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Teologia sistemática Robert L. Reymond PARTE UM Uma Palavra de Um Outro Mundo PARTE DOIS Deus e o Homem SUMÁRIO Prefácio Prefácio à Segunda Edição Introdução CAPÍTULO UM: O Fato da Divina Revelação CAPÍTULO DOIS: A Natureza Inspirada das Sagradas Escrituras CAPÍTULO TRÊS: Os Atributos das Sagradas Escrituras CAPÍTULO QUATRO: A Natureza da Verdade Bíblica CAPÍTULO CINCO: A Bíblia como o Ποῦ Στῶ para o Conhecimento e a Significância Pessoal CAPÍTULO SEIS: Introdução à Doutrina de Deus CAPÍTULO SETE: Os Nomes e a Natureza de Deus CAPÍTULO OITO: Deus como Trindade CAPÍTULO NOVE: A Trindade nos Credos CAPÍTULO DEZ: O Decreto Eterno de Deus CAPÍTULO ONZE: As Obras Divinas da Criação e da Providência CAPÍTULO DOZE: A Visão Bíblica do Homem PREFÁCIO A publicação de uma teologia sistemática da religião cristã é sempre um momentoso evento, particularmente para o autor, visto que um semelhante trabalho pretende revelar uma vida profissional inteira de reflexão sobre todos os temas capitais (loci communes ou “locais padrões”) das Sagradas Escrituras e suas implicações para os pontos de vista histórico e contemporâneo. Isso é verdade, ainda que, só no mundo de língua inglesa, mais de sessenta teologias sistemáticas (Gabriel Fackre as denomina “teologias-em-alto-relevo”) — algumas evangélicas, algumas ecumênicas, algumas experienciais — têm sido publicadas desde o final dos anos 1970. [1] Este presente volume tenta expor uma teologia sistemática da fé cristã que ultrapasse a resenha bíblica. Meus anos de estudo e ensino persuadiram- me de que uma tal interpretação deve assumir os contornos do que o mundo teológico caracteriza como uma teologia reformada. Em última análise, tem que estar centrada em Deus em todos os seus pronunciamentos e resistir a todo esforço humano de introduzir uma antibíblica “analogia do ser” (analogia entis) nas mentalizações (thought-forms) bíblicas, quer dizer, por um “e” e um “mais” onde a Bíblica coloca “somente” ou “só”. Por exemplo, na metodologia teológica não se deve dizer, “eu entendo e creio”, mas, “eu creio a fim de entender”; na soteriologia não se deve argumentar “Deus e o homem”, antes, “apenas Deus” como Salvador; não se deve ensinar “fé e boas obras” como os instrumentos para a justificação, porém, “fé sozinha”. O conteúdo dessa obra é essencialmente as aulas que dei em sala ao ensinar teologia sistemática durante um período de dois anos no Covenant Theological Seminary em St. Louis, Missouri, e sete anos no Knox Theological Seminary em Fort Lauderdale, Flórida. Tais aulas foram escritas para os cursos requeridos nos programas de Mestre em Teologia nesses dois seminários. Durante os últimos quinze anos, aproximadamente, eu forneço minhas palestras aos meus estudantes em forma de programa de estudos escrito, e ao adotar essa abordagem descobri que podia cobrir muito mais material em classe, com os estudantes possuindo minhas aulas básicas em sua inteireza sem ter que se concentrar em tomar notas abundantes. Meu primeiro motivo para oferecê-las agora a um público leitor maior é que meus estudantes me encorajaram centenas de vezes ao longo dos anos para assim fazer. Deste modo, em um sentido muito real você, meu presente leitor, conforme se move ao longo desses capítulos está sentado em minha sala de aula no seminário e testemunhando minha tentativa de desvelar o Quadro Global dentro da Mente divina a qual, estou convencido, o único Deus vivo e verdadeiro revelou-se aos homens nas Sagradas Escrituras para a salvação eterna e benefício espiritual deles. [2] Um segundo motivo por que ofereço este volume a uma audiência mais ampla é que aqueles dentre nós que ensinam na tradição reformada no nível de seminário tinham que mirar a venerada (e fidedigna) mas algo datada Teologia Sistemática de Berkhof como nosso livro texto básico em volume único no campo da dogmática, e então tínhamos de suplementar Berkhof com gigantes teológicos tais como Charles e A. A. Hodge, Benjamin B. Warfield, John Murray, e G. C. Berkouwer. Embora eu esteja plenamente ciente de que jamais será escrita uma teologia sistemática que torne qualquer suplementação desnecessária, tenho tentado me inspirar nos melhores insights tanto dos teólogos bíblicos quanto dos históricos e empregar suas disciplinas à medida que começo a me ocupar de cumprir minha responsabilidade fundamental de apresentar uma teologia sistemática que vá além de uma lista bíblica. Espero, certamente, que a minha “sistemática” recomende a si própria, em sua tentativa de ser tanto bíblica quanto interessante, para outros mestres da fé reformada. Serei bastante premiado pelos meus labores caso alguém a ache ser “o que está procurando” para seus próprios estudantes. Minha terceira e primeira razão para desejar ver tais preleções em forma publicada é porque eu amo o evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo e amo a igreja pela qual ele morreu. Porém, a igreja — a igreja dele — por muitos anos tem sido recreada, tanto nas classes de seminário quanto nas multidões de seus púlpitos, com descrições sub-bíblicas do que é o verdadeiro evangelho de Deus. Refiro-me aos evangelhos pelagiano, semi- pelagiano, semi-semi-pelagiano, arminiano, apóstata e seja lá que nome ou reivindicação façam, os quais abundam de todos os lados. A todos esses falsos “evangelhos” a fé reformada é o único antídoto. Para mim a fé reformada não é simplesmente um credo que a igreja agora ou em algum tempo vindouro possa relegá-lo à lixeira da história; para mim, sua propagação é tanto uma paixão quanto uma missão. Por crer que a expressão reformada do evangelho é a verdade eterna do único Deus vivo e verdadeiro, creio que a minha exposição dos fatos do evangelho de Cristo pode servir como um corretivo a esses outros “evangelhos”, os quais em realidade não são o evangelho eterno, em hipótese nenhuma. Naturalmente, espero que meu esforço aqui contribua para a educação da igreja em uma época em que em todo nosso redor existe a evidência de que a igreja literalmente “perdeu seu espírito evangélico” e está chafurdando no anti-intelectualismo e no pensamento antibíblico. Se em algum grau eu puder prover um corretivo a essa presente situação, serei amplamente premiado por todos os meus esforços. Embora eu haja escrito a partir de uma perspectiva reformada, não segui servilmente o padrão estabelecido de pensamento “ortodoxo” ou “reformado” quando ele não recomenda a si próprio para mim devido à sua falha em de alguma forma se conformar ao que percebo ser o ensinamento das Sagradas Escrituras. Por exemplo, em meu tratamento da doutrina das Escrituras na parte um, apresento-a partindo do que é conhecido nos círculos apologéticos como a perspectiva pressuposicional, a qual julgo eu honra mais a Deus do que as alternativas. No capítulo seis eu defendo que os cristãos reformados não deviam empregar, como muitos deles o fazem, os argumentos tradicionais para a existência de Deus. No capítulo sete eu declinei de classificar os atributos divinos, e continuo não convencido por exegese alguma (ou por argumento filosófico algum) que tenho visto para datar que a eternidade de Deus forçosamente acarrete a qualidade de supratemporalidade ou atemporalidade. Ao longo desse capítulo minha principal preocupação é a de que meu leitor seja confrontado pelo Deus da Bíblia em vez de pelo Deus dos escolásticos, o qual com freqüência dá a impressão de ser mais “grego” do que bíblico. No capítulo nove eu tento convencer meu leitor ao ponto de vista reformado sobre a Trindade, o qual, em alguns aspectos, é distintamente diverso da descrição “niceno-constantinopolitana” daquela doutrina, o qual exerceu influência dominante dentro da Cristandade por mais de treze séculos antes de ser desafiada por João Calvino e que, lamentavelmente, ainda é inconscientemente esposada por um número demasiadamente grande de seus seguidores.No capítulo dez, embora demonstrando a inerente fraqueza e caráter antibíblico do arminianismo, afirmo — em oposição a alguns pensadores reformados que preferem representar tais coisas simplesmente como mistérios pelos quais a Bíblica não fornece resposta alguma — que Deus é a Causa decretatória do mal no sentido de que é a única Causa decretatória definitiva de todas as coisas. Também arrazoo ali em prol do igual caráter definitivo da eleição e reprovação no decreto divino, mesmo que não tenha uma exata identidade de causalidade divina por trás. No capítulo onze eu sustento, em oposição a um bom número de pensadores reformados, que a criação em si, em última análise, outra coisa não teve que não uma raison d’être redentora, e que insistir em outra coisa fornece uma fundação que “dá auxílio e conforto” a uma teologia natural metodológica anti- reformada. No capítulo doze eu advirto contra o que considero uma tendência entre alguns pensadores reformados de diminuir a importância do fato de que a teologia reformada deve conservar sua insistência clássica em um pacto de obras original entre Deus e Adão. E no capítulo treze eu adoto e sigo uma ordem supralapsariana dos decretos divinos, porém, ofereço minha própria ordem ali visto que a ordem costumeiramente oferecida pelos supralapsarianos é incongruente com os próprios melhores insights deles. Confio que as idéias apresentadas ao longo do livro favorecerão as discussões contínuas em suas respectivas áreas entre teólogos e leigos de maneira semelhante. Certas pessoas foram de grande ajuda para mim em meu desenvolvimento profissional; sem elas este livro nunca teria sido escrito. Primeiramente, quero expressar meu eterno apreço por Robert G. Rayburn, o primeiro presidente do Covenant Theological Seminary, em St. Louis, recentemente falecido, o qual me recomendou, quando eu era apenas um teólogo principiante no conselho do seminário, para uma posto