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BELLEMIN NOEL Jean Psicanalie e literatura pdf

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JEAN BELLEMIN-NOEL
(ProfessordeLiteraturaFrancesadaUniversidade
dePar~sVIII)
,
PSICANALISE
E
LITERATURA
Traduçãode
ÁlvaroLorencini
e
SandraNitrini
Revisãocientíficade
PhilippeWillemprt
~. '' ...••.'" ,~
EDITORA CULTRIX
SãoPaulo
Título do original:
PSYCHANALYSE ET LITT~RATURE
(Coleção"QueSais-Je?")
Copyright© PressesUniversitairesdeFrance.1978
OBRAS DE FREUD
(Abreviaçõesutilizadas- data - (re)ediçõesfrancesas- t(tulo e volumeda Standard
Editionbrasileira,ed.lmago)
IAP
IDR
EDP
MDC
MfT
MVP
EPA
ISA
DRG
ADP' AbrégédepS)1chanalyse[1938]' PUF.1970.
Esboçodepsicanálise.vaI.23.
AVI L:Avenird'une illusion[1927],PUF (1932)1971.
O futurodeuma ilusão,voI.21.
CLP CinqleçonssurIaPsa [(1904),1909]' Payot(1950),1971.
Cincoliçõesdepsicanálise,vaI. 11.
CPS Cinqpsychanalyses[1905-1918],PUF (1954),1970.
Fragmentodeumcasodehisteria,vaI.7.
Análisedeumafobiaemummeninodecincoanos.vaI. 10.
Notassobreumcasodeneuroseobsessiva,vaI. 10.
Notas psicanalíticassobreum relatoautobiográficode um casode paranóia,
vaI. 12.
Dahistóriadeumaneuroseinfantil]vaI. 17.
DélireetrévesdansIa "Gradiva"deJensen[1907]. NRF (1949).1971.
Delíriose sonhosna"Gradiva"deJensen,vol.9.
EssaisdePsychanalyse[1915-1923], Payot(1951),1971.
Alémdo princípiodo prazer.vaI. 18.
A psicologiadegrupoe aanálisedoego,vaI. 18.
O egoe o id,vaI.19.
Pensamentosparaostemposdeguerraemorte,vol. 14.
Essaisdepsychanalyseappliquée[1906- 1923],NRF (1933),197J.
Inhibition.symptôme.angoisse(1926),PUF (1951),1968.
Inibições.sintomas.angústia,vaI.20.
L 'interprétationdesrêve$[1900],PUF (1926),197/.
A interpretaçãodossonhos,voI.4.
Introdúctionà IaPsa [1915-1917], Payot(1951). 1973.
Conferênciasintrodutóriasà psicanálise,vaI.15.
MalaisedansIacivilisation[1929],PUF (1934),11Jfl1.
O mal-estardacivilização,voI.21.
Ma vieet IaPsa [1925],NRF (1950). 1970.
Um estudoautobiográfico,vol.20.
Métapsychologie[1915-1917], NRF (1952),1968.
As pulsõesesuasvicissitudes.vaI. 14.
Recalcamento,vaI.14.
O mconsciente,vaI. 14.
Um suplementometapsicológicoà teoriadossonhos,vol, 14.
MCMLXXXIlI
Direitos de traduçãopara a língua portuguesaadquiridoscom exclusividadepela
EDITORA CULTRIX LTDA.
RuaDr. MárioVicente,374,fone:63-3141,CEP 04270- SãoPaulo,SP
Impressonasoficinasda
EditoraPensamento
5
Luto emelancolia,vol.14.
MMO Maiseet lemonothéisme[1939],NRF (1948),1971.
Moisése o monoteísmo,vol.23.
MRl Le motd'espritetsesrapportsavecjTcs.[1905],NRF (1930),1969.
Chistese suarelaçãocomo inconsciente,vol.8.
NPS La naissancedeIaprychanalyse[1950],PUF (1956);1973.
As origensd!\psicanálise,VOI. 1.
NPP Névrose,prychoseetperversion[1894-1924], PUF, 1973.
NCP NouvellesconférencessurIaprychanalyse[1932],NRF (1936),1971.
Novasconferênciasintrodutóriasàpsicanálise,voI.22.
PVQ PsychopathologiedeIaviequotidienne [1901]' Payot(1948),1971.
A psicopatologiadavidacotidiana,vol.6.
REI Le Rêveet soninterprétation[1901],NRF (1925):1969.
Sobreossonhos,vol.5.
SLV Unsouvenvd'enfancedeLéonardda Vinci [1910],NRF (1927),1977.
LeonardodaVinci eumalembrançadasuainf'ancia,vol. 11.
TPS La techniquePsa [1904- 1918]'PUF (1953),1970.
TOT Totemet Tabou[1912],Payot(1947),1971.
TotemeTabu,vol. 13.
TES Troismais surIa théoriedeIasexualité[1905],NRF, 1962.
Trêsensaiossobreateoriadasexualidade,vol.7.
VSX La Viesexuelle[1907-1931],PUF, 1970.
N.B. Nas referênciasacima,a dataem itálicoé a da ediçãoa queremetea página
que indicamosnestelivro. Sendoas traduçõesàsvezesantigas,pode acontecerque
nossascitaçõesestejamum tanto modificadascom relaçãoao texto de referência.
N. dos T. - Nestelivro,ascitaçõesdeFreudforamtraduzidasdiretamentedo francês.
6
ÍNDICE
Advertência
Introdução - Ler apartirdaPsicanálise
CapituloI - Ler comFreud
I. "Aplicar" apsicanálise
lI. Umaliçl[Odeleitura
m. Osescritosfreudianos
Capitulo11 - Ler o Inconsciente
I. O trabalhodo sonho
lI. As artimanhasdalinguagem
m. Jogarcomaspalavras
CapituloIJI - Ler-seaSiMesmo
I. Representaçõesinconscientesno textoliterário
lI. Ganhodeprazere sublimação
m. Daidentificação
IV. A "paixão"deescrever
V. O papeleo divã
CapituloIV - Ler o Homem
I. O humanoeo simbólico
lI. Mitos,contose lendas
m. Tiposemotivos
IV. Gênerosliterários
V. Outrosmodelos
9
11
16
17
18
21
23
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31
34
34
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44
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52
53
57
59
61-
64
7
Capz'tuloV - Ler umHomem
I. Estarimplicadoemque(m)selê
11. Psicanalisaro autor:osgrandesprecursores
m. Os"psicobiógrafos"
IV. Posiçõesdapsicobiografia
V. O problemado autor
VI. O casodaautobiografia
VII. A psicocrítica,ou CharlesMauron,I
Capz'tuloVI - Ler Texto
I. "Gradiva": passodedançarinaou passoemfalso?
lI. Intervirno texto
m. Das"associações"às"superposições"(Mauron,11)
IV. Realizaçõeseperspectivas
Conclusão
BibliografzaSumária
8
67
68
70
72
74
76
78
80
83
84
86
89
92
96
99
ADVERTENCIA
A psicanálise(entendopor estetermo a doutrinafreudiana)maisdo
queumaciênciaéa artede decifrarumaverdadeemtodosossetoreseIÚg-
máticosda experiênciahumana,tal comoo homema vive,istoéa "fala" a
um outro ou a si mesmo.Não distinguindoum sujeitodeumobjetodeco-
nhecimento,ela negaque existaum sujeitodefinidoou definível,e obje-
tos de pensamentoquejá não sejamhabitados,desviadospelasartimanhas,
tentativas,desejosdeumapartedo sujeito.
Ela apóia;senumateoriae numaprática,semtécIÚcasimperativas,
semcódigostransparentes,semmodeloscertificados,sem conceitosmono-
valentes,semreferênciasfixas.É Penélopequeteceedesteceseutecidotal
comonósfazemosnossavida...
Portanto,seria ilusório quererfalardissono aparelho"geométrico"
queé habitualnestacoleção.O leitor nãoencontraráexposiçãosistemática
dasnoçõessobreasquaisse fundaa psicanálise,nãosetomarámaiscrítico
psicanalisantedo que analistaprático.Se adquirir,no decorrerda leitura,
umavisãode conjuntodashipóteses,dosmétodos,dosresultadosemques-
tão, e se pensarem aprofundarseu interesse,nem ele nem eu teremos
padecidoemvão.
9
INTRODUÇÃO
LERA PARTIR DA PSICANÁLISE
"Poetase romancistassãonossospreciososaliados,e seuteste-
munho deve ser altamenteestimado,pois eles conhecemmuitas
coisasentreo céuea terra,comquenossasabedoriaesç:olarnãopode-
ria aindasonhar.Nossosmestresconhecemapsiqueporqueseabebe-
raramemfontesquenós,homenscomuns,aindanãotomamosaces-
síveisà ciência."
(8. Freud,DRG, 127.)
A psicanáliseconta atualmentetrêsquartosde século,isto é, alguns
anose maisdo quea físicaeinsteinianadaRelatividade.Temoso direitode
esperarque a fecundidadede suashipótesespareçaincontestávela todos,
quenão seencontremaisninguémquereproveestavelhasenhoraporusar
roupasíntimas atraentes,com o fIm deprovocaros indecisosdeumaso-
ciedadepuritana.
Ela é aceitaou não de bom grado,masFreud infligiu ao serhumano
o que em UneDiffü:ultéde Ia Psychanalyse[UmadifIculdadeno Caminho
da Psicanálise(voI. XVII)], elechamade suaterceira"feridade amor-pró-
prio". Copémicotinha-oforçadoa reconhecerqueseupequenoplanetanão
.eramais o centrodo mundo;Darwin, queeleeraapenasum animalmais
afortunadoqueosoutrosenãoumacriaturadeorigemmaravilhosa;elepró-
prio demonstrouque"o eu não émaiso senhornasuaprópriacasa"(146).
Tal é o poderdaspulsõesdeprazeremnós,queé impossívelconsiderarsua
totaldomesticação,enãomaisqueavontade,nossainteligêncianãoésobera-
na,já queumaboapartedasatividadesmentaisescapaaoolhardaconsciên-
cia.Destituídosde nossolugarsupereminenteno cosmose nabiosfera,nós
tambémo somosno quadrodestapsiquequeconstituíahápouconossagló-
ria e nossaconsolação:algumacoisapensaemnóse dirigenossosatoscom
nossasidéias,semquesaibamosmesmoquefenômenosocorrem.Queo ho-
memsesintaatingidono seuorgulho- no seunarcisismo- nãoé o maisim-
portantenestecaso;elejá passoupor outras.Foi precisovencermuitasresis-
tências,asdatradiçãoe dasreligiõesparaacelerara cicatrizaçãodestaferida.O esforçode Freud a esterespeitoeo efeitodesuadescobertasãoin-
comensuráveis.No início, o movimentopsicanalíticomostroucom expe-
riênciasque eramais fácil penetrarnos mistériosdo neuróticodo quere-
pelir os preconceitostriunfantesdosconventículoscientífIcosemundanos.
As censurasdaideologiatinhammaisefIcáciaedeterminaçãodo queo recai-
que no interiordecadaindivíduo.As pressõesdafaml1ia,daescola,dareli-
gUIo,das instituições,o pesoda sociedadeorganizadanumaeconomia,o
11
peso de uma fJ1osofiadifusabatizadade "experiência"ou a empresado
"bom senso",razoávele racionalmasnuncaraciocinante,de tudo issonós
somosaomesmotempovítimase beneficiários,cegosporquesobrecarrega-
dos e aproveitadoresporquecegos.Tudo isto seencontraalojadoemnós,
no nossopensamento,nanossalinguagem.
Eis o segundotermodenossobinômio:literatura.É porelaquetoma-
mosconsciênciadenossahumanidade,quepensa,quefala.Poisalínguaque
seaprendenasrelaçõesquotidianascomospaiseamigossÓserveparaagir:
perguntar,responder,paraviver.Ernsuma,~sÓcomalgumacoisacomolite-
ratura(mesmoquetenhasidooral naserasecivilizaçõessemescrita)queo
homemseinterrogasobresimesmo,sobreseudestinocósmico,suahistória,
seufuncionamentosociale mental.Suasconcepções"elevadas",suavisão
do mundoafirmam-seemcontatocomaslendas- o queéprecisoler -, de-
pois com os mitos religiosos,com asepopéiasprofanas,comasnarrativas
exemplares,contos, teatro, romance,com asconfidênciasemocionantes,
tantoemprosacomoemverso.A fala informa-nos,a escritaforma-nos.E
deforma-nosnecessariamente,já que o quefoi escritonosvemdeoutrolu-
gar,longeou pertona ausênciae de um outro tempo,de outroraou dehá
pouco:nuncadaquie de agora,ondefalaréo suficiente.
