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Cap´ıtulo 1 F´ısica Pre´-Einsteiniana – Revisa˜o Este cap´ıtulo apresenta uma revisa˜o de alguns aspectos da f´ısica pre-einsteiniana, relevantes para o desenvolvimento da relatividade de Einstein. A primeira sec¸a˜o resume os pontos essenciais da mecaˆnica de part´ıculas,1 desenvolvida principalmente por Galileu e Newton. A segunda sec¸a˜o traz uma discussa˜o de alguns aspectos da o´tica, com enfoque especial na propagac¸a˜o da luz nos meios materiais em movimento e na observac¸a˜o do assim chamado “vento de e´ter”. A terceira sec¸a˜o lida, no mesmo esp´ırito, com fenoˆmenos eletromagne´ticos e a sua unificac¸a˜o com fenoˆmenos o´ticos na teoria de Maxwell. 1.1 Mecaˆnica de part´ıculas 1.1.1 Relatividade galileana - Lei da ine´rcia Galileu notou que a observac¸a˜o de fenoˆmenos mecaˆnicos ocorrendo dentro de um navio em movimento uniforme na˜o permite perceber o movimento do navio: tudo acontece como num laborato´rio terrestre. Generalizada, esta constatac¸a˜o leva a` afirmac¸a˜o da relatividade Galileana: as leis da mecaˆnica sa˜o as mesmas em todos os referenciais inerciais, ou seja, em todos os sistemas de refereˆncia que esta˜o em movimento retil´ıneo uniforme. Galileu tambe´m observou que, na auseˆncia de influeˆncia externa, um corpo mante´m o seu estado de movimento, ou seja, a sua velocidade. Estabeleceu assim a lei da ine´rcia. Influeˆncias externas – forc¸as – produzem modificac¸o˜es de velocidade – acelerac¸o˜es. 1.1.2 Leis de Newton A dinaˆmica “cla´ssica”de part´ıculas desenvolvida por Newton e´ usualmente apresentada na sua esseˆncia na forma de treˆs leis. A primeira lei de Newton reafirma a lei da ine´rcia. Ela serve para definir a classe de referenciais nos quais as demais leis sa˜o va´lidas: sa˜o os referenciais inerciais mencionados acima, para os quais pode-se adotar a seguinte definic¸a˜o: um referencial inercial e´ um referencial no qual todas as part´ıculas livres esta˜o em movimento retil´ıneo uniforme (ou em repouso). A segunda lei de Newton, ~f = m~a , (1.1) afirma que a influeˆncia – a forc¸a – exercida por outras part´ıculas sobre uma part´ıcula dada resulta numa acelerac¸a˜o que e´ inversamente proporcional a` massa da part´ıcula, quantidade esta que caracteriza portanto a ine´rcia, ou “resisteˆncia a` acelerac¸a˜o”, da part´ıcula. A massa de uma part´ıcula e´ uma quantidade conservada (independente do tempo) e invariante (in- dependente do referencial). E´ tambe´m uma grandeza simplesmente aditiva: a massa total de um sistema composto e´ igual a` soma das massas dos constituintes. 1A palavra “part´ıcula”no presente contexto refere-se a um ponto geomeˆtrico dotado de massa, possivelmente o centro de massa de um corpo extenso. 1 2 CAPI´TULO 1. FI´SICA PRE´-EINSTEINIANA – REVISA˜O A terceira lei de Newton afirma que se, num dado instante, uma part´ıcula A aplica sobre outra part´ıcula B uma forc¸a ~fBA, enta˜o a part´ıcula B por sua vez aplica sobre a part´ıcula A, no mesmo instante, uma forc¸a ~fAB de mesmo mo´dulo e direc¸a˜o, mas de sentido oposto, ~fAB = −~fBA . (1.2) Diz-se que tais forc¸as constituem um par ac¸a˜o-reac¸a˜o. 1.1.3 Quantidades conservadas O trabalho realizado por uma forc¸a ~f no movimento de uma part´ıcula da posic¸a˜o ~rI ate´ a posic¸a˜o ~rF , seguindo o caminho C, e´ definido como W = ∫ ~rF ~rI [ ~f · d~r ]C . (1.3) Se ~f for a forc¸a resultante atuando sobre a part´ıcula, segue desta definic¸a˜o e da equac¸a˜o fundamental de movimento (1.1) que W = KF −KI , (1.4) onde K = mu2 2 , (1.5) sendo ~u a velocidade. A quantidade K e´ a energia cine´tica, e o resultado (1.4) e´ conhecido como teorema trabalho-energia. As forc¸as conservativas sa˜o aquelas para as quais o trabalho e´ independente do caminho seguido, dependendo enta˜o apenas dos pontos iniciais e finais escolhidos. Neste caso, pode-se associar a` forc¸a uma energia potencial, definida como U(~r) = − ∫ ~r ~r0 ~f · d~r ′ , (1.6) onde ~r0 e´ um ponto de refereˆncia escolhido arbitrariamente. Quando somente forc¸as conservativas realizam trabalho, o resultado (1.4) pode ser re-escrito na forma da lei de conservac¸a˜o da energia mecaˆnica: K + U ≡ E conservada . (1.7) Em especial, para um sistema isolado2 no qual as forc¸as internas sa˜o conservativas,3 ha´ conservac¸a˜o da energia mecaˆnica total4 E¯ = ∑ i Ki + ∑ i<j Uij , (1.8) onde Ki e´ a energia cine´tica da part´ıcula i e Uij a energia potencial associada a` forc¸a interna entre as part´ıculas i e j. Na auseˆncia de forc¸as externas, outras quantidades conservadas podem ser identificadas utilizando-se a terceira lei de Newton. Sem necessidade de outra condic¸a˜o, esta lei leva a` conservac¸a˜o do momentum linear total, dado por ~¯p = ∑ i mi~ui , (1.9) onde mi e´ a massa da part´ıcula i e ~ui a sua velocidade. Caso as forc¸as internas, ale´m de satisfazer a condic¸a˜o (1.2), forem forc¸as de contato ou forc¸as centrais,5 a terceira lei tambe´m implica na conservac¸a˜o do momentum angular total de um sistema isolado, dado por ~¯l = ∑ i ~ri ×mi~ui , (1.10) 2Por “sistema isolado”, entende-se um sistema sobre o qual na˜o atua nenhuma forc¸a externa. 3Forc¸as de contato permanente ou coesa˜o, que na˜o contribuem para o trabalho resultante, podem tambe´m estar presentes. 4Neste texto, uma barra acima de um s´ımbolo representando uma quantidade f´ısica associada a um sistema indica uma soma sobre os componentes do sistema. 5Por “forc¸a central”, entende-se uma forc¸a que atua na direc¸a˜o do vetor posic¸a˜o relativa das duas part´ıculas envolvidas. 1.1. MECAˆNICA DE PARTI´CULAS 3 onde ~ri e´ o vetor posic¸a˜o da part´ıcula i. Por ser insuficiente para garantir a conservac¸a˜o do momentum angular total, a condic¸a˜o (1.2) e´ algumas vezes chamada “terceira lei fraca”. Acompanhada das condic¸o˜es adicionais necessa´rias para garantir essa conservac¸a˜o, ela se torna enta˜o a “terceira lei forte”. Vale frisar que, na perspectiva moderna da dinaˆmica de part´ıculas e campos, as leis de conservac¸a˜o esta˜o associadas a`s transformac¸o˜es de simetria. A conservac¸a˜o da energia esta´ associada a` invariaˆncia frente a`s translac¸o˜es no tempo. A conservac¸a˜o do momentum linear esta´ associada a` invariaˆncia frente a`s translac¸o˜es no espac¸o e a conservac¸a˜o do momentum angular esta´ associada a` invariaˆncia frente a`s rotac¸o˜es no espac¸o. Assim, estas leis de conservac¸a˜o sa˜o consequ¨eˆncias das propriedades fundamentais de homogeneidade do tempo e de homgeneidade e isotropia do espac¸o. Qualquer teoria fundamental que incorpore estas propriedades deve portanto levar a` conservac¸a˜o das quantidades em questa˜o. Caso uma delas na˜o seja conservada por um dado modelo mecaˆnico, esta na˜o-conservac¸a˜o sera´ enta˜o atribuida