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LITERATURA COMPARADA
AULA 1 – PRIMEIROS PASSOS
Hoje em dia, pode-se dizer que a Literatura Comparada é um campo de estudos, bem mais do que apenas uma disciplina. Isto porque seu objeto de estudo se mantém em diálogo com uma quantidade de grande de saberes, agregando contribuições de várias disciplinas diferentes.
A Linguística, a Semiótica, a História, a Sociologia, a Psicanálise, a Filosofia, entre outras, são chamadas a contribuir em nosso esforço para uma compreensão mais profunda de nossos objetos de estudo, os textos literários.
Portanto, estudar Literatura Comparada equivale a abrir um cofre de múltiplas possibilidades. Impossível dizer tudo no decorrer de um único semestre. Neste caso, apresentaremos algumas ferramentas importantes para que os alunos interessados no assunto possam seguir viagem por conta própria. 
Antes de entrar no objeto de nosso estudo em si, cumpre destacar um aspecto: estudar Literatura Comparada é algo que não precisa ser um processo complicado, mas não tem como deixar de ser complexo. No senso comum, vemos as pessoas confundirem as duas coisas com muita freqüência. A diferença está no fato de que a complexidade reside na riqueza de detalhes, no emaranhado de diferentes informações, a serem processadas por nosso cérebro. Então, a vida humana é complexa e nada podemos fazer para evitar isso.
Mergulhar a funda da compreensão dos fenômenos humanos implica em aceitar o convite de conviver com a complexidade. Nada disso tem a ver com a complicação, que consiste na dificuldade de alguém com dificuldade de se fazer entender por seus ouvintes ou leitores. Por mais complexo que seja um assunto, ele pode ser explicado de modo claro acessível. Por outro lado, as coisas mais simples podem se tornar um tormento se forem explicadas sem clareza.
Devemos, então, partir do princípio de que todo processo de construção de conhecimento, em área ou ciência, é complexo. Assim, nossas explicações sempre buscarão serem acessíveis a iniciantes. Lidaremos com a complexidade buscando evitar que nosso conteúdo seja complicado. Mas, por outro lado, ressaltamos o fato de que é extremamente necessário que os alunos não confundam a clareza das explicações com o empobrecimento de uma disciplina que sempre envolve múltiplos aspectos.
Outro aspecto a ser considerado é que o conceito de “Literatura Comparada” está sujeito à constante ação do tempo. Ou seja, não é possível dizer o que é nossa disciplina de modo pronto e acabado, pois a compreensão que temos a respeito dela evolui com o passar dos anos, seguindo os rumos do processo histórico. O mesmo se dá com todos os demais conceitos elaborados pelo cérebro humano para compreender o mundo ao seu redor.
Portanto, não espere uma resposta pronta para a pergunta “o que é literatura comparada?”. Foi por isso mesmo que evitamos usar este questionamento como ponto de partida de nossas reflexões neste capítulo. As respostas a que chegaremos ao longo de nossos estudos são provisórias, são parte de uma construção coletiva, que os homens vêm realizando ao longo do tempo, em particular dos últimos dois séculos.
As Comparações no Cotidiano
A comparação como método de compreensão dos fatos da vida tem sido usada pelos homens há milhares de anos. É um recurso usado e aplicado aos mais diversos aspectos da vida. Os motivos para isso podem ser compreendidos sem dificuldade. Diante de uma informação nova, as pessoas buscam uma referência em algo que já conhecem para facilitar o ato de compreender o que antes não conheciam.
Um exemplo retirado do cotidiano poderá esclarecer melhor.
Vamos supor que dois amigos entrem juntos numa concessionária de veículos. João conhece bem os novos lançamentos de automóveis e tenta explicar algumas novidades a seu amigo Mário. A certa altura dos acontecimentos, ele comenta: “O modelo Sedan 2010 é tão forte quanto o anterior, porém economiza mais combustível”. Esta frase tem sua eficácia garantida na medida em que João parte do pressuposto de que seu amigo conhece bem o modelo Sedan mais antigo. Sendo assim, fornece duas informações sobre o modelo mais novo:
Ele é tão forte quanto o outro;
Ele é mais econômico.
De posse dessas duas informações, Mário tem a oportunidade de começar a entender o novo modelo do automóvel em questão. Isso o ajudaria a efetuar uma avaliação mais completa sobre o assunto, mesmo que ele não se limite a confiar na palavra do amigo.
O recurso a comparações tem um papel importante na cultura humana, em geral. De tal modo que grande parte dos ditos populares, que reúnem a sabedoria popular, acumulada ao longo de séculos, se constrói por meio de comparações.
Veja o exemplo de duas estudantes comentando uma prova que tenham considerado particularmente difícil...
“Menina, que desastre... Fiquei perdida que nem cego em tiroteio”.
Bem, temos certeza de que uma situação como esta jamais afetará os nossos alunos, tendo em vista que eles sempre estudam com afinco e aproveitam ao máximo os conselhos e orientações contidos em nossas aulas. Mas também existem os ditados populares em que o elemento lúdico, a brincadeira e a ironia conferem riqueza aos textos nos quais se encaixem. Veja alguns exemplos:
O beijo é como cigarro: não sustenta, mas vicia.
O chifre é como consórcio. Quando você menos espera, é contemplado.
Sogra é como onça: todos temos que preservar, mas ninguém quer ter em casa.
Analisando estes exemplos, é possível verificar que todos eles se constroem em dois momentos: num primeiro, faz-se a comparação, que deixa no ar uma certa dose de mistério; num segundo, tudo se elucida, e o instrumento para se chegar a isso é uma frase sucinta, que se oferece como a solução para o mistério. Por mais que não concordemos com o teor das associações de idéias aí realizadas, temos que concordar que os ditos populares são eficazes por transmitir uma mensagem de modo ligeiro e direto.
Sua eficácia discursiva depende desta agilidade, bem como da capacidade de se adaptar aos mais diversos contextos. Por conta desta capacidade de adaptação é que eles vivem sendo lembrados em nosso dia a dia.
A Comparação Como Instrumento de Análise e Aprendizado
Creio que o que expusemos até aqui deixou claro como a comparação é um processo que se apresenta de modo constante em variados aspectos de nossa vida. Ela tem sido sempre usada como um modo de facilitar nossa compreensão do mundo. Agora, estamos preparados para mergulhar um pouco mais na consideração da importância da comparação como instrumento de construção do conhecimento acadêmico.
Comparar textos sempre foi recurso utilizado por professores e ensaístas para levar seus alunos e leitores a uma melhor compreensão dos fatos. Mas quando tomamos a comparação como método, um hábito constante, como um instrumento de trabalho nos estudos literários, aí sim, estaremos praticando Literatura Comparada. Como diz Tânia Carvalhal, a comparação nunca é um fim em si, mas um meio que visa a uma melhor compreensão de nosso objeto de estudo.
Outra importante observação, da mesma autora, é que nossa disciplina não é a única a trabalhar a partir de comparações, mas a diferença é que fazemos isso de modo sistemático, constante e visando elucidar questionamentos levantados pelo estudiosos ao longo de sua investigação.
Para dar uma noção do trabalho que temos pela frente, podemos considerar o seguinte fragmento da canção “Os argonautas”, de Caetano Veloso.
Para uma plena compreensão da mensagem transmitida no texto, vale considerar o andamento lento, quase melancólico da música. Aliás, nunca considere a análise do texto de uma canção ignorando o fato de ter sido criada em íntima associação com a música.
Evite retirar a letra da canção do ambiente em que nasceu. Não há dúvidas sobre a riqueza poética do texto apresentado, ele não foi concebido para a leitura silenciosa, mas para a audição, ou mesmo para a leitura em voz alta, para ser cantado. Não é à toa que, com freqüência, quando nos deparamos com letras de canções que conhecemos,nos pomos a cantar silenciosamente, ao invés de ler, simplesmente.
Mais adiante, teremos oportunidade de trabalhar melhor com a riqueza do diálogo entre o texto poético e outras artes, como a música. Por enquanto, vamos no limitar a essas observações, por serem indispensáveis para uma melhor apreciação do texto em análise.
Outra questão importante para uma plena compreensão do texto de Caetano Veloso é prestar atenção aos elementos que ele busca em outros textos. Em primeiro lugar, o título da canção remete diretamente ao mito grego dos Argonautas, um grupo de heróis que percorre os mares com a finalidade de cumprir uma missão extremamente difícil: achar o velocino de ouro, objeto raro e sagrado, um talismã que garantia poder a quem o conquistasse. Nesta busca, sobreviver era menos importante que atingir o triunfo.
A leitura do texto da canção se enriquece ainda mais se for levado em conta que seu refrão cita um dos textos mais conhecidos da obra do poeta português Fernando Pessoa, do qual transcrevemos um fragmento:
Palavras de Pórtico
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para casar com o que sou: viver não é preciso; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) e lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. (In; Pessoa, Fernando. O eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 15)
Assim, podemos perceber que, por todo o tempo estivemos considerando um texto que não fala das aventuras dos marinheiros, de um modo geral, sua fome por aventuras, seu destemor diante dos perigos, mas, de modo mais específico, das aventuras dos marinheiros portugueses da época das grandes navegações, para quem o chamado do mar era mais forte do que a própria necessidade de garantir a sobrevivência.
Mesmo enfrentando os maiores perigos, insinua o texto de Fernando Pessoa, esses marinheiros realizaram façanhas de que toda a humanidade pode se orgulhar. Entre elas, destaca-se o processo de ocupação e posterior colonização do Brasil, a começar pelo nosso descobrimento, obra da frota de Cabral, em 1500.
