à insulina como fator importante na fisiopatologia da dislipidemia e no aumento do risco cardiovascular nos pacientes portadores dessa síndrome. Finalmente, os autores comentam sobre as estratégias atuais no manejo da síndrome metabólica, além das novas drogas promissoras no auxílio a seu tratamento, tais como o rimonabant e os inibidores de “peroxisome proliferator activator receptor” (PPAR) alfa e gama. Palavras-chave: síndrome metabólica, fisiopatologia, tratamento. (Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;6:482-9) RSCESP (72594)-1571 res genéticos responsáveis pelo aparecimento da mes- ma. Mutações e polimorfismos nos genes associados com resistência à insulina, anormalidades nos adipócitos, hi- pertensão e alterações lipídicas ocupam papel central na etiopatogenia da síndrome. O diagnóstico da síndrome metabólica parece identifi- car pacientes com um risco cardiovascular adicional em relação aos fatores de risco clássicos. Em 2001, o “Third Report of the National Cholesterol Education Program Expert Panel on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Cholesterol in Adults” (NCEP-ATPIII)(1) pro- pôs os critérios diagnósticos para a síndrome metabóli- ca, baseado em cinco parâmetros: circunferência abdo- minal, triglicérides, colesterol de lipoproteína de alta den- sidade (HDL-colesterol), pressão arterial e glicemia de jejum (Tab. 1). A presença de três dos cinco critérios per- mite o diagnóstico de síndrome metabólica. Recentemen- te, a “International Diabetes Federation” propôs algumas mudanças nos critérios diagnósticos pelo ATP III. Houve redução dos valores de corte para cintura abdominal, de acordo com a etnia do paciente (Tab. 2)(2), além da dimi- nuição dos níveis de glicemia de jejum para > 100 mg/dl. O critério proposto pela “International Diabetes Fede- ration” aumenta a prevalência do diagnóstico de síndro- Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 483 MINAME MH e col. Síndrome metabólica me metabólica. De fato, em estudo realizado na Grécia e conduzido por Athyros e colaboradores(3), com uma amostra de 9.669 indivídu- os, 24,5% tinham síndrome metabólica pelo critério da NCEP-ATPIII, enquanto pelo critério da “Internatio- nal Diabetes Federation” a prevalência foi de 43,4% (+77%; p < 0,0001). Dessa for- ma, talvez o critério da “International Diabetes Federati- on” diagnostique muitos pacientes como portadores de síndrome metabólica, mas que apresentam baixo risco cardiovascular. FISIOPATOLOGIA DA DISLIPIDEMIA DA SÍNDROME METABÓLICA A dislipidemia, principal alteração encontrada na sín- drome metabólica, é caracterizada por: a) aumento dos ácidos graxos livres circulantes; b) elevação dos triglicéri- des; c) redução dos valores de HDL-colesterol; e d)au- mento das concentrações de apo B. A obesidade abdominal, fruto da interação de fatores genéticos e ambientais, é responsável por adipócitos hi- pertrofiados. O tecido adiposo, reconhecido como um ór- gão endócrino, secreta adipocitocinas, que, na obesida- de abdominal, estão em concentração aumentada e rela- cionadas à resistência à insulina. A alteração primária é, provavelmente, a incapacidade desse tecido adiposo hi- pertrofiado em incorporar os ácidos graxos livres aos tri- glicérides (esterificação inadequada). Outra alteração é uma falha dos adipócitos em reter os ácidos graxos livres em seu interior, aumentando seu fluxo para a circulação. Esse mecanismo é facilitado pela resistência à insulina. Essas alterações aumentam a quantidade de ácidos gra- xos livres para o fígado. Na resistência à insulina, o fíga- do estimula a síntese hepática de triglicérides, pois pro- move a reesterificação desses ácidos graxos, formando triglicérides, os quais são liberados na circulação na for- ma de lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL). No plasma, ocorre a transferência de lípides entre as lipoproteínas. A “cholesteryl ester transfer protein” (CETP) Tabela 1. Critérios do “Third Report of the National Cholesterol Education Program Expert Panel on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Cholesterol in Adults” (NCEP-ATPIII) para síndrome metabólica. Identificação clínica da síndrome metabólica Fatores de risco Valores de corte Obesidade abdominal - Homens Circunferência abdominal > 120 cm - Mulheres Circunferência abdominal > 88 cm Triglicérides 150 mg/dl HDL-colesterol - Homens < 40 mg/dl - Mulheres < 50 mg/dl Pressão arterial 130/85 mmHg Glicemia de jejum 110 mmHg Tabela 2. Critérios da “International Diabetes Federation” para síndrome metabólica. Grupo étnico Circunferência abdominal (cm) Europeu Homem > 94 Mulher > 80 Sul-asiático Homem > 90 Mulher > 80 Chinês Homem > 90 Mulher > 80 Japonês Homem > 85 Mulher > 90 América do Sul e Central Utilizar recomendação para sul-asiático África subsaariana Utilizar recomendação para europeu Populações do Leste Mediterrâneo e Meio Leste Utilizar recomendação para europeu 484 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 MINAME MH e col. Síndrome metabólica é um dos determinantes da composição das lipoproteí- nas, pois tem a capacidade de mediar a transferência de éster de colesterol e tri- glicérides entre as diversas lipoproteínas. Nos indivídu- os obesos, a atividade da CETP está aumentada. A mesma, portanto, irá pro- mover a transferência