de lecionação no departamento de teologia sistemática. Tenho um grande débito de gratidão ao próprio Conselho do Covenant, o qual me contratou e sempre encorajou a todos nós na faculdade para escrever, dando-nos licenças de um ano para tal. Quero igualmente reconhecer minha dívida com R. Laird Harris, o primeiro deão da faculdade sob o qual servi no Covenant Seminary, e com o finado J. Oliver Buswell Jr., docente de teologia sistemática no departamento de sistemática de lá, ambos os quais incumbiram-se do papel de “quartanista” para mim durante meus anos iniciais de trabalho sob a direção e tutela deles. Uma mui especial palavra de apreço tem que ir a meu caro amigo, David C. Jones, o qual foi meu colega no departamento de teologia sistemática no Covenant Seminary por mais tempo que qualquer outra pessoa e que, por seu exemplo acadêmico, ensinou-me sobre o método teológico próprio e o significado eterno do ofício teológico mais do que ele algum dia o saberá. Ao conselho do Knox Theological Seminary permaneço devedor por me outorgar um ano sabático para que eu desse os toques finais nesta obra. Sou deveras grato por essa atenciosa provisão. A Roger R. Nicole, professor visitante de teologia no Reformed Theological Seminary, em Orlando, cuja amizade tem agraciado minha vida já há vários anos e cujo conhecimento enciclopédico de teologia só posso sonhar em adquirir, devo expressar profunda gratidão por ler minha teologia sistemática em sua inteireza na forma manuscrita e dando muitas sugestões valiosas (a maioria das quais adotei). A John M. Frame, professor de apologética e teologia sistemática no Westminster Theological Seminary Califórnia, e a William Edgar, professor de apologética no Westminster Theological Seminary em Filadélfia, ambos os quais aguçaram meu raciocínio no capítulo seis, fico muito grato. Por derradeiro, quero agradecer a todos os meus numerosos estudantes, os quais através dos anos ofereceram vintenas de sugestões que grandemente melhoraram a exatidão e a apresentação do material. A toda essa gente — servos de Cristo humildes e gentis, os quais, de mais maneiras do que posso exprimir, ensinaram-me tanto por palavras quanto por exemplo o que é o serviço cristão — eu, com grande deleite e profundo apreço, humildemente dedico este livro. Qualquer encômio conferido pelos leitores de discernimento é igualmente deles; todo e qualquer erro e deficiência que sobrar têm que ser localizados só em mim. Fort Lauderdale, Flórida Março de 1997 PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO Quatro anos se passaram desde que A New Systematic Theology of the Christian Faith foi primeiramente publicado. Aquela primeira edição passou por várias impressões e fico embaraçado e grato pela recepção com que o público leitor cristão o premiou. Quero expressar meu apreço à Evangelical Christian Publishers Association por selecioná-lo em 1999 como um “Candidato Final” para o Gold Medallion Award. Também estou profundamente embaraçado pelo fato de vários seminários mais importantes o haverem adotado e escolhido como o texto para seus cursos de teologia sistemática. À medida que sai esta Segunda Edição quero agradecer tanto aos que me elogiaram quanto aos que me criticaram pelo tempo e esforço que despenderam para rever a obra. Todos os seus comentários críticos foram levados a sério, e freqüentemente tais comentários levaram a uma modificação da expressão ou do conceito. Esta edição, embora preservando a paginação da antiga, inclui tais modificações. Se elas melhoraram o trabalho em alguma medida eu tenho que agradecer a esses fiéis servos de Cristo. Minha sincera esperança é que esta Segunda Edição prove ser ainda mais benéfica à igreja do que o foi a primeira. Fort Lauderdale, Flórida Dezembro de 2001 INTRODUÇÃO Como a própria palavra sugere, “teologia”[3] (do latim theologia,por sua vez, do grego θεολογία , theologia) em seu sentido amplo fala do discurso intelectual ou racional (“raciocinado”) acerca de Deus ou das coisas divinas. [4] Enquanto o esforço inteligente para entender e deslindar a Bíblia toda vista como verdade revelada, “teologia”, no sentido enciclopédico amplo, abarca as disciplinas do currículo de teologia clássico, com seus quatro departamentos de teologia exegética (ou bíblica), histórica, sistemática e prática. [5] Por “teologia sistemática” — o departamento da teologia com o qual este livro está primeiramente interessado — refiro-me à disciplina que responde à questão, “o que a Bíblia toda nos ensina sobre um dado tópico?” Declarado mais tecnicamente, teologia sistemática é aquele estudo metodológico da Bíblia que contempla as Escrituras Sagradas como uma revelação completada, distinguindo-se das disciplinas de teologia do Antigo e do Novo Testamentos, bem como da teologia bíblica, as quais abordam as Escrituras como uma revelação que se desdobra. Consentaneamente, o teólogo sistemático, considerando as Escrituras como uma revelação completada, busca compreender holisticamente o plano, o propósito e a intenção didática da mente divina revelada nas Sagradas Escrituras, bem como dispor tais plano, propósito e intenção didática de um modo ordeiro e coerente como artigos da fé cristã. [6] A teologia sistemática cobre, em relação a porções integrais do corpo total da verdade sacra das Escrituras Sagradas, Deus, o homem, Cristo, a salvação, a igreja, e as últimas coisas. Também cabendo dentro da competência da disciplina existem a articulação de um padrão de vida do crente (ética pessoal e social) e a apresentação cristã da verdade àqueles de fora da igreja (apologética). [7] A VINDICAÇÃO DA TEOLOGIA COMO UMA DISCIPLINA INTELECTUAL Contudo, a teologia, como acima definida, tem se deparado com tempos difíceis. Pode-se recordar aqui das definições pasquinescas de Søren Kierkegaard, de que teólogo é “um mestre do fato de que Um Outro sofreu”, [8] enquanto a lembrança de Jaroslav J. Pelikan de que os mais próximos equivalentesdo termo “teólogo” no Novo Testamento são “escribas e fariseus” [9] não ajuda em nada a tornar o mundo do teólogo mais atraente, seja à igreja, seja ao mundo em geral. De fato, à medida que o mundo ocidental se torna cada vez mais uma “cidade secular”, mais e mais homens e mulheres tanto dentro quanto fora da igreja advogam que é impossível até dizer algo significante a respeito de Deus. Conseqüentemente, Gordon H. Clark começa seu livro Em Defesa da Teologia com a seguinte avaliação: “A teologia, aclamada no passado como ‘a rainha das ciências’, hoje mal chega à posição de lavadora de pratos. É sempre desprezada, considerada suspeita ou simplesmente ignorada”.[10] Se a opinião de Clark estiver correta, o cristão bem pode concluir que deve servir-se da teologia como uma disciplina de todo intelectual e devotar seu tempo a alguma ocupação mental que ofereça promessa de honra mais elevada. Pode-se formular explicitamente a questão: Como deve a teologia – analisada como uma disciplina intelectual que merece o mais alto interesse da igreja e a ocupação da vida toda das mentes humanas – ser justificada hoje? Mais claramente ainda: Por que devo eu, como cristão, ocupar-me a vida inteira em reflexão acadêmica sobre a mensagem e o conteúdo das Sagradas Escrituras? E por que devo eu continuar a fazê-lo da maneira específica que a igreja (em seus melhores momentos) o fazia no passado? Quero oferecer as seguintes cinco razões por que devemos nos ocupar com a empreitada teológica: 1. o próprio método teológico de Cristo; 2. o mandado de Cristo a sua igreja para discipular e ensinar; 3. o modelo apostólico; 4. o exemplo e atividade apostolicamente aprovados da igreja neo- testamentária; 5. a própria natureza das Sagradas Escrituras. O Método Teológico Próprio de Cristo Todos os quatro evangelistas descrevem Jesus de Nazaré como entrando fundo no envolvimento da mente com as Escrituras e delas extraindo fascinantes deduções sobre si mesmo. Por exemplo, em numerosas ocasiões, ilustradas pelas seguintes passagens do Novo Testamento, ele aplicou a si próprio o Antigo Testamento: Lucas 4.16-21: “E, chegando a Nazaré, onde fora criado, entrou num dia de sábado, segundo o seu costume, na sinagoga, e levantou-se para ler. E foi-lhe dado o livro do profeta Isaías; e, quando abriu o livro, achou o lugar em que estava escrito: O Espírito do Senhor é sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados do coração, a pregar liberdade aos cativos, e restauração da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor. E, cerrando o livro, e tornando-o a dar ao ministro, assentou-se; e os olhos de todos na sinagoga estavam fitos nele. Então começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta Escritura em vossos ouvidos”. João 5.46: “Se vós crêsseis em Moisés, creríeis em mim; porque de mim escreveu ele”. Lucas informa-nos de forma clara que posteriormente, “começando por Moisés, e por todos os profetas, [o Cristo glorificado] explicava-lhes [ διερμήνευσεν , diermēneusen] o que dele se achava em todas as Escrituras” (Lc 24.27; vide ainda 24.44-47). Uma tão extensa ocupação da mente na exposição das Escrituras envolvia nosso Senhor na atividade teológica na mais elevada acepção. É Cristo mesmo, então, quem estabeleceu para sua igreja o padrão e o fito de todo teologizar – o padrão: devemos fazer da exposição das Escrituras a base de nossa teologia; o fito: devemos finalmente chegar a Cristo em todos os nossos labores teológicos. O Mandado da Igreja para Discipular as Nações Depois de determinar à sua igreja o padrão e o fim de toda teologia, o Cristo glorificado comissionou sua igreja para discipular as nações, batizando e ensinando seus seguidores a obedecer a tudo o que lhes ordenara (Mt 28.18- 20). A Grande Comissão, pois, coloca sobre a igreja demandas intelectuais específicas. Há a demanda evangelística para contextualizar a