Desta forma, percebemos como a canção de Caetano é um tributo aos valentes navegantes lusos, sem os quais não estaríamos aqui para continuar a tarefa de construir uma nova nação. Além disso, numa leitura paralela dos textos de Pessoa e Caetano, fica-nos a clara sugestão de que nós, brasileiros, assim como nossos irmãos portugueses, somos importantes para o conjunto da espécie humana, para além de fronteiras nacionais.
Além disso, podemos aplicar ao conceito de “navegar”1 um sentido que se aplica ao cotidiano de cada um de nós, a qualquer momento. Assim, torna-se possível uma nova leitura de ambos os textos, tanto o de Pessoa, como o de Caetano, menos comprometido com o conhecimento da história de nossa formação social.
1 O verbo “navegar” pode ser interpretado por seu potencial metafórico, como algo relativo à coragem de enfrentar os desafios da existência. Por outro lado, “viver” seria passa pela existência sem aceitar tais desafios, ter uma postura mais acanhada e calma, ainda que menos interessante. 
 Se olharmos ao nosso redor, podemos verificar que bem poucas são as pessoas dispostas a deixar o aconchego seguro do “viver”, em busca do incerto e apaixonante “navegar”. Desta forma, o chamado contido na frase “navegar é preciso, viver não é preciso” representaria uma tentativa de romper a mesmice do cotidiano, convidando cada um de nós a aproveitar a vida ao máximo. Como resultado da comparação que fizemos entre os dois textos, destaca-se o fato de que o dilema entre “navegar” ou simplesmente “viver” ultrapassa os limites do tempo e se manifesta nas mais variadas épocas. O tempo passa, mas o ser humano continua diante dos mesmos desafios de sempre.
Bem, fica bem claro que nada disso teria sido percebido se considerássemos como objeto de análise apenas o texto de Caetano. Nossa compreensão sobre o seu trabalho ficaria incompleta sem levarmos em conta o diálogo que ela estabelece com outros textos. Mas a canção estabelece este diálogo de modo bem explícito.
Tomemos, agora, outro exemplo. Em Dom Casmurro, Machado de Assis nos chama a atenção para a predisposição de Bentinho ao ciúme com uma referência à peça Otelo, de Shakespeare, famosa por também abordar como tema central o ciúme doentio de um homem, que se torna, mesmo, capaz de matar sua esposa, Desdêmona. Tomemos um trecho do romance de Machado. No capítulo LXI, Bentinho perguntara a José Dias, antigo amigo da família, como Capitu ia passando, já que não a via fazia algum tempo. A resposta virá no capítulo seguinte, intitulado “Uma ponta de Iago”.
Tal observação se justifica na medida em que corremos o risco de considerar as obras de Machado ou de Caetano menores, na medida em que retomam temas ou motivos já trabalhados antes, respectivamente, por Shakespeare e Fernando Pessoa. Nada mais falso e apressado do que considerar os fatos desta forma. Ao atualizar um tema já tocado por outra mente genial no passado, um autor mais recente pode ou não fazer um trabalho de qualidade inquestionável. Eles estão pagando um tributo à tradição, mas também enriquecendo esta mesma tradição, na medida em que suas obras oferecem um novo olhar sobre os antigos temas.
Ademais, não são esses os únicos textos literários que têm no ciúme o mote central. Muito pelo contrário. A prosa de ficção de todos os povos é pródiga de exemplos do tipo. Ou seja, a referência a Shakespeare pode ajudar-nos a entender muitas dessas obras, mas também não é obrigatória. Tudo depende do contexto. Para o caso do romance que citamos, devemos lembrar que foi o próprio Machado quem nos sugeriu tal associação, pela escolha do título do capítulo.
A única referência direta à tragédia de Shakespeare se encontra no título do capítulo. Iago cumpre um papel decisivo na peça, ao inocular nos ouvidos de Otelo o veneno do ciúme. A partir daí, o fragmento que citamos trabalha a maneira como este veneno age no coração de Bentinho, de tal modo a se tornar uma obsessão para ele, a ponto de corroer sua alma pelo resto da vida. José Dias faz o papel de Iago, no texto machadiano. Porém, é preciso ter cuidado, pois existem nítidas diferenças entre os dois personagens. Enquanto na peça, Iago se desdobra em repetir suas suspeitas até levar o valente Otelo ao crime, no romance José Dias é bem mais sutil. Tendo lançado pequena dose do veneno, retira-se de cena. O que se vê a seguir é um Bentinho que sucumbe à sua própria fraqueza.
Nem sempre os paralelos entre diferentes textos literários poderão se estabelecer com a mesma facilidade. Na sequência de nosso trabalho, teremos oportunidade de verificar o quanto pode se tornar interessante e desafiadora a tarefa de um comparatista. Tudo virá a seu tempo.
Bem, o que tivemos até aqui foram pequenos exemplos de como podem render os estudos comparatistas. Sem demonstrar ainda uma grande preocupação com a questão do método, procuramos deixar claros alguns princípios que norteiam nossa atividade. Por enquanto, o importante é deixar estabelecida a importância do comparatismo como recurso indispensável para aprimorar nossa capacidade de conhecimento e de análise sobre Literatura. 
AULA 2 – O NASCIMENTO DA LITERATURA COMPARADA
Na aula anterior, tivemos a oportunidade de observar que nossa disciplina está ligada diretamente aos rumos da História do Pensamento, de um modo geral. 
Nela se refletem sempre tendências importantes das Ciências Humanas, em cada época. Nesta aula, estudaremos com mais detalhes alguns dos momentos decisivos do longo percurso histórico de surgimento e afirmação da Literatura Comparada.
Desta forma, não será novidade afirmar que a história da Literatura Comparada vem acompanhando os rumos da história social,política e cultural do Ocidente ao longo do tempo. Desta forma, acontecimentos marcantes, como as duas guerras mundiais do século XX, para ficar num exemplo bem marcante, tiveram um impacto decisivo nos rumos da disciplina.
Propor questionamentos, formular hipóteses e, por fim, construir argumentos para confirmar ou não as hipóteses levantadas.
O domínio sobre um método fará com que ele tenha mais segurança em suas conclusões, levando-as para além de um puro e simples “eu acho que”, ou de julgamentos de valor superficiais. Esta necessidade faz com que a história da Literatura Comparada acompanhe sempre de perto a história da Teoria Literária. Em consequência disso, vamos lidar com uma certa diversidade metodológica. Um mesmo trabalho terá sempre a possibilidade de ser conduzido de várias maneiras, dependendo da escolha teórica que fizermos.
Portanto, para um melhor aproveitamento de nosso conteúdo, será útil para o aluno revisar em linhas gerais o que já estudou nas aulas de Teoria. Mas vamos por partes. Não precisa ser tudo de uma vez. Por enquanto, não vamos nos ocupar ainda das correntes de pensamento mais recentes do comparatismo, que se caracterizam por um manejo mais sólido dos instrumentos teóricos na condução de seus estudos. Por enquanto, de todo o longo trajeto de consolidação da disciplina, estudaremos apenas suas etapas iniciais: Manifestações ancestrais e Tempos de afirmação.
Este é o longo período que antecede ao processo de afirmação da Literatura Comparada como disciplina acadêmica. A expressão “manifestações primitivas” foi evitada, com o propósito de se prevenir a possibilidade de interpretações errôneas e apressadas. O hábito de comparar textos oriundos de diferentes tradições culturais é muito antigo.
Já era praticado na Antiguidade, por exemplo, quando os intelectuais romanos se curvavam diante dos tesouros poéticos da Grécia. Neste contexto, o verbo reflexivo “curvavam-se” deve ser entendido com duplo sentido, pois os romanos não somente se debruçaram para analisar os escritos da cultura grega, como também tinham grande apreço por esta tradição.
Muito tempo depois, no período renascentista, o empenho em compreender os clássicos levou estudiosos da Europa a realizar estudos comparativos. Entretanto, tais iniciativas ainda não tinham um caráter de estudo sistemático. Além disso, algumas vezes elas tendiam a uma avaliação hierarquizante. 
Ou seja, comparavam-se textos de nações e de épocas diferentes mais para buscar a afirmação da superioridade de uma cultura sobre a outra, propósito que hoje não se considera mais como digno de atenção.
A respeito das comparações entre textos de nações e de épocas diferentes, a professora Sandra Nitrini tece interessantes considerações, que merecem nossa atenção:
"A produção do conhecimento histórico deveria limitar-se a reproduzir a informação tal como estava registrada nas fontes, que para eles eram representadas apenas pelos  documentos oficiais emitidos pelo Estado ou, no máximo, pela Igreja, embora as de maior confiabilidade fossem as relacionadas apenas ao Estado que possuíam o real caráter de fonte primária. Os historiadores positivistas trataram especialmente da história dos fatos políticos e ideológicos."
Entre as palavras-chave do fragmento apresentado, pode-se destacar “apreciar” e “mérito”. Os antigos estudiosos tinham por meta, basicamente, avaliar a qualidade dos textos, quando se dedicavam a trabalhos de comparação. Em geral, partia-se do pressuposto de que os grandes mestres do passado eram modelares, enquanto os textos mais recentes deviam ser submetidos a um acurado exame, a fim de se constatar em que medida mostravam-se capazes de se “comparar”, ou seja, de repetir o nível de excelência alcançado pelos mais antigos.
