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PEREIRA, T. M. D. Comentários sobre o documentário Notícias de uma guerra particular In Políticas Públicas & Serviço Social: análises e debates. Publicação do Observatório Social. Rio de Janeiro, julho/agosto de 2008. Disponível em http://www.assistentesocial.com.br 1 COMENTÁRIOS SOBRE O DOCUMENTÁRIO NOTÍCIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR1 Tania Maria Dahmer Pereira2 Recentemente, os meios de comunicação e a opinião pública se mobilizaram em torno do lançamento do filme do diretor José Padilha – “Tropa de Elite”. A discussão e as reações acaloradas do público espectador, ocasionadas por este filme, foram mais amplas e indicam, certamente, a diferença de abordagem do diretor quanto à criminalidade, a criminalização da pobreza e à postura das forças de segurança no contexto histórico atual. Esta diferença que estamos assinalando diz respeito à abordagem dos diretores João Moreira Salles e Kátia Lund àquelas mesmas questões centrais – trazidas por José Padilha – no documentário, rodado em 1998, no Rio de Janeiro, intitulado “Notícias de uma Guerra Particular”. O contexto histórico é outro, o tráfico como empresa se instalava com mais vigor a partir dos anos de 1990, o salário mínimo à época das filmagens era menor, a mística do Comando Vermelho (ex-Falange Vermelha) ainda é lembrada por seus integrantes como Paz – querendo a paz para a vida social, Justiça como sinônimo da justiça social – fazer o que o Estado não faz para as comunidades e, Liberdade – liberdade a qualquer preço. A mística lembrada no depoimento de um dos integrantes da Falange Vermelha da década de 1980 aparece já superada no final dos anos de 1990 – o tráfico ainda faz suas formas de assistencialismo nos morros, mas produz também a intimidação nos moradores. O próprio título do documentário adota a expressão de um dos interlocutores/personagens do documentário – o integrante do BOPE – “esta é uma guerra particular”, referindo-se ao confronto diuturno das forças de segurança com o tráfico nos morros, “num país que não está em guerra”. 1 Documentário de João Moreira Salles e Kátia Lund. 2 Assistente social da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária do Rio de Janeiro. Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. PEREIRA, T. M. D. Comentários sobre o documentário Notícias de uma guerra particular In Políticas Públicas & Serviço Social: análises e debates. Publicação do Observatório Social. Rio de Janeiro, julho/agosto de 2008. Disponível em http://www.assistentesocial.com.br 2 O documentário sinaliza o movimento financeiro do tráfico de drogas, apoiado no tráfico de armas, a socialização de pré-adolescentes e adolescentes através do trabalho desempenhado no tráfico, o paradoxo de uma juventude despossuída de saúde, educação, saneamento, habitação, cultura e, sobretudo, despossuída de um projeto de futuro. Em contraponto, uma juventude pobre cooptada pelo consumo de “objetos de marca” (bermudas, tênis, camisetas) – a promessa “mercadológica”, capitalista, do acesso à felicidade, ao bem estar, através do acesso à posição de “cidadão consumidor”. A alienação política, propiciada pelo crime, quanto à possibilidade de ascensão social, de posição de poder e melhoria de auto-estima pela manipulação das armas, pela assunção de postos de trabalho no tráfico, por uma identidade que, mesmo que pela força e poder, possa ser reconhecida pelos outros, nomeada, visível. A inserção de jovens pobres na criminalidade passa a ser para a sociedade a representação da “classe perigosa”, dos “locais de risco” habitados pelos pobres, não do risco para eles próprios, mas do perigo e conseqüente medo que ocupam no imaginário da sociedade. Sabemos que a corrupção ativa, a prevaricação, a exploração de prestígio, a usurpação da função pública são alguns dos crimes tipificados pelo Código Penal e que por suas características e requisitos de quem os pratica, são crimes perpetrados por agentes públicos, de outros segmentos da população, distinta desta focalizada pelo documentário. Aqueles crimes contra o patrimônio público, mesmo quando provocam indignação e manifestações públicas, não suscitam o mesmo clamor que os assaltos, seqüestros, roubos ou tráfico de drogas. Sabemos que as punições dos crimes contra o patrimônio público são, quase sempre, raras e até surpreendentes. Contudo, a criminalidade praticada pelos segmentos empobrecidos e tipificados pelo imaginário social como “perigosos”, fomenta e acirra soluções de