proclamação do evangelho, sem transigir para satisfazer as necessidades de cada geração e cultura. Há a demanda didática de correlacionar os múltiplos dados das Escrituras em nossas mentes e aplicar tal conhecimento a todas as fases de nosso pensamento e conduta. [11] E há a demanda apologética para justificar a existência do cristianismo como a religião revelada de Deus e proteger sua mensagem da adulteração e da distorção (vide Tt 1.9). A teologia surgiu na vida da igreja em resposta a essas demandas concretas da Grande Comissão. A iniciativa teológica serve então à Grande Comissão, visto como busca explanar de modo lógico e coerente, para homens de todas as partes, a verdade que Deus revelou nas Sagradas Escrituras acerca de si mesmo e do mundo que ele criou. O Modelo Apostólico Tal atividade, a qual finalmente levou ao envolvimento da igreja com a teologia, é achada não apenas no exemplo e ensino de Jesus Cristo, mas também no restante do Novo Testamento. Paulo não perdeu tempo depois de seu batismo no esforço de “provar” ( συμβιβάζων , symbibazōn) a seus compatriotas judeus que Jesus é o Filho de Deus e o Cristo (Atos 9.20-22). Mais tarde, como missionário capacitado entrou na sinagoga em Tessalônica “e por três sábados disputou[ διελέξατο , dielexato] com eles sobre as Escrituras, expondo[ διανοίγων , dianoigōn] e demonstrando[ παρατιθέμενος , paratithemenos] que convinha que o Cristo padecesse e ressuscitasse dentre os mortos” (Atos 17.2,3). O erudito Apolo “com grande veemência, convencia publicamente os judeus, mostrando[ ἐπιδεικνὺς , epideiknys] pelas Escrituras que Jesus era o Cristo.” (Atos 18.28). Tampouco a “teologização” evangelística de Paulo se limita à sinagoga. Enquanto esperava Silas e Timóteo em Atenas, Paulo “disputava” ( διελέγετο , dielegeto) não somente com os judeus e os gregos tementes a Deus na sinagoga, mas também todos os dias na praça com aqueles que calhavam de estar ali (Atos 17.17). Isso lhe granjeou um convite para discursar no Areópago, discurso que deu em termos que pudessem ser compreendidos pelos filósofos epicureus e estóicos lá congregados, só que sem acomodar sua mensagem ao que eles estavam dispostos a crer. Então, além desse período de três meses em Éfeso, durante o qual falou ousadamente na sinagoga “disputando e persuadindo-os” a respeito do reino de Deus (Atos 19.8), Paulo “discorria” [ARA] diariamente no auditório de Tirano (nome que dificilmente os pais lhe deram; mais provavelmente, o nome foi dado a ele por seus estudantes), não hesitando, como depois dirá aos presbíteros efésios, em pregar algo que lhes fosse útil e os ensinar em público e pelas casas, declarando tanto aos judeus quanto aos gregos que deviam se converter a Deus em arrependimento, bem como ter fé em Jesus Cristo (Atos 20.20,21). Também vemos na carta de Paulo aos Romanos sua exposição teológica da mensagem a ele confiada – tanto no arcabouço amplo quanto no conteúdo essencial do evangélico que pregava e no método de teologizar que empregava. Deve-se tomar nota do brilhante “fluxo teológico” da carta: como ele se move lógica e sistematicamente do problema da condição humana para a provisão de salvação divina em Cristo, depois, sucessivamente, para os resultados da justificação, as duas grandes objeções à doutrina (a justificação somente pela fé outorga licença para pecar e anula as promessas que Deus fez a Israel como nação), e afinal para a ética cristã que as compaixões de Deus exigem de nós. De forma alguma desacredita a “inspiradade” (vide 1 Ts 2.13; 2 Pd 3.15,16; 2 Tm 3.16) admitir que ele refletia sobre e reforçava suas conclusões lógicas apelando a conclusões precedentes, a história bíblica e até mesmo a seu relacionamento com Jesus Cristo, posto que desenvolveu sua percepção doutrinal do evangelho de Deus sob a superintendência do Espírito. Descobre- se essas reflexões e deduções teológicas embutidas em Romanos no próprio âmagode algumas das mais radicais asserções do apóstolo. Por exemplo, pelo menos dez vezes, depois de afirmar uma proposição específica, Paulo pergunta: “Que diremos pois?” e, “deduzindo por boa e necessária conseqüência”, prossegue para a conclusão à qual desejava que seus leitores chegassem (Rm 3.5, 9; 4.1; 6.1, 15; 7.7; 8.31; 9.14, 30; 11.7). No capítulo quatro o apóstolo tira as conclusões teológicas de que a circuncisão é desnecessária para a bênção da justificação e que Abraão é o pai espiritual do gentio incircunciso crente, partindo de simples observação baseada no Antigo Testamento que “Abrão creu no SENHOR, e isso lhe foi creditado como justiça” (Gn 15.6, NVI) uns catorze anos antes de ser circuncidado (Gn 17.24) — deduções teológicas sensacionais para se tirar em seu ambiente religioso e cultural particular simplesmente a partir da relação “antes e depois” entre dois eventos históricos! Nessa altura, para provar que “agora neste tempo ficou um remanescente, segundo a eleição da graça” (Rm 11.5), Paulo simplesmente apela a seu próprio status de judeu cristão (Rm 11.1), outra vez uma asserção teológica notável derivando-se do simples fato de sua própria fé em Jesus. O modelo apostólico de exposição, reflexão e dedução a partir das Escrituras apóia nosso envolvimento na empreitada teológica. Se temos de ajudar a nossa geração a compreender as Escrituras, devemos também deduzir e entabular conclusões do que obtemos de nossos labores exegéticos nas Escrituras e estar prontos a “discorrer” com os homens. O ocupar-se com isso, bem como o resultado de tal tarefa, é teologia. A Atividade da Igreja Neo-testamentária O envolvimento de nossas mentes com a teologia como uma disciplina intelectual baseada nas Sagradas Escrituras adquire apoio adicional pela atividade da igreja neo-testamentária. O Novo Testamento chama a nossa atenção repetidas vezes para um corpo de fé salvífica, como em 2.ª Tessalonicenses 2.15 – “as tradições”, Romanos 6.17 – a “forma de doutrina”, Judas 3 – “fé que uma vez foi dada aos santos”, 1.ª Timóteo 6.20 – “o depósito”, e as “palavras fiéis” das cartas pastorais de Paulo (1 Tm 1.15; 3.1; 4.7-9; 2 Tm 2.11-13; Tt 3.4-8). Esses termos e locuções descritivos indicam que já nos dias dos apóstolos o processo teologizante de refletir em e comparar Escritura com Escritura, confrontando, deduzindo e formulando declarações doutrinárias em fórmulas credais que se aproximavam do caráter das confissões eclesiásticas se iniciara (exemplos dessas fórmulas credais podem ser vistos em Rm 1.3,4; 10.9; 1 Co 12.3; 15.3,4; 1 Tm 3.16 tanto quanto nas “palavras fiéis” das Pastorais). [12] De mais a mais, tudo isso foi feito com o pleno conhecimento e aprovação dos próprios apóstolos. De fato, os apóstolos mesmos estiveram pessoalmente envolvidos nesse processo teologizante. Em Atos 15.1 – 16.5, por exemplo, os apóstolos trabalharam como presbíteros na atividade deliberativa de preparar, para orientação da igreja, uma resposta teológica conciliar à controvérsia ora em consideração. Por esse motivo, quando hoje nós, sob a direção do Espírito de Deus e em fé, vamos às Sagradas Escrituras e com nossas melhores instrumentos intelectuais fazemos um esforço para deslindar suas proposições e preceitos, investigar as operações dele no mundo, sistematizar seus ensinos e os formular em credos, bem como propagar ao mundo sua mensagem, estamos nos mantendo em linha com o processo teologizante já presente na igreja do período apostólico e por essa conduzido. A Inspiração e a Autoridade Divinas das Sagradas Escrituras Como discutiremos a fundo na parte um, a Bíblia é a Palavra de Deus revelada. Cristo, o Senhor da igreja, reputava o Antigo Testamento como tal, e deu à igreja ampla razão para estimar o Novo Testamento da mesma maneira. Isso quer dizer que o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo — na realidade, o Deus Triúno — “está realmente ali e ele fala”. Se está ali, então ele deve ser alguém que as pessoas devem conhecer. E se nos fala em e por meio das Escrituras do Antigo e Novo Testamentos, então só esse fato é sanção suficiente para se estudar as Escrituras. Declarado de outro modo, se Deus revelou a verdade sobre si mesmo, sobre nós e sobre o relacionamento entre nós e ele nas Sagradas Escrituras, então devemos estudá-las. Simplesmente assim. Sem dúvida, se levarmos a sério a verdade bíblica de que apenas à luz da Palavra de Deus entenderemos devidamente alguma coisa (Sl 36.9), nós temos que estudar as Escrituras Sagradas, ou, o que significa a mesma coisa, temos que ocupar nossas mentes com a busca da verdade teológica. Não ter interesse pelo estudo delas, se nelas um Deus vivo e verdadeiro se revelou, é o cúmulo da estupidez espiritual. Por essas cinco razões a igreja deve permanecer comprometida com a tarefa teológica. E pode agir assim com a plena certeza de que seus labores não serão uma perda de tempo e energia. Pois que nenhuma atividade intelectual por fim se provará mais recompensadora do que a aquisição de um conhecimento de Deus e de seus caminhos e obras. Sem dúvida, tão claro é o mandado escriturístico para tal tarefa que a questão primária da igreja não deve ser se ela deve ou não se envolver na teologia — o Senhor da igreja e seus apóstolos não deixam opção nenhuma aqui. A igreja tem que se ocupar com aquela se tiver de ser fiel a ele. Mais precisamente, o que deve ser de maior preocupação para a igreja é se, em seu envolvimento com teologia, está ela ouvindo tão solícita e submissamente como deveria a voz do Senhor falando à sua igreja nas Sagradas Escrituras. Em suma, a principal preocupação da igreja deve ser, não o ocupar-se com teologia, mas se a teologia dela está correta. É ela ortodoxa? Ou talvez melhor: Ela é bíblica? A TAREFA TEOLÓGICA Quão precisamente a tarefa teológica é descrita será determinada pelo Sitz im Leben do teólogo individual, governado que é por suas próprias qualificações