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Manifesto contra o trabalho

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1
MANIFESTO CONTRA O TRABALHO (1999)
(ED. ANTIGONA, Lisboa, 2003 – Trad. do alemão de José Paulo Vaz, revista por José M. Justo)
I. A DITADURA DO TRABALHO MORTO
Um cadáver domina a sociedade – o cadáver do trabalho. Todas as potências do globo estão coligadas em
defesa desta dominação: o Papa e o Banco Mundial, Tony Blair e Jörg Haider, sindicatos e empresários,
ecologistas alemães e socialistas franceses. Todos eles só têm uma palavra na boca: trabalho, trabalho,
trabalho.
Cada um tem que poder viver do seu trabalho, reza o princípio em vigor. Poder viver é,
portanto, algo que está condicionado pelo trabalho, e não há direito à vida onde esta condição
não estiver preenchida.
Johann Gottlieb Fichte
Fundamentos do Direito Natural segundo os Princípios da Doutrina da Ciência, 1797.
Quem ainda não desaprendeu de pensar reconhece sem dificuldade a inconsistência desta posição. Porque a
sociedade dominada pelo trabalho não vive uma crise transitória, antes está chegada ao seu limite último. Na
sequência da revolução microelectrónica, a produção de riqueza desligou-se cada vez mais da utilização da
força de trabalho humano – numa escala até há poucas décadas apenas imaginável na ficção científica.
Ninguém pode afirmar com seriedade que este processo voltará a parar, e muito menos que possa ser
invertido. A venda dessa mercadoria que é a força de trabalho será no século XXI tão promissora como foi
no século XX a venda de diligências. Porém, nesta sociedade, quem não consegue vender a sua força de
trabalho torna-se «supérfluo» e é atirado para a lixeira social.
Quem não trabalha, não come! Este princípio cínico continua em vigor, hoje mais do que nunca,
precisamente porque está a tornar-se irremediavelmente obsoleto. Trata-se de um absurdo: a sociedade,
nunca como agora, que o trabalho se tornou supérfluo, se apresentou tanto como uma sociedade organizada
em torno do trabalho. Precisamente no momento em que está a morrer, o trabalho revela-se uma potência
totalitária que não tolera nenhum outro deus junto de si. Dentro da vida psíquica, dentro dos poros do dia a
dia, o trabalho determina o pensamento e os comportamentos. E ninguém poupa despesas para prolongar
artificialmente a vida desse ídolo, o trabalho. O grito paranóico dos que clamam por «emprego» justifica até
que se aumente a destruição dos recursos naturais, com resultados há muito conhecidos. Os últimos
obstáculos à total comercialização de todas as relações sociais podem ser postos de lado, sem qualquer
crítica, na mira de meia dúzia de miseráveis «postos de trabalho». E a ideia de que é melhor ter um trabalho
«qualquer» do que não ter nenhum trabalho tornou-se uma profissão de fé universalmente exigida.
Quanto mais se torna claro que a sociedade do trabalho chegou definitivamente ao fim, mais violentamente
se recalca este facto na consciência pública. Por diferentes que possam ser, porventura, os métodos de tal
recalca mento, têm um denominador comum: o facto, mundialmente constatável, de o trabalho se revelar
irracional enquanto fim em si mesmo, de ser algo que se tornou a si próprio obsoleto, é transformado, com a
obstinação típica de um sistema delirante, em fracasso pessoal ou colectivo dos indivíduos, das empresas ou
de certas «localizações» geográficas. As limitações, que objectivamente são do próprio trabalho, devem
passar por problema subjectivo dos excluídos.
Enquanto para uns o desemprego se deve a reivindicações exageradas, à falta de disponibilidade ou de
flexibilidade, outros acusam os «seus» gestores e políticos de incompetência, de corrupção, de ganância ou
de traição a determinadas regiões. Mas, ao fim e ao cabo, toda essa gente está de acordo com o ex-presidente
da Alemanha, Roman Herzog: seria preciso um «abanão» em todo o país, exactamente como se o problema
fosse idêntico à falta de motivação de uma equipa de futebol ou de uma seita política. Todos devem, «de uma
forma ou de outra», agarrar-se ao remo com força, mesmo que o remo tenha desaparecido há muito, e todos
devem, «de uma forma ou de outra», pôr mãos à obra, mesmo que já não haja nada para fazer (ou só coisas
sem sentido). O subtexto desta mensagem triste é inequívoco: aquele que, apesar da sua aplicação, não
obtiver as boas graças do ídolo trabalho é responsável por essa situação, e não tem que haver problemas de
consciência em abatê-lo ao activo ou pô-lo na rua.
2
E esta mesma lei, que dita o sacrifício do homem, vigora à escala mundial. Uns após outros, países inteiros
vão sendo triturados pela engrenagem do totalitarismo económico, comprovando sempre o mesmo: pecaram
contra as chamadas leis do mercado. Quem não se «adaptar» incondicionalmente e sem reservas ao curso
cego da concorrência total será punido pela lógica da rentabilidade. Os que hoje são promissores serão a
sucata económica de amanhã. Mas os psicóticos económicos dominantes nem por isso se deixam abalar
minimamente na sua bizarra explicação do mundo. Três quartos da população mundial foram já declarados,
em maior ou menor medida, lixo social. As «localizações» privilegiadas desaparecem em catadupa. Depois
do desastre dos «países em vias de desenvolvimento», do Sul, e depois dessa secção da sociedade mundial
do trabalho que era o capitalismo de Estado, no Leste, são os alunos exemplares da economia de mercado do
Sudeste asiático que desaparecem no inferno das falências. E também na Europa alastra há muito o pânico
social. Mas, na política e na gestão, os respectivos cavaleiros-da-triste-figura limitam-se a prosseguir, cada
vez com mais raiva, a sua cruzada em nome do ídolo trabalho.
II. A SOCIEDADE DO APARTHEID NEOLIBERAL
O impostor tinha destruído o trabalho, e ainda levara consigo o salário de um trabalhador;
agora há-de trabalhar sem salário, mas, mesmo na masmorra, há-de pressentir a bênção do
sucesso e do ganho […]. Pelo trabalho forçado, deverá ser educado para o trabalho moral,
enquanto actividade pessoal e livre.
Wilhelm Heinrich Riehl
O Trabalho Alemão, 1861.
Uma sociedade centrada na abstracção irracional do trabalho desenvolve necessariamente a tendência para o
apartheid social, se a venda eficaz dessa mercadoria que é a força de trabalho deixa de ser a regra para passar
a ser a excepção. Há muito que esta lógica é secretamente aceite e até apoiada activamente pela totalidade
das facções integrantes do imenso campo do trabalho, que abrange todas as tendências políticas. Já não
discutem a questão de saber se cada vez maiores camadas da população são empurradas para a
marginalização e excluídas de qualquer participação social, mas apenas como impor esta selecção.
A facção neoliberal entrega o trabalho sujo, social-darwinista, à «mão invisível» do mercado. Neste sentido,
as estruturas do Estado social são desmanteladas de modo a marginalizar o mais discretamente possível
todos aqueles que já não conseguem participar na concorrência. Só é reconhecido como ser humano quem
pertencer à confraria cínica dos vencedores da globalização. Todos os recursos do planeta são naturalmente
usurpados pela máquina autotélica do capitalismo. Quando já não são aplicáveis de forma rentável para esse
fim, são deixados de pousio, mesmo que ao lado populações inteiras morram de fome.
Para tratar do «lixo humano» indesejável há a polícia, as seitas religiosas redentoras, a Mafia e a sopa dos
pobres. Nos Estados Unidos e na maior parte dos Estados do centro da Europa há mais gente na prisão do
que em qualquer ditadura militar mediana. Na América Latina são diariamente assassinados pelos
esquadrões da morte da economia de mercado mais meninos de rua e outros pobres do que oposicionistas
nos tempos da mais negra repressão política. Aos excluídos já só resta uma função social: a de servirem de
exemplo dissuasor. A sua desgraça deverá servir para espicaçar todos aqueles que ainda se encontram na
corrida para a terra prometida da sociedade do trabalho a lutar por um lugar, ainda que entre os últimos,e
para manter a própria multidão dos perdedores num movimento febril, de modo a que não lhes ocorra a ideia
de se revoltarem contra as exigências desavergonhadas do sistema.
Mas, mesmo obrigando a maior parte dos indivíduos a pagar o preço da auto-renúncia, o admirável mundo
novo da economia de mercado totalitária reserva-lhes um lugar de homens-sombra numa economia-sombra.
Só lhes resta servir humildemente os mais bem pagos ganhadores da globalização, desempenhando o papel
de mão-de-obra barata e de escravos democráticos da «sociedade de prestação de serviços». Os novos
«trabalhadores pobres» estão autorizados a limpar os sapatos aos últimos homens de negócios da moribunda
sociedade de trabalho, a vender-lhes hambúrgueres contaminados ou a vigiar os seus centros comerciais. Os
que tiverem deixado o cérebro no vestiário podem ainda sonhar com a possibilidade de se tornarem
milionários na prestação de serviços.
Este mundo de terror já é uma realidade para milhões de seres humanos nos países anglo-saxónicos, para já
3
não falar no Terceiro Mundo e na Europa de Leste; quanto à Eurolândia, mostra-se decidida a recuperar
rapidamente o tempo perdido. A imprensa económica há muito que deixou de fazer segredo da perspectiva
que idealiza para o futuro do trabalho: as crianças do terceiro mundo, que limpam os pára-brisas dos
automóveis nos cruzamentos poluídos, são o luminoso exemplo de «iniciativa empresarial» que deve
orientar, tão solicitamente quanto possível, os desempregados da nossa sociedade, supostamente «carenciada
de prestação de serviços». «O modelo do futuro é o indivíduo na qualidade de empresário da sua força de
trabalho e da sua protecção social», escreve a «Comissão para as Questões do Futuro, dos Estados Livres da
Baviera e da Saxónia». E prossegue: «A procura de serviços indiferenciados, directamente prestados a um
particular, é tanto maior quanto menos custarem os serviços, ou seja, quanto menos ganharem os prestadores
de serviços.» Num mundo em que as pessoas ainda tivessem respeito por si próprias, uma tal afirmação
provocaria necessariamente uma onda de revolta social. Mas, num mundo de animais de trabalho
domesticados, suscita apenas um inócuo encolher de ombros.