Mas a literaturatambémé algodiferentedo corpo maisou menos
embalsamadode idéiasjá feitas,equesefizeramforado contextoimediato,
ondecadaum sedebate:nãosomenteo conjuntodosdiscursosconsignados
antesde nós e longede nós,mastambémum discursoparticular.Durante
muito tempo,ela foi chamadae considerada''útil e agradável";a utilidade
provinhado prazeroferecido;a satisfaçãodevia-seà suainutilidadeparaa
vida. Dis'cursoliterário significadiscursodesequilibradosobrea realidade.
Nistoestáo seuencanto,o seudramaesuasortemaravilhosa.
Compreenderqueasobrasquefazemparteda literatura,quesesedi-
mentarampoucoapoucoparaformarumdomíniosÓlido,deixandoapoei-
rapassarcom o ventodo não-essencial,depoisa areiadesaparecerno decli-
vedo utilitário - o quechamamosdefalacomumedeescritosdidáticos-,
encontrarasrazõespelasquaisestasobrasultrapassamseuautor,suaépoca,
seucírculo lingüístico,isto tambémnãosefaz numdia. Assimcomoo re-
conhecimentodapsicanálise,e empartegraçasa ela,a apreciaçãodaorigi-
nalidadedo literáriofoi laboriosa.Contentemo-nosem dizeraquiquefoi
precisoaceitara idéia de umalinguagemdiferente,quenão diziaapenas,
nemexatamentenemverdadeiramente,o quepareciadizer.Da mesmama-
neiraque o psíquiconãoconstituíaumaespéciedeblocounitáriocomsuas
simplessuperposiçõese repartiçõesdecompetências,a escrituradasgrandes
obrasnãopoderiaserassimiladaà transmissãodeumamensagemdotadade
um único sentidoevidente.As palavrasde todos os diasreunidasdeuma
certamaneiraadquiremo poderde sugeriro imprevisível,o desconhecido;
12
e os escritoressãohomensque,escrevendo,falam,semo saberem,decoisas
queliteralmente"elesnã'osabem".O poemasabemaisqueo poeta.
Se o sentidoexcedeo texto, existefalta de consciênciaemalguma
parte.O fato literáriosó vivede receptaremsiumapartedeinconsciência,
ou de inconsciente.A tarefaquedesdesemprea críticaliteráriaseatribuiu
consisteemrevelarestafaltaou esteexcesso.Em suma,já quea literatura
carreganos seusflancoso nã'o-conscienteejá queapsicanálisetrazumateo-
riadaquiloqueescapaaoconsciente,somostentadosa aproximá-Iasatécon-
fundi-Ias.O conjuntodasobrasliteráriasofereceum ponto devistasobrea
realidadedohomem,sobreo meio ondeeleexistetantoquantosobreama-
neiracomoelecaptaao mesmotempoestemeioe asrelaçõesquemantém
comele.Esteconjuntoé umasériede discursose umaconcepçãodo mun-
do: os textose a culturaseminterrupçã'o.A doutrinapsicanalíticaapresen-
ta-sedemaneiraquaseanáloga:umaparelhodeconceitosquereconstroemo
psiquismoprofundo,emodelosdedecifraçã'o.Seo corpodostextoseo ins-
trumentalteóricopertencema ordensdiferentesda realidade(um material
contrainstrumentosde investigação),é precisonãoperderdevistaqueavi-
sãodo mundodasbelas-letraseamarcaçã'odosefeitosdo inconscientefun-
cionamdo mesmomodo: são duasespéciesde interpretação,maneirasde
ler, digamosleituras.Literaturae psicanálise"lêem"o homemnasuavivên-
cia quotidianatanto quantono seudestinohistórico.Elasseassemelham
maisprofundamentepor excluíremqualquermetalinguagem:nãohá dife-
rençaentre o discursoque se faz sobreelase os discursosqueasconsti-
tuem.Sabe-sequenuncachegaremosanosdesligarverdadeiramentedaquilo
de que falamos,e entretantofixamoscomo finalidadechegaraverdadeslã-
landodo homemqueestáfalando. .
A descobertado inconscientequestionao conhecimentoquetemosdo
psiquismohumanQ,conhecimentodo qualvivemosacadaminuto.O quese
escreveue seescreveainda,aquiloqueleio, tudo é trabalhado,semqueeu
saiba,por energiasfabulosas(e fabuladoras):o que acontececom minha
leiturahoje?Por outro lado, a psicanáliseoperasôbrealinguagem,fatorde
verdadee alienàçãonasrelaçõesentrepessoase no própriointeriordapes-
soa:o quemeensinaelasobreestelugardeexerCÍcioprivilegiadodalingua-
gemqueé o conjuntodaliteratura,ondearealidadesecretado indivíduose
exprimemelhorqueem outraparte?Eis aí perguntasverossímeis.A finali-
dadedainvestigaçãotorna-seentãoesta:descreverosprincipioseo lequede
meiosquea psicanálisecolocouà nossadisposiçãoparanospermitirlerme-
lhora literatura.
Teremos,pois,de explorarnão somentena suadiversificação,masna
suahistÓria,asdiversasorientaçõesdo quesepodebatizarcomumaexpres-
sãogeral: "a abordagempsicanalíticado campoda literatura".Pois cada
uma delasse desenvolveunummomentodiferente,comdestinosdiversos,
intcnsidadesvariáveis.
13
Umavezque astentativasde Freud serlfoapresen'tadassegundoa or-
demqueapareceram,passaremosem revistaestaslinhaseosresultadosque
deramatéhoje. Alcançaremosnossoobjetivose,numacoleçlfoqueatinge
um público amplo, todos os espíritoscuriosbsadquiriremum sentimento
maisou menoscircunstanciadodosmodosdeintervençãodoolh;Upsicana-
lítico, em facedosmúltiplosaspectossobosquaisa literaturaestápresente,
viva,ativaparaumapartedehomensque,esperamos;nãodeixarádeseam-
pliar.
Paraconcluir,evoquemosestafórmuladeFreud,donde o humornão
estáausente:
"O trabalhoanalíticoé delicadoe fatigante;elenãopodesertratado
comoum pincenê,quepomosparaler e tiramosquandosaímoslipasseio."
(NCP,201)
. Saiamos,pois, embuscasenão do melhorpincenêparaler bem,pelo
menosdeumbompincenêparalermelhor.
14
OBSERVAÇÕES
A quemqueirainiciar-sena históriae naposiçãodosproblemasda psicanálise,
no seudesenvolvimentorecentee nos seusprincipaisconceitos,remetemosrespecti-
vamentepara:
OctaveMANNONI, Freud,"EcrivainsdeToujours",Seuil,1968.
DanielLAGACHE, La Pl)'chanalyse,"QueSais-je?",PUF, 1955,paracompletarcom
CatherineCLÉMENT etai.,La Pl)'chanalyse,"Encyciopoche",Larousse,1976.
J. LAPANCHE et J.-B. PONTALIS, Vocabulairede Ia psychanalyse(Vocabu/drloda
Psicanálise,LivrariaMartinsFontesEd. Ltda., Trad. de PedroTamen,1975),PUF,
1967(aquidesignadopor VLP).
SIGLAS E CONVENÇÕES
RevistasfreqUentementecitadas:
Litt. - Littérature(Larouse).
NRP - NouvelleReVIUdePsychanalyse(Gallimard).
PoÜ - Poétique(Seuil).
RFI' - RevueFrançaisdePl)'chanalyse(PUF).
Abreviaçõesusuais:
Nas notas e paraasreferências,pareceu-noscômodoescrever:Psapara"psica-
nálise";psapara"psicanalftico"; iCl para"inconsciente".
15
(5. Freud,CLP,lll-l12).
CAPITULO PRIMEIRO
LER COM FREUD
"Da exploraçãodos sonhosfomoslevadosprimeiroà análisedas
criaçõespoéticas;emseguida,dospoetase artistas[... ), osmaisfas-
cinantesproblemasde todosaquelesqueseprestamàsaplicaçõesda
psicanálise.••
Para começar,umahi~tória:falsaounlIo,ela traduza verdade.A alo
guémquelhe perguntouquaistinhamsidoseusmestres,o fundadordapsi·
canáliseteria respondidocom um gesto,apontandoparaasprateleirasde
suabibliotecaonde figuravamos monumentosda literaturamundial ...
Freud eraapaixonadopor todaespéciede literatura:grandeledoras-
simcomofino leitor. Suaculturaé aquelaque hácemanoseraproporcio-
nada no ensino secundário,na Áustria: clássica,mas mais variada,mais
universal,maismodernaquesuahomóloganaFrança.A título deexemplo,
osnomesqueaparecemcomfreqüênciasobsuapenas[o deautoresjá con-
sagradospor volta de 1870:Aristófanes, Boccacio,Cervantes,Diderot,
Goethe,Hebbel,Heine,Hesíodo,Hoffmann,Homero,Horácio,Tasso,Mil·
ton, Moliêre, Rabelais,Schiller,Shakespeare,Sófocles,Swift; quantoaos
escritorescontemporâneos:Dostoievsky,'Flaubert,Anatole France,Ibsen,
Kipling, Thomas Mann, Nietzsche,lSchopenhauer,BernardShaw, Mark
Twain, OscarWilde,Zola e StefanZweig.O queeleextraide suasleituras
sãoprimeiro fórmulascomprovadasque marcaramsuamemóriae que lhe
permitemenfeitarseu texto com citações,segundoo uso do bem-escrever
própriode seutempo.E sobretudoum conhecimentodasmolasquefazem
oshomensagir,primeiropor impregnação(estefundodesabedoriae deex-
periênciaquenóstodosadquirimosemcontactocomobrasrepresentativas);
depois,colocando-se,porprópriainiciativa,naescoladosgêniosqueo prece·
deram,sem o saber,no caminho das grandesdescobertaspsicológicas.
VemosFreud declararcomfreqüênciasuaconvicçãode queos textoscon·
sideradosimortaispodemserguias,assim:
"E revelou-se- o que,aliás,os romancistaseosconhecedoresdoco-
raçãohumanosabiamhámuitotempo- queasimpressõesdetodoestepri·
meiroperíododavidadeixavamtraçosindelévies[etc.)"(MVP,42).
1 Para dizer e repetirque há entreambostantospontos comunsqueele prefere
nãofreqüentá-Ia"demais",a fim deconservarinteiraaoriginalidadedeseupróprio
pensamento...
16
Fascinadopela extraordináriaartede adivinhardestesespíritosque
não possuíamosmeiosde análise,ficavaimpressionadocomseusresumos,
descriçõese narrativas,masnão maravilhadoatéa cegueira:pelocontrário,
sentia-seincitadoa compreender.Daí o vigorde suaspesquisas,de seuses-
forçospara- à medidaque o ia formulando- aplicarseumétodocientífi-
co aoenigmaque,dealgummodo,ele já esclarecera.
