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Histórias de Aprendizagem e algumas reflexões incomuns sobre aprender e ensinar Ana Lopes 2012 Capa Jorge Luis de Sousa Azevedo Revisão Rosana Rogeri Produção VídeoAulas ByAna http://www.videoaulasbyana.com.br Direitos de cópia O conteúdo deste livro eletrônico tem direitos autorais reservados para a autora. Isso significa que, mesmo sendo um conteúdo digital, não é de domínio público e não pode ser reenviado ou duplicado para terceiros. Se você quiser indicar o livro para alguém, por favor, forneça o endereço do site do livro para que ele possa ser adquirido legalmente: http:www.videoaulasbyana.com.br/ebook-historias/ Fazendo isso, você estará contribuindo para a produção de conteúdo digital de qualidade. Obrigada! As Histórias Apresentação......................................................................1 Eu não preciso de um professor?!?....................................5 Meus professores: os livros...............................................11 Vida na Universidade.......................................................17 Recuperando o autodidatismo perdido.............................21 Cientista da Computação em um mês...............................28 Mestrado: garimpo e foco................................................34 Professora? Não, malabarista!.........................................39 Quer continuar no emprego? ...........................................45 Para curar gastrite, concurso público!.............................50 Professora Bombril: 1001 utilidades................................57 Um público (radicalmente) diferente................................62 O currículo que foi corroído pelas traças.........................69 PaD: “Pesquisa a distância”...........................................75 Fluente em inglês, finalmente!..........................................80 Cientista da Computação ou não?....................................89 Pesquisa: praticando caça a problemas ..........................95 Muitos artigos e nenhum diploma...................................102 Um diploma e um blog....................................................105 Reflexões “finais”..........................................................109 Apresentação Esta pequena coleção de histórias mostra vários episódios da minha vida que acabaram me levando a tornar-me uma autodidata convicta, a ponto de atualmente defender veementemente a ideia de que o mais importante que alguém pode aprender na escola ou fora dela é “aprender a aprender”. A partir daí, acredito eu, tudo se acrescenta naturalmente. E junto disso, nasce também uma saudável autoconfiança e um incrível senso de controle sobre o próprio destino. As primeiras versões dessas histórias foram escritas para o meu vídeo-blog 1 e depois passaram a ser enviadas para aqueles que se inscreviam em minha lista, na forma de e-mails independentes. Confesso que no início fiquei preocupada em compartilhar histórias e percepções de mundo tão pessoais e, às vezes, tão particulares. Mas a recepção foi – e continua sendo – simplesmente maravilhosa. O blog e a minha caixa de e-mails estão cheios de comentários carinhosos, entusiasmados e 1 http://www.videoaulasbyana.com.br Histórias de Aprendizagem encorajadores. Quando comecei a escrever as primeiras versões dessas histórias de aprendizagem, meu objetivo era estabelecer um relacionamento genuíno com as pessoas que estavam prestigiando o meu então nascente vídeo-blog. Esse relacionamento ia sendoconstruído na medida em que as pessoas ficavam conhecendo um pouco da minha história pessoal. Ou pelo menos, a parte da minha história pessoal que envolveu momentos de grande aprendizagem. Outra ideia que eu tinha em mente era explicar para o público de onde vinha a minha paixão por aprender, ou para ser mais direta “porque diabos uma Cientista da Computação tinha resolvido blogar sobre aprendizagem”. Mas a grande surpresa ainda estava para vir: de repente, algumas pessoas começaram a escrever para me contar o quanto tinham sido inspiradas por certas histórias e (pasmem!), para me falar sobre decisões que elas tinham tomado ou estavam considerando tomar por causa delas. No início, fiquei meio assustada: “quanta responsabilidade, mudar assim o rumo da vida de outras pessoas”! Mas aos poucos me lembrei dos inúmeros livros que mudaram completamente o rumo 2 Ana Lopes da minha vida também. Até hoje, não me arrependo de ter lido nenhum deles. Muito menos, culpo nenhum autor por algo que tenha dado errado! Então outra ideia começou a florescer: em um primeiro momento, as histórias foram escritas quase que como rascunhos, já que eu não tinha, àquela época, a menor pretensão de atingir tanta gente, e de forma tão intensa. Mas já que isso estava acontecendo, achei que seria uma boa ideia revisar os “rascunhos” e reuni-los em um pequeno livro. Afinal de contas, sempre guardei com o maior carinho os livros que me marcaram. Além disso, gosto de tê- los sempre à mão para uma releitura à luz de novas situações de vida. Talvez meus leitores também gostassem da ideia. Nesse contexto, nasceu este livro, que reúne não só as histórias originais – a maioria reescrita – mas também algumas que lembrei e achei que mereciam ser contadas. Tenha você tido ou não contato com as histórias originais no blog, poderá apreciar este livro de várias maneiras: seja como entretenimento, ou como ponto de partida para reflexões sobre o papel da aprendizagem na nossa vida. Os primeiros leitores foram bastante criativos nas formas como receberam cada uma das histórias. Não 3 Histórias de Aprendizagem tenho porque acreditar que com os novos leitores será diferente. Mais feliz ainda eu vou ficar se você resolver usar o livro como um ponto de partida para estabelecer uma relação comigo também. Convido você a falar comigo por meio do blog, na página dedicada especialmente ao livro: http://www.videoaulasbyana.com.br/ebook-historias/ Agora, sem mais delongas, vamos às histórias! 4 Eu não preciso de um professor?!? Quando eu estava terminando o Primeiro Grau – que para quem é jovem demais para saber, corresponde ao atual Ensino Fundamental 1 e 2 – achava que queria ser médica. Aliás, tenho a impressão, que na minha geração, todo mundo um dia já quis fazer Medicina ou Direito. Será que é isso mesmo? Bom, havia também os candidatos a astronautas... De toda forma, acho que as gerações atuais são um pouco mais originais nos seus sonhos infantis de profissão. O fato é: eu realmente achava que queria fazer Medicina. Muito provavelmente fui influenciada, nessa ideia, por um tio dentista, que eu adorava, e que para o meu profundo desespero e perplexidade diante das injustiças da vida, morreu quando eu tinha 15 anos. Fazer medicina era uma forma meio tortuosa de me aproximar dele, mas também me rebelar um pouco, como seria salutar naquela idade. Eu iria para a área de saúde, mas não iria fazer Odonto, como tinha sido o sonho expresso daquele tio tão querido. Deixemos a rebeldia juvenil de lado e voltemos à Histórias de Aprendizagem Medicina: para conseguir passar no vestibular, eu precisava fazer um bom Segundo Grau (atual Ensino Médio). Até então eu havia estudado em escolas públicas – muito a contragosto, porsinal. Eu já era bem “nerdezinha”, gostava (mesmo!) de estudar, e sonhava em frequentar alguma das escolas “de ponta” da minha cidade. Mas não “rolava”. Meus pais até incentivavam meus estudos, sempre incentivaram, mas não havia dinheiro para uma extravagância daquelas. Então, quando eu estava terminando o Primeiro Grau, eu “surtei”. Foi um daqueles típicos surtos de adolescente: eu “tinha” que fazer o Segundo Grau em uma escola particular e sentia, no fundo da alma, que minha vida e felicidade dependiam irremediavelmente disso (eu disse que era um surto típico de adolescente!). Uma saída para a minha “provação” seria conseguir uma bolsa de estudos em uma boa escola. Naquela época, quase todas as escolas particulares da cidade ofereciam bolsas de acordo com a nota que se tirasse em uma prova de seleção feita no final do ano. Como eu sempre tinha sido estudiosa, as minhas chances eram boas. Mas tinha um pequeno problema: matemática tinha um peso grande nessas provas e o programa de matemática da minha lamentável escola pública estava completamente atrasado: a professora 6 Ana Lopes não ia cumprir nem metade dele. Eu até dava conta de matemática numa boa, mas como eu poderia aprender o que a professora não havia ensinado? Então, com aquele poder de persuasão que só uma adolescente de 14 anos consegue ter, fustiguei meus pais até eles concordarem em pagar por algumas aulas particulares. Autorizada por eles, procurei uma antiga professora, de quem eu gostava muito. E lá fui eu, uma aluna que nunca tinha tirado uma nota vermelha na vida, fazer aulas particulares. Não deixava de ser um contrassenso, mas eu estava obcecada para ir para uma escola “decente”. Eis que um belo dia, no meio de uma aula, no momento em que eu acabei de resolver um exercício, a minha professora deu um suspiro e falou: “Você podia estudar isso sozinha, Ana! Não precisava estar aqui, gastando dinheiro!” Na hora eu nem respondi. Só fiquei olhando para ela, provavelmente com uma interrogação perplexa desenhada no meu rosto. No caminho de volta para casa, fui elaborando a “novidade” na minha cabeça: “como assim, estudar sozinha? Para aprender eu não preciso necessariamente de um professor que me ensine?”