III. O NEOAPARTHEID DO ESTADO SOCIAL
Qualquer trabalho é melhor do que nenhum.
Bill Clinton, 1998.
Nenhum trabalho é tão duro como não ter trabalho.
Tema de uma exposição de cartazes do Organismo Federal de Coordenação das Iniciativas dos
Desempregados da Alemanha, 1998.
O trabalho cívico deve ser recompensado, mas não simplesmente remunerado […]. Quem presta
trabalho cívico libertase também do estigma do desemprego e da assistência social.
Ulrich Beck, A Alma da Democracia, 1997.
As facções antineoliberais do campo de trabalho, que é a sociedade no seu conjunto, podem porventura não
gostar muito desta perspectiva, mas são precisamente aquelas que mais fervorosamente defendem a ideia de
que um homem sem trabalho não é um homem. Nostalgicamente agarradas à concepção fordista do pós-
guerra, assente no trabalho de massas, pensam apenas em ressuscitar esses tempos idos da sociedade do
trabalho. O Estado deveria voltar a encarregar-se daquilo que, em dado momento, o mercado não é capaz de
fazer. A suposta normalidade da sociedade do trabalho deveria ser estimulada através de «programas de
emprego», da obrigatoriedade de trabalho comunitário para os beneficiários do rendimento social, de
subsídios à relocalização de empresas, de endividamento público e de outras medidas políticas. Esta
estatização do trabalho, uma espécie de requentamento pouco convicto, não tem a mínima hipótese de êxito;
no entanto continua a ser o ponto de referência ideológico para largas camadas da população ameaçadas pela
derrocada social. E a prática política daí decorrente, precisamente na ausência de esperança que a
caracteriza, mostra ser tudo menos emancipatória.
A transformação ideológica do «trabalho escasso» em primeiro direito do cidadão de um Estado leva
consequentemente a excluir todos os que não sejam cidadãos desse Estado. A lógica de selecção social não é,
pois, posta em causa, mas apenas definida de outra forma: a luta individual pela sobrevivência deve ser
mitigada por critérios de natureza étnica e nacional. «A escravatura nacional para os nacionais», é o grito que
sai da alma do povo que, no amor perverso pelo trabalho, se reencontra como comunidade nacional. O
populismo de direita não faz segredo desta conclusão. A sua crítica à sociedade da concorrência apenas visa
a limpeza étnica das zonas de retracção da riqueza capitalista.
Pelo contrário, o nacionalismo mais moderado, de inspiração social-democrata ou verde, pretende equiparar
os imigrantes mais antigos à população autóctone, e inclusivamente fazer deles cidadãos nacionais, mediante
atestado de bom comportamento servil e de carácter garantidamente inofensivo. Porém, deste modo, a
crescente exclusão dos refugiados do Leste e do Sul pode ser mais facilmente legitimada em termos
populistas e posta em prática de maneira mais discreta – naturalmente sempre escudada numa torrente de
palavras de humanidade e civilização. A caça ao homem movida aos «ilegais», acusados de pretenderem
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apoderar-se dos empregos nacionais, não deve deixar um rasto sujo de fogo e sangue em solo pátrio. Para o
efeito existem o serviço de fronteiras, a polícia e os países-tampão do reino de Schengen, que tudo resolvem
segundo a lei e o direito, de preferência longe das câmaras de televisão.
A simulação estatal do trabalho já é, em si, violenta e repressiva. Ela serve a vontade incondicional de
prolongar por todos os meios disponíveis a dominação exercida pelo ídolo do trabalho, mesmo para além da
sua morte. Este fanatismo burocrático do trabalho não permite que os excluídos, os sem emprego e sem
oportunidades, ou aqueles que encontram boas razões para se recusarem a trabalhar, possam ficar em paz nos
últimos nichos, já de si drasticamente reduzidos, do Estado social em desmantelamento. São arrastados por
assistentes sociais e por funcionários dos serviços de emprego para a sala de interrogatórios do Estado e
obrigados a ajoelhar-se publicamente diante do trono do cadáver dominante.
Se em tribunal vigora normalmente o princípio de que na dúvida a decisão deve favorecer o réu, aqui
inverte-se o ónus da prova. Os excluídos, se no futuro não quiserem viver do ar ou da caridade cristã, devem
aceitar qualquer trabalho, por mais sujo ou escravizante, ou um qualquer «programa de ocupação», por mais
absurdo, demonstrando assim a sua disponibilidade incondicional para o trabalho. Se aquilo que lhes cabe
fazer não tem senão um longínquo sentido, ou releva do mais puro absurdo, é perfeitamente indiferente. Só é
preciso que continuem em movimento perpétuo, para que nunca esqueçam a lei a que a sua existência tem de
obedecer.
Noutro tempo, trabalhava-se para ganhar dinheiro. Hoje, o Estado não poupa despesas para que centenas de
milhares de pessoas simulem um trabalho inexistente em estranhos «ateliers» de formação ou em «empresas
ocupacionais», preparando-se para um «posto de trabalho» regular que nunca conseguirão. Inventam-se
constantemente novas medidas, cada vez mais estúpidas, apenas para garantir a aparência de que a vazia
rotina social pode permanecer em movimento até à eternidade. Quanto mais destituída de sentido é a
obrigatoriedade do trabalho, mais brutalmente haverá que martelar no cérebro das pessoas o princípio de que
não pode ganhar-se o pão de outra maneira.
Nesta perspectiva, o «New Labour» e os seus imitadores em todo o mundo mostram-se perfeitamente
compatíveis com o modelo neoliberal da selecção social. Com a simulação de «emprego» e com a ficção
enganosa de um futuro positivo para a sociedade de trabalho, cria-se a legitimidade moral para tratar de
forma ainda mais dura os desempregados e os que se recusam a trabalhar. Ao mesmo tempo, o trabalho
obrigatório imposto pelo Estado,os subsídios ao salário e o chamado «trabalho cívico» reduzem cada vez
mais os custos com a mão-de-obra. Fomenta-se assim em grande escala todo o próspero sector que vive dos
baixos salários e do trabalho de miséria.
A chamada política activa de trabalho, segundo o modelo do «New Labour», não poupa sequer os doentes
crónicos ou as mães solteiras com filhos pequenos. Quem recebe apoio estatal só consegue libertar-se do
estrangulamento da burocracia quando o seu nome estiver no jardim das tabuletas. O único sentido de toda
esta impertinência consiste em levar o maior número possível de pessoas a não apresentar qualquer pretensão
ao Estado e em exibir perante os excluídos instrumentos de tortura suficientemente monstruosos para que
qualquer trabalho de miséria lhes pareça comparativamente mais aceitável.
Oficialmente, o Estado paternalista apenas brande o chicote por amor e com a intenção de educar
severamente aqueles seus filhos que são considerados «preguiçosos», para que tenham um futuro melhor.
Mas, na realidade, estas medidas «pedagógicas» têm como único e exclusivo fim afastar os clientes da porta
a pontapé. Que outro sentido poderia ter uma medida como a de mandar desempregados para a colheita dos
espargos? Nos campos, esses desempregados servem para afastar os trabalhadores sazonais polacos, que
aliás aceitam salários de miséria apenas porque, de regresso ao seu país, o câmbio faz com que tais salários
se transformem numa quantia aceitável. Mas a medida posta em prática não ajuda os trabalhadores forçados,
nem lhes abre qualquer «perspectiva profissional». E, para os produtores de espargos, os licenciados e
operários especializados, contrafeitos, que lhes cabem em sorte também não são mais do que um estorvo.
Contudo, no momento em que, à noite, após doze horas de costas curvadas sobre o solo pátrio, o desespero
fizer com que a disparatada ideia de abrir uma venda ambulante de cachorros pareça mais agradável, então o
«auxílio à flexibilização» terá produzido o seu desejado efeito neobritânico.
5
IV. O EXACERBAMENTO DA RELIGIÃO DO TRABALHO E O DESMENTIDO DO
RESPECTIVO DOGMA
O trabalho, por mais baixo que seja, por mais que tenha em vista apenas o dinheiro, está sempre
em relação com a natureza. O simples desejo de executar um trabalho conduz sempre mais e
mais à verdade, às leis e preceitos da natureza, que são a verdade.
Thomas Carlyle
Trabalhar e não Desesperar, 1843.
O novo fanatismo do trabalho, com o qual esta sociedade reage à morte do seu ídolo, é a consequência lógica
e o estádio final de uma longa história. Desde a época da Reforma, todas as forças dirigentes da
modernização ocidental pregaram a santidade do trabalho. Sobretudo nos últimos cento e cinquenta anos,
todas as teorias sociais e correntes políticas foram dominadas pela ideia do trabalho. Socialistas e
conservadores, democratas e fascistas, combateram entre si de toda a maneira e feitio, mas apesar do ódio
mortal que votaram uns aos outros, sempre sacrificaram em comum ao ídolo do trabalho. «L’Oisif ira loger
ailleurs» («O ocioso irá viver para outro lado»), dizia o texto do hino da Internacional dos trabalhadores – o
eco macabro dessas palavras foi a divisa «Arbeit macht frei» («O trabalho liberta»), exibida por cima do
portão de Auschwitz. As democracias pluralistas do pós-guerra fizeram todas as suas juras em nome da
ditadura perpétua do trabalho. E até a Constituição da muito católica Baviera aconselha os seus cidadãos na
mais pura tradição luterana: «O trabalho é a fonte do bem-estar do Povo e goza de especial protecção por
parte do Estado.» No final do século XX todas as contradições ideológicas se esbateram. Apenas ficou o
dogma comum e impiedoso segundo o qual o trabalho é o destino natural do Homem.