I. "Aplicar" a psicanálise?
o termoaplicaçãonão deveprestar-sea contra-senso.Ele sugerenor-
malmentequeseutilizam,numcertodomínio,princípiosemeiosdeinves-
tigaçãopertencentesaumaesferaestranhado saber,denominada,segundoo
caso,"ciênciafundamental"ou "ciênciaanexa".
g destemodoque serecorreà matemáticaparatodasasciênciasexa-
tase até(por exemplo,a estatística)paracertasciênciashumanas;ou apli-
ca-sea químicadasradiaçOesà arqueologiae àpaleontologia,servindo-sedo
carbono14paradatarumapedratalhadaou umacerâmicaantiga.Ora,no
casoquenosocupa,não setratadeummododecálculoou umaparelhode
medidapertencenteà ordemdo quantitativo,masdeumamesmagradede
interpretaçãoquedeveriaservirparadecifrarfenômenoshumanosaparente-
mentemuito distantesuns dosoutros(e é prticisodemonstrarpreviamente
queelesnãosãoverdadeiramenteheterogêneos).A primeiraOriginalidadeda
teoriado inconscienteé termostradoqueaseparaçãoentreasdiversasatitu-
dese atividadesdo homemerasuperficial.Umavezestabelecidoquehácon-
tinuidadeentrea criançae o adulto,o "primitivo" e o "civilizado",o ex-
traordinárioe o ordinário,o patológicoe o normal,vemosdesaparecerde
urnavezo fossoquemantinhaafastadas,umasdasoutras,produçõescomo
o sintoma,asnarrativasfantásticas,os t~busdospovospolinésios,a organi-
zaçã'oe o alcancedosbrinquedosparameninosemeninas.Existeumabase
- a saber,o mecanismocomplexodaspulsões,osmodosderecalque,asar-
timanhasdo desejosexual- queé comumaoscomportamentosestranhos
c costumeirosdasdiversasespécie'sde indivíduos,defaixasdeidade,deco-
letividadesqueencontramosna superfíciedo planeta.Um sonho,um brin·
qucdo, um rito, umaassociaçãosecreta,um fiÚto,umalenda,umafábula,
lima epopéia,umacançãoinfantil, um romance,umabrincadeira,a magia
dc um poemaformamobjetosde estudosdistintosapenasparaespecialis-
(asque pensavamtrabalharsobremateriaisheterogêneos.A partir do mo·
mcntoem quetais fenômenoshumanossãoconsideradosemqualquergrau
COlllO realizaçõesdeummesmoInconsciente(amaiúsculaprecisaquesetrata
'\0 sistcmaenquantotalenãodeumaorganizaçãoindividual- nãoéumamar-
';1 lk sacralização),torna-selegítimoqueummesmointérpreteocupe·sede·
Ir~. A plicara psicanáliseaumaclasSedeobjetospsíquicosparticularesé ob·
17
servara maneiracomo o desejose manifestaatravésdos materiais,dos
contextos,dosórgãos,dasinstituições,dosdadosculturaisirredutíveis,mas
queobedecemàsmesmasleis.
A palavraaplicaçãonão temaquiumsentidoquesesobrepõeaosque
ela recebeem outra parte;não se trata de fazer intercâmbiocom uma
ciênciavizinha,nem afortiori dedeportarapsicanáliseparaqualquerlugar:
queiramosou não, a análisedos processosinconscientestempor vocação
interviremtodaparteem quesedesenvolveá "imaginação",istoé,afetos,
uma obra de ficção, a representaçãode maneiramais ampla,e efeitos
simbólicos.Ela podejulgar-seeficientecadavezqueo homemvolta-separa
si mesmoe cadavezquesuaatividadede conhecimentosaidaaxiomática,
da physis e da techné para interessar-sepelos aS{lectos"concretos"daexistênciae dahistória,dasociedadeedo indivíduo.E precisoinsistir sobre
isto:o matemáticooperacomnúmerose combinações,o astrônomoobserva
o quesepassano infmitamentegrande,e o físicono infmitamentepequeno;
o engenheiropreocupa-secomaeficáciarentável,massaindodesuaespeciali-
dadeeless[o, por assimdizer,apenashomens;Freud com seuinseparável
pincenêpresono nariz,observa-ostrabalhando,estuda-ostambémfora do
trabalhoe, não esqueçamos,observaa si próprio trabalhandoe não se
perdedevistaquandoseuespíritorepousaouvagueia.Nãosearriscanunca
a tirar o pincenê,já queconsagraseutempoadecifraro textodoHU11U1no:
emsuma,elenãopáradeler!
11. Umaliçãodeleitura
Commaiorrazão,quandolhe ocorreler um livro, não deixade agir
comoanalista:prestaatençãoao queouveno textoescrito.Seria,entretan-
to, um erro imaginá-Iolendo "entre linhas", sonhandovagamentecoma-
quilo que a leitura lhe sugereou lembra.Nemprofeta,nemfabricadorde
idéias- sobreissoverSarahKofman em L 'enfancede l'art -, Freud era
um intérpretesempreatentoàspalavras,àsfrases,à linguagem.Dizemque
gostavadecitar (atécitarcom freqüênciasuasprópriasfórmulas):alémde
modada época,issoeraaprovadequeeledavaimportânciaao literalenão
somenteaO"espírito" dosenunciadosqueabordava.Voltaremosafalarso-
bre o caráterexemplardestaatitude,sobresuasrazõese conseqüências;
por ora,digamosqueesteapegoao literalimpediu-odecairnametafísica,
de mergulharnum misticismoimpossívelde sustentar teoricamente.Um
Jung, por exemplo,nãoconservouesterespeitosorigore logo antesdaPri-
meiraGuerraMundial foi necessáriofazê-Iocompreenderqueseestavades-
viandoparaumanovaformadepsicologiaquenãomereciao título depsica-
nálise.
18
Por formação,o mestrevienenseeramédicoesábio,esempreserecu-
soua passare a seterpor fllósofo: ocupa-seprimeirocomos fatos,depois
com asconstruçõesna medidaemqueestasdlrocontadosfatos,detodose
somentedeles.Atençãoaosdetalheséconsubstancialaumacondutacientí-
fica preocupadaem ouviraspalavrasexatasdeumpaciente,em saborearo
discursoprecisodo escritor.Extrapolando,caímosno precipício,tornamo-
nosexegetas,oráculos,adivinhosde aldeia.A queseassemelhariaa tragédia
de Édipo-Rei, se terminassecom a revelaçãodo incestoe uma punição
do herói? É importanteque Édipo, tendoconstatadoa gravidadeda falta
cometida- "inconscientemente",pois,o oráculodosdeusesnão eramais
claro queum sintoma!- nãovásuicidar-seou aprisionar-sepor todavida:
comum brocheroubadodeJocasta,elefuraosprópriosolhos;parapunir-se
"lá ondepecou",castra-semassimbolicamente,invertendoosprópriosges-
tos do crime,já queé algumacoisadamãe-esposaquevai atingi-Iono que
temdemaisvital, "a pupiladosolhos",e comosquaisprecisamenteeleti-
nhacobiçadoseusatrativosdemulher;por issoÉdipo pagao verdadeiropre-ço, a mortedo desejo,a fun deviverdaí pordiantenadoreno luto, emvez
de,como aliáseledesejanummomento,ir afogar-seno mar- ondeseteria
beneficiadocoma duplabênçãodeunir-seàmãeeganharamorte... 2 Freud
não estáaqui no lugarda Pítia quevaticinainspiradapor Apoio; eleestá
na de seuassistente(oslatinosdirãointerpretes),domediadorqueintervém,
do intermediárioqueseinterpõeentreafalaobscurado deuseo ouvidodo
cOilS1.dente;coloca-seentreaquiloquedeclaraliteralmenteo autortrágicoe
aquiloque somosautorizadosaperceber,aí levandoemcontaestruturasin-
conscientesque aí semanifestam,impulsoslibidinaisqU€abremparasium
caminhoapesardaoposiçãodacensura.
Nossopropósitonãoé discutiragorasobreo valordeumadecifração,
nem mesmosobrea legitimidadede "submeter"uma lendaem formade
poemadramáticoa umaleiturainterpretativade estiloanalítico,de prefe-
rênciaa uma exegeseanagógicaou umatransposiçãoideológica.Compete-
nosassinalarqueler com os óculosdeFreudé lernumaobraliterária- co-
mo atividadede um serhumanoti comoresultadodestaatividade- aquilo
queeladiz semo revelar,porqueo ignora;lero queelacalaatravésdo que
mostrae porqueo mostrapor estediscursomaisdo queporumoutro.Na-
daé gratuito,tudoésignificante;eo queacenaparaFreud,sãoosrebentos
do inconsciente.O textoé,semo sabernemquerer,umcriptogramaquepo-
dee deveserdecifrado.Por quê?Primeiro,claro,paraajudaro psicanalistaa
2. Muito mais,Sófoclesfaz :&1ipofalarde modoadeixarplesuflÚlqueelesabeaver-
dade:todomundoemTebasfalados malfeitolesassassinosdeLaios;opróprio~dipo
diz "o ma1feitol";todomundoreclamaa cabeçados responsáveispelapeste,só:&1ipo
plocma "o culpado";antecipaçãosignificativa,lapso leveladol (v. Driek Van DeI
Stenen,Oedipe(1948),ed.fIanc.PUF, 1916,p.49).
19
dominarseusmétodosde"tradução"(quenadatêmavercomo trabalhode
um tradutorno sentidocorrente,como aindaveremos)e'aassegurarseus
postuladosteóricos,verificandoseuvaloruniversal;estebenefícioé realpa-
ra o saberqueo homemtemde si mesmo.Massobretudo,no quenos diz
respeito,paraquea psicanáliseajudea leituraarevelarumaverdadedo dis-
cursoliterário,a dotarestesetordaestéticadeumadimensãonova,a fazer
ouviruma fala diferentedemaneiraquea literaturanlIo nos falesomente
dosoutros,masdo outroemnós.
A interpretaçãolevaa um tipo deproveitototalmenteparticular.Co-
mo se trata de um trabalho,gostamosde dizera nósmesmosqueeleserá
recompensado.Primeiro,entraemlinhadecontaa satisfaçãodecompreen-
der(mesmona ilusão,é precisoconfessá-Io),aalegriadeterpenetradonum
segredo,de ter percebido,apesardasdificuldades,umsentidoqueserecUsa-
vaà evidência:a psicanáliseverianissoum ecodas curiosidadesantigasda
criançaa respeitodetudoo que,no silênciodospaisedoscorpos,temrela-
çãocom a diferençadossexose dasgerações,como mistériodo nascimen-
to, comos motivosdo prazerou dasproibiçCles.Regozijoque,pornlo ser
inconsciente,mergulhasuas,:aízesem velhasimpressõesesquecidase que,
provavelmente,interferenumaoutramenosvisívelainda,a quemantémo
comérciodosinconscientesentresi.
A sériedasproduçõesimagináriasemmeioàsquaiso desejomovimen-
ta suasestruturasnãoé infuiitamenterica,já queseustemaslimitam-seàs
organizaçõesarcaicas(oral,anal,fálicaeseussubstitutos)e àtriangulaçãoao
mesmotemposimplese complicadadeÉdipo:pode-se,pois,imaginarqueo
inconscientedo leitor exploraas facilidadesoferecidasparaevitaro reca/-
que, por um lado,engrenando-senasfantasiasqueeleadivinha;por outro,
reconhecendono outro astúcias,habilidadesqueo ajudarãoa mistificarme-
lhor suaprópriacensura;talvez,umaespéciede conivênciaondesetrocam
cenastípicase receitasde encenação.Terceirafonte de gozo,no prolonga-
mentodasprecedentes,éaespéciedesituaçãotransferencia/quepareceins-
taurar-seno momentodarelaçãocomumtexto,capazdeprovocaridentifi-
cações,de mobilizar investimentosafetivosintensos,deexercerumaespé-
cie de seduçãosobre o ego. Teremosoportunidadedevoltara tudo isso
detalhadamente(com a vantagemde habituaro leitor a umalinguagem
maistécnica).O apegoquesentimospor um livro, pelomenosdurantesua
leitura, "absorvetodasasfaculdadesda alm:a",comodiria Pascal:é quase
um ato deamor.Quersintamosclaramenteounão,oselosquesecriamper-
mitemumaaçãonosdoissentidos:meupróprioinconscientemodificami-
nhavisãodo queleioeo queo livrodelineianapenumbraalimentaemmim
sonhosqueadquiremumacor inesperada.A leituranlfoconstitui,naverda-
de,um tratamento;maspode-sepensarqueno tratamentoo analistaincita-
me e ajuda-me silenciosamentea ler o textoqueminhaconfiançaescreve
no divãe dedicaanósdois.
20
m.Osescritosfreudianos
Freud conservoumuito de suasleiturasde homemcomum.Sentiu
os prazeresde qualquerleitor, e atéosdo leitormaisavisadoquenumlivro
ouve um inconsciente(revivesuasfantasiase apreciaseutrabalho),mas,
alémdisso,lendo,ele colheuindicaçõespreciosasparasuapesquisa,assim
como argumentosqueprovamavalidadee afecundidadedesuashipóteses.J
Todos os que têmuma idéiade suaobrasabemqueeleescreveusobrear-
tistas,sobreescritores,sobrefenômenosUterários,sobreobrasparticulares.
Apresentamosabaixo- com a indicaçãodo volumedaediçãobrasileirano
qual o textoé acessívele seguindoaordemcronológica- alistadosprinci-
paislivrosou artigosqueeleconsagrouespecialmenteataisproblemas:
1907 - De/(rioseSonhosna "Gradiva"deJensen,(Vol. IX).