teológicas, situação sócio-histórica, erudição e posição teológica. Aspectos Gerais da Tarefa Teológica Junto com Louis Berkhof, creio que a tarefa teológica em geral é tanto uma tarefa construtiva quanto demonstrativa, tanto crítica quanto defensiva: 1. Construtiva no fato de o teólogo, lidando primariamente com os dogmas incorporados na confissão de sua igreja, procurar combiná-los em um todo sistemático – nem sempre uma tarefa fácil, uma vez que os conectivos entre muitas verdades que são meramente afirmadas de uma maneira geral devem ser descobertos, fornecidos e formulados de tal forma que a conexão orgânica dos vários dogmas se torne clara, com novas linhas de desenvolvimento sendo sugeridas, as quais estejam em harmonia com a estrutura teológica do passado; 2. Demonstrativa no fato de que o teólogo não deve, mediante sua sistematização de dogmas, meramente descrever o que sua igreja insta os outros a crer, mas também deve demonstrar a verdade dessa demonstrando exegeticamente que cada parte dela está profundamente arraigada no subsolo das Escrituras, oferecendo prova bíblica para cada dogma separadamente, para cada um de seus conectivos e para cada um de qualquer elemento novo que ele teólogo sugira; 3. Crítica no fato de que o teólogo deve levar em conta a possibilidade de um desvio da verdade em algum ponto ou outro nos dogmas de sua igreja e no sistema sistemático que ele mesmo propõe, significando, primeiro, que, se detectar erros em algum ponto, ele deve procurar solucioná-los do modo apropriado, e segundo, se ele descobre lacunas, deve se empenhar em suprir o que está faltando (para os teólogos reformados tal aspecto da tarefa teológica é captado no lema ecclesia reformata semper reformanda – “uma igreja reformada está sempre se reformando”); e 4. Defensiva no fato de que o teólogo, preocupado que está com a busca pela verdade absoluta, deve não somente estar plenamente ciente dos desvios históricos anterioresda verdade de sorte a ele mesmo evitá- los, mas deve igualmente repelir todos os ataques heréticos correntes contra os dogmas verdadeiros incorporados no sistema de sua igreja. [13] No tocante à tarefa da teologia sistemática em particular, estou de acordo com Gabriel Fackre que ela deve ser (1) abrangente, ou seja, cobrir todos os ensinos padrões das Escrituras, (2) coerente, ou seja, demonstrar os inter-relacionamentos dos vários tópicos, (3) contextual, ou seja, interpretar, quando e onde possível, o alcance da doutrina em termos de assuntos e jargões de momento, e (4) interativa, ou seja, ocupar-se dos pontos de vista histórico e contemporâneo. [14] E, junto com Klaus Bockmuehl, eu acredito que o próprio teólogo sistemático (1) “deve encorajar ... e exercer o ministério de ensino na igreja” e “reativar [a] função catequética a fim de confirmar tanto igrejas quanto crentes individuais para que não sejam levados por doutrinas forâneas e finalmente destruídos”; (2) deve alterar sua forma de expressão, quando e onde possível, longe daquela dos conceitos de pensamento e linguagem metafísicos gregos para aquela do dinamismo bíblico que esteja interessado na história dos feitos de misericórdia de Deus; e (3) contra a filosofia do senhorio do homem, “deve exigir a reversão da decisão [da sociedade moderna] pelo secularismo [i.e., ateísmo]” e novamente “insistir publicamente e encorajar a insistência no senhorio de Deus … [e] anunciar a Deus verdadeiramente como Deus para uma geração esquecida desse fato fundamental”. [15] Aspectos Específicos da Tarefa Teológica Reformada Com esses aspectos gerais da tarefa teológica guiando-o, o teólogo sistemático reformado é responsável sobretudo por prover seus leitores com (1) informação cognitiva organizada que seja radicalmente bíblica (isso é simplesmente o que significa ser “reformado”) e (2) agindo assim de um tal jeito que aquela informação incentive o crescimento tanto nas habilidades ministeriais quanto nas atitudes de coração específicas para com as coisas do Espírito. O sistematizador reformado deve prover seus leitores com informação cognitiva a respeito 1. dos loci principais e das doutrinas cardeais da teologia cristã tal como apresentadas nas Sagradas Escrituras (o que ele dá a seus leitores deve ser, sem nenhuma alteração em seu conteúdo básico, material passível de pregação e ensino); 2. da fé histórica da igreja primitiva e da maneira com que essa expressava sua fé em credos e símbolos tais como o Credo dos Apóstolos, o Credo Niceno, o Credo Niceno-Constantinopolitano, a Definição de Calcedônia e o assim chamado Credo Atanasiano; 3. da natureza, riqueza e beleza da fé reformada como o ensinamento das Sagradas Escrituras, e tal como interpretada, exposta e exibida nas Institutas da Religião Cristã, de João Calvino, bem como nas grandes confissões reformadas nacionais, particularmente a Confissão de Fé de Westminster e os Catecismos Maior e Menor da Assembléia de Westminster; 4. da ortodoxia reformada e sua validade como a mais viável expressão contemporânea da ortodoxia escriturística; 5. dos temas dominantes da teologia contemporânea a partir da postura do biblicismo e do confessionalismo reformado; 6. dos temos temas filosóficos, ideológicos e religiosos do pensamento contemporâneo onde afetem o conteúdo do evangelho cristão analisado como incluindo tanto a proclamação quanto o ensinamento cristãos. O sistematizador reformado é igualmente responsável por transmitir tal informação cognitiva de um jeito que estimule seus leitores a crescerem em certos afetos religiosos específicos, sobretudo em 1. sua reverência pelas Sagradas Escrituras como Palavra de Deus para nós e como a fonte e norma de instrução final para a fé e a vida; 2. sua constante presteza para ver o reino de Deus e a unidade dos concertos bíblicos como a chave hermenêutica para a compreensão das Sagradas Escrituras; 3. seu apreço pela herança teológica reformada; 4. sua perseverança no esforço para crescer como teólogos sistemáticos; 5. seu respeito pela obra de outros que se aplicaram na tarefa sistemática, e.g., Orígenes, Agostinho, Tomás de Aquino, João Calvino, William Ames, Francis Turretin, Jonathan Edwards, Heinrich Heppe, Charles e A. A. Hodge, William G. T. Shedd, James Henley Thornwell, Robert Lewis Dabney, Abraham Kuyper, Herman Bavinck, Augustus Hopkins Strong, Benjamin B. Warfield, Francis Pieper, Louis Berkhof, J. Oliver Buswell Jr., Gerrit C. Berkouwer, John Murray, John H. Gerstner, e Wayne Grudem; [16] 6. seu temor respeitoso como aqueles aos quais foi outorgado o grande privilégio de estudar a “mente de Cristo” como revelada nas Sagradas Escrituras; 7. sua sobriedade como aqueles que foram chamados para difundir a palavra do juízo de Deus aos povos do mundo; 8. seu gozo como aqueles que foram chamados para proclamar a palavra da graça de Deus para os mesmos povos; 9. sua brandura como aqueles que reconhecem que também devem viver pela e debaixo da mesma Palavra que estudam e aplicam às vidas dos outros; 10. sua ousadia para aplicar os insights doutrinários que adquirem de maneira cativante e prática à vida cristã e a um mundo em grande necessidade; 11. sua sincera preocupação por uma evangelização biblicamente fiel de um mundo perdido e pela sujeição das nações sob a “eqüidade geral” da regra messiânica corrente de Cristo (Confissão de Fé de Westminster, XIX/iv); e 12. sua humilde e devota confiança em Deus por todas essas coisas, com a oração perpétua de que “seja sobre nós a graça do Senhor, nosso Deus; confirma sobre nós as obras das nossas mãos” (Sl 90.17, ARA). Com essa percepção da tarefa da teologia — e da teologia sistemática reformada em particular — governando nosso pensamento, começaremos agora a nossa jornada para o fascinante e deslumbrantemente rico mundo da teologia como disciplina intelectual. Dado que toda verdadeira teologia deve ter um fundamento apropriado, principiaremos com um tratamento propedêutico das Sagradas Escrituras como a única base legítima para asserções teológicas peremptórias. Em seguida, na ordem de sucessão, dirigiremos nossos esforços para os loci teológicos clássicos, a saber, as doutrinas de Deus (ou teologia própria), do homem como criatura pactual e violador do concerto, da natureza da encarnação de Cristo, de sua salvação tanto em seu aspecto acabado quanto aplicado, da igreja e de seus atributos e marcas, de sua autoridade e deveres, de seu governo e de seus sacramentos, e por fim, das complexidades maravilhosas mas intrincadas das “últimas coisas”. PARTE UM Uma Palavra de Um Outro Mundo CAPÍTULO UM: O FATO DA DIVINA REVELAÇÃO Centenas de cientistas do mundo estão despendendo várias somas dos tesouros de suas nações tentando estabelecer contato significante com seres racionais que se imagina viverem no espaço sideral. É um empreendimento sobremodo questionável por muitas razões, mas a sede insaciável por uma palavra para nós que venha de um outro mundo os impele adiante em uma busca que até o presente nada rendeu. A igreja cristã crê que já possui uma palavra do “espaço cósmico”, ou, mais exatamente, uma palavra de além do espaço, precisamente do próprio Deus Triúno do céu. Minha meta na parte um desta obra é expor uma porção importante da evidência em favor do ensino de que a Bíblia é efetivamente a Palavra de Deus revelada e inspirada de um outro mundo para os habitantes deste mundo. Demonstraremos que, malgrado inteiramente escrita por homens, é igualmente a Palavra do Deus vivo, pois que o Espírito de Deus inspirou homens a escreverem-na no todo e em parte. A relação entre os autores humanos e o Espírito de Deus, não obstante, não foi uma relação de simples cooperação ou co-autoria. Os homens não poderiam (e não quereriam) ter escrito a Bíblia sema atividade superintendente do Espírito. O Espírito Santo, então, é o autor das Escrituras em um sentido mais