Hoje, é a própria realidade da sociedade do trabalho que desmente este dogma. Os sacerdotes da religião do
trabalho sempre pregaram que o homem, segundo a sua suposta natureza, seria um «animal laborans». Só se
tornaria ser humano na medida em que, como fez Prometeu, submetesse a matéria natural à sua vontade,
realizando-se a si mesmo nos seus produtos. Este mito do conquistador do mundo, do demiurgo que escuta
uma vocação, sempre foi, aliás, um autêntico escárnio em relação ao carácter do processo moderno de
trabalho, embora pudesse ter ainda algum substrato real na época dos capitalistas-inventores, do tipo
Siemens ou Edison, e dos operários qualificados que havia entre o seu pessoal. Hoje, essa pose tornou-se
completamente absurda.
Quem hoje em dia perguntar a si próprio qual o conteúdo, o sentido que continuar a funcionar a qualquer
preço, e ponto final. Quanto à descoberta do sentido, para isso existem os departamentos de publicidade,
exércitos inteiros de animadores e de psicólogas de empresa, os consultores de imagem e as «dealers» da
droga. Quando se papagueia interminavelmente o lema da motivação e da criatividade, é certo e sabido que
de uma e da outra já nada sobra…, a não ser enquanto auto-engano. É por isso que hoje as capacidades de
auto-sugestão, de autopromoção e de simulação de competências se contam entre as virtudes mais
importantes dos gestores e das trabalhadoras especializadas, das estrelas dos media e dos contabilistas, das
professoras e dos arrumadores de automóveis.
Também a afirmação de que o trabalho seria uma necessidade eterna, imposta ao homem pela natureza, foi
completamente posta a ridículo pela crise da sociedade do trabalho. Há séculos que vem sendo pregado o
princípio da inevitável adoração do ídolo trabalho, quanto mais não fosse porque as necessidades não
poderiam ser satisfeitas por si mesmas, sem o suor do labor humano. E a finalidade de toda a organização do
trabalho seria, obviamente, a satisfação dessas necessidades. Se isto fosse verdade, a crítica do trabalho seria
tão pertinente como a crítica da força da gravidade. Mas, nesse caso, como poderia uma «lei natural», que o
fosse realmente, entrar em crise ou inclusivamente desaparecer? Os porta-vozes do campo de trabalho social,
desde a senhora neoliberal que come caviar e é maníaca pela eficiência, até ao sindicalista tipo barriga-de-
cerveja, quando invocam o carácter pseudo natural do trabalho, entram em crise de carência argumentativa.
Ou, como quererão eles explicar-nos que hoje em dia três quartos da humanidade se estejam a afundar na
necessidade e na miséria, só porque o sistema da sociedade do trabalho já não pode utilizar os seus
préstimos?
Já não é a maldição do Antigo Testamento – «comerás o teu pão com o suor do teu rosto» – que pesa sobre
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os excluídos, mas uma nova e implacável condenação: «tu não comerás, porque o teu suor é supérfluo e
invendável». E será isto uma lei natural? Não é senão um princípio social irracional, que surge como coerção
natural apenas porque, ao longo dos séculos, destruiu ou submeteu a si todas as outras formas de relação
social, impondo-se de modo absoluto. É a «lei natural» de uma sociedade que se considera profundamente
«racional», mas que, na verdade, apenas segue a racionalidade finalista do seu ídolo, o trabalho, dispondo-se
mesmo a sacrificar-lhe, a ele e à respectiva «objectividade coerciva», os últimos resquícios da sua
humanidade.
V. O TRABALHO É UM PRINCÍPIO DE COERÇÃO SOCIAL
O trabalhador, portanto, só se sente em si fora do trabalho; no trabalho sentese fora de si. Só
está à sua vontade quando não trabalha, quando trabalha não está no seu domínio. Assim, o seu
trabalho não é voluntário, mas imposto; é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma
necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades. A estranheza do trabalho
ressalta claramente do facto de se fugir dele como da peste, logo que não exista nenhuma
coerção material ou de outro tipo.
Karl Marx
Manuscritos Económico-Filosóficos, 1844.
Não há, em rigor, qualquer identidade entre o trabalho e o facto de os homens transformarem a natureza e se
relacionarem uns com os outrosem determinadas actividades. Enquanto existirem seres humanos, eles hão-
de construir casas, fabricar roupas, produzir alimentos e muitas outras coisas, hão-de educar os filhos,
escrever livros, discutir assuntos, construir jardins, compor música e tanto mais. Esta é uma verdade banal e
evidente. O que não é evidente é que a actividade humana em si, o puro «dispêndio de força de trabalho»,
sem que se leve em consideração o respectivo conteúdo e independentemente das necessidades e da vontade
dos envolvidos, se torne num princípio abstracto que domina as relações sociais.
Nas antigas sociedades agrárias havia todas as formas possíveis de dominação e de dependência pessoal, mas
não existia uma ditadura do trabalho, enquanto abstracção. É certo que as actividades levadas a cabo na
transformação da natureza e nas relações sociais não eram de modo algum autodeterminadas, mas tão-pouco
estavam na dependência de uma ideia abstracta de «dispêndio de força de trabalho»; pelo contrário, tais
actividades encontravam-se enquadradas em complexos dispositivos de normas, configuradas por preceitos
religiosos, tradições sociais e culturais, e estabelecendo obrigações recíprocas. Cada actividade tinha o seu
tempo e o seu lugar próprios; não existia uma forma geral e abstracta de actividade.
Só o moderno sistema de produção de mercadorias, com a sua finalidade autotélica de transformação
permanente de energia humana em dinheiro, veio criar esse domínio particular, «apartado» de todas as outras
relações sociais e abstraído de qualquer conteúdo, que leva o nome de esfera do trabalho – a esfera da
actividade não autónoma, incondicional, não relacional, robotizante, separada do restante contexto social e
obedecendo a uma abstracta racionalidade finalista de «economia empresarial», independente das
necessidades. Nesta esfera, separada da vida, o tempo deixa de ser tempo vivido e vivenciado, torna-se
simples matéria-prima que tem de ser optimizada: «tempo é dinheiro». Cada segundo é contabilizado, cada
ida à casa-de-banho é um escândalo, cada conversa é um crime contra a finalidade autonomizada da
produção. No local de trabalho, apenas pode ser gasta energia abstracta. A vida fica lá fora – ou porventura
em parte nenhuma, porque a cadência do trabalho rege interiormente todas as coisas. Até as crianças são
domesticadas pelo relógio, para que um dia possam ser «eficientes». As férias só servem para a recuperação
da «força de trabalho». E mesmo às refeições, nas festas e no amor, o ponteiro dos segundos faz tiquetaque
na nossa cabeça.
Na esfera do trabalho não conta aquilo que se faz, mas sim que o fazer, enquanto tal, seja feito, pois o
trabalho é um fim em si mesmo justamente na medida em que traz consigo a valorização do capital-dinheiro
– a infinita multiplicação do dinheiro por intermédio do dinheiro. O trabalho é a forma de actividade própria
desta absurda finalidade autotélica. É por isso, e não por quaisquer razões objectivas, que os produtos são
todos eles produzidos como mercadorias. Só sob a forma de mercadoria representam a abstracção dinheiro,
cujo conteúdo é a abstracção trabalho. Nisto consiste o mecanismo da engrenagem social autonomizada em
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que se mantém aprisionada a humanidade moderna.
E é precisamente por isso também que o conteúdo da produção é indiferente, como é indiferente a utilização
dada às coisas produzidas e as consequências sociais e naturais da produção. Saber se se constroem casas ou
se se produz armamento, se se imprimem livros ou se se cultiva tomate transgénico, se em consequência as
pessoas adoecem, se a atmosfera é poluída ou se «apenas» é espezinhado o bom gosto – nada disto interessa,
desde que, de umm modo ou de outro, a mercadoria possa ser transformada em dinheiro e o dinheiro, de
novo em trabalho. Que a mercadoria exija um uso concreto, e que este eventualmente seja destrutivo, é coisa
que não tem o mínimo interesse para a racionalidade da economia empresarial, pois para esta o produto não é
mais do que o portador de um trabalho pretérito, de «trabalho morto».
A acumulação de «trabalho morto» enquanto capital, representada sob a forma de dinheiro, é o único
«sentido» que o sistema de produção de mercadorias conhece. «Trabalho morto»? Uma loucura metafísica!
Sim, mas uma metafísica que se tornou realidade palpável, uma loucura «objectivada» que domina esta
sociedade com mão de ferro. No eterno comprar e vender, os homens não se relacionam como seres sociais
conscientes, limitam-se a executar como autómatos sociais a finalidade autotélica que lhes é prescrita.
VI. TRABALHO E CAPITAL SÃO AS DUAS FACES DA MESMA MOEDA
O trabalho tem cada vez mais a boa consciência do seu lado: o gosto pela alegria chama-se já
`necessidade de descanso’, e começa a corar de vergonha de si próprio. `Temos de fazer isto por
causa da saúde’, dizemos às pessoas que nos surpreendem num passeio pelo campo. Por este
caminho, poderá chegar-se rapidamente ao ponto de não mais se ceder ao gosto pela vita
contemplativa (ou seja, ao gosto de passear em companhia de pensamentos ou de amigos) sem
desprezo por si próprio e sem má consciência.
Friedrich Nietzsche
«Ócio e ociosidade» (em A Gaia Ciência), 1882.