do éster de colesterol das lipo- proteínas ricas em éster de colesterol, como a HDL e a lipoproteína de baixa densidade (LDL), em troca dos tri- glicérides das lipoproteínas ricas em triglicérides, como as VLDL e os quilomícrons. As partículas de HDL ricas em triglicérides, após ação da CETP, sofrem hidrólise pela lipase hepática, tornando-se menores e com depuração plasmática mais rápida. Conseqüentemente, observa-se redução dos níveis de HDL-colesterol e da apolipoprote- ína A-I. As partículas de LDL ricas em triglicérides também sofrem lipólise pela lipase hepática, tornando-se pequenas e densas. Existem evidências de que as partículas de LDL pequenas e densas são mais aterogênicas, provavelmente por penetrarem mais facilmente na íntima da artéria, por so- frerem mais oxidação e por outros motivos(4). EVIDÊNCIAS EPIDEMIOLÓGICAS DO RISCO CARDIOVASCULAR E DE DIABETES MELITO DO TIPO II NA SÍNDROME METABÓLICA A síndrome metabólica está associada a aumento do risco de diabetes melito do tipo II e de doença cardiovas- cular(5-7). O ensaio clínico “Paris Prospective Study”(8) ob- servou os fatores de risco cardiovascular em 7 mil indiví- duos do sexo masculino. Após 11 anos de seguimento, os níveis elevados de insulina de jejum representaram fator de risco independente para doença cardiovascular. O risco maior foi observado acima do quarto quintil dos níveis de insulina (concentrações > 19 µU/ml). O agrupamento de fatores de risco associados à re- sistência à insulina pode causar danos nas artérias muito antes do desenvolvimento do diabetes melito do tipo II. O “Helsinki Policemen Study”(9) avaliou a relação entre re- sistência à insulina e desenvolvimento de doença arterial coronariana. Foram feitas mensurações plasmáticas da glicemia e da insulina de jejum em 970 indivíduos saudá- veis, e após 22 anos de seguimento o grupo com insulina acima dos valores dentro dos determinados tercis apre- sentou freqüência maior de eventos cardiovasculares. O ensaio clínico San Antonio demonstrou, após 7 anos de seguimento, que a maioria dos pacientes que evoluiu para diabetes melito do tipo II apresentava, além da re- sistência à insulina, desordens metabólicas múltiplas, como baixos níveis de HDL-colesterol, níveis elevados de triglicérides e hipertensão arterial sistêmica. Esse es- tado pré-diabético não foi observado no grupo que não desenvolveu diabetes, no qual houve predomínio da sen- sibilidade à insulina, além da presença de poucos fatores de risco associados. A resistência à insulina pode se correlacionar com a presença de aterosclerose incipiente. O “The Insulin Re- sistance Atherosclerosis Study” (IRAS)(10) teve como pro- pósito observar a relação entre resistência à insulina e aterosclerose da artéria carótida interna. Houve correla- ção do espessamento do complexo íntima-média da ar- téria carótida com a presença de resistência à insulina, mesmo quando ajustada para os fatores de risco tradici- onais. AVALIAÇÃO LABORATORIAL DA RESISTÊNCIA À INSULINA NA SÍNDROME METABÓLICA Existem vários métodos diretos e indiretos que avali- am a presença de resistência à insulina, e os principais deles serão descritos a seguir.(11-13) O método considerado “padrão ouro” para se avaliar a resistência à insulina é o “clamp” euglicêmico-hiperinsuli- nêmico concebido por DeFronzo e colaboradores, em 1978. É um método indireto, que consiste na infusão de insulina contínua no paciente a uma taxa constante, para que sejam alcançados valores de insulina um pouco aci- ma do basal. A glicemia plasmática é monitorizada e a glicose é infundida continuamente, para que se mante- nha a glicemia próxima ao normal no jejum. Quanto mai- or for a quantidade de glicose infundida no paciente, para que se mantenha euglicêmico, mais insulino-sensível o mesmo é. O inverso dessa resposta demonstra a presen- ça de resistência periférica à insulina. Pela sua alta com- plexidade técnica, o teste é restrito a protocolos de estu- do. A fim de se evitar procedimentos muito complexos, foi desenvolvido o método HOMA (“Homeostasis Assess- ment Model”), um modelo matemático proposto por Mat- thews e colaboradores, que avalia a sensibilidade à insu- lina e a função da célula beta com valores obtidos simul- taneamente a partir das concentrações plasmáticas de glicose e insulina de jejum. Como a secreção de insulina é pulsátil, são obtidas três amostras de glicose e de insu- lina de jejum, com intervalos de cinco minutos, sendo uti- lizados os valores médios dessas duas variáveis. O HOMA pode ser dividido em dois índices: a) HOMA IR: glicemia de jejum (mmol) X insulina (µU/ ml) : 22,5 (esse índice traduz a sensibilidade à insulina); b) HOMA β: 20 X insulina (µU/ml) : glicemia (mmol) - 3,5 (esse índice traduz a secreção da célula beta). Estudos epidemiológicos têm utilizado o HOMA para a mensuração do grau de resistência à insulina, princi- palmente a longo prazo, pela simplicidade do método e pela excelente correlação com o “clamp” euglicêmico. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 6 — Novembro/Dezembro de 2005 485 MINAME MH e col. Síndrome metabólica Figura 1. Fisiopatologia da síndrome metabólica. Outro método é a do- sagem de insulina plas- mática de jejum. Os níveis de insulina plasmática no
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