. Aquela ideia era simplesmente contra tudo que eu sabia sobre aprendizagem. Na verdade, soava 7 Histórias de Aprendizagem praticamente como uma heresia. Hoje, depois de um bocado de experiência aprendendo e ensinando, eu vejo que esta ainda é, infelizmente, a situação da maioria dos estudantes: sequer passa pela cabeça deles que, no final das contas, toda aprendizagem é, no fundo, uma autoaprendizagem. Outra coisa que eu percebo é que quando alguém entende isso, e começa a perceber todas as consequências desta realidade, a postura desta pessoa diante da tarefa de aprender muda drasticamente, para sempre. Lembro-me de ter ficado com a tal frase na cabeça por vários dias, em alguns momentos me sentindo importante, até. A minha professora preferida de matemática, que eu tanto admirava, achava que eu não precisava dela para aprender! Isso era incrível! Infelizmente, aquele único comentário, por mais impactante que tenha sido naquela hora, não seria suficiente para apagar anos de uma escolarização baseada na dependência total do professor. Eu acabei conseguindo uma bolsa parcial em uma escola de renome, convenci (ou venci pelo cansaço) os meus pais a pagarem o que faltava e lá fui eu fazer o meu Segundo Grau que, na minha cabeça, seria de “excelência”. 8 Ana Lopes Era muita novidade de uma vez e aquela ideiazinha um tanto quanto revolucionária da minha querida professora foi, por um bom tempo, para o fundo do baú. Ao longo dos três anos seguintes eu iria descobrir que a tal “excelência” passava longe daquela que era considerada uma das melhores escolas da cidade. Ou seja, não é de hoje que a excelência é um grande mito, incapaz de penetrar os muros de 99% das escolas. Eu gostaria de finalizar esta primeira história com um convite à reflexão: o quanto estamos condicionados à ideia de que a presença física de um professor é condição absolutamente necessária para que sejamos capazes de aprender alguma coisa? A minha vida depois me mostrou que a realidade é MUITO diferente disso. Não é que os professores sejam “inúteis”. Existem professores maravilhosos e eu tive o privilégio de ter contato com vários deles. Mas as fontes de conhecimento não estão somente na sala de aula, em ambientes formais, nem em pessoas com um pedaço de papel bonitinho dizendo que elas são “donas” de um certo conjunto de conhecimentos. Mesmo naquela longínqua época sem computador pessoal e sem Internet, havia os livros. Eles custavam caro e davam mais trabalho, já que era preciso “lê- los”. Não havia vídeos nem animações e raramente 9 Histórias de Aprendizagem um estudante típico tinha acesso a mais de um autor para comparar as explicações. Mas eles estavam lá, e por séculos, foi por meio deles que a humanidade evoluiu. Mas tudo isso eu só fui descobrindo aos poucos, através de várias outras histórias, que vou contar nos próximos capítulos. Já no seguinte, vou contar como aquele comentário de passagem da minha professora me levou, três anos mais tarde, a passar no vestibular, sem cursinho nem professor particular. Tudo o que eu tinha era uma enorme vontade de entrar na Universidade, meus livros e algumas táticas que eu mesma inventei na fina-flor dos meus 17 anos. 10 Meus professores: os livros Na época do vestibular, eu já não pensava em fazer Medicina, mas ainda queria ir para a Universidade. Não deixava de ser um sonho muito ousado, porque eu seria a primeira da família – de ambos os lados – a realizar tal proeza. A primeira questão era que curso fazer. Havia várias carreiras que me interessavam, mas eu acabei optando por Física (não me pergunte o porquê, isso faz muitos anos e eu mal me lembro dos motivos que me levaram a essa decisão um tantinho radical…). Como sempre, havia uma pedra no caminho. Eu tinha descoberto que a tal “escola de ponta”, pela qual eu tanto havia lutado, era só um pouco “menos pior” que a escola pública. Só que depois de quase “quebrar” os meus pais para pagar pelo Segundo Grau em escola particular, não tinha espaço muito menos moral para pedir que me pagassem um cursinho. Mas eu queria passar, e precisava passar para cursar uma Universidade Pública. Foi aí que aquele insight de três anos atrás (aquele da professora que falou que eu podia estudar sozinha) entrou em cena. Histórias de Aprendizagem O processo todo aconteceu de forma meio inconsciente na época. Só hoje, com a perspectiva do tempo, eu percebo as interconexões entre os vários momentos que eu fui aprendendo que era possível aprender sozinha. E na prática, o que foi que eu fiz? Na verdade, nada muito complicado, mas levando em conta que eu tinha tirado tudo da minha própria cabeça, foi uma revolução. Eu estudava pela manhã no colégio, então montei um horário para estudar a tarde inteira, distribuindo as disciplinas naqueles horários. Então, de segunda à sexta-feira, eu estudava de duas às seis da tarde, uma disciplina por hora,quatro disciplinas diferentes por dia. Ainda lembro que tive a preocupação de intercalar disciplinas mais simples de outras mais exigentes, para não sobrecarregar um dia ou deixar outro leve demais. Aí surgiu outro problema: como eu ia saber se eu iria dar conta de estudar tudo que eu precisava até o final do ano? Não lembro exatamente em que momento aconteceu, mas um dia, ainda no início dos meus estudos, eu tive essa “brilhante” ideia: peguei cada livro que eu precisava estudar e fiz uma estimativa de quantas páginas eu precisava “vencer” por semana para dar 12 Ana Lopes conta do livro todo até o final do ano. Ninguém tinha me ensinado aquilo, mas me pareceu o óbvio a fazer. Se você tem uma quantidade de trabalho X e dispõe de Y dias para trabalhar, basta dividir X por Y para saber o quanto você precisa trabalhar por dia, certo? Porque não ensinam algo tão básico para gente na escola? Bom, o fato é que assim eu fiz: todos os dias eu dava tudo de mim para cumprir os meus horários e também as minhas metas em termos de quantidade de páginas. E quando eu digo dava tudo de mim, quer dizer que eu fazia força mesmo! Eu estava obcecada com a ideia de ir para a Universidade. Até porque a outra opção – caso eu não passasse no vestibular - seria conseguir um emprego no comércio local ou algo parecido, e eventualmente fazer um cursinho à noite, para tentar de novo no próximo ano. E eu confesso que a ideia de virar balconista, mesmo que fosse temporariamente, não fazia os meus olhos brilharem... Nem sempre o meu horário de estudos dava certo. Às vezes, tinha uma parte difícil que demorava mais para estudar. Ou então algum pedaço de assunto que não tinha sido dado pelos professores e eu tinha que aprender por mim mesma. Outras vezes, eu estava cansada e outras eu estava simplesmente com sono ou 13 Histórias de Aprendizagem lenta de raciocínio. Ou seja, longe de funcionar como um relógio suíço, eu enfrentei todo tipo de obstáculo nessa que era a minha primeira grande jornada autodidata. Lembro-me de um dia em que meu pai chegou em casa mais cedo e me encontrou cochilando com o rosto enfiado em cima do livro de Química. Ele fez uma expressão que demonstrou tanto dó, que eu fiquei com dó do dó dele. “Ah, minha filha, vai descansar um pouco, você está estudando demais”. Mas eu era teimosa, e não tinha mais idade para ficar obedecendo cegamente ao papai: levantei, lavei o rosto, dei uma volta e sentei de novo na frente do famigerado livro de Química. A minha determinação em passar no vestibular era maior que qualquer outra consideração. De qualquer forma eu estudava num ritmo forte, mas razoável (quatro horas por dia além das aulas na escola). À noite eu via televisão com a família, dormia cedo e nem me passava na cabeça estudar nos finais de semana. Duas vezes por semana, eu fazia natação. Ou seja, era uma vida de muito estudo sim, mas saudável. Todo esse grande esquema foi montado na base da intuição. Com certeza, se eu tivesse feito um cursinho pré-vestibular a história teria sido bem diferente. 