A esquerda política sempre adorou o trabalho com particular fervor. Não só elevou o trabalho ao estatuto de
essência do Homem, como produziu a mistificação de transformá-lo num princípio pretensamente oposto ao
capital. Na sua perspectiva, o escândalo não é o trabalho, mas sim a exploração do trabalho pelo capital. Por
isso, o programa de todos os «partidos dos trabalhadores» sempre foi somente «libertar o trabalho», mas não
libertar do trabalho. Ora, o antagonismo social entre capital e trabalho é uma mera contradição de interesses
distintos no interior da finalidade autotélica do capitalismo (embora o poder de cada uma das partes seja
muito diferente). A luta de classes era a forma de expressão desses interesses antagónicos no terreno social
comum do sistema de produção de mercadorias. Fazia parte da dinâmica interna da valorização do capital.
Quer a luta fosse por salários, por direitos, por condições de trabalho, ou por postos de trabalho, o seu
pressuposto cego continuava sempre a ser a engrenagem dominante com os seus princípios irracionais.
O conteúdo qualitativo da produção conta tão pouco do ponto de vista do trabalho como do ponto de vista do
capital. Apenas interessa a possibilidade de vender de forma optimizada a força de trabalho. Não se trata de
determinar colectivamente o sentido e a finalidade da actividade própria. Se algum dia existiu a esperança de
poder realizar-se uma tal autodeterminação do processo produtivo dentro das formas do sistema de produção
de mercadorias, a verdade é que as «forças do trabalho» há muito puseram de lado essa ilusão. Hoje interessa
apenas o «posto de trabalho», o «emprego» – e a própria literalidade destes conceitos demonstra o carácter
autotélico de todo o empreendimento e a privação de responsabilidade que caracteriza os envolvidos.
Em última análise, o que se produz, para que fins e com que consequências, é assunto absolutamente
indiferente tanto para o vendedor da mercadoria, que é a força de trabalho, como para o respectivo
comprador. Os trabalhadores das centrais nucleares e das fábricas de produtos químicos protestam
veementemente quando se pretende desactivar as suas bombas-relógio. E os «empregados» da Volkswagen,
da Ford ou da Toyota, são os mais fanáticos defensores do programa suicida da indústria automóvel. Não
apenas porque têm obrigatoriamente de se vender para «poderem» viver, mas porque na realidade se
identificam com esta existência tacanha. Para os sociólogos, os sindicalistas, os padres e outros teólogos
profissionais da «questão social», esta é a prova do valor ético-moral do trabalho. O trabalho forma a
personalidade, dizem eles. Com razão. Forma de facto a personalidade dos zombies da produção de
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mercadorias, que já nãoconseguem conceber uma vida fora da sua amada engrenagem, à qual se vão
ajustando dia após dia.
Porém, da mesma forma que a classe operária – enquanto classe trabalhadora – nunca foi um antagonista em
contradição com o capital e nunca foi o agente do processo de emancipação do homem, também os
capitalistas e gestores não governam a sociedade em obediência a uma maldade decorrente da vontade
subjectiva de exploração. Em toda a história, nunca houve uma casta dominante que levasse uma vida tão
pouco livre, tão deplorável, como os acossados executivos da Microsoft, da Daimler-Chrysler ou da Sony.
Qualquer senhor feudal sentiria o mais profundo desprezo por tal gente. Porque, podendo ele entregar-se ao
ócio e delapidar a sua riqueza em quantas orgias lhe apetecesse, as elites da sociedade do trabalho não têm o
direito de desfrutar de nenhuma pausa. Mesmo quando estão fora da engrenagem, não sabem fazer outra
coisa que não seja infantilizarem-se. O ócio, os prazeres do conhecimento ou dos sentidos, são-lhes tão
estranhos como ao material humano de que são feitos. São eles próprios meros servos do ídolo trabalho,
simples elites funcionais da finalidade autotélica irracional da sociedade.
O ídolo dominante sabe impor a sua vontade sem sujeito pela «coerção tácita» da concorrência, à qual
também os poderosos têm de curvar-se, exactamente quando gerem centenas de fábricas e transferem
milhões, de lugar em lugar, à volta do globo. Se assim não fizerem, serão postos de lado com a mesma frieza
com que o é a «força de trabalho» supérflua. Ora, é precisamente esta sua inimputabilidade que torna os
funcionários do capital tão desmesuradamente perigosos, e não a sua vontade subjectiva de exploração. Não
estão autorizados – menos ainda do que a qualquer outro indivíduo – a interrogarem-se sobre o sentido e
sobre as consequências da sua infatigável actividade, e não podem dar-se ao luxo de ter sentimentos ou
atenções. É por isso que se consideram realistas quando devastam o mundo, desfiguram as cidades e levam
as populações à miséria no meio da maior riqueza.
VII. O TRABALHO É DOMINAÇÃO PATRIARCAL
A humanidade teve de se submeter a provações terríveis até que surgisse o eu, o carácter
idêntico, orientado para fins e masculino, do ser humano; e é ainda alguma coisa desse
processo que se repete na infância de cada um.
Max Horkheimer e Theodor W. Adorno
Dialéctica do Esclarecimento, 1944.
Mesmo que a lógica do trabalho e da sua metamorfose em matéria-dinheiro pressione nesse sentido, nem
todos os domínios da sociedade, nem todas as actividades efectivamente necessárias se deixam comprimir
nesta esfera do tempo abstracto. Por isso, em conjunto com a esfera «separada» do trabalho, e até certo ponto
como seu reverso, surgiu também a esfera do lar, da família e da intimidade.
Nesse domínio, definido como «feminino», cabem as muitas e repetitivas actividades da vida do dia-a-dia,
que quando muito só excepcionalmente podem ser transformadas em dinheiro: desde limpar a casa até
cozinhar, passando pela educação dos filhos e pelo cuidado dos idosos, até ao «trabalho do amor» da típica
dona de casa ideal, que retempera o seu marido trabalhador, quando chega esgotado a casa, e lhe «recarrega
as energias» afectivas. A esfera da intimidade, enquanto reverso do trabalho, é portanto declarada pela
ideologia burguesa da família como esfera da «vida própria» – embora, na realidade, seja a maior parte das
vezes apenas um inferno na intimidade. De facto, não se trata da esfera de uma vida melhor e verdadeira,
mas de uma forma igualmente limitada e reduzida da existência, que simplesmente se apresenta afectada
pelo sinal contrário. Esta esfera é ela própria um produto do trabalho, dele separada, é certo, mas na
realidade só existente na relação com ele. A sociedade do trabalho nunca teria podido funcionar sem esse
espaço social segregado, que é o das formas de actividade «femininas». Ele é o pressuposto tácito de uma tal
sociedade e, simultaneamente, o seu resultado específico.
O mesmo é válido também para os estereótipos sexuais, que foram sendo generalizados no decurso do
desenvolvimento do sistema de produção de mercadorias. Não é um simples acaso o facto de a imagem da
mulher como um ser submetido aos impulsos da natureza, à irracionalidade e às emoções, se ter tornado um
preconceito generalizado precisamente em conjunto com a imagem do homem de trabalho, criador de
cultura, racional e com domínio sobre si. E também não é um acaso que a autodomesticação do homem
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branco para as exigências do trabalho e da respectiva administração estatal dos indivíduos tenha coincidido
com séculos de feroz «caça às bruxas». E também a apropriação do mundo pelas ciências naturais, cujo
início ocorre em simultâneo com esses factos, foi, na sua raiz, contaminada pela finalidade autotélica da
sociedade do trabalho e pela sua atribuição de papéis sociais em função do sexo. Assim, o homem branco,
para poder funcionar sem atritos, expulsou de si todos os sentimentos e necessidades emocionais, que, no
reino do trabalho, só representam factores de perturbação.
No século XX, e em especial nas democracias fordistas do pós-guerra, as mulheres foram sendo introduzidas
de forma crescente no mundo do trabalho. Mas o resultado foi apenas o surgimento de uma consciência
feminina esquizóide. Pois, por um lado, a introdução das mulheres na esfera do trabalho não podia trazer
uma libertação, mas apenas a mesma submissão ao ídolo trabalho, idêntica à dos homens. E, por outro lado,
mantendo-se intocada a estrutura da «dissociação», também a esfera das actividades definidas como
«femininas» permaneceu fora do âmbito oficial do trabalho. As mulheres foram assim submetidas a uma
dupla carga e expostas a imperativos sociais totalmente contraditórios. No domínio do trabalho ficaram até
hoje esmagadoramente relegadas para posições mal pagas e subalternas.
E não serão decerto as reivindicações conformes ao sistema, a luta por quotas destinadas às mulheres ou por
igualdade de oportunidades, a mudarem seja o que for. A deplorável visão burguesa de uma «conciliação do
trabalho com a família» deixa intocada a separação das esferas do sistema de produção de mercadorias e,
com ela, a estrutura de «dissociação» sexual. Para a maioria das mulheres, tal perspectiva é simplesmente
invivível e, para uma minoria de mulheres «mais bem pagas», transforma-se num posicionamento pérfido,
fazendo delas vencedoras no âmbito do apartheid social, exactamente na medida em que podem delegar a
casa e o cuidado dos filhos em empregadas mal pagas (e «naturalmente» do sexo feminino).
Na sociedade global, a sacralizada esfera burguesa da chamada vida privada e da família é, na verdade, cada
vez mais esvaziada e degradada, porque a usurpação por parte da sociedade do trabalho exige a pessoa toda,
total sacrifício, total mobilidade e completa disponibilidade de tempo. O patriarcado não é abolido; apenas se
torna mais selvagem na crise inconfessada da sociedade do trabalho. Na mesma medida em que o sistema de
produção de mercadorias entra em colapso, as mulheres vão-se tornando responsáveis pela sobrevivência,
em todos os planos, enquanto o mundo «masculino» prolonga, em simulação, as categorias da sociedade do
trabalho.