1908 - EscritoresCriativoseDevaneio,(Vol. IX).
1910 - Leonardo da Vinci e uma Recordaçãode sua Infância,
(VaI. XI).
1913 - O TemaeJosTrêsEscrutfnios,(VaI. XIII).
1914 - OMoisésdeMichelângelo,(Vol. XIII).
1916 - Alguns Tipos CaracteristicosEncontradosno Trabalho
PsicanaUtico.(Vol. XIV).
1917 - UmaLembrançadeInfânciade "Dichtungund Wahrheit",
(Vol. XVII).
1919 - O Sobrenatural,ParteI, (Vol. XVII).
1928 - DostoievskyeoParriddio, (Vol. XXI, prefácioaO Irmãos
KaramazovI, ec!.Folio).
Num livro autobiográfico,apresentandoaspossibilidadesdesuateoria
para o quehojechamaríamospesquisasinterdisciplinares,o autordeclara:
"A maiorpartedestasaplicaçõesdaanáliseforaminauguradaspor meuspró-
prios trabalhos"(MVP, 79). Esta fraseadquireuma ressonânciaespecial,
quandoa restringimosao campodosestudosliterários,poisé evidenteque
Freud abriuo caminhonestedomínioa todosostiposdeabordagem,desde
o estudoda emoção'estéticae da criatividadeartz'sticaatéa leituradeum
textoúnico, passandopelaanálisedos gêneros,dos motivos e dos escri-
tores.Partiremosdesuaobra,todavezqueestudarmosseudesenvolvimento
atravésdaquelesqueo invocaram:analistasou críticosliterários.
Resta fazeralgumasobservaçõessobreestaobradeum leitor exem-
plar.A primeiradizrespeitoàpreocupaçãopermanentenosseusescritosteó-
ricose técnicQsemsereferiraosgrandesnomese aosgrandestítulosdalite-
raturainternacional.O casode Édipo foi assimestudadoaolongodetOGaa
vida de Freud, tanto na suarealidadeliteráriacomono seucomplexonu-
clear,desdea cartaa Fliessde 15deoutubrode 1897atéo EsboçodePsi-
canálise(1938). A segundaobservaçlfodestacaráque numadeterminada
3 Apreciemosestaobservação:"O interessepelaPsapartiu,naFrança,doshomensde
letras... " (MVP, 78).
21
ocasição'Freudefetuoua análiseclínica deumparanóico,trabalhandoape-
nassobreum livro autobiográficoescritopeloprópriopaciente:o célebre
presidenteSchreber(em CPS). Terceiraobservação:provavelmente,é por-
quetinhaumapredileçãodeclaradapelostextosde escritoresemquea es-
crituraé trabàlhadae "trabalha"mais,queeleavançourelativamentepouco
nassuaspesquisassobreasmitologiase o folclore(eledeixaissoaoscuida-
dos de Otto Rank, de TheodorReik e GézaRoheim,MVP, 85-86).Por is-
so, asanálisesde Toteme Tabupartemmenosdedocumentosetnográficos
deprimeiramãodo quedeconstruçõesou exegesespropostaspeloantropó-
logoFrazer.
Enfun, a lista acimadeixoude ladoumacategoriade obrasquenão
tratamdemodo explícitodosobjetos"literários",mascujascontribuições
sãofundamentaisparaqualquerreflexãofreudianareferenteàsrelaçõesdo
inconscientecoma linguagem.Três destasobrasque têmumaimportância
maiorforamredigidase publicadasantesde qualquertentativadeaplicara
psicanáliseà literatura;sãoaquelasqueabordamosonho,os lapsos e os
chistes.Tudo sepassacomoseo autortivesseaprendidoa ler nelas,deter-
minandoascondiçõesdeumaleituraprofunda.Nãopodemosdeixardenos
colocarsobsuadireçãonamesmaescola.
22
CAPIIULO II
LER O INCONSCIENTE
"A arteé o únicodomínioemqueaonipotênciadasidéias
semanteveaténossosdias.Só na arteaindaacontecequeum
homem,atormentadopordesejos,realizealgoqueseassemelhe
aumasatisfação;e,graçasà ilusãoartística,estejogoproduzos
mesmosefeitosi1fetivos,comosefossealgoreal.:e comrazão
que sefalada magiada artee queo artistaé comparadoa um
mágico."
(S.Freud,TOT, 106.)
o sonhoé a "via régia"'queconduzao inconsciente.Isto constituiu
verdadehistórica,ou quase,já queA InterpretaçãodosSonhos! foi o pri-
meiro livro assinadosó com o nomede Freud - e é interessantequeeste
livro tenha"aparecido"(tão pouco!) nasprateleirasdos livreirosdurante
asúltimassemanasdo séculoXIX. Isto aindaé verdadepelo fato deterem
os sonhosocupadoum lugarprimordialno desenvolvimentoda primeira
análise,a auto-análisede Freud:umaboapartedosdocumentosutilizados
provémdo sonhadorque Freudconheciamelhorequetinhasempreàmão.
Isto continuaverdadeironos nossosdias,já que os analistasconvidamos
analisandos2a retereme anotaremseussonhos(noturnos)tanto quanto
seusdevaneios(diurnos)paracontá-Iosnassessões,e fazerdeleso material
detrabalhoquedáacessoaseusdesejosrecalcados.
Freud percebeurealmentemuito cedo que um sonhorepresentava
a realizaçãodisfarçadade um desejoesquecido- ou pelomenosumaten-
tativade realização- quevinhaseinserirna realizaçãodeum desejomais
1 Os primeirostradutoresfizeramde Die TraumdeutungLa Sciencedu Rêve [A
Ciênciado Sonho].A palavra"ciência"erainaceitáveldopontodevistaepistemo-
lógicoe nãorepresentavaDeutung;o novotítulo contéminterpretação,masemlugar
do pluralsonhosteriasidomelhordeixaro singular,maisfiel equecaracterizamelhor
o aspectoteóricodesteestudo.
2 Precisemos,pensandonaquelesa quemestetermosurpreenderia,queeleé o único
aceitável:"analisado"podeserempregadosódepois,masduranteo "tratamento",é
aqueleque estáno divãquedevefornecero essencialdo trabalho,queconvidamosa
dizer tudo, inclusivea interpretaçãoqueeleprópriodá do materialquelhe oferecea
vidaquotidiana.Aquelequeescutanapoltronajfora de suavista,é umatestemunha,
nãoum examinadornemum professor:eleacolheo melhorquepodeafIXaçãoafetiva
queseoperasobresuapessoae sobrepersonagensqueeledeveendossar(é a transfe-
rência).Devemosa JacquesLacan,por ter sido o primeiroa utilizar,o termoanali-
sando.hojecomumenteempregado.
23
atual,utilizandoelementose acontecimentosdo diaanterior.Ao interrogar-
sesobreasrazõespelasquaisdesejossecretos(o pensamentolatente)trans-
formavam-separaconstituirestahistóriasempénemcabeça,estaseqüência
bizarrade imagens,de atose depalavrasquetodosnósconhecemos(o con-
teúdomanifesto),elefoi levadoa colocaro sonhono mesmoplanoqueo
sintoma,a procuraruma origemparaele,umvalor,umasignificaçãodife-
renteda de assegurara salvaguardado sono(necessidadebiológica).Pouco
a-pouco,toda a teoriado Inconscienteveioapoiar-senadescriçãodealguns
mecanismosprecisos.Ora,o sonhode quetrataa análiseé a na"ativapro-
duzidapelo sonhadorem estadode vigt1ia,a partir do momentoemque
retomaconsciência;s6 sabemoso quevimose ouvimos,sofremose infligi-
mos- àsvezesatépensamos- duranteo estadodemenorvigilância,quan-
do nos lembramosao despertar,contamosparan6smesmos,podemoscon-
tar para outros:é algumacoisaverbalizada,o que a lingüística-chamaria
enunciadonarrativo.
I. O trabalhodo sonho
Um sonhoapresenta-secomoum texto:frasesencadeadasquedescre-
vem uma sucessãode condutasde sensações,de idéiasconcretas(são as
representações).Seqüênciacolorida de prazerou de desprazerou de uma
proporçãovariáveldosdois(é o afeto).Entendamo-nosbem,nãosetratade
umamensagemexpedidapor "alguém",escondidono fundo de n6s,vindo
dos recônditosda infância,e destinadaa um "ego" queteriade recebê-Ia,
decodificá-Iae eventualmenteresponderde maneiraadequada:tal visão
simplistafalseariatudo. O sonhonão fala nempensa.Freud diz incisiva-
mentequeé "um trabalho"(IDR, capoVI). Compara-oaum rébus:"Nossos
predecessores,diz ele, cometeramo erro de querer interpretá-Iocomo
desenho"(p. 242),3aopassoqueospequenosdesenhosrepresentam,"est!fo
no lugar" das letras,s11abas,palavrasa seremidentificadase ressociadas
numafrase.
Não há ninguémpara enviaro telegrama,ninguémparadecifraro
rébus- excetoquandoo analistaintervém.Hádesejo,quepoucotemaver
coma necessidade,aliásseriapossívelsatisfazê-Ioe fazê-lo calar-se;ora,isso
grita indefinidamenteno ponto de articulaçãode nossoorganismoe de
nossopsiquismo,gritosde alegriaegritosdeaflição;há desejosemprepron-
3 V. asanálisesrigorosasde J.-F. Lyotard,Discours,Figure, pp. 239·270,e neste
volume,infra, fim capo IV.
24
IiI paraaproveitara ocasiãode abrirum caminhoatéos lugaresemqueele
leria chancede se fazerouvir,até a cenaonde se representanossotelJtro
quotidiano, um teatro onde, logo que a consciênciavigilantedeixa de
aplicar-sea um objeto ou um objetivodeterminado,animam-seperma-
nentemente,num cenário, personagensque imitam e contamhistórias.
Continuamocorrendoas lembrançasainda bem frescasda véspera,or-
ganizadasvagamente,segundoas preocupaçõesdaqueleque dorme (im-
portantesou secundárias,ninguémfaz a triagem),e um impulsodo in-
consciente- daquilo que no sentidoestritonuncapoderáse apresentar
tal qual a consciência- vemusurparo lugardo diretor de cena,impon-
do neste palco fragmentosde seu próprio argumento.O maior defeito
destacomparaçãoestáem que todo o espetáculosupõeum público;nem
diante da cena dos sonhos, nem nos bastidorespoderíamosencontrar
espectadoresou maquinistas;até o lugar do "ponto" estávazio,embo-
rapareçadeixarescaparvapores,borborigmos,correntesdear.
Se existisseum destinatáriopossívelpara tais narrativas,uma tes-
temunhadestaatividadedesenfreada,elas não se realizariam;só possuí-
mos reproduções;não há "passagemdireta", "gravações"seletivasdis-
poníveisa posteriori. Literalmente,o desejodo sonho,no momentoem
que se manifesta,falaparanãodizernada.O fato de falar(a enunciação)
é considerado,depois,razão de ser; é tendo falado (representado)que
ele realizouseudestinoe conheceusuaúnica formade satisfação:expri-
miu-se,por assimdizer, exteriorizou-se,e - esvaziadode seusumo- não
esperaque alguémvenha responder-lheou preenchê-Ia.O importante
parao inconscienteresideno modocomqueele fazseusatoresrepresenta-
rem, na intensidadeda dicçãoe degesticulaçãoquelhesimpõe,nasacro-
baciasàs quaisos obriga,e numa certamaneirade embaralharo texto
que aprenderamde cor tão modestamente.Deve-sever nele uma força
e uma forma, nãoum discursode defesa,uma petição,uma declaração,
uma admoestação,nem tampoucoumacoleçãode lembranças."Ele não
constitui nem uma manifestaçãosocial nem um meio de se fazercom-
preender",diz o próprio Freud (NCP, 14).A palavrasonhorecobrede-
finitivamentetrês fenômenosdistintos:uma energiadesejante(que in-
vadeo palco),umaseqüênciadescosturadade jogos de cena,e a narra-
tiva destapantomima,que restabeleçoposteriormente,eu que era (é o
que parece)ao mesmotempo.a sala,a cena,a ribalta,os atores,o dire-
tor - ilusões,marionetes,caretas,sombras...