14 Ana Lopes E não apenas porque faz parte do negócio dos cursinhos aterrorizar ao máximo os estudantes e fazê- los achar que é “impossível” passar sem muito sofrimento, e é claro, sem um curso pré-vestibular bem caro Mas principalmente porque, sem ter passado por todo aquele processo, eu não teria adquirido as minhas primeiras habilidades de estudo independente, nem a autoconfiança que aquela vitória me deu. Pois é, eu consegui: eu entrei na maior Universidade do Rio de Janeiro, segunda maior do Brasil, tudo isso pelas minhas próprias pernas! No primeiro vestibular. Sem cursinho. E eu era a primeira universitária da família. Aqui não cabe falsa modéstia: foi um feito e tanto, e até hoje eu me orgulho bastante dele. Também não cabe ingratidão: os meus pais, contra a opinião irada de alguns membros da família e contra todas as profecias catastróficas de que eu iria “me perder”, permitiram que eu ficasse até aquela idade sem trabalhar para poder me dedicar aos estudos. Esse privilégio, incomum entre as pessoas da minha convivência, foi igualmente fundamental para a minha conquista. 15 Histórias de Aprendizagem Esse foi só um novo começo. Eu me mudei para o Rio “de mala-e-cuia”. Feliz da vida, mas também morrendo de medo. Eu iria morar em uma cidade enorme e já na época, com fama de perigosa. Além disso, eu iria estudar na “todo-poderosa” UFRJ. Eu considerava minha educação anterior bastante precária e cheia de furos. Será que eu iria dar conta do recado? 16 Vida na Universidade Eu tinha chegado lá... a tão desejada Universidade Federal do Rio de Janeiro era agora a “minha” escola! Eu era agora aluna do Instituto de Física (IF), do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN). Era a minha estreia também com os nomes pomposos e as sopas de letrinhas que povoam o vocabulário da tribo acadêmica. Somente os “iniciados” dominam as misteriosas siglas. Se comunicar por meio delas é um sinal claro de status acadêmico. Como bons adolescentes loucos para se enturmarem, em pouco tempo, a gente já estava falando em código uns com os outros. Mas será que além de me enturmar, eu ia dar conta de tudo aquilo? Eu não tinha feito cursinho, e aquele auditório em desnível, parecendo um teatro, com mais de 100 calouros na frente de um professor cheio da mais pura ginga carioca, foi uma experiência beeem assustadora! Quando a gente está com medo, tende a buscar proteção naquilo que é mais conhecido, né? E assim, ao invés de usar toda a “independência cognitiva” recém-adquirida no meu estudo para o vestibular, eu Histórias de Aprendizagem caí no “modus operandi” de estudante-padrão. Afinal, ele havia me servido muito bem na vida escolar formal até então. Em resumo, eu ia às aulas religiosamente, anotava tudo bem direitinho no caderno e fazia o máximo possível das famosas (e gigantes) listas de exercícios. Quando a coisa ficava feia, eu ia atrás dos professores. Aliás, o acesso direto aos professores foi um luxo novo que nem a escola particular me deu, e eu usava sempre que podia, principalmente no início do curso. Como eu não tinha televisão no meu quarto (no alojamento estudantil da Universidade), eu estudava dia e noite. Lá para as 10h da noite eu entregava os pontos e ia dormir para recomeçar tudo de novo no outro dia às 8h da manhã. Eu não fazia uma atividade física regular, já que eu tinha mudado de cidade e às vezes usava uma parte do fim de semana para dar conta de tanta coisa. Uma parte disso foi motivada pelo terrorismo geral feito pelos veteranos. As taxas de reprovação típicas em Física e Cálculo eram altíssimas. Para piorar, naquele ambiente novo, eu não sabia exatamente quem eu seria como aluna. Era como se eu tivesse, temporariamente perdido a minha identidade. Será que esta seria a hora em que eu cairia em um algum dos enormes buracos de formação que eu tinha? 18 Ana Lopes Para meu enorme alívio, depois das primeiras provas, lá pelo meio do semestre, eu fui percebendo que o meu “método” estava dando certo. A Universidade foi aos poucos se revelandoum pouco mais do mesmo que eu já tinha enfrentado até então, só que em maior volume. Beeeemmm maior, aliás... Até bem pouco tempo atrás eu achava que aquele volume excessivo de tarefas era uma coisa normal e até necessária da vida acadêmica. Mas hoje eu começo a questionar esse modelo. Até porque vira uma fantasia. No final das contas, a grande maioria dos alunos não consegue realmente completar todas as tarefas e ficam fazendo “escambo” com elas, para poder entregar. Só mesmo os mais nerds, (assim, tipo eu, sabe?), tentavam de verdade fazer tudo. Mesmo assim, raramente eu conseguia dar conta de uma lista inteira. Dá o que pensar, né? Se nem os alunos mais dedicados conseguem dar conta de tudo que os professores despejam nas suas cabeças, qual o objetivo daquilo? Hoje eu começo a perceber que além de ser irreal, o excesso de tarefas de alto nível de dificuldade acaba sendo contraproducente. O aluno que não consegue fazer os três primeiros problemas e vê que ainda tem 19 Histórias de Aprendizagem 47 pela frente, acaba desistindo, geralmente com a autoestima arrasada. Mesmo os bons alunos acabam altamente estressados, porque trabalharam no seu limite máximo e mesmo assim não conseguem dar conta de tudo. Parece que tudo é montado de forma a nos mostrar o quanto somos incompetentes. Sabendo hoje o pouquinho que eu sei de psicologia da aprendizagem e neurociência, eu vejo um monte de coisas erradas nesse modelo. Tantas que dariam outro livro... Alguns professores acham que alunos que sucumbem diante desse paredão devem mesmo ser podados da vida acadêmica. Será? Como professora, eu já vi vários alunos antes considerados medianos se transformarem em estudantes exemplares depois de descobrirem um interesse específico e começarem a perseguir o tal interesse por motivação própria. Fico pensando se não seria melhor para todo mundo se a gente os ajudasse a encontrar essa chama dentro deles, ao invés de jogá-los na fogueira à força... 20 Recuperando o autodidatismo perdido Aos poucos, com os primeiros resultados positivos, eu fui plantando os dois pés na Universidade. Na verdade, eu me sentia cada vez mais “em casa”. Era a primeira vez que eu estava entre outras pessoas da minha faixa etária que valorizavam o estudo. E mais importante (principalmente aos 18 anos!): a maioria dos meus colegas agora me admirava pelos meus resultados, ao invés de me tratar como uma leprosa, uma maluca ou um ser de outro planeta. Até hoje eu me pergunto se isso aconteceu porque o próprio vestibular deixava de fora aqueles que eram mais avessos ao estudo, ou se foi um resultado natural do nosso amadurecimento como um todo. Afinal, já tínhamos saído do colégio, estávamos virando “gente grande”. Provavelmente, teve um pouco dos dois ingredientes neste processo. Enfim, depois de um primeiro ano observando o terreno, e conseguindo não cair em nenhum buraco negro, eu cheguei ao segundo ano mais segura de mim. O efeito colateral disso foi eu me tornar Histórias de Aprendizagem também mais crítica do sistema, e começar a perceber que ali também nem sempre a excelência vingava. Tinha ótimos professores, mas também tinha os péssimos, resguardados pela segurança de um emprego público. Um dia, aconteceu uma revolução silenciosa em mim: eu estava em uma aula de Álgebra Linear. Para quem não conhece, Álgebra Linear é um assunto particularmente árido e abstrato da matemática (ou ensinado particularmente mal, talvez). Bem, o fato é que o nosso professor de Álgebra Linear era claramente novato naquele negócio de ensinar e estava literalmente copiando o livro didático no quadro. Mas o pior, o pior mesmo, é que ele não conseguia sair do script: ele simplesmente não conseguia responder perguntas que não estivessem nas notas de aula dele. Hoje, tenho consciência de que este modo como os professores universitários iniciantes são jogados aos leões sem nenhum tipo de preparo prévio é simplesmente criminoso, tanto para os alunos, como também para os professores. O pobre infeliz provavelmente estava tentando fazer o melhor possível, com as poucas ferramentas que tinha. Mas, na época, eu estava mais preocupada com a enorme perda de tempo que aquela aula representava 22 Ana Lopes para mim. Um belo dia, profundamente entediada e indignada ao mesmo tempo, eu tive um estalo: “Espera um pouco, se o cara só copia o livro e não consegue responder uma única pergunta, não seria mais produtivo se eu fosse para a biblioteca, pegasse o mesmo livro e o lesse por mim mesma?” O meu raciocínio era que, na biblioteca, quando eu não entendesse, eu poderia parar e tentar tirar a dúvida em algum outro livro. Já, na sala de aula, quando algo não ficava claro, eu simplesmente passava o resto da aula perdida. Com essa ideia na cabeça e a ousadia de quem estava conseguindo dar conta do recado mesmo naquele lugar quase mitológico, tomei coragem e simplesmente parei de assistir às aulas daquele professor-calouro, de quem eu nem mesmo lembro o nome. Esta pequena aventura não foi nada fácil. O livro- texto adotado não era nenhuma maravilha didática. Aliás, na época eu não encontrei nenhum que fosse. E