VIII. O TRABALHO É A ACTIVIDADE DE HOMENS PRIVADOS DE AUTODETERMINAÇÃO
A identidade entre trabalho e ausência de autodeterminação demonstra-se, não apenas factual, mas também
conceptualmente. Não há muitos séculos, a conexão entre o trabalho e a coerção social estava inteiramente
presente na consciência das pessoas. Na maior parte das línguas europeias, o conceito «trabalho» refere-se
originariamente apenas à actividade do homem sem autodeterminação, do indivíduo dependente, do servo ou
escravo. No espaço linguístico alemão, «Arbeit» significava o trabalho servil de uma criança órfã ou
abandonada, e por isso caída na servidão. No latim, «laborare» significava algo como «cambalearsob uma
carga pesada», e em sentido geral designava o sofrimento e o vexame do escravo. As palavras românicas
«trabalho», «travail», «trabajo», etc., derivam do latim «tripalium», uma espécie de jugo utilizado para
torturar e castigar escravos e outros indivíduos destituídos de liberdade. Na expressão idiomática alemã
«Joch der Arbeit» («jugo do trabalho») ecoa ainda esse sentido.
Ou seja, também na sua origem etimológica «trabalho» não é sinónimo de uma actividade humana
autodeterminada, antes designa um destino social infeliz. É a actividade daqueles que perderam a liberdade.
Assim, a extensão do trabalho a todos os membros da sociedade não é mais do que a generalização da
dependência servil, e a moderna adoração do trabalho é a mera exaltação para-religiosa deste estado.
Esta relação só pôde ser recalcada com êxito e a respectiva exigência social interiorizada, porque a
generalização do trabalho foi acompanhada pela «objectivação» do moderno sistema de produção de
mercadorias: a maior parte dos indivíduos não está debaixo do chicote de um senhor, individualizado como
pessoa. A dependência social tornou-se uma conexão abstracta interna do sistema – e por isso mesmo tornou-
se total. Ela pode ser detectada em toda a parte, mas por isso mesmo é praticamente inapreensível. Quando
todos se tornam escravos, todos se tornam simultaneamente senhores – traficantes de escravos e fiscais, mas
traficando-se a si próprios e fiscalizando-se a si mesmos. Todos obedecem ao ídolo invisível do sistema, o
«Grande Irmão» da valorização do capital, que os mandou para o «tripalium».
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IX. A HISTÓRIA SANGRENTA DA VITÓRIA DO TRABALHO
O bárbaro é preguiçoso e diferencia-se do homem cultivado na medida em que se compraz no
seu embrutecimento, pois a formação prática consiste justamente no hábito e necessidade da
ocupação.
Georg W. F. Hegel
Princípios da Filosofia do Direito, 1821.
No fundo, sente-se agora […] que um tal trabalho é a melhor polícia, que retém cada indivíduo
pelo freio e que sabe impedir com firmeza o desenvolvimento da razão, do desejo e do prazer da
independência. Pois faz despender enorme quantidade de energia nervosa, e subtrai essa
energia à reflexão, à meditação, ao sonho, à inquietação, ao amor e ao ódio.
Friedrich Nietzsche
«Os Apologistas do Trabalho» (em Aurora), 1881.
A história da modernidade é a história do processo de instauração do trabalho, que deixou em todo o planeta
um amplo rasto de devastação e horror. Pois nem sempre esteve tão interiorizada como hoje a exigência de
despender grande parte da energia vital em benefício de uma finalidade autotélica externamente definida.
Foram necessários vários séculos de violência aberta e em grande escala para literalmente submeter os
homens à tortura do serviço incondicional do ídolo trabalho.
A princípio, não era a ampliação das relações de mercado supostamente favorecedoras do «crescimento do
bem-estar», mas sim a fome insaciável de dinheiro dos aparelhos estatais absolutistas que obrigava ao
financiamento da máquina militar dos primórdios da modernidade. Só o interesse desses aparelhos estatais,
que pela primeira vez na história submetiam a totalidade da sociedade ao estrangulamento burocrático, veio
acelerar o desenvolvimento do capital mercantil e financeiro das cidades, muito para além das relações
comerciais tradicionais. Só assim o dinheiro se converteu em motivação central da sociedade, e a abstracção
do trabalho em exigência social central, sem consideração das necessidades.
Não foi por vontade própria que a maioria dos homens passou a produzir para mercados anónimos e portanto
para uma economia monetária generalizada, mas sim porque, com o absolutismo, a fome de dinheiro
monetarizou os impostos e aumentou-os de maneira exorbitante. Os indivíduos tinham que «ganhar
dinheiro», não para si, mas para o Estado militarizado do início da modernidade: para as novas armas de
fogo, para a logística e a burocracia estatais. Foi assim, e não de outra forma, que veio ao mundo a absurda
finalidade autotélica da valorização do capital, e, com ela, a do trabalho.
Em breve, os impostos e taxas deixaram de ser suficientes. Os burocratas absolutistas e os administradores
do capital financeiro puseram-se a organizar de forma coerciva os indivíduos como material directo de uma
máquina social de transformação de trabalho em dinheiro. O modo tradicional de vida e de existência da
população foi destruído; não porque esta população se tivesse «desenvolvido» de forma livre e
autodeterminada, mas porque tinha de ser utilizada como material humano numa máquina de valorização que
estava posta em andamento. Os indivíduos foram expulsos das suas terras pela força das armas, para darem
lugar à criação de ovelhas necessárias às manufacturas de lã. Os direitos tradicionais, como a liberdade de
caça, pesca e recolha de lenha nas matas, foram extintos. E quando as massas pauperizadas deambulavam
pelos campos, mendigando e roubando, lançaram-nas em casas de trabalho e nas manufacturas, para serem
seviciadas com os instrumentos laborais de tortura e para lhes inculcar, à pancada, uma consciência de
escravos, a fim de se tornarem dóceis animais de trabalho.
Mas esta transformação gradual dos seus súbditos em material do ídolo fazedor de dinheiro também não
podia só por si satisfazer durante muito tempo os monstruosos Estados absolutistas. Estenderam, pois, as
suas pretensões a outros continentes. A colonização interna da Europa efectuou-se a par da colonização
externa, primeiro nas Américas e em algumas regiões de África. Aí, os feitores do trabalho perderam
definitivamente os escrúpulos. Em campanhas militares de roubo, destruição e extermínio sem precedentes
atiraram-se aos mundos recentemente «descobertos» – onde as vítimas nem sequer eram consideradas seres
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humanos. O canibalismo das potências europeias da sociedade de trabalho nascente definia as culturas
estrangeiras subjugadas como «selvagens» e… canibais.
E estava assim legitimada a eliminação ou escravização de milhões de homens. A escravatura pura e simples
em que se baseava a economia das grandes plantações e da extracção de matérias-primas – que conseguiu
ultrapassar as dimensões da escravatura antiga – conta-se entre os crimes fundadores do sistema de produção
de mercadorias. Utilizou-se aí pela primeira vez, em grande escala, a «eliminação pelo trabalho». Foi a
segunda fundação da sociedade do trabalho. O homem branco, marcado pelo ferrete da autodisciplina, podia
agora descarregar sobre os «selvagens» o seu complexo de inferioridade e o desprezo reprimido que tinha
por si próprio. Tal como «as mulheres», os «selvagens» eram para ele seres próximos da natureza e
primitivos, um misto entre o animal e o homem. Immanuel Kant supunha, com precisão lógica, que o
babuíno saberia falar se quisesse; só não falava porque temia ser recrutado para o trabalho.
Esta elucubração grotesca lança uma luz reveladora sobre o Iluminismo. O ethos repressivo do trabalho da
modernidade, que, na sua versão protestante original, se baseava na misericórdia divina e, a partir do
Iluminismo, na lei natural, adoptou a máscara de «missão civilizadora». Cultura, neste sentido, é submissão
voluntária ao trabalho; e trabalho é masculino, branco e «ocidental». O contrário, o não-humano, a natureza
disforme e sem cultura, é feminino, de cor e «exótico», ou seja, tem que ser submetido à coerção. Numa
palavra, o «universalismo» da sociedade do trabalho é inteiramente racista, logo desde as suas raízes. A
abstracção universal do trabalho só pode autodefinirse pela delimitação face a tudo aquilo que nele não se
integra.
Em última análise, o herdeiro do absolutismo não foi a burguesia moderna, oriunda dos pacíficos
negociantes das antigas rotas comerciais. Foram antes os condottieri dos bandos de mercenários da
modernidade nascente, os directores das casas de trabalho e das casas de correcção, os arrendatários dacolecta fiscal, os feitores de escravos, os agiotas e outros carrascos similares que formaram o solo social
materno do «mundo empresarial» moderno. As revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX nada tinham a
ver com a emancipação social. Limitaram-se a reorganizar as relações de poder no interior do sistema de
coerção existente, libertando as instituições da sociedade de trabalho dos interesses dinásticos obsoletos e
impulsionando a respectiva coisificação e despessoalização. Foi a gloriosa Revolução Francesa que, com um
pathos muito especial, proclamou o dever do trabalho, e que, numa «lei para a abolição da mendicidade»,
introduziu novas casas de trabalho.
Ora, isto era exactamente o contrário do que pretendiam os movimentos sociais rebeldes que eclodiram à
margem das revoluções burguesas, sem nelas se dissolverem. Já muito antes tinha havido formas
completamente autónomas de resistência ou de objecção, que costumam deixar a historiografia oficial da
sociedade do trabalho e da modernização sem saber o que fazer delas. Os produtores das antigas sociedades
agrárias, que nunca se resignaram a aceitar inteiramente as relações de dominação feudal, estavam ainda
menos dispostos a aceitar serem convertidos em «classe trabalhadora» de um sistema que lhes era exterior.