Deixemosà doutrinapsicanalíticaa funçãodeinventariaraspulsões
libidinais, e ao clínico a de extraira sintomatologia;o que nos interessa
aqui e agoraé o trabalhodo sonho,de algumamaneiraentreseudesejo
e suanarrativa- um desejoindizível,nuncaformulado,e que"sua" nar-
25
rativafinalmenteinventa~Poisnestepontoencontramosum funcionamento
psíquico,cujosefeitosnão acabamosde tentarmedir.O texto(comoo en-
tendemoshoje)éconstituídodeeporestetrabalho.Umaespécieoriginalde
trabalho,como asmatérias-primasslloproduzidasà medidaqueafabricação
as transformae reuneparaobter o produtoacabado(é isto quechamamos
efeito "só-depois"); eumaespécieoriginaldetextoqueofereceà decifração
um discurso,ou melhordiscurso,semendereço,semintençãoprévia,sem
conteúdodeterminado.É precisopesarcadaumadestasexpressões:o vazioqueelascircuns-
crevem,já quesãonegativas,é o própriovaziocujaleiturafaráaplenitude
do discursoliterário,e não há aí nenhumjogo de palavras.Nãohádestina-
tário preciso;um romancede Stendhal,quepretendiafalardosanos1820
e que confessavadeverser compreendidosó "cem anosdepois",nãovisa
nemos contemporâneos,nem os francesesmaisespecialmentedo que os
homensde hoje ou um esquimórecentementealfabetizado;ele tem por
publico o Homemou quemquerquesaibaler. Não há mensagem:pode-se
perguntarou ensinaro quequerquesejaa alguém,emparticular?A Fedra
de Racinequerprovarquea paixãoé perigosa?Seráqueéistoquedevemos
pedirdela?Sefossesóisso,elateriasofridoasortedostratadosparaaeduca-
ção dasmoças.t:i:' háexpedidor:o próprioRacinepretenderiateroutrafi-
nalidadequea de escreverumabelauagédiasobreum argumentofamoso?
Um poemanão sereduznemaoque"sentia"o poeta,nemaoque"querem
dizer" as imagens,nemà "impressão"quedeveriaexperimentartal indiví-
duosubmetidoàsvicissitudesdahistória.
Claro, Freudnão estabeleceucomotal a analogiaentresonhoetexto
literário: falavaumaoutra linguagem,era prisioneiroem grandepartede
umaoutra concepçãoda obrade arte(a saber,subspecieaetemitatis,uma
idéia penetranteapresentadasob aparênciasharmoniosas).Mas ele abriu
caminhoparaumareescriturado onírico emtermosde texto e reciproca-
mente.Deduziuprincipalmenteregrasde transformaçãoàsquaisestãosub-
metidaso queelechamade"conteudosinconscientes".Freudherdoudeseu
séculoumavisãopositivistae coisificantedo quese cozinhalentamenteno
"c;l1deirãoda feiticeira",enquantoa linguagemda modernidadetentare-
construirumafaladiferentequeinsistano discursoqueobedeceà lógicado
mesmos(isto é, no discursocomum).Evoquemosrapidamenteestasregras
4 Veja sobreisso a contribuiçãodecisivade Jacques DerribaL 'Ecritureet Ia diffé-
rence,pp.293-340;nestevolume,e infra,fim capoIV.
5 Todo discursopertence,pordefinição,primeiroà ordemdo Mesmo,jáquealingua-
gem(logos), com suasregulamentaçõesmaisou menosarbitrárias,constitui-sede
modoa autorizaremelhoraracomunicação;intercâmbiodeinformações,manifestação
dopensamento,descriçãodarealidadepercebida.
26
.) ,- 11allS 1'0rmaçãoou processosprimários. São em numero de quatro:
I) SI) se formula o que pode ser figurado (percebido,e principalmente
vl~lIalizado):o sonho, como um fIlme mudo, pode citar, repetirpalavras
lealmentepronunciadas,masdevemostraro que conta;2) qualquerobje-
to pessoa,lugar,coisa - pode condensarváriosoutrosnas duasextre-
midadesda cadeiade transformação(um animalreunepai, irmão, rival,
até mesmoum personagemfeminino;em outra parte,é precisotrês mu-
lherespara encarnara figura maternal);3) o essencialé geralmentedes-
locado para uma situaçãoacessóriae um detalheínflJUo traz a palavra-
chave;4) a seqüênciaque reuneos elementosinconscientesapresenta-se
elaboradasecundariamente,de maneiramais freqüentementerudimen-
tar, num argumentonarrativoou dramático(que Freud chama"a facha-
da do sonho"). Uma vez que o recalcado,submetidoà censura,não tem
direito a uma fala clarae distinta - a estalíngua articuladasobrea rea-
lidade que é a dosprocessossecundários,como Aristótelesdescreveucom
o nome de princípios racionais-, ele devese formularatravésdasqua-
tro serpentinasdestealambiqueque é o sonho.Na saída,temosde lidar
com um discursoque parecedisformee lacunar,que está,de fato, trans-
formadoe acentuadode outro modo: a fraselatente,em regrageralbas-
tante breve,tornou-se(ou melhor só se apresentacomo) uma narrativa
manifesta;às vezes,muito confusa mas sempreconsideradainterpretá-
vel, exceto na pequeninamarcaondese nota sua origem,seu "umbigo"
(Freud). Pois·na ordemdo psíquico,tudo é rigorosamentedeterminado,
não há lugarparao acaso,basta(!) retransformaro dado- respeitando,
entretanto,acicatrizquepertenceà conjectura.
11.As artimanhasdalinguagem
Este modelo de funcionamentoencontra-senos argumentosdo
devaneio(é a fantasia- -propriamentedita) tanto quantonas "fantasias
inconscientes"queservemde "matriz" a todasasficções,emqueum su-
jeito saciaseu desejono modo imagináriorepresentando-oa si mesmo.
Alguns de seusefeitossão reconhecidosno trabalhopoético da lingua-
geme podemosevocarnestemomentoamagníficaexpressãodeBaudelaire,
falandode uma "retórica profunda". Num sentido,os processosprimá-
rios operamdo mesmomodo que os tropos da tradiçãoretórica:metá-
fora, metonímia,sinédoque etc. A menosque sejanecessáriodizer que
a retórica clássica,decompondoas figurasdo discurso,reencontrouaté
certo ponto os mecanismosda linguagemonírica? Em todo caso,asfór-
mulasmaisutilizadas,a saber, os tropo'Sfundadosnumasubstituiçãopor
semelhança,contigüidadee dependência,têm seu lugar nos pontos-cha-
27
ve de cada sistema,6e é assimque procedea condensação.Quantoao
deslocamento,ele recobrebom númerodas astúciasa que recorremas
[igurásde expressão(alusão,hipérbole,litotes,paradoxismo,ironia, pre-
terição,etc). O fato de poder assimaproximarretóricae verbalizaçãoen-
viesadado desejojustifica a tendênciamanifestana psicanálisefrancesa
contemporâneade deixar na sombrao modelotermodinâmicode Freud
(digamoscaricaturizando:à basede panelade pressão)emproveitode um
tratamentolingüísticodos fenômenos."O Inconscienteé estruturadoco-
mo umalinguagem":esseé um dosaxiomascélebrespropostospor Jacques
Lacan;o segundoé: "o Inconscienteé o discursodo outro", o quepennite
pensar·queo sujeito(Eu) seconstituicomodiscursoalterado.
O lacanismo,comrazão,apresenta-secomoumareleituramodernada
obra freudiana.Mas aspOliasestavamabertas7 paraumasemelliantereo-
rientaçãopor causada insistênciado mestrevienenseemenraizarsuaprá-
tica na consideraçãodo materialverbal.Não podemos,de fato, limitar-nos
aosescritossobreo sonho,aindaquesejammaisnumerososdo quesepen-
sa comumente[1901:Sobre os Sonhos,(VoI. V); 1911:O Manejoda In-
terpretaçãodosSonhosnaPsicanálise,(VoI. XII); 1915:as.duzentaspáginas
que formama segundapartedasConferênciasIntrodutóriasà Psicanálise,
(VoI. XV); 1917:Um SuplementoMetapsicológicoà Teoriados Sonhos,
(VoI. XIV)]. Existemdoisoutroslivros,8sempredo começodacarreirade
Freud,quetratamdosefeitosdo inconscienteno discurso:A Psicopatologia
da Vida Cotidiana, (VoI. VI), 1901,e Os Chistese suaRelaçãocom o
Inconsciente,(VoI. VIII), 1905.
A metadedo primeiroé dedicadaà 'análisede fenômenosque inte-
ressamà linguagem.Encontramosaí duasreconstituiçõesfamosasdas ra-
zõespelasquaiso próprio Freud não puderaacharde imediatoum nome
próprio ("Signorelli", PVQ, 5-11),e um de seusinterlocutores,a palavra
estrangeiraqueeleprocuravacitar ("aliquis", ibid., 13-16),assimcomoum
capítulo sobreo esquecimentodos substantivose dasseqüênciasdepala-
vras:todaselasanálisessugestivas.
6 Assimmesmoumadiferença:a retóricasupõe,emgeral,umaescolha,podemosex-
primir-nos"diretamente"ou "figurativamente";o ics não temoutralinguagemà
suadisposição.Sobreosprocessosda retórica,v. PierreFontanier,LesFiguresduDig·
cours,Flammarion,1968. '
7 Pelo menos,estavamentreabertas:coubea J. Lacanalargara passagemparaasdi-
mensõesdeumagrandeestrada.
8 Aos quaispoderíamosacrescentaro breveensaio,consagradoaoestudodolingüis-
ta Karl Abel, quetrazo mesmotítulo,A SignificaçãoAntitéticadasPalavrasPrimi-
tivas(1911),vol. XI; voltaremosa issonasreflexõesde OctaveMannoni,Cle!spaur
11maginaire,pp.63-74.
28
De quesetrata?Em regrageral,dequeum significante~ no sentido
lingüístico,a materialidadefonéticaou gráficade um signo,o som ou a
letra - aceita,na suaformaexataou sobumaformaaproximada,um sig-
nificado - um valor de denotação,de conotação,de designação- que,
num momentodado, a consciêncianão aceitae que se achade chofre
recalcado,emborao contextoou o restoda frasechame-oao seu lugar.
Uma jovem austríaca,num círculo de homens,quer evocaro romance
inglêsque acabade ler e que tem relaçãocom Jesus Cristo: não é Quo
vadis?B de Lewis Wal1ace... chega-sea identificarBen-Hur;ora, o som
Hur assemelha-semuito ao termoalemãoHure(prostituta);e pronunciá:lo
poderiaparecerum convitesexual,o que era ao mesmotempoimpudico
e violentamentedesejado.O casodos lapsosé maistípico ainda,semser
muito diferente.Em vez de um buracono enunciado,é um intruso que
aparecee que "traduz-trai"um desejo,um conflito, umaangústia,indizí-
veis.Umasenhoraqueixa-sede queasmullieresdevemdespendertesouros
dehabilidadesedecuidadosparaagradar,aopassoqueoshomens,contanto
quenão sejammuito disformes,"desdeque,dizelaà assembléiaestupefata,
tenhamcinco membrosdireitos... " (seo efeito fossedesejado,teríamos
umabrincadeiraatrevida!).Lapsuslinguae,portanto;lapsuscalamitambém.
Escrevendoa seuanalista,um inglêsatribuiseusmalesa umamalditaonda
de frio, masemvezde "that damnedfrigidwave"sua.penaescrevemaldo-
samente... "wife": o verdadeiroculpadoé a esposafrígida. Semelliantes
sãoos errosde leitura.Um soldadolê um poemapatriótico:os outrosvão
"morrer por mim" na primeiralinha, e eu ficaria atrás,aqui? "Por que
não? - em lugarde "Por que eu?" (Warumdennnicht?" I "Warumdenn
Ich? "). A cadavez,é realmenteo Outronomeudiscursointeriorouexpresso
quediz averdadedemeudesejo,aproveitandoa possibilidadeoferecidapelo
significantede cometerum deslize(é o primeirosentidode/apsus)eo fato
dequeestesexemplossejamtomadosdoregistrodo pré-consciente- istoé;
ao queestámomentaneamenteforado campodaconsciência,maspodendo
voltar- nãomudao casoemnada.E a poesia,ébemsabido,nãodeixade
seapoiarnestesjogosdesonoridadeparadizermaisdo queeladiz;por isso,
as palavrascom rima aproximam-sepor umaidentidadeparcialdos sonse
esteecoinduzaumcontactoouencontrodossentidos.