Um aspecto para o qual a autora nos chama a atenção é a ausência do que ela chama de “projeto de comparatismo elaborado”, que podemos traduzir por parâmetros teóricos que pudessem ser usados pelos estudiosos para alcançar resultados efetivos em seus esforços de compreensão do material pesquisado. O nível de excelência dos antigos não era submetido a um exame mais atento, por faltarem instrumentos de análise.
Um exemplo de obra de cunho comparatista elaborada no final do século XVI é dado por Tânia Carvalhal, no primeiro capítulo de nosso material didático. Trata-se de um texto de Francis Meres, o Discurso comparado de nossos poetas ingleses com os poetas gregos, latinos e italianos (1598). Nota-se pelo título o apreço que os intelectuais ingleses tinham não somente pelos tesouros da antiguidade clássica, como também pelas obras da Itália renascentista. 
Foi assim que a cultura europeia que emergiu do final da Idade Média se construiu a partir da revalorização das grandes obras da Antiguidade. Foi com base neste material que as novas literaturas europeias se afirmaram.
É preciso muito cuidado ao avaliar de que modo a influência dos antigos se fez presente. Se tomarmos como exemplo a obra épica Os Lusíadas, de Camões, marco de afirmação de maturidade da Literatura Portuguesa, veremos a presença de elementos tomados de empréstimo dos antigos textos épicos da Grécia e de Roma: a Ilíada e a Odisseia, de Homero e a Eneida, de Virgílio. Mas não se trata de copiar o que os antigos deixaram. Afinal, o texto camoniano responde aos anseios de seu próprio tempo. Busca uma expressão singular para cantar as glórias do povo lusitano.
Assim, podemos afirmar que a Europa renascentista assimilou o legado da tradição clássica, mas retrabalhou esta herança. Estamos muito distantes da cópia pura e simples dos modelos. A cópia pura e simples não resultaria na criação de obras literárias dignas de responder às inquietações da sociedade europeia. Portanto, estamos muito distante de um processo de simples cópia dos modelos consagrados.
Camões escreve um texto capaz de se comparar às obras épicas de Homero e Virgílio, mas de modo algum ele se limita a copiar os procedimentos da poética do classicismo antigo. Pelo contrário: pelo fato de ser escrito em português, e não em latim, como ainda era corrente na época, Camões atende à necessidade de afirmar a identidade cultural de seu povo por meio da expressão literária.
Uma das marcas peculiares de Os Lusíadas é o fato de não afirmar o heroísmo de modo individualizado. Isso o torna diferente de seus modelos vindos da Grécia ou Roma antigos. Enquanto nas obras homéricas a atenção recai sobre as atitudes grandiosas de homens especiais, Aquiles, Heitor e Ulisses, na obra de Camões todo o povo português é cantado, sendo reconhecido em sua contribuição à grande aventura coletiva das grandes navegações.
A etapa seguinte da história da Literatura Comparada remonta ao início do século XIX e corresponde ao período em que a Europa ensaiava seu processo de industrialização. Nesta época, o interesse por comparações era comum a outros campos do conhecimento humano, como as ciências naturais. Aplicada aos estudos literários, fez surgir uma perspectiva de cunho cosmopolita, ou seja, uma atenção à contribuição que cada povo dava ao patrimônio cultural de toda a humanidade.
Uma nova mentalidade surgia então. Já na última década do século XVIII, impunha-se a necessidade de superar a visão de que os modelos consagrados pela tradição eram infalíveis. Poetas e pensadores começavam a alimentar um interesse maior pelo presente e pelo futuro do que pelas glórias do passado.
Até então, quase toda a literatura clássica tendia a valorizar o Antigo, os bons tempos que já havia passado, a Idade do Ouro na qual somente os heróis e alguns afortunados viveram, e para a qual todos os homens sonhavam voltar assim que o pesadelo do presente passasse.
Mas a revolução industrial trouxe o triunfo da mentalidade capitalista, com um olhar mais voltado para o agora e o futuro. O classicismo perdia força, dando espaço ao surgimento do período romântico, no qual o conceito de evolução terá um papel decisivo.
Um olhar voltado para a frente, para o potencial humano de construir um novo destino, passou a dominaras almas a partir de então. Os burgueses possuíam capacidade de empreendimento e buscavam ampliar seus negócios. Para tanto, precisavam livrar-se das amarras da tradição, fundando um novo modo de enxergar o mundo, segundo o qual haveria mais liberdade para a criação e a imaginação.
Não demorou muito para que poetas e pensadores percebessem que a lógica burguesa atrelava este liberalismo a seus propósitos de enriquecimento. Daí a visão romântica se articular em torno de uma visão de repulsa à racionalidade do capitalista.
Mesmo assim, não houve um retorno aos padrões de pensamento do classicismo. Pelo contrário, os românticos opunham-se à racionalidade burguesa afirmando a imaginação como capacidade suprema do cérebro humano. Sua recusa em compartilhar dos princípios que norteavam os projetos de vida burgueses não foi completa, na medida em que também valorizavam mais a invenção do que o cultivo à tradição.
Além disso, há uma outra característica do romantismo de extrema importância para a consolidação da Literatura Comparada: o gosto pelo exótico, que levará estudiosos a se interessar pelo estudo da produção literária de povos distantes, para além das fronteiras das nações mais ricas da Europa.
Em 1816, dois intelectuais franceses, Noél e Laplace, publicam antologias de textos de literários de diversos países, sob o nome de Curso de literatura comparada, não mais do que coletâneas de trechos escolhidos, sem nenhuma preocupação em confrontá-los ou de estabelecer paralelos. Os responsáveis pelo volume deixavam por conta dos leitores a tarefa de chegar a qualquer conclusão.
Pode parecer muito pouco, mas se consideramos o contexto histórico em que tal iniciativa se deu, temos que concordar que foi um avanço. No começo do século XIX, a Europa assistia a um processo de afirmação das nacionalidades e passava por um momento de intensa rivalidade e ressentimentos entre os diferentes povos do continente. Como resultado disso, eram constantes os conflitos armados, comprometendo os princípios fundamentais da suposta fraternidade que deveria existir entre os povos de tradição cristã.
A Literatura Comparada se propunha então como a disciplina disposta a estudar os fatos literários numa perspectiva transnacional, para além das fronteiras políticas ou mesmo culturais. Estava aberto o caminho para que o conjunto da produção literária da espécie humana pudesse ser considerado objeto de estudo de uma só disciplina.
Contudo, as limitações ideológicas da época impediam que os estudiosos enxergassem os fatos para além da Europa. Um passo havia sido dado, mas ainda um passo pequeno.
Bem, diante de uma situação como esta, o simples fato de se organizar antologias já assumia um caráter de tomada de posição diante das contradições da época.
Desta forma, a Literatura Comparada nasceu com vínculos bem fortes com a política, na medida em que servia de veículo à proposição de um ideal de paz e concórdia. Ou seja, a expressão Literatura Comparada nasceu antes de qualquer método de análise comparativo em si. Mas, desde o início, existe o propósito de se contrapor à mentalidade da época, de nacionalismo exagerado e clima geral de guerra a qualquer momento.
Era como se o comparatismo funcionasse como um necessário contraponto ao espírito de afirmação das identidades nacionais. Assim, por exemplo, se França e Inglaterra se mantiveram num clima de rivalidade armada nas primeiras décadas do século XIX, os estudos comparatistas forneciam uma medida do quanto a literatura inglesa devia à francesa em termos de influência, de tal modo que ambos os povos possuíam um patrimônio em comum que não podia ser desprezado. O mesmo raciocínio poderia ser estendido às relações entre franceses e alemães, ainda mais tensas durante todo o século.
Outros momentos de afirmação da disciplina no mesmo século e ainda na França: Abel-François Villemain deu maior divulgação à expressão “literatura comparada” em seus cursos sobre literatura do século XVIII que ministrou na Sorbonne em 1828-1829, como também em seu livro Panorama da literatura francesa do século XVIII. Também J.-J. Ampère, em seu Discurso sobre a história da poesia (1830), refere-se à "história comparativa das artes e da literatura. A primeira cátedra de literatura comparada surgiu na França, em Lyon, em 1887.
Nos primeiros tempos, a disciplina foi dominada por pesquisas que punham em diálogo autores de nacionalidades diferentes. O objetivo era traçar paralelos, em busca de um saber capaz de ultrapassar fronteiras. A Literatura Comparada funcionaria, então, como uma instância intermediária entre cada literatura nacional, estudada em separado, e a literatura geral, objeto de estudo bem mais ambicioso, no qual poucos se aventuravam. 
Entretanto, o comparativismo de então tinha sérias limitações:
Uma delas era a tendência a hierarquizar as literaturas, tendo como ponto de honra a superioridade das literaturas europeias sobre as demais e da francesa, em particular, sobre as outras do continente.
Do ponto de vista da atitude crítica, a disciplina era tributária do atraso em que se encontrava a Teoria da Literatura até então. Havia pouca profundidade teórica em tais estudos.
Além disso, tudo, nas obras, tendia a ser explicado como resultado da influência do meio, da raça ou do clima. É nítida a presença de um ideário marcado pela presença da corrente filosófica positivista no comparatismo francês, e tal situação perdura até o início do século XX, período em que a disciplina vai se instalar como uma cadeira regular em uma quantidade cada vez maior de universidades.