profundo e original do que jamais os escritores humanos poderiam (ou quereriam) ter sido. Deus é o autor primeiro das Sagradas Escrituras, com os escritores humanos sendo os autores das Escrituras só até o ponto em que o Espírito deu o mandado, iniciou e forneceu o impulso para que eles escrevessem. Nunca a Bíblia, seja no todo, seja em parte, existiu por algum momento à parte de seu caráter mandado e inspirado pelo Espírito. Em conseqüência, reputar a Bíblia apenas como uma biblioteca genericamente confiável de documentos antigos compostos por autores humanos, como até alguns evangélicos estão querendo que o incrédulo façam (pelo menos inicialmente) como parte de sua estratégia apologética, [17] é fazer vista grossa ao fato mais fundamental sobre a Bíblia e a principal reivindicação dela acerca de si mesma. Tal convicção de que o Espírito Santo é o autor primeiro das Escrituras acarreta uma outra convicção, a saber, que a influência superintendente do Espírito sobre as mentes dos escritores bíblicos garantiu que escrevessem com precisão o que Deus queria. Assim, porquanto o Deus da verdade pelo Espírito da verdade inspirou os escritores da Bíblia a escrever o que ele queria que escrevessem, o efeito final foi um autógrafo ou original inerrante. E se não conseguirmos reconhecer nas Escrituras a voz de nosso Mestre falando sua infalível verdade a nós do mundo dele para o nosso, destruir-nos-emos não somente epistemicamente, mas também pessoalmente, posto que abandonaremos o único fundamento para a certeza de conhecimento e a única “base significante” pela qual podemos verdadeiramente conhecer o Único Deus infinito e pessoal e por esse meio conhecer a nós mesmos como pessoas de dignidade e valor. [18] O PROCESSO REVELACIONAL A Bíblia ensina que Deus se revelou ao povo “muitas vezes, e de muitas maneiras ” (Hb 1.1,2). [19] As expressões nominais mais comuns no Antigo Testamento para essa idéia revelatória são “a palavra de Iahveh [ou Deus]” ([ ם ֱא˄ִהי ] ה יהו ְדַּבר , debar yhwh [ ’elōhîm ]), a qual ocorre vintenas de vezes, e “a lei [de Iahveh]” ([ ה והי] ת תּוַֹר , tōraṯ [ yhwh ]), cujo significado próprio é “instrução”, a qual, por seu turno, fortemente sugere “comunicação divina oficial”. [20] O verbo vetotestamentário capital que expressa a idéia revelatória é ה ָגָּל , gālâh, ocorrendo umas vinte e duas vezes, cujo significado da raiz parece ser “nudez”, e que, quando aplicado à revelação, parece sugerir a remoção de obstáculos à “percepção”, uma vez que freqüentemente se fala do profeta como um “vidente” ( ה רֶֹא , rō’eh , ou ה חֹזֶ , ḥōzeh ) o qual “vê” visões ( ה ַמְרֶא , marʼeh, ן ֲחזוֹ , ḥazôn , ת ָחזוּ , ḥāzûṯ, ן ִהזָּיוֹ , ḥizzayôn ) (ver Is 1.1; 2.1; 13.1; 29.10,11; Jr 38.21; Lm 2.14; Ez 1.3, 4; 13.3; Am 1.1; Mq 1.1; Hc 1.1; 2.1). [21]Ocasionalmente, o verbo ע יַָד , yāḏaʻ , em sua forma causativa (“fazer conhecido”) é também empregado no sentido de “revelar” (Sl 25.4; 98.2). No Novo Testamento os grupos de palavras elementares para a idéia revelatória são formados a partir dos verbos ἀποκαλύπτω ( apokalyptō, “revelar”; ver ἀποκάλυψις , apokalypsis, “revelação”) e φανερόω ( phaneroō, “manifestar”; ver ἐπιφάνεια , epiphaneia, “manifestação”). [22] O que foi isso que Deus revelou? Ele revelou (1) tanto sua existência e algo de sua natureza quanto seus preceitos morais, através da natureza do homem como imago Dei (Pv 20.27; Rm 2.15), (2) sua glória, na criação e na natureza, de uma maneira não-proposicional (Sl 19.1, 3, NVI; Rm 1.20), e (3) sua sabedoria e poder, tanto por meio de seus atos de providência ordinários [23] quanto de seus poderosos atos na “história da salvação” ou Heilsgeschichte (e.g., ver o tratamento indulgente para com a família de Noé no dilúvio, o êxodo, a Encarnação, a cruz de Cristo e a ressurreição). Esses “atos poderosos de Deus na história”, certamente, requeriam as explanações proposicionais que sempre os acompanhavam (Amós 3.7) e sem os quais os atos teriam sido deixados aos observadores desses interpretar da melhor forma que pudessem. Realmente, mais de trinta e oito centenas de vezes os escritores do Antigo Testamento introduzem suas mensagens com asserções como “a boca do Senhor fala”, “o Senhor diz”, “o Senhor falou”, “ouça a palavra do Senhor”, “assim me mostrou o Senhor”, “ou “a palavra do Senhor veio a mim, dizendo” [24] Considere os seguintes dados. [25] Evidência do Antigo Testamento Na Era Pré-patriarcal (Gn 1–11) Deus falou direta e proposicionalmente a Adão, havendo aparentemente assumido uma forma semelhante à humana para tal (Gn 2.16,17; 3.8), e entrou em pacto com ele, prometendo a Adão grande bem-aventurança e impondo a sanção de morte em caso de desobediência. Ele também falou a Caim (4.6–12), a Noé (6.13–21) e a Noé e seus filhos (9.1, 8). Nos Tempos Patriarcais (Gn 12–50) Deus novamente revelou suas promessas pactuais e vontade preceptiva mediante teofanias (“o anjo do Senhor,” [26] Gn 16.7–13; 28.13 [ver 31.11–13]; 32.22–32 [ver 48.15,16; Os 12.3,4]), e igualmente falou por intermédio de visões (Gn 12.7; 15.1, 12; 26.24; Jó 4.13; 20.8; 33.15) e de dois tipos de sonhos — sonhos em que revelações diretas eram comunicadas (Gn 15.12; 20.3, 6; 28.12; 31.10, 11; 46.2), e sonhos simbólicos que exigiam interpretações divinas (Gn 37.5, 6, 10; 40.5–16; 41.1, 5). [27] No Período Mosaico (de Êxodo a Deuteronômio) Deus continuou a se revelar por meio teofânicos (seu “anjo”, a sarça ardente, a coluna de nuvem e fogo) e através de visões (Nm 22.20). Porém, o principal órgão da revelação era o próprio Moisés, a quem Deus comissionou na sarça ardente para ser seu porta-voz acreditado e, assim, um profeta singularíssimo na história de Israel (Nm 12.6–8; Dt 18.18, Os 12.13). No mar Deus se revelou como o Deus do concerto, salvando seu povo e julgando os inimigos desse. Várias vezes lemos sobre Moisés registrando coisas que Deuslhe relatou (Ex 17.14; 24.4, 7; 34.27; Nm 33.2; Dt 31.9, 24; ver João 5.46,47). No monte, Moisés recebeu “o livro da aliança” (Ex 24.7 — ת ַהְבִּרי ֵסֶפר , sēp̱er habberîth; ver também “o livro da lei,” Dt 31.26), o qual era tido como de autoridade igual à do próprio Moisés. Os Urim e Tumim do sumo sacerdote também se tornaram um meio para discernir a vontade de Deus (Ex 28.30; Nm 27.21; 1 Sm 14.41, BJ; 28.6; Ed 2.63; Ne 7.65), enquanto os levitas estavam comissionados para preservar a Lei e ensiná-la (Dt 17.18; 31.9–13; ver Ml 2.5–7). Nesse período Moisés escreveu o Salmo 90. Também nessa época vemos o espiritismo e a feitiçaria expressamente proibidos como meios para se descobrir a vontade divina (Lv 19.26; 20.27; Dt 18.14). Na Era da Conquista (de Josué a Rute) a Lei de Moisés permaneceu sendo a autoridade de Israel (Js 1.7,8; 8.30–35; também chamado de “o livro da lei de Deus,” Js 24.26), com Deus continuando a falar a Josué (Js 1.1, 5, passim) e, por seu anjo, a juízes tais como Gideão (Jz 6.12). Ele também falou por meio de um sonho a um soldado midianita (Jz 7.13–15). Na grande Era dos Profetas (de Samuel a Malaquias; ver Atos 3.24) Deus falou audivelmente a Samuel (1 Sm 3; ver ainda 1 Sm 10.25, ARC: “E declarou Samuel ao povo o direito do reino, e escreveu-o num livro [ ר ֵסֶפ , sēp̱er ], e pô-lo perante o Senhor”, o que sublinha o papel de Samuel na inscrituração da revelação). Por seu turno, Samuel organizou escolas ou guildas de profetas (1 Sm 10.5–11) que deviam suplementar a Palavra de Deus dada por Moisés, instruir Israel nos caminhos de Deus, e agir como guardiães da teocracia. Também nesses “estabelecimentos similares a claustros, dedicados à religião e ao aprendizado”, [28] os profetas estudavam a lei revelada de Deus, conservavam um registro da história de Israel, [29] e dispunham da preservação de seus próprios escritos proféticos. Durante o tempodo reino unido Deus falou a Davi (1 Sm 23.2–4) e a Salomão (1 Reis 3.5; 9.2; 2 Cr 7.12) através de Profetas tais como Natã (2 Sm 7.4–17; 12.1–14; 1 Cr 17.3), através dos (no mínimo) setenta e três salmos de Davi [30] e os dois salmos de Salomão, e finalmente através da literatura sapiencial de homens piedosos e sábios. [31] Foi também nesse período que foi estabelecida uma distinção clara entre revelação especial e revelação geral (ver Sl 19). Durante o período do reino dividido, antes da época dos grandes profetas escritores, Deus falou por intermédio de profetas tais como Aías (1 Reis 11.29–39; 14.6–16), Semaías (1 Reis 12.22–24), Elias (mas veja 2 Cr 21.12–19 para obter uma profecia escrita por Elias), Micaías (1 Reis 22.17– 28), e Eliseu (2 Reis 2–13), os quais fizeram tanto vaticínios de curto (e.g., 1 Reis 17.1, esses para autenticar rapidamente a instituição profética em Israel como genuinamente proveniente de Deus) quanto de longo prazo (e.g., 1 Reis 13.2). Então, desde o século nono até o século quinto Deus falou em visões aos assim chamados profetas escritores — Obadias e Joel (profetas do século nono), Jonas, Amós, Oséias, Miquéias e Isaías (profetas do século oitavo), Naum, Sofonias, Habacuque e Jeremias (profetas do século sétimo), Daniel, Ezequiel, Ageu e Zacarias (profetas do século sexto), e a Malaquias (um profeta do século quinto). Ele também falou por sonhos a Nabucodonosor e Daniel (Dn 2.1, 3, 19, 26; 4.5; 7.1; ver ainda Jr 23.25, 28, 32; 27.9; 29.8; Zc 10.2). Visto como esses profetas transmitiam a mensagem de Deus para o povo, embora tudo o que dissessem era em última análise de Deus (ver 2 Tm 3.16; 2 Pe 1.20,21), muitas vezes o fator divino sobrepujava tanto o fator humano que o segundo praticamente saía de vista. Segundo observa Louis Berkhof: A palavra profética [amiúde] começa falando de Deus na terceira pessoa, e em seguida, sem indicação alguma de transição, continua na primeira pessoa. As palavras de abertura são palavras do profeta, e então, súbita e inesperadamente, sem qualquer preparação do leitor para uma