ainda tinha o medo de estudar por um livro que não fosse o adotado pelo professor e acabar perdida na nomenclatura. Para completar o cenário, eu ainda não conhecia muitos métodos de estudo sistemáticos e não sabia muito bem o que fazer daquele assunto cabeludo: Álgebra Linear é beeeemm mais complicado que a 23 Histórias de Aprendizagem Matemática do Segundo Grau. Eventualmente, em momentos de dúvida (ou de desespero mesmo), eu ia lá assistir uma aula do moço para ver se as coisas tinham melhorado. Mas ele continuou até o fim do semestre copiando o livro no quadro e até o fim do semestre eu travei uma luta feroz com aquele livro horroroso, com a falta de métodos decentes de estudo e a falta de quem pudesse me ajudar com as minhas dúvidas (nem Internet tinha na época!). E para completar, um medo danado de tomar uma “bomba” monumental na disciplina, manchar o meu currículo e ainda ter de voltar para a sala de aula com o meu rabinho entre as pernas... Felizmente isso não aconteceu. Depois de muito sufoco, eu acabei passando. E, quando eu digo “felizmente”, é menos pelo fato de ter passado na disciplina e mais porque aquela experiência começou a me mostrar, com mais clareza, que eu não precisava MESMO depender de um professor para aprender, ainda que o assunto fosse algo tão “hard-core” como Álgebra Linear. Esse episódio marcou uma virada na minha vida acadêmica. A partir dele, eu comecei a selecionar os cursos que eu iria e os que eu não iria assistir. Por sorte, não controlar a frequência era uma prática 24 Ana Lopes comum entre os nossos professores. Na primeira ou segunda semana de aula de cada semestre, eu já rastreava quais professores valiam o meu tempo em sala de aula e quais não valiam e cortava os últimos sem piedade da minha lista de aulas a assistir. Com isso, eu devo ter deixado de assistir uns dois terços das aulas do curso inteiro!Pois é... grave assim... Meu orientador de Iniciação Científica ficava louco comigo. E do ponto de vista mais tradicional, era uma loucura mesmo. Mas com a arrogância própria dos 20 anos, alimentada por uma sequência de sucessos de “produção independente”, eu respondia: “Mas o cara não sabe dar aula! Porque eu vou perder o meu tempo lá?”. Ele bufava, suspirava, olhava feio, mas me deixava em paz. Como no final eu sempre acabava dando um jeito de passar, ele ficava meio que sem argumentos. Claro que eu não contava para ele o sufoco tremendo que eu passava em várias dessas aventuras. Em pelo menos três ou quatro ocasiões eu estive à beira da reprovação. Às vezes porque o professor em questão se ressentia da minha ausência e corrigia as minhas provas com mais... “carinho”, digamos assim, às vezes, porque eu perdia um pouco o controle da situação mesmo. 25 Histórias de Aprendizagem Afinal de contas, eu tinha 20 anos, e Física não era a única coisa que eu estava interessada em aprender na vida! O fato é que com esses altos e baixos fui aprendendo mais uma lição de autodidatismo: o mais difícil de estudar por conta própria não é aprender em si, mas ter a disciplina de estudar todo dia, mesmo que não tenha nenhuma prova cabeluda na semana que vem. Uma dessas disciplinas que eu quase perdi foi no último semestre. Eu já estava decidida a não continuar na Física, mas já que eu tinha chegado até ali, então resolvi fazer as três disciplinas que faltavam para me formar. Foi uma tortura, porque eu tinha perdido o interesse naquilo, e estava com a cabeça em outros planos muito diferentes. Naquelas condições, era dolorosamente difícil eu me motivar para estudar. Há essa altura, eu já tinha os meus tiques de “diva estudantil”: eu estudava e aprendia sozinha sim, em grande volume e pouco tempo se necessário, mas eu precisava acreditar no que eu estava fazendo. Caso contrário, a coisa virava um grande e dramático tormento. Esse, acredito eu, é um efeito colateral praticamente inevitável do autodidatismo. De um modo geral, eu acho que é bem interessante ter essa necessidade de saber o porquê de se fazer alguma coisa. Mas às vezes pode fazer a vida ficar um 26 Ana Lopes pouco mais difícil do que precisaria. Naquele momento, eu precisava fazer só três disciplinas, que nem eram tão difíceis assim. Mas foram, sem sombra de dúvida, as mais sofridas do curso inteiro. Tudo isso porque eu tinha me acostumado a estudar nos meus termos. Doeu, mas eu dei o meu jeito. Fui até o final me arrastando e bufando, mas cheguei lá, sem morrer na praia. De quebra, aprendi na própria carne a importância da motivação para a aprendizagem. Enfim, peguei meu “canudo” e rumei para o Mestrado em Informática, que era o meu mais novo interesse. Com o pequeno detalhe de que tudo o que eu sabia de Informática era programar em FORTRAN. Obviamente, estava preparado o palco para mais uma sequência de desafios de aprendizagem. 27 Cientista da Computação em um mês Um dia minha amiga Marisa entrou toda animada no meu quarto do alojamento estudantil: − Nossa, tem um Mestrado em Informática em Curitiba, deve ser muito bom! − Curitiba?!? Se ela tivesse falado “Marte”, eu teria tido a mesma reação... Mas ela continuou: − É, meu pai diz que é uma das melhores cidades que ele já conheceu. Tudo organizadinho, uma beleza. E lá foi ela, me contando e falando do tal Mestrado numa empolgação bonita de se ver. Enquanto ela falava, eu comecei a pensar que talvez aquilo me interessasse também... Àquela altura, eu já sabia que não iria continuar na Física. Eu tinha programado em FORTRAN durante os três anos na minha Iniciação Científica – uma espécie de estágio para quem quer seguir a carreira Ana Lopes de pesquisa. Era mais ou menos na época em que eu me arrastava para fazer as três disciplinas que faltavam para me formar. Acontece que depois do terrível sofrimento inicial para aprender a programar sem ter muita ideia do que eu estava fazendo (claro, praticamente sozinha de novo!!), eu fui descobrindo que aquilo era MUITO divertido. Conseguir controlar aquela maquininha feia e caprichosa chamada computador e “mandá-la” fazer o que eu quisesse dava uma sensação muito boa! Não fosse a questão financeira, eu teria simplesmente recomeçado a faculdade, só que agora fazendo Ciência da Computação. Mas eu já estava meio “grandinha” para depender dos meus pais. Foi um período particularmente difícil na vida deles e sabia que estava ficando inviável me sustentar como “estudante profissional”. Eu já tinha bolsa de Iniciação Científica há algum tempo, e não dependia 100% deles, mas estava na hora de começar a caminhar com as minhas próprias pernas de verdade. Afinal, eu já tinha 21 anos!! Então, naquele dia, com a Marisa na minha frente pulando de entusiasmo sobre o tal Mestrado em Curitiba, eu comecei a fermentar uma ideia que iria mudar o rumo da minha vida completamente: − Marisa, onde está o cartaz desse Mestrado? 29 Histórias de Aprendizagem Ela me explicou direitinho a localização, e no dia seguinte eu estava lá, anotando todas as informações necessárias para me candidatar ao Mestrado em Informática Industrial no CEFET do Paraná. A vantagem de fazer um Mestrado ao invés de recomeçar uma graduação era que no Mestrado, eu teria direito a uma bolsa bem maior, pelo menos grande o suficiente para me sustentar sozinha. Ou seja, era exatamente o que eu precisava naquele momento. Claro que tinha uma pequena pedra no caminho. Afinal, o que seria da vida se não fossem as danadas das pedras para a gente brincar de se desviar delas? E a pedra da vez era a seguinte: eu tinha que escrever um texto, de umas três a cinco páginas, sobre uma das áreas de pesquisa listadas no tal cartaz. Obviamente, nenhuma delas era sobre programação em FORTRAN, que era a única coisa que eu realmente sabia sobre Computação. Eu não me fiz de rogada: peguei a Marisa e o namorado dela, que fazia Computação, também, mostrei a lista de temas e perguntei: − Qual destes assuntos vocês acham que eu consigo aprender o suficiente em um mês para escrever uma mega-redação? 30 Ana Lopes Este era o prazo que eu tinha para me candidatar ao Mestrado do CEFET. Eles analisaram, conversaram entre si, fizeram umas caras-e-bocas e concluíram: Inteligência Artificial era o candidato mais adequado àquela minha proposta maluca de “virar Cientista da Computação” em um mês. E lá fui eu, apesar das expressões de “causa perdida” dos meus amigos. Àquela altura, eu já confiava bastante no meu “taco cognitivo” para não me deixar desanimar pela incredulidade deles. Felizmente, eu achei o assunto bem interessante e encontrei livros muito bons sobre ele na biblioteca. Foram dias de muita leitura e anotações “furiosas”. Várias vezes eu olhava o que ainda faltava ler e pensava “eu não vou dar conta disso”. Mas eu queria ir para Curitiba, então eu continuava lendo e anotando, lendo e anotando. Eu não devo ter conseguido ler nem 30% do material que eu tinha me proposto a ler. Apesar de muito interessante, tudo era também muito novo e a leitura e a compreensão eram lentas. Mas quandofaltavam poucos dias para o encerramento das inscrições, eu reuni as minhas anotações e comecei a escrever o melhor que eu podia, com aquilo que eu tinha conseguido ler e entender até aquele momento. Eu ia mandar para o CEFET o que dava para mandar, o resto ficaria por conta do destino. 