Deste modo, a visão evolucionista esbarrava na visão etnocêntrica, ou mais precisamente eurocêntrica, que apontava a civilização europeia como modelo ideal a ser copiado por todos os demais povos do mundo. Devemos considerar que antes, na primeira leva de colonialismo europeu (séculos XV a XVII), os mercadores ibéricos haviam imposto aos povos americanos a visão de que Deus os escolhera para levar ao resto do mundo a verdade cristã. No século XIX, o capitalismo industrial levou a uma nova onda colonialista, na qual a ciência era usada para justificar a superioridade e o predomínio dos novos donos do mundo, os franceses e ingleses.
Ou seja, o discurso científico substituía o religioso como justificativa para a exploração dos outros povos. Porém, não se abandonava a perspectiva de que a Europa é o centro do mundo, o continente cuja cultura deveria ser copiada por todos os demais povos do mundo, se estes melhorar, chegar a um nível de civilização superior. Para tanto, seria necessário esperar o avançar do século XX, a fim de assistir ao início de superação desta mentalidade. A história das ideias mostra como foi difícil romper barreiras, ultrapassar preconceitos.
O mundo em que vivemos, marcado pelas consequências da descolonização, não mais comporta uma visão eurocêntrica. Entretanto, ainda é grande o esforço dos estudiosos no sentido de livrar-se desta herança, quando se propõem a análises que confrontam textos e autores oriundos de diferentes partes do mundo, de diferentes tradições culturais.
Um aspecto desta problemática é representado pelos estudos de poesia oral, algo extremamente importante se levarmos em conta que em grande parte das nações do mundo a população possui um índice de letramento incipiente, onde a escrita não é uma prática universalizada. Em tais países, o uso artístico da palavra se vale da oralidade como instrumento primordial.
É o que acontece com a poesia de grande parte da África, ou mesmo aqui no Brasil, com a produção das classes desfavorecidas. Para os estudiosos informados numa visão eurocêntrica, por mais criativa e interessante que seja a poesia oral, ela deve despertar a atenção apenas dos folcloristas, nunca dos estudiosos de literatura.
Os conflitos, contradições e mudanças trazidos pelo advento do novo século marcaram profundamente os estudos comparatistas. Ao longo das próximas aulas estudaremos algumas destas mudanças. Por ora, concentramos nossa atenção em alguns tópicos.Um deles é a consolidação de uma cultura do audiovisual, que veicula conteúdos os mais diversos, como é o caso dos filmes. Resultado da aplicação de avanços tecnológicos proporcionados por descobertas científicas que já estavam em curso desde o século XIX, como a fotografia, o cinema e a gravação dos sons, permite o desenvolvimento da produção em série de artigos de consumo cultural. Desta forma, atendia-se a um público que não parava de crescer, já que a população mundial aumentava devido aos avanços da ciência médica.
Um dos exemplos disso é o cinema. A velha arte de narrar histórias ganha, assim, novos contornos. A literatura de ficção passa a conviver com a emergência desta nova realidade: a palavra escrita vai deixando de reinar soberana e precisa aprender a dividir seu espaço com as novas modalidades de narrativa. Para os comparatistas, os novos tempos se oferecem como um fértil campo de estudos.
É bem verdade que a cultura do audiovisual se articula com os interesses do capitalismo, constituindo um novo ramo de negócios, a indústria cultural. Assim, sofre das pressões inevitáveis no sentido de apresentar baixo grau de invenção e predomínio de mensagens já consagradas, os clichês de consumo fácil. Um filme custa caro e os investidores não revelam interesse em assumir os riscos de um eventual prejuízo provocado pelo recusa do grande público em consumir seu produto. Assim, sempre dão preferência à repetição de fórmulas consagradas de sucesso garantido.
Portanto, sempre é preciso cuidado ao analisar as relações da Literatura, arte que se alimenta na inovação estética e no primado da imaginação, com as novas modalidades. Felizmente, a despeito de se constituir como indústria, o cinema ganha contornos de arte, na medida em que também passa a ser usado como veículo para experiências estéticas. O que veio a ser conhecido como “cinema de arte” afirma-se como um importante veículo para a expressão da sensibilidade humana ao longo do século.
O mesmo se pode afirmar com relação à canção. 
A tecnologia das transmissões radiofônicas vem a se constituir como fundamental para a difusão de um gênero que, a despeito de ser muito antigo, não atraía a atenção dos pesquisadores. 
No Brasil, conhecemos esta realidade de perto, uma vez que uma parte considerável de nossa produção poética de qualidade é criada para ser interpretada no palco, antes de ser lida em livros.
Bem, o confronto entre a produção literária e as outras artes, particularmente as novas modalidades da era do audiovisual passa, cada vez mais, a ser incorporado como um campo de pesquisas para a Literatura Comparada. Sendo assim, a disciplina precisa repensar seus rumos, deixando de lado uma atenção voltada unicamente ao confronto entre diferentes literaturas nacionais.
Outra importante alteração de rumos se dará na medida em que as contribuições das novas correntes de Teoria da Literatura, como o formalismo ou o estruturalismo, passam a ser consideradas nos estudos comparatistas.
A perspectiva de cunho positivista ainda resiste nas primeiras décadas do século, mas vão perdendo o terreno até que em 1958, o crítico estruturalista tcheco René Wellek, durante um congresso internacional da disciplina, ponha em cheque os fundamentos da visão antiga, e proponha um realinhamento de rumos. Os aspectos centrais deste debate serão abordados em nossa próxima aula, destinada a explicar melhor os fundamentos teóricos trabalhados por nossa disciplina nos dias atuais.
AULA 3 – ALGUNS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA LITERATURA COMPARADA
Para efeitos didáticos, alguns manuais de Literatura Comparada, incluindo o de Tânia Carvalhal, que tomamos como obra de referência, apontam para a existência de três escolas de pensamento teórico:
Escola Francesa
O nome de “escola francesa” é dado ao conjunto de pesquisadores orientados pelos padrões historicistas e deterministas que tomaram corpo durante o século XIX e permaneceram com grande influência na primeira metade do século XX. Ainda em 1931, um dos mais interessantes manuais de Literatura Comparada, o de Paul van Thiegen, busca fundamentar seus procedimentos de análise nos padrões que vinham se consagrando no trabalho dos autores mais antigos deste grupo.
Escola Norte-Americana
Por “escola norte-americana”, designamos o conjunto de autores que passaram a aplicar ao comparatismo as lições das grandes correntes de Teoria da Literatura da primeira metade do século XX, como o formalismo russo, o estruturalismo e o neocriticismo. Para este grupo, grande importância tem a contribuição de René Wellek, cujas propostas serão explicitadas adiante.
Escola Soviética
A designação de “escola soviética”, talvez a mais inadequada das três, diz respeito às contribuições que vários autores têm dado a uma renovação dos estudos literários de inspiração marxista. Tal processo tem seu curso desde, pelo menos, os anos de 1930. Vários são os nomes que podem ser lembrados aqui, e nem todos tem sua origem em países do antigo bloco soviético. Muito pelo contrário, a contribuição de pensadores marxistas em atividade no Ocidente não pode ser negligenciada, sendo muitas vezes indispensável, como no caso dos pensadores da Escola de Frankfurt, por exemplo.
Desde o início, é preciso ter cuidado com tal classificação. Por conta disso, já tomamos a iniciativa de colocar aspas em todas essas designações. Por trás de cada uma dessas, assinalamos a presença de um corpo de doutrina teórico.
Devemos, ainda, destacar, que esta divisão tripartite não dá conta da totalidade dos caminhos que têm sido trilhados pelos comparatistas. Outras correntes de pensamento também têm se afirmado, como reflexo das importantes alterações contextuais ocorridas na segunda metade do século XX.
Mas estas serão objeto de nossa atenção nas próximas aulas. Por enquanto, vamos expor alguns dos tópicos que ocuparam o debate entre as três “escolas” delimitadas acima. Com isso, já estaremos em contato com grande parte dos instrumentos teóricos de que se vale um comparatista em seu trabalho.
Alguns Pontos da Discórdia.
Um dos aspectos que mais chamam a atenção nas pesquisas realizadas pelos “franceses” é o fato de estes autores se interessarem somente pela comparação entre autores de nacionalidades diferentes. Assim, por um lado, o pesquisador que se interessar pela disciplina teria que se revelar um conhecedor da literatura das duas nações em questão. Por outro, ficaria impedido de verificar em que medida os diálogos entre autores da mesma nacionalidade podem se revelar importante e enriquecedor.
O que deveria ocupar a atenção de tal pesquisador seriam coisas do tipo: “Machado de Assis e os ingleses” ou “Balzac e Machado de Assis,” etc.. Sem desconsiderar a importância que tais diálogos tiveram, não somente para este autor, mas para todos os grandes nomes da Literatura Brasileira em seu tempo, não podemos deixar de lado o quanto limitadora era uma perspectiva de análise como esta.
Desta forma, um comparatista brasileiro que se interessasse, por exemplo, em se debruçar sobre o romance de Machado de Assis se veria limitado em sua capacidade de perceber o quanto este autor possa ter se enriquecido no contato com outros grandes romancistas brasileiros, como José de Alencar e Manuel Antonio de Almeida.
Outra exigência da “escola francesa” era a de somente levar em conta o diálogo entre produções literárias, não levando em conta a possibilidade de se analisar o diálogo entre textos literários, a produção de músicos, artistas plásticos, etc.
Nos dias atuais, grande parte dos estudos comparatistas se debruça justamente sobre a importância das trocas havidas entre a Literatura e as outras Artes. 