caráter conservador, tais como a implementação da pena de morte, dos grupos de extermínio, da diminuição da idade de responsabilidade penal, o uso PEREIRA, T. M. D. Comentários sobre o documentário Notícias de uma guerra particular In Políticas Públicas & Serviço Social: análises e debates. Publicação do Observatório Social. Rio de Janeiro, julho/agosto de 2008. Disponível em http://www.assistentesocial.com.br 3 contumaz da tortura pelo aparato policial e o endurecimento da legislação penal. Por outro lado, esta criminalidade possibilita o florescimento e a solidificação da indústria de equipamentos de segurança, do mercado de mão de obra de toda a área de segurança pública e privada, da qual se beneficia financeiramente grande parte dos industriais, comerciantes e funcionários públicos. Assim, enquanto a juventude dos sujeitos focalizados pelo documentário se esvai atrás dos muros dos regimes fechados de internatos ou se cala pelas mortes precoces, a estrutura social brasileira e seu modelo econômico continuam na sua produção imbatível das desigualdades. Portanto, o crime, neste sentido, é uma forma alienada de inserção social, pois não é um instrumento eficaz de transformação da sociedade de classes, mas ao contrário, acirra as relações sociais entre as classes. Justifica-se, então, diante do quadro de uma criminalidade crescente, toda ordem de “necessidades de proteção e defesa da sociedade” e, em contrapartida, a “eliminação dos vermes”3, as ações de confrontos nas comunidades, a contratação e a proliferação de grupos milicianos. Diante do cenário levantado pelo documentário, cabe refletir sobre o papel profissional dos agentes públicos, tanto dos que atuam nas ruas – as polícias, por exemplo - quanto os profissionais das instituições de operacionalização das medidas sócio-educativas ou de penas privativas de liberdade, no sentido que também podemos estar cooptados pelo imaginário social e reproduzir no nosso cotidiano as formas prevalentes, hoje, de trato dos pobres, com boas doses de preconceito, discriminação, como se fossem “ervas daninhas no jardim da sociedade” no dizer de Zygmut Bauman (1998). No sentido de sinalizar o risco que corremos como funcionários públicos envoltos nesta lide diária com sujeitos também excluídos moralmente da sociedade (vermes, bandidos, vagabundos são alguns de seus codinomes), vale lembrar a distinção feita por Bauman acerca da responsabilidade técnica e 3 ”Verme” é uma gíria usada no meio policial e se refere ao bandido, ao vagabundo, ao integrande da “classe perigosa”, mesmo que ainda um suspeito. PEREIRA, T. M. D. Comentários sobre o documentário Notícias de uma guerra particular In Políticas Públicas & Serviço Social: análises e debates. Publicação do Observatório Social. Rio de Janeiro, julho/agosto de 2008. Disponível em http://www.assistentesocial.com.br 4 da responsabilidade moral do funcionário público. Cita o exemplo de Eichman, um dos principais funcionários do III Reich,julgado em 1960 em Jerusalém pelos crimes cometidos na era Hithler: o próprio Eichman considerava seu trabalho de organização do transporte dos judeus, homossexuais, deficientes físicos, loucos para os campos de concentração e câmaras de gás como eminentemente técnico. Diz outro autor, Todorov (1995: 214) que para Eichman tanto fazia “recensear carneiros ou judeus”, pois o importante era desempenhar-se bem, “fazer bem o seu trabalho”. Eichman considerava seu trabalho como um segredo profissional, que demandava manutenção do silêncio quanto à finalidade – o extermínio de pessoas – e sua preocupação central era quanto à sua responsabilidade técnica – organizar bem as modalidades de transporte dos trens. Portanto, o caráter moral da ação, que tem a ver com os fins a que Eichman servia, era dissipado, tornando-o invisível ou encoberto. A sinalização que fazemos, pois, e que o documentário nos coloca com vigor, é de natureza ética e moral. Não é de natureza técnica. Tecnicamente podemos agir com eficácia, mas isto por si só não nos garante a qualidade ética, moral, de nossas ações como funcionários públicos. Veja-se a fala desesperançada e banalizada da autoridade pública: “[...] a polícia precisa ser corrupta e violenta, nós fazemos a segurança do Estado”, “[...] temos que manter os excluídos sob controle. A polícia garante uma sociedade injusta [...]”. Referências Bauman, Z. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 Todorov, T. Em face do extremo. Campinas/SP: Editora Papirus, 1995.
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