31 Histórias de Aprendizagem E o destino me alcançou em casa, já no recesso perto do Natal, em forma de uma carta (naquela época ainda se enviavam cartas de verdade!). A carta era assinada pelo então coordenador da Pós- graduação do CEFET-PR, dizendo essencialmente o seguinte: aquela área que eu tinha “escolhido” (Inteligência Artificial) já tinha muitos candidatos, mas ele tinha um projeto sobre simulação de fibras ópticas e achava que o meu perfil era adequado para participar deste projeto. Por acaso, eu estaria interessada? Eu pulava de alegria pela casa com aquela carta na mão: eu estava dentro!!! Eu mal acreditava que o próprio coordenador do curso tinha se dado ao trabalho de me enviar uma carta perguntando se eu queria trabalhar no projeto dele. No final ele me perguntava se eu tinha e-mail, para a gente se comunicar de forma mais fácil. Sim, o e-mail já existia, mas somente em ambiente acadêmico, e pouquíssimas pessoas tinham acesso. Como aluna de Iniciação Científica da moderníssima UFRJ, eu tinha o meu. Então, logo depois do Ano Novo, fui correndo para o Rio, acessar meu precioso e-mail. Dos computadores de lá, através da altamente exclusiva rede bitnet, toda a minha ida para Curitiba foi negociada com aquele que passaria a ser o meu 32 Ana Lopes orientador de Mestrado pelos anos seguintes. Em fevereiro eu estava de mochila nas costas e com o pé na estrada, para descobrir a cidade onde eu me tornaria Mestre, teria o meu primeiro emprego e conheceria o meu marido. Tudo isso porque o pai da Marisa achava que Curitiba era o próprio paraíso na terra... Bom, Curitiba pode não ser exatamente o paraíso – afinal, não pode ser tão frio assim no paraíso!! Mas que os anjos cantaram algumas vezes para mim por lá, isso cantaram! 33 Mestrado: garimpo e foco E eu fui mesmo lá, fazer o Mestrado em outro estado, numa cidade onde eu não conhecia ninguém e mal sabendo o básico do curso que eu tinha me proposto a fazer. Mas a experiência de estudar mais da metade de um curso de Física praticamente sozinha se fez valer, pelo menos na fase das disciplinas. Eu simplesmente continuei fazendo mais ou menos a mesma coisa que eu já tinha me acostumado a fazer: assistia às aulas quando me convinha, e estudava sozinha quando achava que esse seria um uso mais inteligente do meu tempo. Claro que eu comecei um pouco cautelosa, sendo mais ortodoxa no início e assistindo todas as aulas para “sentir o terreno”. Mas minha “ortodoxia” durou bem menos tempo que na graduação: uns três meses, no máximo. E de novo, lá estava eu selecionando aulas que eu assistiria ou não. Neste ponto da vida, este já tinham se tornado os meus hábitos “normais” de estudo. O desafio realmente novo veio na fase de elaboração e execução do projeto. O meu orientador não era Ana Lopes Cientista da Computação, mas Engenheiro. Ele então conseguiu um cooorientador para mim que era da Computação. Só que o meu querido cooorientador, apesar de ótima pessoa e muito inteligente, “viajava loucamente na maionese”. Ele me dava pilhas de coisas para ler, a maioria extremamente interessante, mas também pouco práticas para quem precisava desenvolver um software de verdade e com prazo limitado. Um dia esse meu cooorientador foi fazer uma pós no Canadá, ou alguma coisa assim. E o que já não era a situação ideal, ficou ainda mais complicado. Na verdade, até hoje não tenho certeza se isso foi melhor ou pior para mim. Eu perdi uma fonte valiosa de leituras interessantíssimas, mas acabei aos poucos conseguindo ver no que eu realmente precisava focar para chegar ao final do mestrado com o meu software funcionando. No final, a coisa toda se resumiu ao estudo de dois manuais do tamanho de uma bíblia cada um. O problema é que manuais de referência não costumam ser muito didáticos. Aqueles certamente não eram. Eu não fazia ideia do que eu deveria ler naqueles monstros. Para dizer a verdade, eu não sabia nem mesmo o nome das coisas que eu deveria procurar no índice. Ninguém por perto entendia daquilo para me 35 Histórias de Aprendizagem ajudar. Quer dizer, havia o pessoal de outro grupo de pesquisa que tinha experiência no assunto, mas não gostava muito de gente “de fora”. Acho que foi nessa época que eu comecei a entender mais claramente que o mundo acadêmico não era exatamente um paraíso “populado” por idealistas puros e cândidos. Como em todo grupo social, está também cheio de invejinhas bobas, competições desleais, politicagens brabas, e tudo o mais que é “humano, demasiadamente humano”. Tem até gente boa lá também. Mas, enfim, eu tinha que terminar o Mestrado que tinha começado, fui lendo meus manuais na base do puro faro, selecionando o que me parecia pertinente e eventualmente encontrando pequenos pedaços de código que se pareciam com pedaços das coisas que eu precisava ter no programa. Cada pedacinho desses era um começo. Foi um longo e duro período de aprendizagem por tentativa e erro. E de uma grande solidão, porque agora eu não tinha nem o cooorientador que tinha ido embora, nem colegas de disciplina para trocar pelo menos alguns bocadinhos de informação. Era eu, o meu programa e uma dissertação que tinha que ser defendida antes que a minha bolsa acabasse. Nos últimos três meses do Mestrado, consegui 36 Ana Lopes autorização para entrar nos finais de semana no prédio do CEFET. Eu trabalhava de domingo a domingo, de 10h da manhã às 10h da noite. Era início de ano, mas não vi o carnaval passar. Finalmente, na véspera da Páscoa entreguei a dissertação impressa, viajei para a casa dos meus pais e voltei para a defesa que seria dali a uma semana. Enfim, logo depois do feriado da Páscoa, eu era Mestre em Informática. A grande lição de aprendizagem do Mestrado foi realmente diferente das que eu tinha tido até então. Antes eu tinha livros didáticos, com um caminho claro a seguir. Era só abrir na página 1 e começar a ler. Tá certo, é claro que era um pouco mais que isso, né? Mas o fato é que havia um roteiro bem definido a seguir. Desta vez eu tive que aprender a escolher o que era relevante em meio a um mar de informações muitas vezes desencontradas. Aprendi também que “interessante” nem sempre é sinônimo de “pertinente”. E no final das contas, graças a tudo isso, acabei aprendendo o verdadeiro significado da palavra FOCO. Eu tinha o tempo todo que manter em mente os meus objetivos finais: terminar o meu programa, gerar resultados com ele e defender a minha 37 Histórias de Aprendizagem dissertação. Disso dependeria minha sobrevivência nos meses seguintes, pois havia uma oportunidade de emprego que eu só poderia aproveitar se tivesse o diploma. Então esses objetivos que tinham que ser a base de tudo o que eu escolhia fazer, a cada instante. Obviamente, eu estava sempre escorregando, perdendo o foco, gastando tempocom alguma coisa que não ia me levar a nada, e depois caindo na real e me obrigando a voltar para os meus objetivos. Ainda bem que naquela época não tinha Twitter nem Facebook... Para finalizar a aventura com chave de ouro, exatamente no mesmo dia da minha defesa, à noite, entrei pela primeira vez em sala de aula como professora de Programação em linguagem C. Era o meu primeiro emprego, onde eu iria aprender muitas coisas também. Mas isso já faz parte de uma outra história. 38 Professora? Não, malabarista! Dizem que os ricos trabalham para aprender. Bem, como eu não era rica, então eu trabalhava era para pagar as contas mesmo. Mas isso não impediu que o meu primeiro emprego fosse altamente instrutivo... O primeiro ano como professora foi enganosamente fácil. Quer dizer, não é que tenha sido exatamente “fácil”, mas foi bem mais tranquilo do que normalmente seria um início de carreira no magistério. Eu tinha somente uma turma e ensinava algo com que tinha trabalhado durante o Mestrado inteiro: programação em linguagem C. A turma era gigante, mas foi tão marcante que eu ainda lembro-me de alguns rostos. Principalmente da expressão de pouco caso de um sujeito que sentava lá no fundo da sala, cruzava os braços, escorregava na cadeira para ficar com jeito bem folgado e parecia ter escrito na testa: “eu vou te desmascarar”. Volta e meia o rapaz levantava a mão de forma bem displicente, e fazia uma pergunta que eu desconfiava fortemente que ele já sabia a resposta. Ou seja, o Histórias de Aprendizagem moço estava me testando. Até hoje não sei se ele se convenceu de que eu realmente sabia do que estava falando ou do contrário, mas o fato é que depois de algum tempo – que pareceu uma eternidade – o dito cidadão largou do meu pé. A sensação de estar sob o microscópio não era lá muito agradável, mas como eu só passava por aquilo uma vez por semana, então eu tinha tempo de me preparar e de me recuperar daquela tensão. Mas o que era inicialmente uma vantagem acabou virando uma “pegadinha” da vida. Depois de ter escapado daquele primeiro ano ilesa e influenciada por alguns colegas, decidi que era hora de ser professora em tempo integral: passei de quatro horas de aula por semana para mais de trinta. E passei também de uma única disciplina para quatro ou cinco diferentes, algumas das quais eu estava quase que aprendendo junto com os alunos. Era sem dúvida uma situação bem diferente daquela do ano anterior. Mas eu só fui me dar conta do tamanho da diferença quando já era tarde demais e eu já tinha me comprometido com todas aquelas aulas. Agora, o jeito seria me virar para lecionar muitas vezes no mesmo dia, disciplinas tão diferentes quanto Geometria Analítica e Informática Básica. 