Felizmente, as duas outras tendências que apontamos já relativizam, ou mesmo, abolem tais limitações. 
De tal forma que, no ponto em que estamos atualmente, não existem mais estas barreiras para o trabalho de um comparatista.
Porém, um dos tópicos que mais ocuparam os debates comparatistas, desde o começo, é a questão das influências. 
Para os pesquisadores da escolafrancesa, esta é uma das questões fundamentais do trabalho de um comparatista – verificar em que medida um autor de nacionalidade alemã, por exemplo, tem sua obra enriquecida no contato com a literatura inglesa, ou vice-versa.
Um estudo que se intitulasse, por exemplo, “Goethe na Inglaterra” se destinaria essencialmente a constatar o quanto o genial escritor alemão influenciou seus pares no outro país. 
Assim, estudar Literatura Comparada era, essencialmente, detectar a presença de elementos que comprovassem a influência de um autor sobre outro, ou vários outros.
Para explicitar com mais clareza, podemos retomar um exemplo que já utilizamos em nossa primeira aula: 
O diálogo entre o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, e a peça Otelo, de William Shakespeare, tendo como principal aspecto a maneira como o ciúme destrói as relações afetivas.
Bem, o que nos garante que Machado foi leitor de Shakespeare é o próprio romancista brasileiro, que cita textualmente o dramaturgo inglês em seu livro. Se não fosse por isso, não teríamos certeza deste fato, pois afinal o ciúme em relacionamentos amorosos é um dado comum a muitas outras culturas e nacionalidades, está muito longe de ser uma particularidade que tenha sido “descoberta” por Shakespeare. A presença do tema nas duas obras poderia simplesmente constituir uma semelhança entre elas, e não a confirmação da tese da influência.
Contudo, para um comparatista à moda antiga, a presença de um tema caro a Shakespeare na obra de Machado já constituiria, por si mesmo, uma prova da influência que o autor brasileiro sofreu do inglês. Neste caso, a obra de Shakespeare tenderia a ser apontada como fonte comum onde teriam ido beber todos os narradores que colocassem a problemática do ciúme em suas tramas.
Obviamente, isso é uma visão simplista, se consideramos os padrões de análise em voga atualmente. Para tanto, é interessante verificar o que diz um dos autores considerados mais importantes do que Tânia Carvalhal chama de “escola soviética”, o pesquisador russo Zhirmunsky, quando chama a atenção para o fato de que o mecanismo da influência só merece ser levado a sério se tivermos clara a noção de que ele não é tão simples quanto parece à primeira leitura. Isso porque, para ele, só ocorreria de verdade a influência no caso de a literatura receptora (aquela que estivesse recebendo a influência) não ser capaz de elaborar uma formulação própria para o tema tomado de empréstimo.
Retomando nosso exemplo: a leitura de Otelo se revela fecunda na medida em que a obra de Machado articula uma formulação nova para a problemática do ciúme. Com efeito, podemos verificar em Dom Casmurro a importância central do tema do marido ciumento, como também da presença de um personagem que semeia a intriga, como faz o Iago da peça de Shakespeare. Trata-se de um amigo da família de Bentinho, José Dias. Porém, a maneira como o tema é trabalhado se revela bem diferente.
Em vez de insistir em sua intriga como Iago, o nosso intrigante lança o veneno somente uma vez. Dali para diante, é a mente doentia de Bentinho quem trabalha para dar à suspeita os ares de quase certeza. Disso podemos concluir que Machado de Assis é mais sutil que Shakespeare, trabalha o tema de maneira bem diversa.
Este é apenas um exemplo do quanto uma perspectiva teórica mais tradicional pode se revelar insuficiente. Ainda que debater as questões das influências e fontes seja importante, tal ato não pode ser resolvido de modo tão simplista, como queriam os comparatistas da escola francesa.
No caso do nosso exemplo, a leitura do diálogo entre as obras Otelo e Dom Casmurro não se esgota na constatação de que o romance brasileiro se valeu do empréstimo de um dos temas centrais do texto dramático britânico. Verificar em que medida Machado de Assis difere de Shakespeare no tratamento da temática é de fundamental importância para uma avaliação crítica séria sobre a obra do nosso romancista.
O Comparativismo em Crise
Durante o período em que predominou a “escola francesa”, os estudos comparados se mantiveram defasados com relação às novas tendências da Teoria da Literatura. Afinal, o formalismo russo dera seus passos iniciais pelos idos de 1916 e 17, as correntes de inspiração estruturalista surgem a partir dos anos 1930, e, no entanto, algumas de suas lições básicas só vieram a contribuir para uma renovação do comparatismo a partir da década de 1950, graças à atuação de René Wellek.
Coube a este autor a iniciativa de introduzir uma ruptura com o comparatismo tradicional, dando o passo inicial do que ficou conhecido como “escola americana” de Literatura Comparada. Em oposição aos velhos conceitos herdados do século XIX, centrados em critérios deterministas, Wellek propõe que os estudos literários comparativistas sempre tenham como ponto de partida uma leitura profunda dos textos, sem levar em conta somente fatores que lhe são externos, ou seja, ele atribui menos importância ao contexto social, ou mesmo a aspectos da individualidade do autor, entre outros aspectos externos ao texto.
Assim, considerações a respeito da vida pessoal do autor, ou mesmo do momento histórico em que viveu, perdem importância em nome de um método de análise centrado na obra literária em sua realidade material. Quando se analisa comparativamente diferentes obras, seria importante verificar em que medida aspectos como a maneira como se exprimem as personagens, como é tratado o tempo da narrativa, como se faz o uso de discurso direto ou indireto, o emprego de figuras de linguagem, destes ou daqueles procedimentos retóricos, entre outros aspectos, se fazem presentes em cada um dos textos postos sob as lentes da comparação.
As considerações externas ao texto perdem importância. Psicologia, sociologia, história e filosofia perdem importância como disciplinas de auxílio na análise interpretativa dos textos.
Bem, hoje sabemos que tais pontos de vista possuem suas limitações. Mas a argumentação de Wellek trouxe para a Literatura Comparada a vantagem de esvaziar a ênfase excessiva que se dava antes a certas questões. Para esta nova tendência, de nada adiantaria apontar a presença de influências ou empréstimos sem uma leitura atenta e profunda dos textos literários.
Para usar expressões do próprio Wellek, de nada adiantaria o pesquisador perder tempo com o “cálculo de créditos e débitos nacionais”. Assim, por exemplo, de pouco adianta para um pesquisador da Literatura Brasileira a mera constatação de que muito devemos aos franceses. Afinal, todos sabem o quanto as literaturas da América Latina sofreram influência francesa no século XIX e começo do XX. Sem uma leitura atenta de nossos autores, estaríamos contribuindo muito pouco para o enriquecimento da disciplina. Em vez disso, faríamos erudição vazia, sem conteúdo e propósitos claros.
Dentro da concepção de tal corrente de pensamento, o importante é o pesquisador se valer dos instrumentos teóricos das novas tendências em estudos literários para avançar na análise crítica dos tesouros de nossa literatura, adquirindo melhores condições para fazer estudos comparativos que nos coloque em diálogo com outras literaturas do mundo.
Já dissemos o quanto Machado de Assis tinha sido mais sutil no tratamento da temática do ciúme. Desta forma, ele estaria se distanciando de Shakespeare. Pois bem, os comparatistas tradicionais pouco se interessavam pela capacidade demonstrada pelos textos “influenciados”, ou seja, os mais recentes, em se mostrar originais, capazes de apontar novos rumos no tratamento dos velhos temas. Para eles, o mais importante era verificar semelhanças, portanto, “dívidas” dos autores mais novos com relação aos mais antigos. Hoje, sabemos o quanto isso é incompleto e inconsistente.
Outro ponto interessante na crítica de Wellek é a condenação que ele faz ao binarismo, ou seja, a prática tradicional de só tomar dois autores, ou duas tradições literárias de cada vez.
Ora, por que um estudo de literatura comparada sobre literatura não poderia articular análises que envolvessem autoresde três ou mais nacionalidades distintas? Ou mesmo comparar autores da mesma nacionalidade, mas de diferentes épocas? Tudo isso fazia o campo de atuação da disciplina se tornar muito restrito.
Os comparatistas da escola antiga tendiam a considerar qualquer estudo que envolvesse autores de mais de duas nacionalidades como tópico de estudo da “literatura geral”, restando à literatura comparada apenas as pesquisas binárias. Wellek ataca esta distinção entre a literatura geral e a comparada, mostrando que não existe um fundamento sólido para esta distinção.
Assim, em nossa análise sobre o ciúme na literatura, Shakespeare e Machado poderiam ter a companhia de outros autores, incluindo o romancista português Eça de Queirós ou o russo Dostoiévski. Ou, senão, poderíamos nos ater a debater à maneira como a temática é trabalhada em dois autores brasileiros. Neste caso, nossa análise se voltaria para o diálogo rico e interessante entre o já citado clássico de Machado e o romance São Bernardo, de Graciliano Ramos. Pois bem, estes dois possíveis caminhos, por não serem binários, estavam fora de questão para os comparatistas tradicionais.