Desde as guerras dos camponeses, nos séculos XV e XVI, até aos levantamentos britânicos, denunciados
como sendo movimentos de «destruidores de máquinas», e à revolta dos tecelões na Silésia, em 1844,
estende-se toda uma cadeia ininterrupta de lutas encarniçadas de resistência contra o trabalho. A implantação
da sociedade do trabalho significou, ao longo de vários séculos, a guerra civil, umas vezes mais aberta,
outras vezes latente.
As antigas sociedades agrárias eram tudo menos paradisíacas. Mas, ainda assim, para a maioria, a coerção
monstruosa da emergente sociedade do trabalho representou exclusivamente um agravamento da sua
situação, um «tempo do desespero». Na realidade, apesar de todas as restrições, os indivíduos tinham ainda
algo a perder. Aquilo que na falsa consciência do mundo moderno surge como as trevas e os flagelos de uma
Idade Média ficcionada foi, na verdade, o horror da história desse mesmo mundo moderno. Nas culturas pré-
capitalistas e não-capitalistas, dentro e fora da Europa, o tempo dedicado diária e anualmente à actividade de
produção era muito mais reduzido do que ainda hoje é para o moderno «empregado» de uma fábrica ou de
um escritório. E a produção dessas sociedades estava longe de ser tão intensificada como na sociedade do
trabalho, uma vez que toda a actividade era atravessada por uma cultura de ócio e de relativa «lentidão».
Com excepção das catástrofes naturais, as necessidades básicas materiais estavam muito mais amplamente
asseguradas para a maioria da população do que em longos períodos da história da modernização – e melhor
também do que no horror dos bairros de lata gerados nos nossos dias pelo mundo da crise. Para além do
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mais, nessas sociedades o poder não se entranhava até aos poros como na sociedade do trabalho totalmente
burocratizada.
Daí que a resistência contra o trabalho só militarmente pudesse ser quebrada. Ainda hoje os ideólogos da
sociedade do trabalho continuam a fugir hipocritamente deste facto: a cultura dos produtores pré-modernos
não se «desenvolveu» para outras formas; ela foi simplesmente afogada no seu próprio sangue. Nos nossos
dias, os esclarecidos democratas da sociedade do trabalho preferem responsabilizar por todas essas
monstruosidades as «circunstâncias pré-democráticas» de um passado com o qual eles já nada teriam a ver.
Não querem admitir que a história terrorista do início da modernidade revela também, involuntariamente, a
essência da actual sociedade do trabalho. A administração burocrática do trabalho e a integração estatal dos
seres humanos nas democracias industriais nunca puderam negar as suas origens absolutistas e coloniais.
Aliás, sob a forma da coisificação orientada para a coesão do sistema despessoalizado, a administração
repressiva dos seres humanos em nome do ídolo trabalho continuou sempre a crescer e invadiu todos os
domínios da vida.
Precisamente hoje, na agonia do trabalho, volta a sentir-se novamente a mão de ferro da burocracia, como
nos primórdios da sociedade do trabalho. Ao organizar o apartheid social e ao procurar, supostamente,
debelar a crise através da escravatura estatal democrática, a administração do trabalho revela-se como o
sistema de coerção que sempre foi. Do mesmo modo, a brutalidade colonial regressa novamente sob a forma
da administração económica coerciva do Fundo Monetário Internacional nos países da periferia, que vão
sendo arruinados uns atrás dos outros. Depois da morte do seu ídolo, a sociedade do trabalho volta a recorrer,
em todos os sentidos, aos métodos dos seus crimes fundadores, que contudo não a poderão salvar.
X. O MOVIMENTO OPERÁRIO: UM MOVIMENTO EM PROL DO TRABALHO
O trabalho deve empunhar o ceptro,
Só deve ser servo quem no ócio insistir;
O trabalho deve governar o mundo,
Pois só por ele o mundo pode existir.
Friedrich Stampfer
Honra ao Trabalho, 1903.
O movimento operário clássico, que só entrou em ascensão muito depois do declínio das antigas revoltas
sociais, já não lutava contra as exigências do trabalho; pelo contrário, desenvolveu precisamente uma
hiperidentificação com aquilo que lhe parecia ser inevitável. Interessava-se apenas por «direitos» e
correcções no seio da própria sociedade do trabalho, cujas coerções já tinha amplamente interiorizado. Em
vez de criticar radicalmente a transformação da energia humana em dinheiro enquanto finalidade autotélica
irracional, assumiu ele mesmo «o ponto de vista do trabalho» e interpretou a valorização do capital como um
facto positivo em si mesmo e, portanto, neutro.
Assim, o movimento operário assumiu, à sua maneira, a herança do absolutismo, do protestantismo e do
Iluminismo burguês. A infelicidade do trabalho foi convertida numa falsificação: o orgulho do trabalhador,
que vinha redefinir em termos de «direito do homem» a autodomesticação do indivíduo como material
humano do ídolo moderno. Os domesticados hilotas do trabalho trataram de, até certo ponto, dar a volta à
questão no plano ideológico, desenvolvendo um autêntico zelo missionário dirigido em dois sentidos: por um
lado, a reivindicação do «direito ao trabalho», por outro, a exigência de «obrigação de trabalho para todos».
A burguesia não era combatida enquanto suporte funcional da sociedade do trabalho, mas, pelo contrário,
censurada como parasita, em nome do trabalho. Todos os membros da sociedade, sem excepção, deviam ser
compulsivamente recrutados para os «exércitos do trabalho».
O movimento operário passou assim, ele próprio, a ser um pace-maker da sociedade capitalista do trabalho.
Foi ele que impôs, contra a tacanhez dos funcionários burgueses do século XIX e dos inícios do século XX,
as últimas etapas da coisificação dentro do processo de desenvolvimento do trabalho, aliás em analogia com
aquilo que a burguesia fizera um século antes, ao assumir a herança do absolutismo. Tal só foi possível
porque os partidos operários e os sindicatos, como consequência da sua divinização do trabalho,
desenvolveram uma atitude positiva face ao aparelho de Estado e às instituições da administração repressiva
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do trabalho, que de facto não pretendiam eliminar; pretendiam sim ocupar esses postos numa espécie de
«marcha através das instituições». Assumiram, portanto, como anteriormente acontecera com a burguesia, a
tradição burocrática da administração dos indivíduos na sociedade do trabalho, que vinha do absolutismo.
A ideologia da universalização social do trabalho exigia também um novo quadro de relações políticas. Em
lugar da velha articulação entre os diferentes «estados» da sociedade, cada um com «direitos políticos»
distintos (por exemplo, o direito de voto em função do nível de impostopago), na sociedade do trabalho, que
ainda só parcialmente estava instituída, tinha de ser introduzida a igualdade universal, democrática, típica do
«Estado do trabalho» na sua máxima perfeição. As desigualdades decorrentes do funcionamento da máquina
da valorização do capital, logo que esta passou a determinar toda a vida social, tinham que ser reequilibradas
pelo Estado social. O movimento operário encarregou-se também de fornecer o paradigma para este efeito.
Sob o nome de «social-democracia», tornar-se-ia o maior «movimento civil» da história, que, no entanto, só
podia ser a sua própria armadilha. Porque na democracia tudo é negociável, menos o carácter coercivo da
sociedade do trabalho, que é um pressuposto axiomático. O que pode ser debatido são apenas as modalidades
e as formas da coerção. Há sempre a escolha entre o Omo e o Persil, entre a peste e a cólera, entre o
descaramento e a estupidez, entre Kohl e Schröder.
A democracia da sociedade do trabalho é o sistema de dominação mais pérfido da história – é um sistema de
auto-repressão. Por isso, esta democracia nunca organiza a livre decisão dos membros da sociedade sobre os
recursos comuns, mas apenas a forma jurídica das mónadas de trabalho, socialmente separadas entre si, que
têm de vender concorrencialmente a sua pele nos mercados de trabalho. A democracia é o contrário da
liberdade. E assim, os democráticos homens do trabalho dividem-se necessariamente em administradores e
administrados, em empreendedores e empreendidos, em elites funcionais e material humano. Os partidos
políticos, e especialmente os partidos dos trabalhadores, espelham fielmente esta relação na sua própria
estrutura. A divisão entre dirigentes e dirigidos, barões e arraia-miúda, militantes e simpatizantes, torna
evidente que o quadro de relações nada tem que ver com um debate franco e com uma tomada de decisões
aberta. Faz parte integrante da lógica deste sistema que as próprias elites apenas possam ser funcionários não
autónomos do ídolo trabalho e das suas decisões cegas.
Pelo menos desde o Nazismo, todos os partidos são simultaneamente partidos dos trabalhadores e partidos
do capital. Nas sociedades «em vias de desenvolvimento», do Leste e do Sul, o movimento operário
transformou-se em partido do terrorismo de Estado ao serviço da recuperação do atraso na modernização; no
Ocidente, transformou-se num conjunto de diferentes «partidos populares», com programas e figuras de
representação mediática intermutáveis. A luta de classes está no fim, porque a sociedade do trabalho está no
fim. As classes sociais revelam-se categorias sociais funcionais do sistema fetichista colectivo; agonizam à
medida que tal sistema vai agonizando. Se os Social-Democratas, os Verdes e os ex-Comunistas se destacam
na administração da crise, desenvolvendo programas de repressão particularmente abjectos, com isso apenas
revelam que são os legítimos herdeiros de um movimento operário que nunca teve outro objectivo senão o
trabalho a qualquer preço.
XI. A CRISE DO TRABALHO
O primeiro princípio moral é o direito do homem ao seu trabalho. […] A meu ver não há nada
mais detestável do que uma vida ociosa. Nenhum de nós tem esse direito. A civilização não tem
lugar para os ociosos.