A segundaobrade alcancegeraltemcomoobjetooschistes."Meuli-
vro sobreo Witzconstituia primeiratentativadeaplicaçãodométodoana-
lítico a questõesdeestética",diráFreudmaistarde(CLP, 113).Demaneira
um poucoconfusae àsvezesaproximativa,comoTzvetanTodorov9assina-
9 Capítulojustamenteintitulado"La Rhétoriquede Freud",emTheóriesduSymbo·
le, Seuil, 1977.RemeteremostambémaoartigodeJean-MichelRey,'.'Ledoubletde
Iamétaphore",Litt., 18demaiode1975.
29
lou recentemente- porquenão tinhaà suadisposiçãonemasnoçõesnem
os modosde classificaçãodosretóricosmodernos,enriquecidoscoma lin-
güísticaestrutural- Freud acumulauma quantidadeimpressionantede
boaspalavras,coma intençãodeclaradadeverificarse "aspropostassuge-
ridaspelo estudodos.sonhossão realmenteconfirmadaspelo estudo do
espírito"(MRI, 255).
Esta coleçãode históriasengraçadas,sentimosqueo autorsealegra
emcompô-Iae mostrá-Ia,mesmosemnenhumapreocupaçãodeexplicação;
Freud oferece-nosum verdadeiroflorilégio, principalmentede histórias
judias porque o tocam de perto. Entretanto,de fato, logo na primeira
amostraoferecida,nasprimeiraspáginas,parecequetudoestáclaro.O poe-
ta Heineevocanum saineteum pequenoburguêsque sevangloriade um
dia ter-sesentadojunto do barãode Rothschild,queo "tratoudemaneira
bemfamilionária",diz ele.Estapalavraé um produtoda condensaçãoque
uneemvoltade umas11abacomum- mil - osadjetivosfamiliaremilioná-
rio: a issochamamosmot valise,e o sistemaé tãoconhecidoquantofecun-
do. Ondeestá,nestecaso,o trabalhodo inconsciente?Freudtomao cuida-
do de nosexplicarcomoHeinenãofabricou,demodointeiramenteinocen-
te, um chistedestaespécie,mesmoque conscientementequisesseapenas
obterum efeitocômiconestapáginade Tableauxdevoyage.Ocorrecomo
dito espirituOsoo mesmoquecomo sonhofict(cio imaginadopor um ro-
mancistaou um dramaturgo,e é impossíveltratá-Iodiferentementede um
sonhorealrecopiado"palavrapor palavra"num diário íntimo. Enganamo-
nos ao crermosque podemoscomporcomtodasaspeçasum sonhoapro-
priadoa umasituaçãodeficção,já que- aexperiênciao prova- estesonho
reconstituídoparao usodeumpersonagemétãocarregadodesignificações
inconscientesquantoumsonhorealou quantoo restodapeçae doromance
(voltaremosa isso).Ou melhor, tratamosnestejogo de palavrascomum
tipo de condensaçãoque se encontracommenosfreqüênciano sonhodo
queos personagensembutidosou os objetoscompósitos(do tipo quimera),
masque supõea irltervençãodo mesmoprocesso,no qual doiselementos
puramenteverbaissão condensados.A abreviaçãoque se transportouna
formaçãodapalavraentrecruzada(mostvalise)temdoisefeitos:fazecoaos
problemasfrnanceirosdo poetaHeine (que sabemuito bem o que é ser
tratadofamiliarmentepor um milionário),e por outro lado, provocaum
sorriso naquele que compreendeo alcancesatírico destabrincadeira.lo
10Freud evocao casodas brincadeirasatrevidas,bementendido;masfoi Sandor
Ferenczique analisoumaisespecialmenteo gostopelaspalavrasobscenas,no seu
valoraomesmotempolúcido,compensador(fasedelatência)e sintomático.(V) "Les
motsobscenes",emPsychanalyseI, Payot,1968.)
30
m.Jogarcomaspalavras
Não insistamossobreas razõesde economialibidinal que, segundo
h"\I(I,justificamo fenômenode descargapelo riso; a regulaçl10dasten-
\,WS extrapolanossopropósito. Não entremosmais nas sutisvariedades
'1\\epermitemcolocar,ao lado da palavracompósita,asintervenções,apro-
\ I 11I a•.•:óes,equívocos,trocadilhose outras falhas de raciocínio.Todorov
1t'(l)lIsideroucom muita pertinênciaas distinçõesdo psicanalista,e atuali-
1.1)11 seuvocabulárioultrapassado.Entretanto,ele acusaum tanto apressa-
damenteFreud de racismoe de elitismo(op. cit., 314), por ter notado
qlle oS jOgoSde palavrassãoprópriosprincipalmentedos primitivos,das
crianças,dospsicopatas,atédosbêbados.Defato,lemosisto:
"Encontramoso caráteressencialdo chistepor analogiacoma elabo-
raçãodo sonho,num compromissopreparadopelaelaboração'espiritual',
elltreasexigênciasda critica racionale a pulsãoparanãorenunciaraopra-
zerdo passadoqueseligavaao absurdoe aojogo depalavras"(MRI, 314).
Ali:ís, Ffeud declaraque é"maisfácil "unir confusamenteelementos
IlI'lI'lt"ll"Iitos","agruparaspalavraseasidéiassempreocupaçãocomseusen-
IltI,," do que utilizá-Iasde modo lógico, ordenado,rigoroso(189). Como
I·~;tavoltaa alegriasprimitivascorroboraumacertaconcepçãoda atividade
"simbólica" e como, por outro lado, Freudjulga que a abundânciados
símbolosé "atribuívela umaregressãoarcaicano aparelhopsíquico"(NCP,
21», Todorov- equivocando-sesobrea palavraregressãoe carregando-ade
\\mvalordepreciativoll- concluiporumaespéciedemiopiaqueconduzo
Icóricoaoegocentrismoeaoetnocentrismo.
Na realidade,e é uma dasmaioresliçõesdessapesquisasobreasformas
do dito espirituoso,seexisteum prazernosjogos depalavras,a expressão
deveser tomadaliteralmente:o jogo com as palavrasproporcionaprazer.
Porque, quandocrianças,tivemosa liberdadede brincare gozarcom as
palavras.Um dos aspectosdo processoprimário- nós o vimospassando
do sonho ao chiste- é confundir,ou melhor,não distinguiras palavras
e as coisas,imagensverbaise imagensobjetais.As realidadesfísicas têm
umapresença,muitasvezes,alucinatória,em todo casosuarepresentação
imaginadanão é imagináriano sentidoilusório: paraa criança,a cadeira
é um barco;o quarto,o oceano,etc.As entidadesverbaisnão sãoparaela
antesde tudo o sentidoquetransparecefugitivamenteatravésdeum som
convencionado,masverdadeirosobjetosmateriais,queentramno ouvido,
11Regredir é retornara estágiosanterioresde organizaçãopsíquica,ondea psique
era diferentementeestruturadamasnão "inferior": ela era tão complexae rica;
IIlenosracionalizada,éverdade,masmaissubmetidaaoprincípiodeprazer(IAP, cap.22).
31
escrevem-secomcubos,saemda bocaou dasmãos,concernemaatividades
corporais,inserem-senum esquemaafetivo,enraízam-sena própria carne
(vera análisedo "Fort/Da", EDP, pp. 15-19).
Com coisasna cabeçae palavrasentreos dedos,umacriançacons-
trói parasi mundosquenosconvém- ounãoconvém?- declararincoeren-
tes e inúteis.Tudo isto é jogo, e é sagrado.O inconscientefala de cora-
çãoabertoebocafechada.
E tudo isto não custanada.Pelo contrário,traz prazer,aquelafeli-
cidadeque consisteem reproduzirgozospré-históricos,anterioresà cons-
ciênciae à medidado tempo.Isto sefaz naturalmente,mesmocomgrande
esforço,no entusiasmodo ingênuo(nascidorecentemente)paraquemo so-
frimentonão contajáque suavida materialé asseguradapor um Outro.
É necessáriovoltarà dimensãolibidinal,portanto,sexualno sentidofreudia-
no, detodosestesjogos.
Eis o queTodorovesquecequando- depoisdeterprestadohomena-
gem a Freud por ter escritocom Chistes"a obra de semânticamais im-
portantede seutempo" - observaque ele "descreveuasformasde todo
processosimbólico,e não de um simbolismoinconsciente"(op. cit., 316),
antesde colocarno mesmoplano a interpretaçãoanalíticae hermenêutica
cristã(ibid., 320). Gravedistorção.Pois, dara entenderqueo inconsciente
freudianoseriaconstituídopor espéciesdeesquemasou arquétiposinstala-
dosa priori no centrodohomemparairradiaremdiversasluzes,segundoos
setoresda atividadehumana(percepção,motricidade,sentidointerno,etc.,
v. Gilbert Durand),é reinventarumatranscendência,é enterrarna "alma"
as Idéiasque Platlloalojavano céu;e seperftlaa sombramísticade Jung,
profetae metafísicoda bemchamada"psicologiadasprofundezas".A psi-
canálise,o freudismo,nãoé precisoinsistir,é o Inconscientee asexualida-
de - ou se quisermoso Desejo-, inseparáveisjá que nasceramjuntos e
formampar, tantonahistóriadasidéiascomonadecadaserhumano.Qual-
querleiturade Freud queesqueçaou negligencieumadasduaspalavrasou
sualigaçãoé fraudulenta.
Paraconfmnar,eisum longotrechoquenoslevaráà noçãodeatitude
lúdica,fundamentalparanós:
"Toda criançaque brinca comporta-secomo poeta [diríamoshoje: es-
critor] enquantocriaparasi um mundoseuou, maisexatamente,transpõe
ascoisasdo mundoemqueviveparaumaordemnovaquelheébemconve-
niente.[... ] Ela levamuitoa sérioseujogo,empreganelegrandesquantida-
desdeafeto.O contráriodojogo nãoéa seriedade,masarealidade[... ] So-
menteestesapoios[fornecidospor brinquedospalpáveis]équediferenciam
ojogo dacriançado "sonhoacordado[fantasia]"(EPA, 70).
32
Confirmação,já que a fantasiaevocadaatravésdo devaneiodiurno
não tem outra origeme significaçõesverdadeirasa não sersexuais:sonho,
jogo, obrade ficção,fantasiaconstituema realizaçãodeformadadeum de-
sejorecalcado- e tododesejoinconsciente"tendearealizar-serestabelecen-
do, segundoasleisdo processoprimário,os signosligadosàsprimeirasex-
periênciasde satisfação"(VLP, 120),o quenos remeteàsrelaçõeserotiza-
dasqueo infans(aquelêquenão falaainda)mantevecomamãeatravésde
seucorpoerotizado.Em suma,jogaré re-jogarjogosesquecidoseproibidos,
é "regozijar-se"em repetire disfarçaros prazeresperdidos... Jogar tanto
comos órgãosdo corpocomo combrinquedos,amigos,estruturascomple-
xasou palavras.E por seremparteumjogo é que sejulgaquea literatura,
por um lado,não serveanada,por outro,9ferecesempreprazeresinefáveis.
Mas a literaturaé um jogo elaborado:a seriedadequepresideà sua
criaçãoexigemaislabor, suasconstruçõessãomaiscomplexas.Pois,trata-se
(inconscientemente,claro) de apagaros traçosdo processoprimário,afo-
gando-ono meiodosprocessossecundáriosqueseencontrammaisou me-
noS subvertidos.O escritorproduz,em geral,numalíngua conformeaos
usosda granlática,um discursode quase-racionalida~ee de quasemimetis-
mo cm facedascondiçõesda realidade;seelesepermite"licenças"de ex-
prcssão,se tem direito a uma visão"fantasista"dascoisas,etc.,sabemos
bemque sãoexigênciasda "arte". Semo engajamentode todo o homem,
sem a aplicaçãode sua inteligência,de suacultura,mastambémsemos
"grãosde loucura" que, aosolhosdo público,fazemdo artistaumaespé-
cie de criançagrandeou de perversoinofensivo,nãohá maisencantopos-
sível.Para sereficaze reconhecido,um escritorliterárionãodeveparecer
nem demasiadoconvencionalnem totalmentelúdico: ele precisa·deum
coeficientede marginalidadeproporcionalàquelaque a maioriados lei-
tores estãoprontos a concederà suaprópria infância,cujos errose ale-
grias desejamosapreciarcom simpatia,livre de qualquerangústia.Todo
mundo lembra-sedo tempo em que construíasua realidadecom dese-
jos, em que o verbose fazia mundo;o tempoda varinhadecondãoe do
tapetevoador,emresumo,damagia.