Entretanto, Wellek foi mais eficiente em apontar as falhas do comparativismo tradicional do que em apontar novos caminhos. Sua contribuição foi mais deixar em aberto questões que outros autores tentariam responder depois. Mesmo suas lacunas serviram para revitalizar o caminho de autores que retomaram alguns dos aspectos mais controversos de suas ideias. Pois, como afirma Tânia Carvalhal:
“A literatura comparada, sendo uma atividade crítica, não necessita excluir o histórico (sem cair no historicismo), mas ao lidar amplamente com dados literários e extraliterários ela fornece à crítica literária, à historiografia literária e à teoria literária uma base fundamental. Todas essas disciplinas concorrem em conjunto para o estudo literário (...)” (CARVALHAL, p. 39)
O legado teórico de René Wellek, como do conjunto da produção teórica formalista e estruturalista, foi combater os excessos cometidos antes por uma concepção da literatura como resultante de condicionamentos externos.
Até o começo do século XX, considerava-se que as obras resultavam sempre de condicionamentos externos, como o contexto histórico e social ou aspectos resultantes da psique do autor. Buscava-se aplicar aos estudos literários generalizações similares às realizadas nas ciências naturais, como a biologia de inspiração darwinista, por exemplo.
Para remediar este mal, os formalistas e estruturalistas propuseram uma dieta rigorosa: excluir por completo o estudo do contexto na compreensão dos textos. Fizeram valer na análise literária critérios sincrônicos, em lugar dos diacrônicos. A influência da Linguística Estrutural era nítida e teve grande utilidade, na medida em que contribuiu para que a análise literária se libertasse dos condicionamentos anteriores.
Contribuiu para que a análise literária se libertasse dos condicionamentos anteriores. 
Superados os rigores desse tratamento, os estudos literários puderam saber aproveitar com mais equilíbrio as vantagens que poderiam advir de um diálogo com outras disciplinas, tais como a história, a sociologia ou a psicologia. No que diz respeito às contribuições da história para a compreensão dos fatos literários, as melhores contribuições viriam de autores de formação marxista, como veremos a seguir.
No ensaio “Crítica e sociologia (tentativa de esclarecimento)” com que abre sua importante obra Literatura e Sociedade, Antonio Candido propõe que o estudo de aspectos sociais numa obra literária pode adquirir novos contornos na medida em que deixarmos de considerar o meio social como algo externo à obra e passarmos a verificar que ele se realiza como um dos aspectos internos.
O meio social não é apenas o universo de referências, as condições sociais em que viveu o artista que produziu uma obra determinada. Abrimos as páginas de um romance e percebemos com clareza como o meio pode se tornar um dos elementos que fazem parte da obra. De tal modo que é impossível uma leitura crítica plena do texto sem considerar a presença daquele elemento.
O exemplo citado por Candido é bem esclarecedor: no romance Senhora, de José de Alencar, os interesses financeiros interferem nas relações afetivas, na medida em que o enredo nos dá conta da situação de um rapaz ambicioso que se submete a ser comprado como marido por uma rica herdeira. O conflito entre o interesse e os sentimentos se torna mais agudo ao tomarmos conhecimento do fato de que esta moça havia sido uma antiga namorada dele e que havia sido posta de lado por ser pobre na época. Isso a levou a buscar uma vingança após se tornar rica.
Bem, vemos como se torna aqui praticamente impossível separar a consideração de temas sociais de uma leitura adequada do romance. A denúncia da desumanização das relações afetivas confere ao texto de Alencar grande força expressiva. Por conta disso, ele é um dos grandes clássicos de nossa literatura. A própria estrutura da obra incorpora a denúncia, na medida em que o romance vem dividido em quatro partes que recebem títulos que aludem a momentos de uma operação financeira: “Preço”, “Quitação”, “Posse” e “Resgate”. Além disso...
"Se, pensando nisto, atentarmos para a composição de Senhora, veremos que repousa numa espécie de longa e complicada transação, – com cenas de avanço e recuo, diálogos construídos como pressões e concessões, um enredo latente de manobras secretas, – no correr da qual a posição dos cônjuges vai se alternando.
Veremos que o comportamento do protagonista exprime, em cada episódio, uma obsessão com o ato da compra a que se submeteu, e que as relações humanas se deterioram por causa de motivos econômicos. A heroína, endurecida no desejo da vingança, possibilitada pela posse do dinheiro, inteiriça a alma como se fosse o agente de uma operação de esmagamento do outro por meio do capital, que o reduz a coisa possuída. E as próprias imagens do estilo manifestam a mineralização da personalidade, tocada pela desumanização capitalista, até que a dialética romântica do amor recupere a sua normalidade convencional" (CANDIDO, 2006, p. 16).
Vemos, assim, que a reificação, processo pelo qual o ser humano se vê transformado em objeto, é trabalhada com extrema perícia no romance de Alencar. De tal modo que se torna um aspecto interno, um de seus elementos fundamentais, mesmo. Neste caso, torna-se complicado empreender qualquer trabalho de avaliação crítica da obra que não leve em conta o diálogo que o texto propõe com aspectos do contexto social em que viveu. O casamento por interesse era, com efeito, algo corriqueiro na sociedade brasileira na segunda metade do século XIX.
Bem, o mesmo poderíamos dizer de muitas outras obras literárias. Assim, como efetuar uma leitura minimamente aproveitável de Vidas Secas, o clássico de Graciliano Ramos, sem levar em conta a maneira como a seca e as injustiças sociais são elementos centrais da realidade nordestina?
Considerar o diálogo entre texto e contexto, portanto, é válido e, muitas vezes, se impõe como indispensável. No entanto, é importante estar atento contra a recaída nas simplificações de análise que eram tão frequentes no passado. Os autores do grupo apontado no começo desta aula como participantes da terceira escola de Literatura Comparada se utilizam das ferramentas teóricas do marxismo para empreender análises literárias com viés histórico e sociológico. O teórico russo Zhirmunsky é um deles, como também o é o próprio Antonio Candido, um dos pioneiros do comparativismo brasileiro.
A Linguística, a Semiótica, a História, a Sociologia, a Psicanálise, a Filosofia, entre outras, são chamadas a contribuir em nosso esforço para uma compreensão mais profunda de nossos objetos de estudo, os textos literários.
Existe ainda outro fator básico que interfere na relação entre a obra literária e o contexto social – as ideologias. Com efeito, todo discurso, inclusive o literário, sempre reflete os padrões ideológicos vigentes na época em queo autor viveu. Os modos de pensar e agir de uma época estão marcados em qualquer discurso que se produza em tal época. Visto sob este ponto de vista, todo texto literário testemunha padrões ideológicos. Isso se dá mesmo quando o autor não toma plena consciência do fato. Ler um clássico da literatura é sempre ter contato com o mundo em que ele viveu.
O pesquisador de Literatura Comparada precisa estar muito atento a este fato, pois com muita frequência analisa autores de épocas e culturas diferentes. Portanto, precisa estar atento às diferenças de cunho ideológico. Assim, uma leitura em paralelo de um autor brasileiro modernista e de um barroco não pode ser feita sem que se tenha em mente que um desses autores viveu na época de afirmação do capitalismo industrial no Brasil, ou seja, o começo do século XX, enquanto o outro viveu nos tempos do Brasil colônia, quando o país era submetido a um regime escravista. Um trabalho que demanda atenção ainda maior quando estamos comparando autores de nacionalidades diferentes.
Resulta disso que a Literatura Comparada demanda um conhecimento de história, ao lado do domínio das disciplinas mais diretamente ligadas ao trabalho de análise literária, como a estética e a linguística. Deixar de observar este fato pode levar a graves erros de interpretação. 
Para ilustrar este ponto, tomo alguns versos do poeta barroco Gregório de Matos Guerra: 
Não sei, para que é nascer
Neste Brasil empestado
Um homem branco, e honrado
Sem outra raça.
Terra grosseira e crassa
Que a ninguém se tem respeito,
Salvo quem mostra algum jeito
De ser mulato. (MATOS, 1990, p. 33)
Bem, o debate a que remete a leitura do trecho acima é acerca da presença de racismo na obra do poeta. Assim, o texto insinua o quanto haveria de desonra para um homem “branco, e honrado” o fato de ter nascido e viver num “Brasil empestado”, pela presença da miscigenação racial.
Num primeiro momento, o leitor desavisado, sem a informação história adequada, pode sentir-se chocado com a visão flagrantemente preconceituosa expressa no poema. Entretanto, tal impressão se desfaz se for levado em conta que o poema em questão representa um modo de pensar e agir que não existe mais entre nós, mas que era normal e corriqueiro nos tempos em que o poeta viveu.
Com efeito, nos tempos coloniais, todos os filhos de colonos portugueses tinham a mais absoluta certeza de sua superioridade sobre os filhos de outras raças, além de estarem conscientes do fato de terem sido escolhidos por Deus para governar o mundo, promover a supremacia da religião dominante na Europa – o Cristianismo – e governar as criaturas bestiais que habitavam os demais continentes.
Em suma, pela interpretação de mundo dominante na época entre os europeus e seus descendentes nascidos na América, o destino dos brancos, cristãos, era dominar o resto do mundo. Portanto, valer-se do trabalho servil das criaturas bestiais que porventura habitassem os demais continentes era considerado mais do que justo. Estava, desta forma, justificada a escravidão. Na Bahia em que viveu o poeta, os negros e mestiços eram considerados animais, que podiam ser postos a trabalhar e não tinham os mesmos direitos dos brancos.