mudança, o autor humano simplesmente desaparece de vista, e o autor divino aparentemente fala sem intermediário algum, Is 19.1, 2; Os 4.1–6; 6.1–4; Mq 1.3–6; Zc 9.4–6; 12.8, 9. Deste modo, a palavra do profeta passa direto para aquela do Senhor sem qualquer transição formal. As duas são simplesmente amalgamadas, provando assim serem uma só. [32] O Antigo Testamento também fornece evidência de que Deus instruiu claramente vários profetas para preservar em forma escrita as revelações que lhes estava dando (ver 1 Cr 29.12, 19; Is 8.1; 30.8; Jr 25.13; 30.1,2; 36.2, 27,28; Ez 24.1, 2; 43.11; Dn 9.2; 12.4; Hc 2.2; ver também aqui 2 Tm 3.16; 2 Pe 1.20,21), justificando a inferência de que agiu dessa maneira com todos os seus profetas escritores. Os profetas igualmente falam da mão do Senhor estando sobre eles de um tal jeito que eram constrangidos — algumas vezes contrariamente ao desejo natural deles (Ex 3.11; 4.10, 13; Jr 1.6) — a proclamar a mensagem divina (Is 8.11; Ez 1.3; 3.22; 37.1). Jeremias exprimiu a santa compulsão que sentia para falar a mensagem de Deus nestas palavras: “Isso [a palavra divina] foi no meu coração como fogo ardente, encerrado nos meus ossos; e estou fatigado de sofrer e não posso. ל אוָּכ ְו˄א , welōʼ ʼûc̱āl ]” (Jr 20.9, ARC). Em todo esse período de esfacelamento do reino um mui patente processo de inscrituração da Palavra divina estava também acontecendo, com cada livro bíblico desse período, assim inscriturado, tornando-se um documento pactual ou do reino dado ao povo de Deus na história da redenção, com os profetas posteriores freqüentemente reconhecendo os escritos proféticos como falando com autoridade absoluta e citando-os como a palavra de Deus (ver Jl 2.32 e Ob 17; Am 1.2 e Jl 3.16; Jr 26.18 e Mq 3.12; Jr 49.14– 22 e Ob, passim; Ez 14.14, 20; Dn 9.2 e Jr 29.10; Zc 7.12; Ml 4.4). Sem dúvida, foi também nesse período dos grandes profetas que os doze salmos de Asafe, os dez salmos dos filhos de Coré, o salmo de Etã, o ezraíta, foram compostos e adicionados ao Saltério de Israel. Podemos agora sumarizar o conceito de revelação na época do Antigo Testamento: 1. Deus se revelou no contexto da “história da redenção” (história em que agiu em misericórdia e julgamento para redimir seu povo). 2. Tal “história da redenção” foi estruturada por vários concertos que Deus celebrou com Adão, Noé, Abraão, Israel (tanto no Sinai quanto nas Planícies de Moabe) e Davi, e pelo prometido novo concerto de Jeremias 31, cada pacto erigindo-se sobre os que o precederam à medida que Deus levava a cabo seu propósito salvífico. 3. Essa história pactualmente estruturada, por sua vez, forçosamente acarretou e foi servida pela comunicação verbal da verdade proposicional, asserções às vezes, de modo imediato, por meio de e proveniente de Deus mesmo, às vezes de modo imediato por pessoas autorizadas, autenticadas e inspiradas por ele. [33] 4. Essa atividade revelatória que acompanhava e servia à atividade redentora de Deus era necessariamente progressiva, possuindo sua progressividade um caráter orgânico, ou seja, uma perfeição em todo estágio (reside aí uma razão pela qual os profetas posteriores não hesitavam em citar os profetas anteriores). [34] 5. Tais revelações vieram por meio de teofanias, sonhos e visões que acompanhavam e explicavam a atividade redentora de Deus, mas culminaram na Era Mosaica e cada era seguinte na progressiva “inscrituração” da Palavra de Deus. Certas descrições neo- testamentárias do Antigo Testamento são notáveis no sentido de sugerirem que os escritores do Novo Testamento viam o Antigo como um corpo literário fixado e acreditado: “a lei e os profetas” ( ὁ νόμος καὶ οἱ προφῆται , ho nomos kai hoi prophētai )Lc 16.16; “Moisés e os profetas” ( Μωϋσέα καὶ τοὺς προφῆτας , Mōusea kai tous prophētas )Lc 16.29; “a Lei de Moisés, os Profetas, e os Salmos” ( τῷ νόμῳ Μωϋσέως καὶ τοῖς προφῆταις καὶ ψαλμοῖς , tō nomō Mōuseōs kai tois prophētais kai psalmois ) Lc 24.44; a “Lei” ( τῷ νόμῳ , tō nomō [uma citação dos Salmos]) Jo 10.34; “a Escritura” ou “as Escrituras” ( ἡ γραφή , hē graphē, αἱ γραφαί , hai graphai ) Jo 10.35; Rm 9.17; Lc 24.27; “santas escrituras” ( γραφαῖς ἁγίαις , graphais hagiais ) Rm 1.2; os “oráculos de Deus” ( τὰ λόγια τοῦ θεοῦ , ta logia tou theou ) Rm 3.2, ARC; “oráculos de vida” ( λόγια ζῶντα , logia zōnta ) At 7.38, Almeida; “Escrituras proféticas” ( γραφῶν προφητικῶν , graphōn prophētikōn ) Rm 16.26, Almeida; [35] e “as sagradas Escrituras” [ τὰ ] ἱερὰ γράμματα , ( [ta] hiera grammata ) 2 Tm 3.15. 6. A leitura e o ensinamento público da Palavra de Deus acompanhou a sua inscrituração, de sorte que a Palavra de Deus pudesse ser conservada diante do povo como sua revelação perpétua a esse (Js 8.30–35; Ne 8.1–18; Ml 4.4–6). Evidência do Novo Testamento 1. Na era neo-testamentária (um período de tempo muito mais curto do que aquele do Antigo Testamento, cobrindo apenas cem anos, aproximadamente), Deus reinaugurou o processo revelatório que havia cessado com Malaquias. As primeiras mensagens foram as palavras de Gabriel a Zacarias e Maria (Lc 1.13–20, 28–37) e cinco sonhos sobrenaturais a José e aos magos (Mt 1.20; 2.12, 13, 19, 22). 2. Posteriormente Deus falou através de João Batista, com Lucas 3.2 relatando a emergência da revelação com João em palavras que faziam paralelo à fórmula vetotestamentária: “veio ... a palavra de Deus a João” ( ἐγένετο ῥῆμα θεοῦ ἐπὶῙωάννην , egeneto rhēma theou epi Iōannēn ). 3. Em seguida ele revelou sua glória, graça e verdade de modo mais pessoal e direto em seu Filho encarnado que é a Palavra [o Verbo] [36] de Deus (Jo 1.1, 14, 17; 17.3–8; Hb 1.1,2) — cuja pessoa manifestava o nome e a natureza de Deus (Jo 17.6), cuja obra revelava a obra de Deus (Jo 17.4), e cujas palavras revelavam as palavras deDeus (Jo 12.44–50; 17.8). 4. Finalmente, na era apostólica Deus proveu a explicação dessa “revelação do Filho” por sua “revelação da Palavra [Verbo]” através dos apóstolos e profetas de Cristo (Jo 16.12–15; 1 Ts 2.13; 1 Co 2.13; 12–14; Ef 3.5; 2 Pe 3.15,16). [37] Podemos sumarizar o conceito de revelação na era do Novo Testamento com mais seis pontos: 1. Nos Evangelhos, Cristo, a Palavra [Verbo] encarnada, a quem João anunciava como o Messias do Antigo Testamento, alega ter autoridade suprema, definitiva e absoluta, a autoridade do próprio Senhor Deus (ver Mt 9.2; 11.27; 28.18; Lc 21.33). 2. Nos Evangelhos, Cristo chama, equipa e envia para vários lugares apóstolos para falarem e agirem com a autoridade dele, e provê para o seu contínuo testemunho acreditado (Lc 6.13; 9.1–6 [aqui eles são designados para um “estágio” no exercício dessa autoridade], Jo 14.25,26; 16.12–15; 17.20 [aqui eles são assegurados de que não precisam confiar nas próprias memórias para o conhecimento e a exatidão; o Espírito Santo auxilia-los-á; aqui também, como missionários da igreja, devem ir adiante como “plenipotenciários”, tendo a autoridade dele]). [38] 3. No período do Novo Testamento, acompanhando a ressurreição e ascensão de Cristo, os apóstolos são autenticados como representantes autorizados pelas “marcas do apóstolo” (At 5.12; 2 Co 12.12; Hb 2.4). 4. O testemunho apostólico, o qual era, em primeiro lugar e na maior parte oral, culminou progressivamente na tradição apostólica escrita, a qual, por sua vez, tornou-se peremptória e normativa na igreja para a fé e a prática (1 Ts 2.13; 5.27; 2 Ts 2.15; 3.6, 14; 2 Co 10.8; 13.10; Ef 3.1– 4; Cl 4.16; 1 Jo 1.1–4; 4.6; Jo 20.30,31). 5. A igreja recebeu esses escritos apostólicos como estando em pé de igualdade com as Escrituras do Antigo Testamento (explicitamente afirmado em 1 Tm 5.18 [ver Lc 10.7]; 2 Pe 3.16; implicitamente declarado em 1 Ts 5.27; Cl 4.16; 1 Tm 4.13; Ap 1.3). [39] 6. A igreja pós-apostólica não “canonizou” as Escrituras do Novo Testamento mas somente declarou que ela os tinha recebido como dogmáticas e, assim, normativas desde o início como um corpo de literatura inspirado. A mais primitiva lista contendo apenas os vinte e sete livros do Novo Testamento ocorre em uma carta de Atanásio em 367 d. C.; o primeiro concílio para confirmar os vinte e sete livros do Novo Testamento foi o Terceiro Concílio de Cartago, em 397 d.C. Antecipando-se a uma questão que será tratada mais completamente no capítulo três, a saber, a cessação da revelação especial, é importante notar aqui que o processo revelatório, que produziu nossos Antigo e Novo Testamento não fluiu ininterruptamente. Entre Gênesis 49.27 e Êxodo 2.1 pouco mais de quatrocentos anos correram quando houve um “blecaute” da comunicação divina à família de Jacó no Egito. Então, com o falecimento de Malaquias, o último dos profetas do Antigo Testamento, um outro “blecaute” de quatrocentos anos sobreveio antes de o anjo Gabriel aparecer a Zacarias, o sacerdote, começando assim o período de revelação do Novo Testamento. Semelhantes “blecautes” revelacionais anteriores devem nos preparar para a naturalidade do “blecaute” revelacional que tomou lugar desde o fechamento do cânon do Novo Testamento. A OBJEÇÃO NEO-ORTODOXA Em nosso século registrou-se uma certa objeção sofisticada contra a idéia toda de uma revelação verbal. Tal objeção afirma que a verdade religiosa por sua própria natureza sempre será verdade existencial – isto é, a “verdade para mim” subjetiva, o existente humano. É dito que, porque a linguagem escrita ou falada é sempre apanhada na teia da relatividade histórica, ela é inadequada como condutora de verdade religiosa para satisfazer a demanda subjetiva da alma por certeza religiosa; serve, na melhor das hipóteses, como um Hinweis — um indicador — para “o encontro da verdade existencial” que jaz por trás e é denotado pelas reais palavras das Escrituras e experimentado não-verbalmente pelo existente humano. Em outras palavras, nunca a revelação é proposicional mas apenas pessoal, sempre, nos termos do “evento Cristo”, pois só Cristo é a Palavra [Verbo] de Deus. A Bíblia vira, pois, a testemunha humana falível do Verbo de Deus, e o Espírito Santo inspira, não a Bíblia, mas a “fé”, recriando o “evento Cristo” em nós existencialmente. É o crente que é em realidade “inspirado”. [40] Tal é o pronunciamento dogmático da neo-ortodoxia clássica. Como uma faceta daquela impressionante empresa dos anos 1920, 1930 e 1940, ele toma seu lugar na visão mais ampla daquela novidade teológica que, sob a influência da distinção kantiana entre as esferas “fenomenal” e “noumenal”, [41] defendia a “distinção qualitativa entre Deus e o homem, entre a eternidade e o tempo”. Immanuel Kant (1724–1804) argumentara que a esfera fenomenal, o mundo das aparências, era controlado pela razão pura, enquanto a esfera noumenal era a esfera de Deus, da liberdade e da fé, sendo governada pela razão “prática”. Conseqüentemente, os teólogos neo-ortodoxos afirmavam que, embora a eternidade pudesse “tocar” o tempo qual uma tangente toca um círculo, jamais poderia adentrar o tempo. Embora seja bem verdade que Deus “fale” existencialmente aos homens, essa “revelação” sempre se oculta fora e atrás da história no que os proponentes de tal tese referiam-se como história “primal” (Urgeschichte), e ela nunca deve ser identificada com as palavras da Bíblia ou qualquer outro livro no sentido A = A da palavra. Em uma palavra, tal objeção considera a Bíblia como um (imperfeito) registro da revelação de Deus aos seres humanos, mas não a revelação em si mesma. A revelação é sempre uma teofania direta não-verbal fora da história ordinária, e a verdade religiosa é sempre verdade pessoal ou existencial – o efeito de um encontro crise existencial (o “evento Cristo”) entre Deus e o existente humano individual. Eu diria pelo menos três coisas em resposta a essa objeção à doutrina protestante histórica das Escrituras como a própria Palavra de Deus. [42] Primeiro, seja o que for que alguém pessoalmente ache sobre o caráter verbal ou proposicional da revelação especial, deve ao menos aceitar que a própria Escritura afirma que uma forma – uma forma deveras significante – da revelação divina assumiu precisamente esse caráter. James Barr, ele mesmo, certamente, não amigo da doutrina evangélica da Escritura, bem o admite em seu livro Old and New in Interpretation. Em um apêndice a esse livro intitulado “A Note on Fundamentalism,” Barr observa: “Nas teologias revelacionais modernas [por esse termo ele alude às teologias neo-ortodoxas], é um argumento demasiadamente usado contra o fundamentalismo [por esse termo ele alude à teologia evangélica] dizer que ele depende de um ponto de vista proposicional da revelação, embora a visão correta da revelação seja de encontro, eventos, histórias ou assemelhados”. [43] Contudo, Barr acredita que a posição de alguém deve estar baseada em “uma exegese dos textos como eles são” [44] e desse modo é compelido a reconhecer que os evangélicos lêem sua Bíblia da forma correta: Até o ponto em que é de todo bom usar o termo “revelação”, é inteiramente verdadeiro, tanto dizer que no Antigo Testamento a revelação se dá pela comunicação verbal quanto que ela é por atos na história. Temos a comunicação verbal no fato de Deus falar diretamente com os homens e de que os homens aprendem dos outros e dos homens mais velhos através da forma verbal da tradição. Quando falamos da natureza altamente “pessoal” do Deus do Antigo Testamento, é mui grandemente sobre esse caráter verbal de sua comunicação com o homem de que somos dependentes. Os atos de Deus são significantes porque são postos dentro dessa estrutura de comunicação verbal. Deus conta o que está fazendo, ou conta o que vai fazer. Ele nada faz sem contar a seus servos, os profetas (Amós 3.7). Um Deus que agiu nahistória seria um fado misterioso e supra-pessoal se a ação não estivesse ligada à essa conversação verbal.… [45] Há alguma relutância em encarar o fato dessa comunicação verbal porque supõe-se que um problema apologético seja acarretado. Julgamos que não podemos imaginar comunicação verbal entre Deus e o homem, e preocupamo-nos com as terríveis conseqüências que se seguiriam na Igreja, e do sério estrago à racionalidade de nossa apresentação do cristianismo, caso fosse admitido que tal comunicação verbal é importante. Mas, em primeiro lugar, essas considerações apologéticas não nos devem impedir de falar historicamente acerca do caráter da literatura antiga. Quando falamos da importância da comunicação verbal, estamos falando como eruditos histórico-literários sobre o caráter da literatura e as formas de expressão que ela revela. Pode bem ser que os eruditos históricos não consigam dar um relato adequado de tais fenômenos; porém, podemos procurar dar dar um relato adequado de como eles deveriam ser compreendidos, e da maneira em que eles dominam as formas-padrões da literatura.[46] … Podemos expressar a matéria deste modo: que, sejam quais forem os atos e encontros que formavam a experiência do homem com Deus no Antigo Testamento, a forma tangível que elas tomam é a enunciação verbal, lingüística e literária. É isso que provê o conteúdo de todos os atos e encontros, e provê a distinção entre um e outro e os elementos do propósito e da vontade pessoal. Destarte, a experiência de Israel e seus profetas e outros cristaliza-se na forma de frases e complexos literários que são a forma articulada (e assim a forma cognoscível) da maneira em que Deus se relaciona com eles. [47] Em seu artigo “Revelation Through History in the Old Testament and in Modern Theology,” [48] Barr declara tal convicção com força até maior: Chegamos àqueles textos que suprem os exemplos básicos para a idéia de revelação através da história, tal como a narrativa de Êxodo. Se você trata esse registro como revelação através da história, você normalmente fala como se a base fosse a realização de certos atos divinos (o que, exatamente, eles eram é muitas vezes difícil de se determinar), enquanto a forma presente da tradição em seu detalhe e circunstancialidade é “interpretação” desses atos, ou “meditação” sobre eles, ou reflexão teológica induzida por eles. Desse modo pode-se ouvir a grande passagem revelatória de Êxodo 3 descrita como “interpretação” desse ato de salvação divino, ou como uma inferência do fato de que Deus tinha levado Israel para fora do Egito. Mas não posso fazer esse esquema ajustar-se aos textos, pois esse não é o modo com que os textos descrevem os eventos do Êxodo. Longe de representar os atos divinos como a base de todo conhecimento de Deus e toda comunicação com ele, eles representam Deus como livremente comunicando-se com homens, e particularmente com Moisés, antes, durante e depois de tais eventos. Longe de o incidente na sarça ardente ser uma “interpretação” dos atos divinos, é uma comunicação direta de Deus a Moisés de seus propósitos e intenções. Essa conversação, em vez de ser representada como uma interpretação do ato divino, é uma pré-condição dela. Se Deus não tivesse contado a Moisés o que ele fez, os israelitas não teriam querido escapar do Egito, e o livramento no Mar dos Juncos não teria acontecido. Podemos arrazoar, certamente, de um ponto de vista crítico, que os relatos de tais diálogos surgiram na verdade como inferência de um ato divino já conhecido e crido, e para isso pode haver boas razões. Tudo o que quero dizer é que, se nós fazemos isso, fazemo-lo sobre bases críticas e não bíblicas, pois não é dessa maneira que a narrativa bíblica descreve os eventos.… [49] Comunicação direta [entre Deus e os homens] é, creio eu, um fato inescapável da Bíblia e do Antigo Testamento em particular. Deus pode falar mensagens verbais específicas quando quer, para os homens de sua escolha. Mas para isso, se seguirmos a forma com que o Antigo Testamento explica os incidentes, não teria havido nenhuma vocação de Abraão, nenhum Êxodo, nenhuma profecia. Comunicação direta de Deus ao homem tem todo o direito a ser denominada o cerne da tradição quanto o tem a revelação mediante eventos na história. Se persistirmos em dizer que essa comunicação específica direta deve estar subsumida debaixo da revelação através de eventos na história e tomada como interpretação subsidiária da segunda, eu direi que estamos abandonando a própria apresentação bíblica da matéria por uma outra que seja apologeticamente mais confortável. E quero aqui, se posso utilizar uma locução deselegante, citar um blefe particular. É freqüentemente exposto a nós nos tempos modernos que há um “escândalo” na idéia de revelação através da história [o leitor deve perceber que, da perspectiva neo-ortodoxa, é esse “escândalo” que é o “escândalo” do evangelho que desafia a mente moderna e assim é uma coisa-autor desejável], e que a aceitação dela é algo seriamente difícil para a mente moderna, incluindo até a dos teólogos. O contrário me parece ser obviamente o caso. … A razão por que utilizamo-lo tanto é o próprio inverso: longe de ser uma pedra de tropeço central a nossas mentes, é algo que usamos porque é uma idéia prontamente aceitável dentro de nossa situação teológica; assim, trata-se de uma coisa que, em nosso emprego da Bíblia, capacita-nos a mitigar a dificuldade dos elementos que são na verdade infinitamente mais escandalosos, elementos tais como a comunicação verbal direta da qual estou falando, ou predição profética, ou milagres. [50] O que Barr está basicamente dizendo é que o acadêmico neo-ortodoxo deve admitir que a concepção de revelação esposada pelo evangélico é a concepção da própria Bíblia e que sua rejeição do “ponto de vista evangélico” está baseada em fundamentos filosófico-críticos extrabíblicos com os quais ele está confortável, em vez de fundada sobre fundamentos bíblicos. Segundo, a base epistemológica que a neo-ortodoxia oferece para justificar sua reivindicação de