A magia,tambémchamadaa "onipotênciadospensamentos".Com-
pondo há muito com o princípio de realidade,o adultocivilizado,cujos
próprios olhos são desprovidosde fantasiae de gratuidade,não conhece
senãodois lugaresonde sopra ainda a liberdadedo não-senso,onde seu
espíritocrítico toleraserneutralizado:o humore a arte.
33
CAP(TU LO '"
LER-SE A SI MESMO
"Quemavançana idadedeixade brincar,renunciaaparentemente
aoprazerquesentianojogo [infantil].Masnãoexistecoisamaisdi-
fícil parao homemdo querenunciara um prazerjá experimentado.
A bemdizer,nãosabemosrenunciara nada,só sabemostrocaruma
coisapor outra;ondeparecequehá renúncia,de fato há apenasfor-
maçãosubstitutivar. .. ]. Em vezde jogar, elesecomprazdaí por
diantea imaginar(fantasiarJ. Constróicastelosna Espanha,entrega-
seaoquechamamosdevaneios[... dar]ahipótesesegundoaquala
obra literária,assimcomo o sonhodiurno,seriaumacontinuaçãoe
umsubstitutodojogo infantildeoutrora."
(S.Freud,EPA, 71-79.)
O título destenovo capítulo deixaráde parecerestranhotão logo
enunciemosasduasperguntasseguintes:O queéqueeuleio quandoleio? O
queum escritorlê quandoescreve?A respostaé amesma:lemosprimeiroa
nósmesmos,sejaqual for aobraliterária,quera produzamos,queraconsu-
mamos.
I. Representaçõesinconscientes
no textoliterário
É precisosublinhareste"primeiro",pois é bemevidenteque aqui
consideramosapenasum aspecto.dascoisas.Mastrata-sede um aspectoes.
sencial,paraFreud e parao pontoa quechegamosemsuacompanhia.Com
efeito,temosagoraumaidéiada maneiracomosãotratadas,pelosmecanis-
mos queconstituemo inconsciente,as representaçõesinconscientes!que,
comovimos,procuravammanifestar-se,fazer-sereconhecerapesarda cen.
suranosdiscursos,oumelhor,comodiscurso:sintoma,sonho,jogo infantil,
1 Precisemosquea energiadesejante(libido) foi concebidapor Freudcomoumase-
qüênciadeimpulsos(pulsões)quesesituamnaencruzilhadado corporal(soma)e
do mental(psique);aspulsõessósãoperceptíveis,e,portanto,numsentidosóexistem
atravésde dois efeitos:o afeto (prazer-desprazer)e as "representaçõesics", isto é,
representantes(no sentidodedeputados)quetomama formade representaçõesps(-
quicas(no sentidoemq,uefalamosde "representar-sealgumacoisa")e queficamfi-
xadosno lugarde suaorigemcomotraçosmnésicos; o termoalemãoqueosdesigna,
Vorste/lungs-repraesentans,provocariacontra-sensosefossecompreendidocomo"re-
presentantede representação":émaisuma"representaçãorepresentante[dapulsão~'.
Percebe-seaquia importânciad,oconceitodepulsãoparadesignaro pontodeencontro
do somáticoe dÇlpsíquico:a,Ploçãoprimordialédefinidacomoumadelegaça-odo cor-
po pulsional(quenãoéo corpoanátomo-fisiológico,masjá umsistemavivoarticulado
sobrea existênciado mundoexteriore sobrea manutençãodesuaprópriaexistência)
já providade umacertaformadepensamento(a"lógica"dosprocessosprimários,que
ignoraa temporalidade,anegaçãoea identidade).
34
logo de palavrasdesejadoou nã'o.Estasrealidadespsíquicasinacessíveisa-
presentamseussubstitutosocasionaisnumavertigemdemetamorfoses,que
constituia atividadeprofundado espíritohumanoe que,emparterestrita,
chegaaorganizar-se,aregulamentar-senumfluxo descontínuomascoerente,
suscetívelde serassumidopelo sujeito,desersegmentado,reconhecido,de-
poistrocadono quadrodaatividadeconscientequeautorizaacomunicação
(processossecundários).
Podemosimaginarum caos,violentamentetingidodeprazerou de
desprazer,ondetentammostrar-see fazer-seentender"entidades"materiais
(os aindamisteriososequivalentesnoscircuitoseletrônicosdo cérebro)que
captamosora comoespéciesdeimagens,representaçõesdecoisas,oracomo
signoslingüísticos,representaçõesde palavras;mas,coisasou palavras,a
consciênciaque é fala (ou discurso)só sabeapreendê-Iasatravésda lingua-
gem.Daí o nomede "significantes"2quelhesdão oslacanianos,já queos
sons,e atéasletras(SergeLeclaire)quematerializamos signoslingüísticos
são,se não desprovidosde seussignificadoslógiéoshabituais,.pelomenos
desviadosparaum outro regimede significação:é este"acenara mais/em
lugarde" queconstituio inconscientena linguagem.Insistamosainda:seé"estruturadocomo" a linguagem,não dispõede um idiomaespecial;ele
tema capacidadede alterara linguagem,ou maisexatamenteeleé estaca-
pacidade,consistenessaprópria alteração,enquantoé "discursodo Ou·
tro".3 Portanto,eis-nosdiantede um materialverbalsutilmentetrabalhado
por umaretóricaespecífica,materialquea patologiae asdefesasreduzidas
do sonoou da"inocência"infantilpermitiramanalisarpara entreveraí uma
expansão,umaefusãoimperialistados apelosda libido; maso queéque a-
contececomummaterialverballiterário?
2 O empregodestapalavra- quenãoé umafantasiaverbaldapartede Lacan,mas
um conceitoteórjcoessencialaoseusistema- causadificuldadenosnossosestudos
literáriosque tratamcom freqüênciados"significanteslingüísticos"(v. Saussure)ao
analisarefeitosdesignificância[jogosde sonoridade,porex.,queé impossívelapreen-
derna qualidadede "signijicantesics"], mesmoquenesseprincípiopercebamosquea
supostarelaçãoexistaentreosdois.Al~mde serincômoda,estanoçãofoi contestada
de um ponto de vistateóricopor ftIósofoscontemporâneos,emboranãotenhamen-
contradoressonânciasporpartedeLacan;paradarumaidéiadestedossiê,remetemosa
Lyotard, Discours,Figure, pp. 250-260,para a utilizaçãolacanianada lingüística
saussurianae jacobsiana,e maisamplamentea Derrida,notasdo '~FacteurdeIa Vé-
rité", Poét., 21,,pp. 140-146,assimcomo ao livro de Jean-Luc Nancye Philippe
Lacque-Labarthe,Le Titre de Ia Lettre, Ed. Galilée,1973(ver,sobreisso,J. Lacan,
Le SéminaireXX, E,ncore,Seuil,1975, p. 62).
3 Entreveremosaquia concepçãolacanianado sujeito:nãoé m'aiso egoquemani-
pulaos signos,mas"eu" assume(e resume-sea sersomente)a sucessãodasaltera-
ções,doscortesqueseproduzemno "fio" quedesenvolveo encadeamentodossigni-
ficantes- bolhade ausênciaquedeslizacontinuamenteno tubo,já quefalávamoshá
poucode fluxo. Eu nãoexisto,"eu" nuncaestáondeo sentidoseproduz;"eu" desig-
35
A linguagemdeputacomunicaçãoutilitária- estadoidealdalingua-.
gem,semprefrágil,comovimos,expostaà irrupçãodo lapsus- é suposta-
mentesúbmetidaà predominânCiadalógica,donadosintercâmbiosregula-
dos entreos homense portanto dassignificaçõesclaras:cadapalavratem
um significado(emgeralumsó)eo interlocutordecodificaamensagemsem
muitos problemas.A linguagemda criançaque brinca, do homem que
sonha,do "louco", é umalinguagemobscura,queo inconscientehabitae
distorcepermanentemente.A linguagempoética- estetermoé cômodo
paradesignarqualquerlinguagemnão-pragmática,a daarte- deveriaofere.
cer-nosumacombin~çãodasduas(o que,bementendidO,nãoé suficiente
para caracterizara operaçãochamadaestética).É precisovoltarpara sua
defmiçãoaproximadaantesde olhar como ela é produzidae "recepcio-
nada" (trata-serealmentede um modo de receberparticular).Voltemos
às manifestaçõesda pulsão,afetose representantesperceptivosou verbais.
A afetividadepassana linguagem,primeirosoba formainarticuladae rigo-
rosamentenão-lingüística:gritos,exclamações,etc., ou então,é retomada
num vocabulárioadequado(estoucom dor, isto me agrada);ou ainda,ela
pode apresentar-sede modo oblíquo emrelaçãoao eixo do discurso.Seja
umadescriçãonumanarrativaqualquer:elanãoreproduzo realemnenhum
caso,fabricaumaaproximaçãodo objetodomundo,dandodeviésumaim-
pressão, ainda que fugitiva,um sentimentode satisfação,de mal-estar,
mesmodeindiferença(calculada).A inscriçãodo afetivonasmargensdo dis-
curso constitui por si só um problema.Encontram-serepresentaçõessob
duas formasprincipaisou de plincípios: diretamente,a fantasia;lateral.
mente,a "significância".A fantasiatalcomoaencontramosno devaneioéa
narrativaatualdeum núcleofantasmáticoinconsciente;elaapresenta-seco-
mo argumentoque desenvolveuma frasemaissimplesonde o sujeito fi.
guraemrelaçãodinâmicacom os diversosobjetosparaos quaisseudesejo
pode dirigir-se.Tais "histórias" constituemo alimento quotidianodos
mitos, da tragédia,do romanescofantástico,por exemplo.A palavrasigni-
ficância,por maisinsólitaque pareça,é cômodaparadesignaro conjunto
dosefeitosde sentidoquenão sãoimediatamenteapreendidosnumaconfi-
guraçãode tipo narrativo:pensemos,peJomenosprovisoriamente,no quea
crítica observanum poemacomo ecos,·correspondênciasde posição,etc.
. Esta divisãorecobririaaquelatradicionalentre"fundo" e "forma" se,por
um lado, o conteúdode umafantasiasedeixasseapreenderforadeumaen.
na o fato de que "isto fala",por minhaconta,a meurespeito,em "meu" lugarque
é um vazio.O sujeitonão dominaa linguagem,a linguagemdominao sujeito:cat-
rega-oe condiciona-o;meudiscursoinstitui'mecomo.sujeitoausente,semdomínio
realdaquiloque"eu"digO/diz- e aí estáo les.
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ccnação(não esqueçamosa elaboraçãosecundária)e se,por outro lado,o
fUncionamentodos significanteslingüísticos(desdeos fonemasatéasfor-
masvaziascomoo clichê,passandopelaescolhadeumasintaxee daescan-
sãodeum ritmo)pudessediantedo olhardo analista-leitorserdispensadade
seulastrodesignificação,deseuacenarinconsciente.4
O que se passaquandoos apelosdo desejo- ou os representantesda
pulsão,ou os significantesdo inconsciente,pouco importaaq\Ji -' emvez
desofreremumapassagemaumsintoma,aumSOI1hO,aumjogo(lúdico),co-
nhecemumapassagemti arte (quaisquerquesejamasdeterminaçõesideo·lógicasdo quadrobatizadode estético)?E evidentequeo escritoliterário
pode ser comparadoaqui a um objeto de arte,mesmoque a noção de
"beleza", com todassuasincertezas,tenhasido importadadasartesplás-
ticas.5O quesepassa,aosolhosde Freud,baseia-seem algumasfórmulas-
chave;eisduasqueparecemdeterminantes:
"É digno de nota que o inconscientedeum homempodereagirao in-
conscientede um outro homem,contornandoo consciente."(MET. 107)
"Parece-meindiscutívelque a idéia do 'belo' tem suasraízesna ex-
citaçãosexuale que originariamentenão designaoutracoisasenãoaquilo
queexcitasexualmente."(TES, 173)
Voltaremosà primeira(fórmula), mas importa colocá·ladesdeagora.