Henry Ford
O próprio capital é a contradição em processo, […] pois esforçase por reduzir o tempo de
trabalho a um mínimo, enquanto, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e
fonte da riqueza. […] Assim, por um lado, chama a terreiro todos os poderes da ciência e da
natureza, bem como os da combinação e do intercâmbio sociais, para fazer com que a criação
de riqueza seja (relativamente) independente do tempo de trabalho nela aplicado. Por outro
lado, pretende medir pelo tempo de trabalho estas gigantescas forças sociais assim criadas, e
contêlas dentro dos limites requeridos para que o valor criado se mantenha como valor.
Karl Marx
Esboço da Crítica da Economia Política, 1857/1858.
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Após a Segunda Guerra Mundial, durante um brevíssimo período histórico, poderia parecer que, com a
indústria fordista, a sociedade do trabalho se havia consolidado num sistema de «perpétua prosperidade», no
qual, à custa do Estado social e do consumo generalizado, pudesse apaziguar-se duradouramente a
insuportabilidade da coerção própria da finalidade autotélica. Independentemente de esta imagem ser uma
fantasia típica dos hilotas da periferia democrática, reportando-se apenas a uma pequena minoria da
população mundial, tal ideia não podia deixar de revelar também a sua inconsistência nos países
desenvolvidos. Com a terceira revolução industrial, a da microelectrónica, a sociedade do trabalho atingiu o
seu limite histórico absoluto.
Era logicamente previsível que este limite tinha de ser atingido mais cedo ou mais tarde, já que o sistema
centrado na produção de mercadorias padece desde a sua origem de uma insanável contradição interna. Por
um lado, ele vive de sugar energia humana em grandes quantidades, através do dispêndio de força de
trabalho inerente ao seu mecanismo… Quanto mais energia, melhor. Por outro lado, contudo, a lei da
concorrência da economia empresarial obriga a um permanente aumento da produtividade, num processo em
que a força de trabalho humana vai sendo substituída por capital fixo cientificizado.
Esta contradição interna tinha sido já a causa mais profunda de todas as crises anteriores, nomeadamente da
devastadora crise económica mundial de 192933. Porém, essas crises puderam sempre ser ultrapassadas
através de um mecanismo de compensação: em cada novo patamar de produtividade, após um determinado
período de incubação, por intermédio da extensão do mercado a novas camadas de consumidores, o sistema
acabava por absorver mais trabalho do que aquele que havia sido eliminado pelo processo de racionalização.
Diminuía o dispêndio de força de trabalho por produto, mas em termos absolutos eram produzidos mais
produtos, de tal forma que a diminuição acabava por ser compensada, inclusivamente com ganho. Enquanto
a inovação ao nível dos produtos superou a inovação ao nível dos processos, a contradição interna do sistema
pôde traduzir-se num movimento de expansão.
O exemplo histórico mais impressionante é o automóvel: com a linha de montagem e outras técnicas da
«racionalização científica do trabalho» (usadas pela primeira vez na fábrica de automóveis de Henry Ford,
em Detroit), o tempo de trabalho por automóvel ficou reduzido a uma pequena fracção do tempo
anteriormente gasto. Simultaneamente, o trabalho intensificou-se gigantescamente, ou seja, multiplicou-se
exponencialmente a absorção de material humano em igual período de tempo. Sobretudo aconteceu que o
automóvel, até então um produto de luxo acessível apenas às camadas mais altas da sociedade, foi
introduzido no consumo de massas devido ao embaratecimento resultante do processo.
Desta forma, apesar da racionalização introduzida pela produção em cadeia com a segunda revolução
industrial, a do «fordismo», foi possível continuar a satisfazer a um nível bastante elevado o apetite
insaciável que o ídolo trabalho tem de energia humana. Ao mesmo tempo, o automóvel é um exemplo central
do carácter destrutivo do modo de produção e de consumo da sociedade de trabalho altamente desenvolvida.
No interesse da produção em massa de automóveis e da generalizada circulação individual, a paisagem é
asfaltada e destruída, o ambiente é envenenado, e aceita-se resignadamente que nas estradas de todo o
mundo, ano após ano, decorra uma terceira guerra mundial não declarada, com milhões de mortos e
estropiados.
Ora, sucede que, na terceira revolução industrial – a da microelectrónica -, este mecanismo de compensação
por expansão soçobra. É verdade que com a microelectrónica também são embaratecidos muitos produtos e
criados outros novos (sobretudo no campo dos media). Mas, pela primeira vez, a inovação nos processos
ultrapassa a inovação nos produtos. Pela primeiravez, há mais trabalho eliminado pela racionalização do que
aquele que pode ser reabsorvido pela expansão dos mercados. No desenvolvimento lógico da racionalização,
a robótica electrónica substitui a energia humana e as novas tecnologias das comunicações tornam o trabalho
humano supérfluo. Desaparecem por inteiro sectores ou níveis anteriormente existentes na construção, na
produção, no marketing, no armazenamento, na venda e mesmo na gestão. Pela primeira vez, o ídolo
trabalho submete-se involuntariamente a um regime de racionamento duradouro. E com isso cava a sua
própria sepultura.
Como a sociedade democrática do trabalho constitui um sistema autotélico amadurecido, fechado sobre si
mesmo, orientado para o consumo de força de trabalho, a sua estrutura não aceita a simples passagem para
uma redução generalizada do tempo de trabalho. Por um lado, a racionalidade económica empresarial exige
que quantidades cada vez maiores de indivíduos permaneçam duradouramente «desempregados», e portanto
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postos à margem da possibilidade de reprodução da vida que é imanente ao sistema, mas por outro lado, o
número sempre mais reduzido dos «empregados» é submetido a uma exigência de trabalho e de eficiência
cada vez maior. No meio da riqueza, mesmo nos centros do capitalismo, regressam a pobreza e a fome. Há
meios de produção que ficam parados, terrenos de cultivo que ficam de pousio em larga escala, como em
larga escala ficam vazias as habitações ou edifícios públicos, enquanto o número dos sem-abrigo cresce
imparavelmente.
O capitalismo torna-se uma instituição de minorias à escala global. No seu desespero, o ídolo trabalho,
agonizante, torna-se o canibal de si próprio. Em busca de sobras de trabalho para se alimentar, o capital faz
estourar as fronteiras da economia nacional e globaliza-se numa concorrência nómada, em que cada grupo
procura desalojar o outro. Regiões inteiras do mundo são privadas dos fluxos globais de capital e de
mercadorias. Com uma onda de fusões e de «aquisições hostis» sem precedentes históricos, os cartéis
armam-se para a última batalha da economia empresarial. Os Estados e nações desorganizados implodem, e
as populações, empurradas para a loucura pela luta concorrencial de sobrevivência, digladiam-se na guerra
étnica dos bandos.
XII. O FIM DA POLÍTICA
A crise do trabalho arrasta consigo necessariamente a crise do Estado e, portanto, da política. Basicamente, o
Estado moderno deve a sua carreira ao facto de o sistema produtor de mercadorias precisar de uma instância
superior que garanta, no quadro da concorrência, os fundamentos jurídicos e os pressupostos da valorização
do capital – incluindo um aparelho repressivo para o caso de o material humano se insubordinar contra o
sistema. Na sua forma amadurecida de democracia de massas, no século XX, o Estado teve de assumir, de
forma crescente, encargos de natureza socio-económica: não apenas o sistema de segurança social, mas
também a saúde e a educação, a rede de transportes e de comunicações, infra-estruturas de todo o tipo que se
tornaram indispensáveis para o funcionamento da sociedade do trabalho, enquanto sociedade industrial
desenvolvida, mas que não podem ser organizadas de acordo com o processo de capitalização da economia
empresarial. E isto porque as infra-estruturas têm de estar permanentemente disponíveis para o conjunto da
sociedade e têm de cobrir todo o território, não podendo portanto ser obrigadas a adaptar-se às conjunturas
da oferta e da procura no mercado.
Mas como o Estado não é uma unidade autónoma de valorização do capital, e portanto não pode transformar
trabalho em dinheiro, tem de ir buscar dinheiro ao processo de capitalização realmente existente para
financiar as suas tarefas. Esgotado o processo de ampliação do capital, esgotam-se também as finanças do
Estado. Aquele que parecia ser o soberano da sociedade revela-se afinal totalmente dependente da cega e
fetichizada economia da sociedade do trabalho. Pode legislar como bem entender, mas, quando as forças
produtivas crescem para além do sistema de trabalho, o direito estatal positivo fica no vazio, uma vez que só
pode referir-se a sujeitos do trabalho.
Com o desemprego de massas, sempre crescente, secam as receitas estatais provenientes dos impostos sobre
os rendimentos do trabalho. As redes sociais rompem-se assim que se atinge uma massa crítica de
«supérfluos» que, em termos capitalistas, só podem ser alimentados através da redistribuição de outros
rendimentos financeiros. Na situação de crise, com o acelerado processo de concentração do capital, que
ultrapassa as fronteiras das economias nacionais, desaparecem também as receitas fiscais resultantes da
tributação dos lucros das empresas. Os trusts transnacionais obrigam os Estados em competição pelos
investimentos à prática do dumping fiscal, social e ecológico.
É precisamente este processo que leva o Estado democrático a transformar-se em mero administrador da
crise. Quanto mais se aproxima do estado de emergência financeira, mais se reduz ao seu núcleo repressivo.
As infra-estruturas são orientadas segundo as necessidades do capital transnacional. Como outrora nos
territórios coloniais, a logística social restringe-se cada vez mais a um número restrito de centros
económicos, enquanto o resto fica abandonado. Privatiza-se o que pode ser privatizado, mesmo que com isso
cada vez mais pessoas fiquem excluídas das mais elementares formas de abastecimento. Quando a
valorização do capital se concentra num número cada vez menor de ilhas do mercado mundial, deixa de ser
possível dar cobertura ao abastecimento das populações em todo o território.