conhecimento religioso possui tudo da fraqueza de toda teologia “salto de fé”, especificamente, o radical subjetivismo e irracionalidade inerentes a toda experiência religiosa não-verbal. O existente religioso humano que queira esposar as teses epistemológicas da neo- ortodoxia nunca pode estar certo de que o encontro religioso subjetivo não- verbal a respeito do qual se ufana foi com Deus e não com sua própria consciência subjetiva, quando não com o próprio Satanás. Como ele sabe se é uma experiência religiosa verdadeira e não falsa? Que motivo pode ele oferecer para justificar sua explanação verbal de sua experiência religiosa não-verbal? E por que alguém deve acreditar nele? Finalmente, note o julgamento que a história mais recente da teologia tem dado a respeito dessas conclusões. O que aconteceu com a neo-ortodoxia clássica? Depois do radical bultmannismo dos anos 1940 e 1950 terem levado as implicações epistemológicas neo-ortodoxas a suas conclusões lógicas negando, por meio de seu programa de “desmitologização” do Jesus do Novo Testamento, a própria possibilidade de descobrir quaisquer fatos históricos significantes sobre ele, e por praticamente transformar a teologia em uma antropologia existencial heideggeriana, ela mesma foi deslocada pela “nova investigação” dos anos 1960, 1970 e 1980 pelo Jesus histórico. [51] Uma visão teológica que dizia muito acerca dos poderosos atos de Deus na história mas rejeitava identificar qualquer evento histórico como um ato de Deus, que falava muito acerca do Cristo da fé mas rejeitava identificar Jesus de Nazaré diretamente com esse Cristo em um ponto sequer, e que falava muito a respeito da Palavra de Deus ao homem mas se recusava a identificar a Bíblia ou qualquer outro livro diretamente com essa Palavra de Deus não podia inflamar a imaginação por muito tempo nem responder às duras perguntasdas pessoas pensantes. E um evangelho cujo Cristo é um “fantasma”, cuja cruz é meramente um símbolo, e cuja ressurreição ocorre apenas na “história primal” e não na história real onde as pessoas experimentam dor e morte e anelam por libertação simplesmente não tem capacidade de resistência alguma. Crescente intranqüilidade precisamente com tal ausência de elemento histórico na neo- ortodoxia provocou o ímpeto por trás da “nova investigação pelo Jesus histórico” sendo presentemente conduzida por muito da cultura crítica do Novo Testamento pós-bultmanniana. E é uma crítica berrante sobre quão mal a neo-ortodoxia, com seu conceito de revelação como não-histórica e existencial, tem se dado para notar que, ao passo que Bultmann intitulou sua existencial “vida de Jesus” em 1926 simplesmente de Jesus, Günther Bornkamm, um de seus estudantes, intitulou a sua “vida de Jesus” de 1956, Jesus of Nazareth, a qual, malgrado seu conteúdo nada mais ser que não um retorno à ortodoxia, reflete a extraordinária mudança para longe das teologias existenciais que dominaram a cena acadêmica algumas décadas atrás. É ainda bíblico insistir que Jesus Cristo é a Palavra [Verbo] encarnada de Deus, a suprema revelação de Deus, e não um vago “evento” que ocorre em um encontro pessoal não-verbal. [52] E é apropriado ainda ensinar que a Bíblia é a (proposicional) Palavra de Deus escrita, divinamente inspirada e, por conseguinte, infalível. E o Espírito Santo tanto inspirou a Bíblia quanto cria fé salvífica nos redimidos, iluminando-os no tocante, tanto à natureza da própria Escritura quanto da mensagem dessa para eles. OBJEÇÃO DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM Uma segunda objeção moderna à idéia de uma revelação verbal ou proposicional de Deus aos seres humanos argumenta que a linguagem é simplesmente inadequada como veículo de comunicação pessoal e certamente incapaz de expressar verdade literal acerca de realidades transcendentes. Esta objeção – arraigada no ceticismo positivista do presente – encontra expressão em poetas como Gertrude Stein, romancistas como Franz Kafka, dramaturgos como Samuel Beckett e filósofos tais como Ludwig Wittgenstein e A. J. Ayers. Também encontra expressão nas mui difundidas idéias religiosas orientais (tais como o taoísmo) que sublinham a inexpressibilidade de Deus. Tal objeção, naturalmente, tem seus problemas, sendo o primeiro deles o que Vern S. Poythress denomina o problema do valor. Ele pergunta: Sobre que base devemos fazer julgamentos sobre adequação e inadequação … ? O que podemos querer ao dizer que a linguagem humana é inadequada para falar a respeito de Deus … ? De que maneira é ela “inadequada”? E esperamos que falar sobre Deus … seja semelhante a quê? Nossas próprias expectativas e definições de “adequação” saem de cara com preferências, desejos, padrões e quiçá decepções com metas que estabelecemos mas não são alcançadas. De onde esperamos que esses valores provenham? Se Deus é Senhor, devemos conformar nossos valores aos padrões dele. Sendo assim, há algo intrinsecamente revoltoso em avaliar negativamente a linguagem bíblica [por sua inadequação como “fala de Deus”]. [53] Poythress destaca um segundo problema epistemológico: Como o discordante obtém o necessário conhecimento acerca de Deus, da verdade e das culturas a fim de fazer um juízo acerca da adequação da linguagem para expressar teologia e verdade, bem como para efetuar comunicações entre culturas diversas? Como ele faz isso quando ele mesmo está grandemente limitado pelas capacidades de sua própria língua e cultura? [54] Uma radical variante dessa objeção afirma que a linguagem humana é incapaz de expressar a verdade literal sobre qualquer coisa. [55] Um partidário dessa teoria, Wilbur Marshall Urban, escreve que “falando estritamente, não há coisa tal como verdade literal em nenhum sentido absoluto. … Não há frases estritamente literais … não há coisa tal como verdade literal … e qualquer expressão na linguagem contém algum elemento simbólico.” [56] Urban insiste em que ter verdade totalmente simbólica “é realmente impossível dada a própria natureza da linguagem e da expressão. Se houvesse coisa tal como uma verdade totalmente não-simbólica, ela não poderia ser expressada”. [57] Essa teoria da linguagem está baseada na premissa de que a linguagem humana originou-se dos guinchos e grunhidos dos animais. As primeiras palavras então faladas eram supostamente substantivos ou nomes produzidos pela imitação do som que um animal ou uma queda d'água produziam; ou, se o objeto não fazia barulho algum, algum método mais arbitrário era usado para apor a ele um substantivo. Porém, em todos os eventos, a linguagem tinha uma origem totalmente sensorial; todos os termos, possuindo sua origem imediata em impressões sensoriais, extraem seu sentido do mundo sensorial. Conseqüentemente, toda linguagem é simbólica. Os sentidos literais, particularmente para a metafísica, são impossíveis porque as palavras jamais podem ser completamente destacadas da origem sensorial deles. O que se deve dizer no tocante a uma tal teoria radical? Primeiramente, uma semelhante teoria da linguagem é autodestrutiva. Para demonstrar isso, deve-se somente perguntar ao proponente da teoria, que teoria ele expressou na linguagem, “A tua teoria da linguagem, como tu a declaras, é literalmente verdadeira?” Se ele afirmar que ela é, precisa-se apenas perceber que, se a declaração dele da teoria é literalmente verdadeira, a teoria é falsa em si mesma, pois enquanto proposição exposta em linguagem ela contradiz e assim falsifica a própria asserção que faz – a saber, que a linguagem não pode exprimir a verdade literal. Se ele retorquir que sua enunciação da teoria é a única exceção à tese que propõe, pode-se novamente insistir que tal asserção em causa própria ainda anula a teoria. Contudo, se ele afirma que sua declarada teoria não é literalmente verdadeira, pode-se simplesmente rejeitá- la, e esse é o fim do negócio. Se ele replicar que, embora a afirmação da teoria dele não seja literalmente verdadeira, ela é (de acordo com a própria teoria) simbolicamente verdadeira, pode-se apenas perguntar, “Simbolicamente verdadeira do quê?” Visto que qualquer coisa que ele disser em resposta, segundo o próprio ponto de vista dele, só pode ser simbolicamente verdadeiro de algo mais, e assim por diante, ad infinitum, seu regresso explanatório simbólico infinito torna impossível o esforço do teórico para justificar sua primeira asseveração (“A teoria é simbolicamente verdadeira”). Segundo, em um nível prático, ninguém pode realmente viver confortavelmente com o conceito de que a linguagem não pode comunicar verdade literal. Homens e mulheres discursam todo dia ao redor do mundo em situações políticas, econômicas e sociais. Eles tencionam, exceto pelo uso de óbvias figuras de linguagem tais como metáforas (as quais quando interpretadas têm em mente a verdade literal), que a linguagem deles seja entendida e recebida como literalmente verdadeiras por seus ouvintes. Por sua vez, presumem que as palavras faladas a eles serão normalmente verdadeiras de modo literal. Se as pessoas não compreendem o que uma outra quer dizer, pedem esclarecimento, e se têm razão para suspeitar da autenticidade das palavras a elas faladas, há meios a disposição delas (interrogatório da parte pelo lado oponente) para provar a veracidade ou falsidade delas. Em outras palavras, a maioria das pessoas simplesmente não supõe que a linguagem esteja sobrecarregada com tantas dificuldades teóricas a respeito “do que é para ser expressado” que seu valor como veículo para a verdade literal é reduzida a zero, isto é, que seus esforços verbalizadores estejam tão carregados de símbolos ambíguos que suas palavras não possam expor o que eles querem literalmente dizer. John M. Frame entra em detalhes sobre tal consideração e aplica as conclusões dele à questão da autoridade escriturísticas:
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