Uma coisa é apontar o racismo na obra de um autor que vive nos dias de hoje, em que tendemos a reconhecer a igualdade de fato entre todos os seres humanos, independente de seus traços físicos, sua cor de pele. Outra, bem diferente, é fazer o mesmo com relação à obra de um autor que viveu numa época em que não havia nada de absurdo, muito pelo contrário, em acreditar na superioridade de uma raça sobre as outras.
Desta forma, o discurso poético de Gregório encontra-se impregnado pela ideologia de seu tempo. Compreender seu legado demanda que se tenha este dado em mente, sob pena de cometermos erros grosseiros de análise. Uma leitura comparativa que contraponha a obra deste autor à de qualquer poeta de período mais recente resultará um fracasso se não estiver ancorada em boa bagagem de conhecimento histórico. Será erro crasso utilizar a obra de Gregório como exemplo negativo em trabalhos que visem a enaltecer a contribuição de poetas que vieram a exaltar a participação do negro em nossa cultura.
AULA 4 – A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE
A contribuição da Teoria Literária para as pesquisas comparatistas vai ainda muito além do que expusemos na aula anterior. Um dos conceitos centrais em nosso campo de estudos, hoje em dia, é o de intertextualidade, cuja história e importância abordaremos agora. 
Antes porém, outras informações se impõem como de máxima importância, para que, ao final da presente aula, tenhamos a capacidade de enxergar os fatos literários com maior capacidade crítica.
De Volta ao Formalismo
Importa destacar que as escolas teóricas sempre possuem uma riqueza bem maior do que se pode supor numa análise que peque por excesso de superficialidade e esquematismo. Os diversos autores que costumam ser reunidos sob a alcunha de “formalistas”, como já destacamos, se propuseram a renovar a teoria da literatura no começo do século XX.
Seria mais exato dizer que houve vários formalismos, e não um só, mas em comum estes autores tinham o interesse em construir um método científico para a análise dos textos literários, além afirmar o primado da atenção ao texto em si mesmo, ao destacar a prioridade em analisar os aspectos internos da obra e denunciar os erros de interpretação cometidos no passado por conta de se prestar mais atenção a dados externos.
Num primeiro momento, aproximando-se da linguística estrutural de Saussure, alguns dos expoentes do grupo formalista fazem a opção pelo estudo sincrônico do texto, em detrimento de uma abordagem que buscasse a filiação deste texto a tradições ou linhas de evolução histórica. Todavia, dentro do próprio grupo, já existe a consideração de que o estudo mais atento do texto literário não pode dispensar um diálogo atento com o contexto social.
Isso se dá com a obra crítica de Iuri Tynianov, autor que destaca a extrema importância de não separar a análise dos textos literários do estudo dos outros fatos sociais.
Segundo Iuri Tynianov, não se pode perder de vista nem o que há de peculiar e único na literatura, nem a importância do seu diálogo com o momento histórico no qual uma dada obra foi produzida. Trazendo de volta à cena crítica o interesse pelo estudo da evolução literária, Tynianov começa a resgatar o interesse pelo estudo diacrônico, sem deixar de lado uma perspectiva sincrônica.
Em suas palavras, a série literária e a série social estão em permuta constante; sendo da máxima importância para a plena compreensão do valor de uma obra singular, o estudo em paralelo do momento social e histórico, em particular do conjunto formado pelas obras que surgiram nos mesmo momentos históricos.
Uma plena compreensão da ficção de Machado de Assis se enriquece com a leitura em paralelo de outras obras da mesma época, além do estudo da própria história social brasileira no período de transição do Império para a República.
Importante ter em mente tanto a série literária à qual essa obra pertence (o conjunto de obras representativas de uma determinada literatura nacional) quanto o entendimento dos elementos da série social (o momento histórico e as outras manifestações artísticas da época, por exemplo) que nela se interpenetram. O tão conhecido ceticismo de Machado ganha nova luz se for estudado como um elemento que representa uma tomada de posição frente às certezas estreitas do cientificismo do final do século XIX. Algo que se torna muito claro quando lemos “O alienista”, por exemplo.
Afirma Tynianov que o estudo isolado de uma obra literária não fornece elementos suficientes para a compreensão plena de sua construção. Ou seja, o exame mais detalhado do texto, a ênfase na obra, defendida pelos formalistas, só estaria completa se o pesquisador tivesse liberdade para considerar o peso de certas informações advindas da análise do contexto.
Outra observação interessante que podemosretirar da obra deste importante teórico vem ressaltada por Tânia Carvalhal (2006, p.47):
Tynianov alerta que “um mesmo elemento tem funções diferentes em sistemas diferentes”, o que nos leva a pensar que um elemento, retirado de seu contexto original para integrar outro contexto, já não pode ser considerado idêntico.
A sua inserção em novo sistema altera sua própria natureza, pois exerce outra função.
Trata-se de uma observação de extrema importância para as pesquisas em Literatura Comparada. Quando se analisam em paralelo textos de autores que viveram em épocas diferentes ou pertenceram a culturas diferentes, é preciso ter em consideração as grandes diferenças de contexto porventura existentes.  
Portanto, para o comparatista, importa o fato de que o diálogo entre dois textos, entre a obra de dois autores, pressupõe uma pesquisa rigorosa, que não deixe de levar em conta o tipo de diálogo que cada texto estabeleceu com seu próprio tempo.
A partir de análise comparativa entre Otelo e Dom Casmurro, não se pode deixar de lado as diferenças que havia entre o Brasil do final do século XIX e a Europa do final da Idade Média, época em que se passa o enredo shakespeariano.
Isso pode explicar como o protagonista da tragédia toma a si mesmo a tarefa de matar sua esposa, tida por ele como adúltera. Segundo valores de honra, muito importantes na época, caberia ao próprio ofendido a iniciativa de buscar uma retratação pública. Otelo mata sua esposa e todos ficam sabendo disso. Já nos tempos de Machado, o cinismo da moral burguesa era um convite à dissimulação. Era preciso salvar as aparências.
Por conta disso, Bentinho e Capitu partem em viagem à Europa para, somente depois, se separarem efetivamente. O ciúme e o possível adultério são temas relevantes nos dois momentos históricos, mas a reação que os personagens têm é diferente, e isso pode ser explicado, em parte, pela diferença de mentalidade.
A lição trazida pelos formalismos e estruturalismos se impõe como de grande importância, assinalando que é preciso ter o cuidado de dar a devida atenção ao texto e não ceder a tentações fáceis de interpretação, comuns na análise literária anterior ao formalismo.
Para ficar no caso do autor que mais temos citado até aqui, nada existe em Dom Casmurro ou em O Alienista que nos autorize a dizer que o ceticismo de Machado decorreria de ressentimentos por sua situação de mestiço ou por conta de seus problemas de saúde. Como também não faz sentido considerarmos que seria destino histórico de uma nação colonizada arrastar o fardo do atraso.
Interpretações ultrapassadas, todas essas, mas que, no entanto, já tiveram o seu momento de glória entre nós. Os excessos causados pelo biografismo rasteiro, tanto quanto pelo determinismo, foram marcas duramente superadas entre os intelectuais brasileiros.
A Contribuição de Bakhtin
Ainda que seja russo e contemporâneo dos formalistas, Mikhail Bakhtin não pode ser considerado um dos participantes do movimento, uma vez que suas ideias se distanciam bastante das propostas que predominavam na época, além do fato de não ter integrado os Círculos Linguísticos que floresceram na Rússia no período entre a segunda e a terceira década do século XX.
Seu legado é rico e variado, não pode ser esgotado nos limites de uma aula. Resgata o estudo das relações do Texto Literário com a História.  Foge às concepções formalistas, fechadas na análise do texto, e procura destacar o diálogo inevitável de cada texto com seu tempo, com os padrões ideológicos de cada momento histórico. Se com Tynianov, já vimos que é impossível o estudo de Literatura Comparada sem considerar a História, com Bakhtin, este fato se elucida e se aprofunda ainda mais.
Simplesmente porque ninguém existe sozinho, vivemos todos em interação social constante, em diálogo permanente com nossos semelhantes. Esta observação vale para as pessoas e também para os textos. Não há um só texto literário que não possua marcas da presença do diálogo com outros textos. Tanto um diálogo com uma tradição literária, ou seja, um diálogo com textos do passado, como também com textos da mesma época. Assim, este processo dialógico possui tanto um plano diacrônico, como um sincrônico.
Ao contrário do que pretendia a maior parte dos teóricos formalistas, é impossível separar o estudo de uma obra do presente da consideração de seu diálogo com outras obras, inclusive as do passado. É impossível deixar de lado a diacronia em qualquer esforço sério de análise literária.
É sabido que nenhum ser humano consegue sobreviver sozinho, distante de uma comunidade, compartilhando a existência com seus semelhantes. Todavia, ao longo dos últimos séculos, a ideologia burguesa liberal se construiu em grande parte em torno da noção de que os grandes homens são justamente os self-made man, ou seja, os que se fazem por si mesmos. Vemos no cinema se multiplicarem os exemplos de heróis que resolvem tudo sozinhos, muitas vezes de forma espetacular, o que só mostra o quanto as fitas hollywoodianas estão comprometidas com este padrão ideológico.
Em Teoria da Literatura, um análogo desta noção extrema de individualidade é a ideia de que o autor é um gênio, cujas obras nascem unicamente por conta de seu talento extraordinário. Uma concepção que teve grande voga no período romântico, mas persistiu em épocas posteriores.