40 Ana Lopes Foi um passo certeiro em direção ao precipício em que eu quase caí dois anos mais tarde. A minha vida virou um continuum de preparar e dar aulas. Minha última aula da semana terminava no meio da tarde de sábado. Tinha um dia da semana em que eu dava aulas nos três turnos, em duas cidades diferentes. Saía de casa às 6h da manhã para voltar quase meia- noite. E claro, no dia seguinte tinha aula às 7h de novo... Para tornar a situação um pouco mais “divertida”, havia a imensa diferença de cultura entre as Universidades Federais, onde eu havia me formado, e as particulares em que trabalhava. O “modelo” que eu seguia era o federal clássico: muitas aulas expositivas, muitas exigências sobre os alunos e distribuição farta de notas baixas. Não havia maldade naquele comportamento. Era simplesmente o modelo de “excelência” que eu tinha aprendido a reconhecer como o único modelo válido sobre a face da terra. Eu achava, do fundo do meu coração, que estava fazendo o melhor pelos alunos. Aliás, eu também achava que qualquer outra coisa fora daquele modelão era uma corrupção inaceitável do espírito acadêmico. Claro que, com essa mentalidade, não demorou muito para eu concluir que todo o sistema particular de ensino estava corrompido, principalmente pela 41 Histórias de Aprendizagem relação financeira direta entre a instituição e os alunos. Enfim, a “receita” que eu trouxe pronta da minha própria formação não demorou muito a me trazer problemas. No final daquele ano, um dos cursos onde eu tinha praticamente um terço das minhas aulas pediu explicitamente a minha substituição. O problema era que eu levava Informática Básica muito a sério e tinha cometido a ousadia de deixar alguns alunos irem para a prova final naquela disciplina insignificante para eles. E agora eu estava em risco de perder uma boa parte do meu salário, afinal, eu era paga por hora-aula (ou, como dizia uma amiga, “hora-saliva”). Além disso, aquela quase demissão me custou um desgaste emocional enorme e me chamuscou bastante diante dos meus superiores. Para completar, assustada com a possibilidade de queda repentina da minha renda, eu cometi um erro grave: perdi a valiosa oportunidade de aprender com o que estava acontecendo e botar o pé no freio. Aqui eu definitivamente troquei os pés pelas mãos: ao invés de dar um tempo para repensar o que estava fazendo, eu fiz de tudo para substituir as aulas perdidas, a qualquer custo. Isso me deixou com um cardápio de disciplinas diferentes ainda maior e mais 42 Ana Lopes complicado. Era um verdadeiro malabarismo, e comecei o ano seguinte em um ritmo mais alucinante do que nunca. Resultado: ao final do meu terceiro ano de profissão eu estava deprimida a ponto de chorar antes de sair para dar aulas em algumas das turmas mais rebeldes. Com tudo isso, no início do ano seguinte, estava decidida a sair do sistema particular, que na minha cabeça tinha virado o bode-expiatório para todas as minhas mazelas. Meus planos para sair daquela armadilha eram fazer um concurso para uma Universidade pública ou então começar um Doutorado e voltar a viver de bolsa. A única certeza naquele momento é que eu não tinha mais condições psicológicas de permanecer ali por muito tempo. E para dizer a verdade, nem sei se me deixariam ficar por muito tempo mais. Comecei aquele ano de trabalho assombrada, com a forte impressão de que não chegaria a completar quatro anos naquele emprego. Caberia a mim a decisão de sair pelos meus próprios pés ou esperar ser jogada pela janela. A essa altura, você já deve ter percebido que ficar parada esperando uma bomba estourar na minha cabeça não é exatamente o meu estilo de tocar a vida. Mas antes de abrir o meu caminho para uma nova 43 Histórias de Aprendizagem aventura, eu ainda teria tempo de aprender mais uma coisinha ou duas por ali. 44 Quer continuar no emprego? Quando eu já estava pegando o jeito de ensinar linguagem C – o que é MUITO diferente de “programar” em linguagem C – o meu coordenador me deu, candidamente, o seguinte recado: “nós resolvemos mudar a linguagem de programação para Java em todos os cursos iniciais. Você vai querer continuar trabalhando conosco no ano que vem?” Eu juro que vi alguma coisa batendo asas pela janela naquela hora. Eu só tinha que decidir se seriam as minhas férias de verão ou o meu empregoque iria viajar para bem longe... No fundo era uma decisão relativamente fácil. A execução é que era complicada. Era fácil decidir por dois motivos muito simples e elementares: primeiro porque eu precisava pagar o aluguel (e o supermercado e a gasolina). Mas também porque Java estava começando a emergir como uma linguagem forte no mercado e eu tinha bastante interesse em aprendê-la (eu sei, eu sou MUITO nerd, mas eu já admiti isso, tá?). A complicação da história é que eu teria três meses Histórias de Aprendizagem para terminar um semestre pesadíssimo, com todas as correções de provas e trabalhos que desesperam qualquer professor nessa época do ano e depois enfiar o nariz, a cabeça, o pescoço e tudo o mais que fosse possível na “missão” de aprender Java antes do início do próximo semestre. E lá fui eu, novamente, aprender por meus próprios meios. E de novo, sem livros didáticos. Eles ainda não existiam para Java na época. Mais uma vez, tive que me virar com a secura de alguns manuais e uma escassez desesperadora de informações mais digestivas e esclarecedoras. Em paralelo, eu tinha também que tentar entender que diabos era programação orientada a objetos, a que até então eu não tinha tido a oportunidade de ser apresentada. Em outras palavras, eu não precisava só aprender uma nova linguagem de programação, eu tinha que aprender uma maneira completamente diferente de programar. Era mais ou menos como um médico que além de aprender a operar um bisturi mais moderno, tem que aprender uma técnica inteiramente nova de cirurgia. Tudo bem que a essa altura eu já tinha prática de me arranjar sozinha para aprender em condições adversas, mas o prazo era o mais curto que eu tinha 46 Ana Lopes enfrentado para uma tarefa daquela magnitude. Não posso dizer que consegui ou que não consegui exatamente o que era esperado de mim. Mas posso dizer que não fui demitida. Talvez porque a minha situação não era muito diferente da dos outros professores que também ensinavam programação. Fomos todos pegos de calças curtas. Cheguei ao início do semestre sabendo o suficiente para dar mais ou menos um mês de aulas. O resto, eu teria que aprender pelo caminho. Isso significou que eu teria que continuar estudando loucamente enquanto dava mais de 30 aulas por semana, sempre com a corda no pescoço. Qualquer gripe ou imprevisto me tiraria dos trilhos e me deixaria sem nada para levar para sala de aula. Qualquer aluno que resolvesse se adiantar um pouquinho a mim poderia me tirar o chão com uma pergunta para a qual eu não teria absolutamente nenhuma resposta. A palavrinha que eu aprendi dessa vez foi STRESS. Eu nunca tinha tido que aprender alguma coisa sob tanta pressão. Se por acaso em algum momento eu começasse a não entender um conceito qualquer, ia batendo um desespero, porque o tempo era curto demais, eu não podia me dar ao luxo de “não entender”. 