A segundatemum alcancegeraleapresenta-secomoumpostuladofreudia-
no; diremosapenasumapalavrasobreela.A belezado corpoestáligadaao
queexcitasexualmente:não "excitao queébelo", mas"ébeloo queexci-
ta" - o queseduziuamaionadoshumanosnumtempoesquecido,cujarea-
lidadeelesconfessame transpõematéosefeitos,por um lado ao saborde
suacultura(ligada,por exemplo,a condiçõesclimáticas,raciais,dietéticas);
por outro, em virtudedos condicionamentosindividuaisarcaicos(evoque-
mos o bom Descartesquepercebeuqueeraatraídopor mulheres"vesgas"
porquesua amaera estrábica.6Esta seduçãosuprimeasinibiçõe-s,produz
uma excitaçãoperiféricae permitea buscadeum prazergenital;masum
4 Que nãopoderiaser,nuncaédemaislembrar,um "querer-dizer"obtidoporsimples
decodificação.A buscado sentido,da verdadedescobertapeloOutrodo sujeito,é
umaconstruçãb,nãoumatradução.
5 Não pareceousadosuporqueasrepresentaçõesartísticasprimordiaispartemdacon-
sideração~dareproduçãomiméticado corpohumanOl- essencialmentefeminino,
nãotantoporqueumasituaçãoideológicade fato privilegiaum pontodevistamascu-
lino, masporqueo primeiroobjetode adoraçãoparatodosé amãe:presençadamor-
fologiasobo olhar,davoz parao ouvido,dacarneedapeleparao tato.Desteprazer
plástico,pudemostirarpor analogia eânonesdebelezalingüísticaou discursiva.
6 Sobreo fenômenogeralqueligao poderemocionaldo beloaumentalhodeimper-
feição,ver"NotesurIabeauté",Scilicet6-7,Seuil,1976,pp. 337-42.
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tabu continualigadoaosprópriosórgãosgenitais,marcadosde feiúrapara
oscivilizadose de silêncioparaos povosqueos trazemcomumenteexpos-
tos.Talvezsetratedeumaproibiçãodevidaaoexcessodeangústiaou auma
superestima:o quedáno mesmo;o invisívelinquieta,o visívelestáexpos-
.to a maiornúmerodeameaçasquantomaiorfor seupreço.É desenotarso-
bretudoqueo poderdeseduçãopertenceaoscaracteressexuaisperiféricos,
pordeslocamento: .
"Os própriosórgãosgenitais[... ) quasenuncasãoconsideradosco-
mo belos;emco~pensação,umcaráterdebelezaliga-se,parece,acertossig-
nossexuaissecundários."(MDC, 29)
lI. Ganhodeprazeresublimação
Chegamosassimà hipótesefreudianabastanteconhecidadeganhode
prazer,que se encontraformuladano fim dotexto EscritoresCriativose
Devaneio(voI.IX):
"O sonhadoracordadoescondecuidadosamentedosoutrossuasfanta-
sias,pois temo sentimentodequeexisteo dequetervergonha.Mesmoque
ascomunicasse,estarevelaçãonãonosproporcionarianenhumprazer.Se-
melhantesfantasias,quandonos confrontamoscom elas,parecem-nosre-
pugnantesou muitosimplesmente,deixam-nosfrios.Masquandoé umpoe-
ta [ ... ] quenoscontao queestamosinclinadosa considerarcomoseus
sonhosdiurnospessoais,sentimosum prazermuitograndedevidoprovavel-
menteà convergênciadeváriasfontesdegozo.Comoelechegaaesteresul-
tado? [ ... ] Atenuao queo sonhodiurnotemde egocêntrico,transfor-
mando-oe dissimulando-o,e nos seduzpor um benefíciode prazerpura-
menteformal [ ... ) como qualnosgratificapelamaneiracomoapresenta
suasfantasias.Chamamosganhodesedução,ouprazerpreliminar,semelhante
benefíciodeprazerquenosé oferecidoafun depermitiraliberaçãodeum
gozo superior que emanade camadaspsíquicasmuito mais profundas
[ ... ). O verdadeirogozod.ianteda obraliteráriaresultadequenossapsi-
que, atravésdela,acha-sealiviadade certastensões.Talvezo próprio fato
de queo poetanospermitagozar,daquipor diante,nossasprópriasfanta-
siassemescrúpulonemvergonhacontribuaemgrandeparteparaesseresul-
tado?'"(EPA, 80-81)
Tudo sepassafinalmentecomosea oportunidadedeadivinharno ou-
tro o reconhecimentocomplacentedeumafantasiaconsiderada"aberrante"
nosautorizassea gozardelapor nossaprópriaconta,semremorso:apresen-
tadamaisbela aqui,maisgastalá (o queimporta?),contantoqueo bene-
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fício sejareal?Seriaprecisoaindaacedera isso- aessaefusãolivredequal-
quervergonha.Por isso,"o interesse"deveserdespertado:umaatraçãopo-
sitiva.E sãoeliminadasasresistênciascomo antese,paraquenosentregue-
mos impetuosamenteao gozo erótico,abandonam-seasangústiasou frie-
zas.É o papelda forma,da suposta"belaforma" - nãosomenteharmonia
convencional,maseficáciasecreta.Estabelece-seuma deliciosaconivência
entreo olhare o quadro:estescorpos,estasfrutas,estaspaisagensrevelam
suaflexibilidadeacolhedora,os objetosredondos,o jogo cúmplicedasom-
bra e da luz, dasfigurasconfundidas,uma delicadamanchaamarela.. .
Quanto ao texto,sãoritmos,portantoumarespiração,retomadasde sons,
consonânciasdevoz, o uso inabitualdeum vocábuloou deumaexpressão
sintática,o prestígiodeuma"imagem"imprevista,a surpresade um adje-
tivo que mudou de contexto, um cenárioou um personagem"justos"
evpcadossobreum fundo de irrealidade,determinadaevocaçãode uma
palavra,deumsímbolo por ondepassaa idéiade umaarquiteturacombi-
nadae quefala,ou àsvezes,umamania,umtiquedeestilo,percebidocomo
um piscarde olhos.O essencialéqueacorrentepasse;entendamos:o afeto.
O pré-consciente(de ondetodo crítico experientetira motivaçõesparasua
emoção)assumeamultidãodosfragmentosquenãosãoevidentesealegra-se
comisso.Ocorreo mesmo,emoutraparte,como inconsciente.
Pois, a seduçãoda formaqueFreud recusa-sea estudarenquantotal,
negandoquesejade suacompetência,é preliminarparaele.Isto supõeque
elaabraa portaa umaoutraespéciedeprazer,queexistaumaoutrafonte
desatisfação,atrás,ou debaixo,ou bemno meio,masapresentadademanei-
ra a permanecerdespercebida(comoo envelopetão habilmenteescondido
bemà vistadeA Cartaroubada,dePoe).Esteprazersegundo,longedeser
secundário,em termoseconômicos,estáligado a uma descargade libido
sexual,por definiçãonão sentidacomotal,nemcomoalíviodeumatensão
excessiva,nemporestarligadaàesferadasemoçõesoriginais.
Podemossupor que estabaforadade gozo manifesta-seem diversos
níveis. Primeiro, porque uma barreirafoi transpostana simplesalegria
reencontrada,de poder fantasiarlivremente;seriao prazerlúdico mesmo,
encontroscom a independênciada infânciaou submissãoao reinadodos
processosprimários,enquantotaisreinossãoadministradospeloprincípio
de nãcrUgação:emsuma,reinosdeanarquia.Há o poderreencontradodejo-
garcom o não-senso,a dispensatemporáriada obrigaçãodecontarcomos
processossecundáriosquegeramo princípio derealidade.Conteraenergia,
isolar os afetos,encadearlogicamenteasrepresentações,contornaros obs-
táculos do impossível,calcularem função do tempo,manterde pé as
muralhasdo recalque,isto custasacrifício,demodoqueo acessoaoterritó-
rio dojogolivretraduz-seporumaeconomia(ondereencontramoso chiste).
Acrescentemosqueasinvestidurasafetivassãomenoscataclísmicasqueno
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sintoma,menosintensasque no jogo infantil, paradoxalmentereforçadas
por funcionaremno bom regimeou na boadistância,por seremregulamen-
tadas,regularizadaspor uma satisfaçãonarcisistareconhecidapélo super-
ego7 ~ instânciaencarregadade representarno inconscientetanto os im-
perativosda realidadequantoasproibiçõesparentais("vocênãogozaráem
lugardoparentedesexoidênticoaoseu",etc);e aí encontramosateoriado
humorcomoeconomiadeum dispêndioafetivo(MRI, apêndice).
É aqui queprecisamosconsiderarumoutromecanismo,o dasublima-
ção.Sabe-sequeestaconsisteno fato dequeummovimentopulsional"deri-
va-separaumafmalidadenão-sexual"e "paraobjetossocialmentevaloriza-
dos."(VLP, 465)
Tomemoso exemplodeváriossujeitosdotadosdeumafortepulsão
sádica:Jack, o Estripador,no quadroda psicose,realizaseudelíriopelas
sinistras"passagensao ato", que sabemos;um cirurgiãoencontrao meio
perfeito de sublimar,salvandovidashumanas;atravésdaescritura,o mar-
quêsdeSadecolocaemcenaasfigurasrefinadasdesuaorganizaçãofantas.
mática;quemlêLes CentvingtJournéesseliberade certastensões,fanta-
siandoa partir do texto de Sade.Podemosdizer que Sadeencontrouna
Bastilhauma oportunidadede se satisfazerpela imaginação,escrevendo.
Ser escritore decicar-sea descrevera almahumana,aindaque nassuas
aberrações,eis um estatuto,que a sociedadeaceitae, àsvezes,atéinveja.
E eu queleio? Projetarsóparamim meufilme de terrorfavorito- assim
tenhocom que realizarmeu desejo;isso talvezmeevitaráde infligir meu
sadismolatenteaos queme rodeiam:maspossoserprofessorespecialista
em romancedo séculoXVIII, psiquiatra,criminologista,e "obrigado"
profissionalmentea ler Sade,e encontrar·mepresoa estaleitura,semmoti-
vaçãoreal ... Se, em princípio, a sublimaçãoestéticaestáasseguradano
casodo artista,senhorde suacriação,é maisdelicadoesUibelecersuaefi·
cáciano casodo amador.8
7 Ou maisexatamentepor esteaspectopositivo,não-repressivodo superegoquese
denominao Idea/ do ego. A referênciaàs instânciaslacanianasparececômoda
nestecaso.Como o Ideal do egotemrelaçãocom a ordem "simbólica",o engodo
do prazerestético,graçasà Lei do Pai e à suainserçãonasredes(simbólicas)da lin·
guagem,achar-se-iaprotegidodo risco de umacaptaçãoimaginária,pois o "Imagi-
nário", em que se situa o absolutodo prazer,traz a duplaameaça,mortalparaa
identidade,dadissociação(corpodividido)edafusão(relaçãodual).
8 OetaveMannoninotaquea sublimaçãoé raramentecompleta,que "algumacoisa
de não-sublimadono desejoics tambémsemanifestanele" (C/eis pour 11magi-
noire, p. 105).
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III. Da identificação
Sejacomofor, a realizaçãodo desejomediantea leituraseefetuade
mim paramim,no quesechamaumaposiçãonarcisista.Meu objeto(meu
objetode amor,por ex.) estáemmim,masnãocomoumcorpoestranho,e
sim comoumapartedemeuego.9 Estepodesero efeitodaidentificação.O
mecanismoé simples,todo mundotemumaidéiadele,apróprialiteratura,
desdeD. QuixoteatéJean-PaulSartre(As Palavras)passandoporMadame
Bovary,estácheiade exemplosde leitoresque"se tomampor" seusheróis
familiarese se fixam como idealassemelhar-sea eles.No quadrode nossa
análise,encontram-secasosmaisdiferençados.EscritoresCriativoseDeva-
neio detém-senesteaspecto,distinguindoasnarrativaspopulares,cujoherói
é bemtipificado,os romances"chamadospsicológicos"emqueaspectosdi-
versosda psiquesãodistribuídosentreváriospersonagens-suportes,e mes-
mo os romances"excêntricos",cujo heróinãoé senãoo narradordaquilo
queeleobservaao seuredor.Digamosqueas formase osgrausdaidentifi-
caçãosãoinfinitos.O essencial,convémlembrar,é queasaçõesrepresenta-
dassejamfantasiasdisfarçadas,diríamosquasesuavizadaspor umahábil e
agradáveltransposição.O problematorna-seentãoeste:comoe por

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