Bem, a contribuição de Bakhtin para os estudos literários e linguísticos ainda está sendo devidamente equacionada, mas uma das grandes contribuições foi se contrapor a esta visão equivocada acerca do peso da individualidade no processo de criação literária. Para ele, todo discurso, inclusive o literário, é resultado de um processo dialógico. Ou seja, o texto resulta de um diálogo realizado entre o autor e outros agentes sociais que compartilhem com ele do mesmo contexto social. Indo além, ele acredita que na própria afirmação do ser humano como pessoa, ocorre um processo dialógico. Em suas palavras:
Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados (…) O objeto (…) já foi falado, controvertido, esclarecido e julgado de diferentes maneiras, é o lugar onde se cruzam, se encontram e se separam diferentes pontos de vista, visões do mundo, tendências. Um locutor não é o Adão bíblico, perante objetos virgens, ainda não designados, os quais é o primeiro a nomear. (BAKHTIN, 2000, p.319)
Não somos resultado dos conceitos que nós mesmos formulamos sobre nossa própria identidade. Antes disso, nós resultamos de um diálogo que mantemos com os que estão ao nosso redor. Os discursos que ouvimos acerca de nós contribuem para nos formar como pessoas.
Isso ocorre desde o berço, quando as crianças têm o início do seu processo de construção da identidade pessoal como resultado dos discursos que os adultos formulam sobre elas. Indo além, por toda a nossa vida, os discursos alheios vão nos construindo continuamente. 
Intimamente ligada a este processo está a interferência das ideologias, os discursos hegemônicos de cada momento histórico. Para Bakhtin, as ideologias estão presentes, sem pedir licença, em todos os discursos, em tudo o que falamos. Mesmo quando tentamos evitar reproduzir as noções dominantes em nossa época, não conseguimos evitar que elas estejam presentes.
Por esse motivo, o exercício da crítica literária precisa de uma atenção constante, um estado de alerta. Para compreender tal fato com mais clareza, basta retomar o exemplo retirado do poema de Gregório de Matos, na aula passada. 
Sendo assim, sempre que dizemos algo, muitas vozes se fazem presentes. Para Bakhtin, toda subjetividade é intersubjetiva, o sujeito se forma em constante contato e diálogo com outros. Esta noção tem rendido alguns frutos nos estudos de psicologia, mas para o campo que nos interessa, é preciso estar atento ao fato de que vivemos numa época em que a multiplicidade dos discursos sociais torna inviável a permanência de um tipo de obra literária que seja conduzida por uma só voz, uma obra monológica.
Caminha-se para a afirmação do predomínio dasobras literárias polifônicas, nas quais muitas vozes se afirmam, se chocam, se completam. O discurso de cada personagem interage com o discurso dos próprios narradores. Ou, senão, temos as situações em que os leitores são convidados a participar do processo de criação das obras.
O Texto Literário Para Bakhtin
O texto literário, para Bakhtin, é um campo que se abre ao debate. Nele, muitas vozes diferentes se manifestam e se interpenetram. Não há um só texto literário que não possua marcas da presença do diálogo com outros textos. Tanto um diálogo com uma tradição literária, ou seja, um diálogo com textos do passado, como também com textos da mesma época.  
Assim, este processo dialógico possui tanto um plano diacrônico, como um sincrônico. Ao contrário do que pretendia a maior parte dos teóricos formalistas, é impossível separar o estudo de uma obra do presente da consideração de seu diálogo com outras obras, inclusive as do passado.
A ficção contemporânea tem se multiplicado em exemplos de obras abertamente polifônicas, nas quais não é uma voz única que conduz, mas o processo narrativo decorre de um diálogo, com o concurso de várias vozes.
Para ficar apenas num caso bem conhecido, podemos citar o romance As meninas, de Lygia Fagundes Teles, cuja primeira edição data de 1971. Neste, cada uma das três protagonistas nos dá detalhes importantes acerca das duas outras. Ou seja, não se trata de cada uma falar somente de si mesma. As vidas das três meninas se entrelaçam, o que confere grande dinâmica e riqueza ao romance. Contudo, o mais importante é perceber que esta tendência revela a percepção de que no mundo em que vivemos é impossível confiar em uma só voz, já que a existência é múltipla e a verdade única já não existe.
Além de se desdobrar em polifonia, o dialogismo sugerido por Bakhtin também pode ser aproveitado para nos revelar que os textos literários também estão em permanente diálogo, que cada obra resulta do diálogo com outras, que vieram antes. Nem sempre um autor mais recente cita diretamente o mais antigo, como faz Machado de Assis, com relação a Shakespeare, no trecho que já comentamos.
Muitas vezes, a presença dos textos mais antigos nos novos é menos clara. Passa a ser uma das principais tarefas dos comparatistas perceber esse fluxo constante que leva dos textos mais antigos aos mais novos, dentro de uma mesma tradição cultural.
Os textos literários estão em permanente diálogo, e dentro desta perspectiva, não existe texto algum que seja completamente original.
Todos eles nascem da absorção de elementos de outros textos, resultado de um processo dialógico. Chegamos assim bem perto do conceito de “intertextualidade”, de importância central para os estudos de Literatura Comparada, e formulada por Julia Kristeva, a partir de uma leitura atenta e penetrante do legado de Bakhtin, que destaca quase ao fim de sua Estética da Criação Verbal:
Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados (…). O objeto (…) já foi falado, controvertido, esclarecido e julgado de diferentes maneiras, é o lugar onde se cruzam, se encontram e se separam diferentes pontos de vista, visões do mundo, tendências. Um locutor não é o Adão bíblico, perante objetos virgens, ainda não designados, os quais é o primeiro a nomear. (BAKHTIN, 2000, p.319)
Dentro desta perspectiva, todo e qualquer texto, inclusive os que se apresentam como obras da imaginação, os textos literários, são pontos de encontro, maneira de se responder a tudo o que já foi produzido antes no contexto de uma mesma tradição cultural. Ou seja, todo texto nasce impregnado de conceitos e sugestões de outros textos, mais antigos. Tal processo é muito óbvio quando o autor faz dele um uso consciente, como faz Machado, ao citar Shakespeare.
Entretanto, o mesmo processo se faz notar ainda que seu uso pode passar despercebido, ou mesmo, ser escamoteado pelo emissor, ou seja, o criador do novo texto.
O Advento do Conceito de Intertextualidade
Pelo que vimos até aqui, a linguagem poética resulta de um constante diálogo de textos. Não existe um só texto literário que não seja intertexto, que não esteja em conexão com outros textos. A partir do momento em que a crítica literária toma consciência deste processo, tem a oportunidade de encarar de outro modo a Literatura Comparada. Vemos que o antigo debate teórico em torno das influências, fontes e empréstimos pode ser retomado, mas agora com um novo vigor.
Dando sequência à sua argumentação, Julia Kristeva busca resgatar um dos sentidos mais antigos do verbo “ler”. Para além do simples ato de conhecer, compreender e interpretar um texto, o processo de leitura também inclui outros passos: recolher, coletar, tomar, ou mesmo roubar.
O ato de ler seria, desta forma, um processo ativo capaz de levar o sujeito à criação. De tal modo, que a leitura acarretasse a escritura. Desta forma, a leitura de um livro que realmente mexe conosco nos remete a uma atitude criativa de também criar, dando à luz novos textos.
A Postura de Julia Kristeva Diante da Lição de Bakhtin
Porém, mantendo-se fiel à lição de Bakhtin, Julia Kristeva não perde de vista o fato de que a criação literária, como releitura de textos anteriores, também é um processo que não perde de vista a dimensão contextual. Ou seja, quando se reaproveita um conceito de um texto escrito em outra época, o novo autor está trazendo o elemento tomado para dialogar com o momento histórico atual.
Para que tal fato fique bem claro, lançaremos mão de um exemplo retirado de nossa própria tradição literária. Trata-se do poema “Com licença poética”, no qual Adélia Prado se propõe a um diálogo com o célebre “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade...
“Com Licença Poética” de Adélia Prado  
Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos — dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.
Diferenças do Texto de Drummond	
Publicado na década de 1970, período em que as lutas pela emancipação da mulher já ocupavam um importante lugar nas pautas de reivindicações sociais, o texto de Adélia é muito mais do que uma simples releitura do poema de Drummond. Mas, para uma compreensão mais plena das diferenças entre os dois textos, retomemos a estrofe inicial do poema do mestre modernista:
Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: “Vai Carlos! ser gauche na vida.
Um dos aspectos que chama atenção, logo de início, é o fato de ser esbelto o anjo de Adélia Prado. Outras leituras podem ser feitas desta passagem, mas podemos usar como hipótese de trabalho o fato de que a sociedade está sempre a exigir muito mais das mulheres em termos de uma atitude de valorização da beleza física, um investimento maior em sua própria beleza, como também uma sensibilidade mais atenta para a beleza masculina.
A Obra de Drummond no Contexto do Modernismo
No contexto do modernismo, em que surgiu a obra de Drummond, a luta a ser travada era pelo direito de ser livre, de não se adaptar às normas da vida (um dos muitos sentidos do adjetivo gauche). Já no contexto em que surgiu o poema de Adélia Prado, as exigências eram outras, diziam respeito ao papel da mulher na sociedade. Afinal, somente dela se exigem que não seja feia para casar, contudo somente ela inaugura linhagens, por meio da maternidade.
Ainda incipiente nas primeiras décadas do século XX, época da publicação do poema de Drummond, o feminismo já tem outra força, cerca de cinquenta anos mais tarde, quando vem a lume o texto de Adélia. Isso para não falar de que é muito mais comum entre mulheres

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