47 Histórias de Aprendizagem E eu não tinha só que aprender como um estudante aprende. Eu era a professora! Eu tinha que entender o assunto sob vários ângulos, praticar, preparar aulas, prever dúvidas e criar exercícios. No meio disso tudo eu ainda precisava dar conta de todas as outras disciplinas que eu lecionava. A boa notícia é que eu consegui terminar o ano sem um grande desastre e sem ser demitida. Mas ganhei de herança dessa loucura uma bela gastrite, que só iria ser curada quando eu mudasse de emprego e de cidade, quase dois anos mais tarde. Meu gastro era japonês e toda vez que eu ia lá, ele me dizia a mesma coisa, com aquela calma que só os orientais conseguem emanar: “você está trabalhando muito, minha filha, tem que trabalhar menos, se cuidar mais”. Eu olhava para ele como quem olha para um ET. Como assim, trabalhar menos? Ele não sabia que eu tinha contas para pagar? Que eu precisava comprar uma casa? Que eu tinha que “vencer na vida”? Eu era o retrato da “workahoolic” ensandecida. Eu saía daquele consultório com ódio mortal do japonês, que parecia não entender nada da vida lá fora daquele consultório todo bonitinho e tranquilo. Mas eu não trocava de médico e continuava indo lá, para levar sempre a mesma bronca. 48 Ana Lopes Provavelmente, eu fui ficando porque bem no fundo, eu já sabia que ele estava certo. E de alguma maneira, eu sabia que precisava ouvir aquilo umas 358 vezes, para tomar coragem e correr atrás de uma solução para aquele beco-sem-saída em que o meu trabalho tinha se transformado. 49 Para curar gastrite, concurso público! No início do que seria o meu último semestre em Curitiba e no meu primeiro emprego, eu estava recém-casada, mas nem por isso o ritmo de trabalho era menos enlouquecido. Um dia, eu sentei no sofá da sala, exausta, e fiquei olhando para a televisão desligada por alguns instantes. De repente, comecei a me dar conta de que eu não me lembrava de quanto tempo fazia que aquela televisão não era usada. Eu só sabia que era um bocado de tempo. Aliás, o sofá também, tinha virado um mero enfeite naquela sala sem utilidade prática. Eu passava meus dias ora na universidade, dando aulas, ora no computador, preparando aulas, ora na mesa do escritório, corrigindo provas e trabalhos. Com esses pensamentos na cabeça, virei para o meu então “recém-marido” e soltei de supetão: “Isso não é vida para se levar. Eu não consigo sentar no meu próprio sofá. Há quanto tempo essa televisão não é ligada?”. Ana Lopes Ele arregalou os olhos no início, provavelmente achando que eu tinha surtado (o que no final das contas, era mais ou menos verdade). Mas não demorou muito para começar entender o que eu estava falando e concordar. Ele estava mais ou menos na mesma situação: igualmente sobrecarregado, igualmente estressado e, por incrível que pareça, igualmente padecendo com uma gastrite. E eu continuei na minha epifania: “a gente precisa mudar isso, mudar dessa cidade, mudar de vida. A gente precisa fazer alguma coisa!” Esse estouro repentino foi o pontapé inicial para a decisão de procurar um rumo completamente diferente. Depois de alguma conversa, concluímos que a saída seria pela via de um Doutorado ou um emprego público. O que não dava mais era para viver aquela vida de semiescravidão, correndo feito loucos de um lado para o outro o dia todo, todo dia. A decisão foi tomada na hora certa. Alguns meses depois, apareceu um megaconcurso, em uma universidade relativamente nova, em plena expansão. Tinha vagas tanto na minha área de trabalho quanto na dele. Cidade pequena, litorânea e quente. Ou seja, o completo oposto de onde estávamos. Era tudo que a gente queria e precisava. Aí, é claro, começou uma nova aventura de 51 Histórias de Aprendizagem aprendizagem “daquelas”. Afinal de contas, o direito de ir para o “paraíso” não ia sair de graça, né? Em resumo, além de dar conta de tudo o que já estava quase nos matando, a gente tinha que cavar tempo para estudar para o tal concurso. Para completar, eu ia fazer o concurso para uma vaga em Ciência da Computação. Como não tinha feito graduação na área, eu sabia razoavelmente bem mais ou menos metade dostemas do concurso. A outra metade, eu tinha apenas uma vaga ideia do que se tratava. Em um ou dois casos, nem mesmo uma ideia superficial eu tinha. Para quem não conhece, concurso para professor universitário é bem diferente de um concurso público comum, daqueles com provas de múltipla escolha. Funciona mais ou menos assim: são três avaliações: a primeira é a avaliação de títulos, baseada no currículo (ou seja, diplomas, publicações, experiência). A segunda é a avaliação escrita, na qual é sorteado um tema geral e os candidatos tem que escrever tudo o que sabem sobre ele. E finalmente a prova didática, em que um novo tema é sorteado. Desta vez cada candidato pega um tema diferente, tem 24h para preparar uma aula de 50 minutos sobre ele e apresentar para a banca de avaliadores. 52 Ana Lopes Em outras palavras, o tal concurso não é brincadeira de criança. Mas eu queria MUITO passar naquele concurso e me livrar do emprego atual. Eu queria aquilo tanto quanto eu tinha querido passar no vestibular alguns anos antes, ou talvez até mais: eu estava doente e odiando o emprego que tinha me deixado daquele jeito. Além disso, eu não era mais uma adolescente que podia jogar tudo para o alto e correr para debaixo da saia da mamãe. Eu era uma mulher casada e já tinha uma vida estruturada em torno do meu salário. Ou seja, eu tinha que sair daquele horror, mas tinha que manter a calma e a elegância. E lá fui eu: nas super-hiper-mega-escassas horas vagas fui pesquisando cada tema do concurso, e fazendo resumos deles. Eu tinha que encontrar as fontes de informação certas, tirar delas o que era relevante para cada tema, estudar o material e desenvolver um texto que seria a base da prova escrita, caso aquele tema fosse sorteado. Era uma montagem de quebra-cabeças, quase uma mini-monografia sobre cada um dos temas do concurso. Felizmente, nesse tempo já havia uma Internet razoavelmente desenvolvida e posso dizer que ela, literalmente, salvou a minha pele naquele concurso. 53 Histórias de Aprendizagem Havia dois temas sobre os quais eu não conseguia achar nada. Comecei a ficar em pânico. Eu tinha me matado para devorar 80% do conteúdo, mas se um daqueles dois malditos caísse em uma das minhas avaliações, eu estaria fora da disputa, sem direito a choro nem vela. Comecei a procurar feito louca na biblioteca e na Internet. Para um dos temas, eu finalmente tive que chamar um amigo mais próximo e contar que estava me preparando para um concurso, para poder pedir ajuda. Ele indicou alguma literatura, mas não era bem o que eu precisava. E para dizer a verdade, eu só entendi isso completamente alguns anos depois, de tão por fora que eu estava do assunto. Eu preparei o famigerado tema do jeito que deu, mas – só hoje eu sei – o texto estava muito ruim, além de ter erros conceituais sérios. Mas como Deus, além de brasileiro, é meu camarada, o danado do tema confuso não caiu em nenhuma das provas. Sobre o segundo tema misterioso, depois de muita caça, eu encontrei na Internet uma apostila que, pelo sumário, eu vi que tinha tudo, mas tudo mesmo que eu precisava para aquele tema! A apostila estava no site de uma empresa de São Paulo. Era bom demais para ser verdade: uma única 54 Ana Lopes fonte de informação, com tudo o que eu precisava, e já bem organizadinho. Era só pegar e estudar. Só tinha um problema (é claro que tinha um problema!): a tal apostila estava esgotada, ou seja, não estava mais à venda… Aí eu apelei. Mandei um e-mail para o contato da empresa, chorando todas as minhas pitangas, e explicando bem direitinho a situação em que eu me encontrava. O rapaz que me atendeu foi um anjo caído do céu: ele mandou, na base da mais pura confiança, uma cópia xerox daquela apostila enorme pelo correio, com um boleto dentro para pagar o custo da cópia e do envio. Eu nunca paguei um boleto com tanta satisfação. Mas o mais inacreditável nessa situação toda – e eu sei que tem muita gente que vai achar que é mentira minha – é que foi EXATAMENTE esse o tema sorteado para a prova escrita do concurso. Eu não sabia se ria ou se chorava quando vi o resultado do sorteio. Quer dizer que se não fosse pelo desprendimento daquela boa alma, eu teria sido eliminada do concurso ali? É, exatamente isso. Mas o meu anjo não tinha me deixado na mão, e graças a ele, eu fiz a prova e passei no concurso. De volta a Curitiba (agora para fazer as malas!!), fiz 55 Histórias de Aprendizagem questão de mandar um email para o moço que tinha garantido o meu emprego novo. Contei aquela história inacreditável para ele e agradeci novamente pela enorme gentileza que ele me havia feito. Ele ficou feliz por mim, e deve ter dormido como o anjo que tinha sido para naquela noite. Mas a mágica não parou por alí. Para tornar a coisa toda ainda mais fantástica, o tema da prova didática foi “Introdução à programação orientada a objetos!!” Se você não se lembra, esse era exatamente o assunto que eu tinha sido obrigada a estudar para manter o meu emprego, um ano e meio antes. Depois de mais essa coincidência abençoada, eu tive certeza: aquela vaga já era minha, estava escrito nas estrelas! Na cidade nova, eu nem cheguei a ter tempo de achar um novo médico para o meu estômago, mas o fato é que seis meses depois da mudança, mesmo sem tratamento, eu não tinha mais sinais de gastrite. Ah, você deve estar pensando, então a vida ficou fácil, né? Aha, ledo engano. Até porque, vou contar um segredo. Na verdade, um fato básico da existência que eu ainda luto para aceitar plenamente: a vida da gente nunca fica fácil, pelo menos não por muito tempo. 