Na medida em que tal não diga directamente respeito aos sectores relevantes para a economia, já não
interessa saber se os comboios andam ou se as cartas chegam ao destino. A educação passa a ser um
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privilégio dos vencedores da globalização. A cultura intelectual, artística e teórica é entregue ao critério do
mercado e agoniza. O sistema de saúde deixa de ser financiável e degenera num sistema de classes. Primeiro
lenta e disfarçadamente, depois de modo aberto, passa a valer a lei da eutanásia social: quem é pobre e
«supérfluo» deve morrer mais cedo.
Apesar de toda a abundância de conhecimentos, capacidades e meios da medicina, da educação, da cultura,
da infra-estrutura geral, a lei irracional da sociedade do trabalho, objectivada em termos de «restrição ao
financiamento», fecha-os a sete chaves, desmantela-os e atira-os para a sucata – exactamente como acontece
com os meios de produção agrários e industriais que deixaram de ser «rentáveis». O Estado democrático,
transformado num sistema de apartheid, nada mais tem para oferecer àqueles que até agora eram os cidadãos
do trabalho do que a simulação repressiva da ocupação em formas de trabalho barato e coercivo, e o
desmantelamento de todas as prestações sociais. Num estádio mais avançado, é a própria administração
estatal que pura e simplesmente se desmorona. Os aparelhos de Estado tornam-se mais selvagens,
transformando-se numa cleptocracia corrupta, os militares transformam-se em bandos armados mafiosos e a
polícia em assaltantes de estrada.
Não há política no mundo que possa parar este desenvolvimento e, muito menos, invertê-lo. Pois a política é,
por essência, uma acção em referência ao Estado; consequentemente, com a desestatização, ela fica sem
objecto. A fórmula democrática de esquerda, que fala da «progressiva configuração política» das relações
sociais, torna-se cada dia mais ridícula. Para além de uma repressão sem fim, do desmantelamento da
civilização e do apoio ao «terror económico», já não há nada para «configurar». Uma vez que a finalidade
autotélica da sociedade do trabalho é o pressuposto axiomático da democracia política, não pode haver
nenhuma regulação político-democrática para a crise do trabalho. O fim do trabalho é o fim da política.
XIII. O CAPITALISMO DE CASINO E O SEU JOGO DESIMULAÇÃO NA SOCIEDADE DO
TRABALHO
Logo que o trabalho, na sua forma imediata, deixa de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de
trabalho deixa necessariamente de ser a respectiva medida, e portanto deixa de ser o valor de
troca [a medida] do valor de uso. […] Em consequência, a produção fundada no valor de troca
desmoronase e o próprio processo imediato de produção material despojase da sua forma
mesquinha e contraditória.
Karl Marx
Esboço da Crítica da Economia Política, 1857/58.
A consciência social dominante engana-se sistematicamente a si mesma sobre a verdadeira situação da
sociedade do trabalho. As regiões em colapso são ideologicamente excomungadas, as estatísticas relativas ao
mercado de trabalho são descaradamente falsificadas, as formas de pauperização são dissimuladas pelos
media. A simulação é o traço característico mais central do capitalismo em crise. Isto vale também para a
própria economia. Se, pelo menos nos países ocidentais que constituem o núcleo do sistema, subsistiu até
agora a aparência de que o capital podia acumular-se mesmo sem trabalho e que a forma pura do dinheiro
sem substância podia garantir o contínuo crescimento do valor, tal aparência ficava a dever-se a um processo
de simulação nos mercados financeiros. À imagem e semelhança da simulação do trabalho através das
medidas coercivas da administração democrática do trabalho, formou-se uma simulação da valorização do
capital através da desarticulação especulativa entre o sistema de crédito e os mercados bolsistas da economia
real.
O consumo de trabalho presente é substituído pelo recurso ao consumo de trabalho futuro, que nunca
chegará a realizar-se. Trata-se, de certo modo, de uma acumulação de capital num fictício «futuro do
conjuntivo». O capital-dinheiro, que já não pode ser reinvestido de forma rentável na economia real, e que
por isso não pode absorver mais trabalho, tem de se deslocar em força para os mercados financeiros.
Já o impulso fordista da valorização do capital, nos tempos do «milagre económico», após a Segunda Guerra
Mundial, estava longe de ser totalmente auto-sustentável. O Estado contraiu créditos em quantidades até
então desconhecidas, muito para além das suas receitas fiscais, porque as condições estruturais da sociedade
do trabalho já não podiam ser financiadas de outra maneira. O Estado empenhou assim todas as suas
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efectivas receitas futuras. Desta maneira surgiu, por um lado, uma possibilidade de investimento financeiro
para o capital-dinheiro «excedente» – emprestava-se ao Estado a troco de juros. O Estado pagava os juros à
custa de novos empréstimos, reinjectando novamente o dinheiro emprestado no circuito económico. Por
outro lado, o Estado financiava as despesas sociais e os investimentos infra-estruturais, criando assim uma
procura que, em termos capitalistas, era necessariamente artificial, uma vez que não tinha a cobertura de
qualquer dispêndio de trabalho produtivo. O boom fordista foi assim ampliado para além daquele que seria o
seu verdadeiro alcance, por via de um processo em que a sociedade do trabalho procedia à sangria do seu
próprio futuro.
Este elemento simulativo do processo – só aparentemente ainda intacto – de valorização do capital chegou
ao seu limite último juntamente com o endividamento estatal. As «crises de dívida» dos orçamentos estatais,
não só no Terceiro Mundo, mas também nos países desenvolvidos, deixaram de permitir que a expansão
continuasse a realizar-se por este processo. Foi esse o fundamento objectivo da campanha vitoriosa da
desregulamentação neoliberal, que, segundo a respectiva ideologia, deveria ir de par com uma redução
drástica da quota do Estado no produto social. Na realidade, a desregulamentação e o desmantelamento das
responsabilidades do Estado foram anulados pelos custos da crise, ainda que sob a forma de custos da
repressão e da simulação estatais. Deste modo, são muitos os Estados em que a quota do Estado no produto
efectivamente aumentou.
Mas a acumulação do capital já não pode continuar a ser simulada através do endividamento do Estado. E é
por isso que, desde os anos oitenta, a criação complementar de capital fictício se transfere para os mercados
bolsistas. Neles, há muito que não se trata de obter dividendos, ou seja, a distribuição de lucros da produção
real, mas apenas de obter ganhos de cotação pelo aumento especulativo do valor dos títulos de propriedade
até números de grandeza astronómica. A relação entre a economia real e o movimento especulativo dos
mercados financeiros foi virada de pernas para o ar. Já não é o aumento especulativo das cotações a antecipar
a expansão da economia real, mas pelo contrário é a criação fictícia de valor, sempre em alta, que simula
uma acumulação real que simplesmente deixou de existir.
O ídolo do trabalho está clinicamente morto, mas recebe respiração artificial através da expansão
aparentemente autonomizada dos mercados financeiros. As empresas industriais obtêm ganhos que já não
resultam da produção e da venda de bens reais, que há muito se tornaram empreendimentos votados ao
insucesso, mas sim da especulação em acções e divisas levada a cabo pelos seus «habilidosos»
departamentos financeiros. Os orçamentos públicos apresentam receitas que não resultam de impostos ou de
empréstimos, mas da participação zelosa da administração financeira no jogo de azar dos mercados. E os
orçamentos privados, que viram as receitas reais provenientes dos salários e honorários reduzir-se
drasticamente, só conseguem manter um nível elevado de consumo à custa de ganhos na bolsa. Surge assim
uma nova forma de procura artificial que, por sua vez, arrasta consigo uma produção real e receitas fiscais
reais «sem chão debaixo dos pés».
Desta maneira, a crise económica mundial vai sendo adiada pelo processo especulativo; mas, como o
aumento fictício do valor dos títulos de propriedade só pode ser a antecipação da futura utilização real de
trabalho (numa escala astronómica) – que nunca virá a acontecer -, então o embuste objectivado terá
forçosamente de se desmascarar após um certo tempo de incubação. O colapso dos «emerging markets» na
Ásia, na América Latina e no Leste da Europa foi só um aperitivo. Será apenas uma questão de tempo, e
entrarão igualmente em colapso os mercados financeiros dos centros capitalistas nos Estados Unidos, na
União Europeia e no Japão.
Este contexto é percebido de uma forma totalmente distorcida pela consciência fetichizada da sociedade do
trabalho e em particular pelos tradicionais «críticos do capitalismo», à esquerda e à direita. Fixados no
fantasma do trabalho, nobilitado enquanto condição supra-histórica e positiva da existência social,
confundem sistematicamente causa e efeito. O adiamento temporário da crise através da expansão
especulativa dos mercados financeiros aparece, assim, de forma invertida, como suposta causa da crise. A
«maldade dos especuladores» – na expressão vulgarmente usada, mais ou menos mesclada de pânico – levá-
los-ia a arruinar completamente a bela sociedade do trabalho, gastando de forma extravagante o «bom
dinheiro», que existe «de sobra», em vez de o investirem de forma respeitável e sólida em maravilhosos
«postos de trabalho» para que uma humanidade de hilotas imbecilizados pelo ídolo pudesse continuar a ter o
seu «pleno emprego».
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Não entra nestas cabeças este facto simples: não foi de forma nenhuma a especulação que fez parar os
investimentos reais, porque estes já tinham deixado de ser rentáveis em consequência da terceira revolução
industrial. O disparo especulativo só pode ser um sintoma disso mesmo. O próprio dinheiro, que
aparentemente circula em quantidades infinitas, já não é «bom», mesmo em sentido capitalista, mas apenas
simples «ar quente» com que foi sendo empolada a bolha especulativa. Qualquer tentativa de drenar um
pouco esta bolha, recorrendo a projectos tributários mais ou menos imaginativos («Taxa Tobin», etc.) para

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