56 Professora Bombril: 1001 utilidades Lá estava eu, feliz da vida, caída de paraquedas em um curso de Ciência da Computação que tinha 3 professores ao todo – contando comigo – e 6 meses de vida. No início foi tudo bom demais para ser verdade: a minha carga horária em sala de aula era de um terço daquela que eu estava acostumada anteriormente, e eu fui escalada para lecionar duas disciplinas que eu já conhecia bem. Não foi à toa que a minha gastrite curou sem médico. Mas, “não a mal que perdure, nem bem que sempre dure”… A cada semestre, a primeira turma avançava no curso. Isso significava que nós precisávamos oferecer mais disciplinas, sempre diferentes das anteriores. No semestre seguinte ao que eu entrei, nós nos tornamos quatro professores (uau!). Ainda assim, era muito pouco para um curso inteiro e a coisa foi ficando cada vez mais complicada. Histórias de Aprendizagem Finalmente, depois de alguma resistência, eu fui obrigada a entrar em terreno novo. Só para não perder o costume, né? Fui escalada para lecionar uma disciplina que, se não era uma completa novidade para mim, também não era exatamente uma especialidade minha. Obviamente também, para não perder o hábito, eu fiquei ciente de que ia ter que lecionar a tal disciplina bem em cima da hora. Eu já sabia que o nível de stress iria aumentar. Bem, aquela vida “mansa” que eu estava levando nos primeiros meses não poderia mesmo durar para sempre... Ia ficar sem graça, né? De qualquer forma, eu sabia tambémque a disciplina em questão é um pilar importante em Ciência da Computação. A oportunidade de aprendê-la mais profundamente, mesmo que sob pressão, me motivou bastante. O fato de que eu iria estudar novamente sozinha nem era mais uma questão em si. Eu já fazia isso há tantos anos que praticamente não imaginava mais outra forma de aprender. E hoje, na verdade, estou convencida de um fato que hoje me parece elementar: se a aprendizagem é uma coisa que acontece na cabeça de cada um, então a 58 Ana Lopes única forma real de aprendizagem é a autoaprendizagem. Professores, livros e Internet, no final das contas, são meras ferramentas para me ajudar a fazer a coisa acontecer. Depois de pegar a tal disciplina nova, eu ainda consegui resistir à pressão da chefia, durante algum tempo, e manter duas disciplinas fixas por alguns semestres. Foi um período ótimo, já que assim eu consegui ir refinando meus conhecimentos e minhas aulas semestre a semestre. Mas uma hora a coisa começou a ficar insustentável. No início, o curso oferecia muitas disciplinas “genéricas”, aquelas ligadas a outras áreas de conhecimento. Coisas como Metodologia Científica, Inglês Instrumental, por exemplo, aliviavam a nossa necessidade por professores especialistas em Computação. O problema é que as disciplinas que deviam ser oferecidas para a turma que avançava eram cada vez mais específicas e nós precisávamos de gente com conhecimento e experiência específicos naquelas áreas. Só tinha um probleminha: a gente fazia concursos e não apareciam candidatos! A verdade é que nós estávamos em uma cidade pequena, distante dos 59 Histórias de Aprendizagem grandes centros do Sudeste e procurando gente qualificada em uma área que seguramente dava mais dinheiro que o Magistério... Quer dizer, se parar para pensar com calma, praticamente qualquer profissão de nível superior dá mais dinheiro que o Magistério no Brasil. Em áreas de tecnologia a coisa só é um pouquinho pior... Quem já estava por ali, ou era nativo ou era meio bicho-grilo, ou seja, era gente que tinha aberto mão dos salários e oportunidades das grandes capitais e estava em busca de uma vida mais tranquila, fora da loucura da cidade grande. Esse, aliás, era o meu caso. Enfim, a coisa começou a ficar feia: cada um de nós tinha que pegar disciplinas novas todo semestre. Para mim, isso quase sempre significava aprender do “zero” (ou no máximo do “um” ou “dois”). Mas não teve outro jeito: em um período de sete anos ensinei pelo menos sete a oito disciplinas diferentes. Claro que estavam longe de serem cursos perfeitos. A primeira rodada em cada disciplina nova era geralmente bastante precária e nem sempre eu tinha chance de passar por uma segunda rodada, porque aparecia outra disciplina nova que não tinha mais ninguém para pegar. O lado positivo? Bom, para variar, eu aprendi 60 Ana Lopes muuuuito nessa época, ampliei muito meus horizontes na área. A essa altura, eu já começava a me enfezar se alguém insinuasse que eu não era uma Cientista da Computação “de verdade”. Em algum momento desse redemoinho, nós chegamos a achar que o curso ia acabar fechando por falta de professores. Felizmente, porém, aos poucos nós fomos conseguindo atrair mais gente para os concursos e a coisa foi se normalizando aos pouquinhos. Mais ou menos nessa mesma época vieram os meus filhos. Gêmeos! Diante de tamanho desafio, que talvez tenha sido maior do que todos os que eu já tinha enfrentado, acabei me concentrando mais na minha vida pessoal, enquanto que a vida profissional foi deixada no “piloto automático”. Claro que, em plena Era da Informação, esse piloto automático me custou beeeeeem caro. Mas isso já é assunto para outra história, que aconteceu alguns anos mais tarde. 61 Um público (radicalmente) diferente Como uma boa “cria” de Universidades Federais, e estando agora no ambiente mais protegido de uma Universidade Pública, eu rapidamente me tornei famosa como professora “durona”. Não havia uma maldade intrínseca naquilo, como alguns alunos muito provavelmente acreditavam. O fato é que eu acreditava que ser bastante severa era parte indispensável de fazer o meu trabalho bem- feito. Nas Universidades Públicas mais tradicionais, e especialmente na área de Ciências Exatas, existe uma mitologia de que se não houver sofrimento considerável, a disciplina não valeu a pena. Embutida nesta mitologia, está também a crença de que, nesses casos de “sofrimento moderado”, o professor não é sério e “deu moleza”. Hoje, eu estou um pouquinho mais sabida e já sei o quanto o cérebro aprende menos quando está sob stress, apesar de muita gente acreditar no contrário. Ou seja, é preciso urgentemente encontrar formas Ana Lopes mais criativas de motivar os estudantes a fazer o trabalho duro que tem que ser feito para aprender para valer. Infelizmente eu ainda não encontrei um caminho seguro para fazer isso, mas já tenho alguns indícios de que tentar ser razoável naquilo que se pede dos alunos ajuda bastante. A essa altura, os mais tradicionalistas já devem estar se perguntando: o que seria “razoável”? Sinceramente, eu pessoalmente, como professora, ainda não encontrei uma fórmula para definir “razoável” em situações de aprendizagem. Por enquanto, vou usando mais a observação e um pouco do instinto também. De todo modo, a neurociência, que eu tenho acompanhado com muito interesse nos últimos anos, parece estar encontrando algumas respostas bem interessantes, com sugestões bastante práticas. Resta saber quando nós – professores e aprendizes – vamos começar a ouvir os neurocientistas e aplicar os novos conhecimentos no nosso dia-a-dia, mesmo que algumas delas desafiem o nosso tão estimado senso- comum (ou o nosso ego de detentores de todo o saber). Bem, eu escrevi tudo isso sobre aprendizagem para introduzir uma experiência muito rica e gratificante 63 Histórias de Aprendizagem que eu tive quase por acaso, e que abalou todas as premissas básicas que eu seguia sobre o que seria uma professora séria. Fui convidada para ensinar Informática Básica a um grupo de professores da rede pública em serviço. Eu tinha pouco mais que trinta anos, e eles eram um bando de cinquentões. Para piorar, estavam estressadíssimos. Um dos motivos para tanta irritação era o fato de eles estarem sendo praticamente “obrigados” a abrir mão das suas férias para fazer aquela graduação. Pairava sobre eles a ameaça de, no mínimo, começar a ter dificuldades em manter os seus empregos e as suas posições nas escolas, caso não completassem um curso superior até uma determinada data, determinada pela Lei de Diretrizes e Bases. O segundo motivo era que a maioria estava encontrando imensas dificuldades nas disciplinas. Muitos deles davam as mesmas aulas há anos, e tinham desaprendido como se estuda. Informática Básica tinha tudo para ser um grande monstro extra no pesadelo deles. Muitos deles nunca tinham mexido em um computador. Alguns tinham tentado e desistido, humilhados pela agilidade impaciente de filhos e alunos. Quando eu entrei na sala de aula
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