a` sua transfereˆncia para graus de liberdade na˜o contemplados pelo modelo. Por exemplo, uma forc¸a na˜o- conservativa indicara´ a possibilidade de transformac¸a˜o de parte da energia mecaˆnica em outras formas de energia (calor, energia ele´trica, etc.) ou vice-versa. Semelhantemente, uma forc¸a que na˜o satisfac¸a a terceira fraca e/ou a terceira lei forte podera´ estar presente num modelo mecaˆnico caso houver no sistema f´ısico modelado transfereˆncia de momentum angular e/ou linear mecaˆnicos em outras formas, por exemplo momenta carregados por campos. 1.1.4 Tempo e espac¸o O desenvolvimento da cinema´tica – e mais ainda da dinaˆmica – implica na especificac¸a˜o dos conceitos de tempo e espac¸o. Para Newton, o tempo era uniforme, universal, absoluto e – pelo menos conceitualmente – inde- pendente da ocorreˆncia de qualquer fenoˆmeno. Por “universal”, entende-se que o mesmo tempo rege a evoluc¸a˜o de todos os processos f´ısicos, sejam eles de natureza mecaˆnica, o´tica, ele´trica, ou outra. Por “absoluto”, entende-se que o mesmo tempo especifica a evoluc¸a˜o, independentemente do referencialuti- lizado. De acordo com a teoria cla´ssica, o espac¸o no qual se desenrolam os processos f´ısicos satisfaz os axiomas da Geometria Euclidiana. A transformac¸a˜o de Galileu relaciona as coordenadas de uma part´ıcula, medidas em dois referenciais inerciais. Sejam S e S′ os dois referenciais, cujos eixos supomos paralelos. Supomos tambe´m6 que as origens dos dois referenciais coincidem em t = 0. Seja ~v a velocidade da origem O′ de S′ em relac¸a˜o a` origem O de S e ~r, ~r ′ os vetores posic¸a˜o da part´ıcula P em S e S′, respectivamente. Temos enta˜o ~r ′ = ~r − ~v t . (1.11) Ja´ que o tempo e´ absoluto (t′ = t), a derivada temporal desta transformac¸a˜o leva imediatamente a` combinac¸a˜o vetorial das velocidades,7 ~u ′ = ~u− ~v . (1.12) Como os dois referenciais inerciais esta˜o em movimento relativo uniforme, a derivada temporal de (1.12) fornece simplesmente ~a ′ = ~a , (1.13) ou seja, a acelerac¸a˜o e´ invariante numa mudanc¸a de referencial inercial. A invariaˆncia Galileana esta´ enta˜o garantida pela invariaˆncia da forc¸a. Embora experimentos de mecaˆnica permitam observar apenas movimentos relativos de translac¸a˜o, o mesmo na˜o e´ verdade para movimentos de rotac¸a˜o. Como ilustrac¸a˜o, consideramos um balde de a´gua colocado sobre uma mesa girato´ria de oleiro. Inicialmente a mesa, o balde e a a´gua esta˜o em repouso na olaria. Na˜o ha´ movimento da a´gua em relac¸a˜o ao balde e a superf´ıcie da a´gua e´ horizontal. O oleiro comunica a` mesa um movimento ra´pido de rotac¸a˜o. Em raza˜o da sua viscosidade, a a´gua entra em movimento tambe´m e apo´s algum tempo balde e a´gua giram com a mesma velocidade angular. Neste 6A transformac¸a˜o mais geral pode ser facilmente obtida combinando a transformac¸a˜o com rotac¸o˜es e translac¸o˜es 7Denotamos por ~u = d~r dt a velocidade de uma part´ıcula num referencial dado, reservando a letra ~v para a velocidade relativa de dois referenciais. 4 CAPI´TULO 1. FI´SICA PRE´-EINSTEINIANA – REVISA˜O O .......................................................................................................................................................................................... ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ....... ........................................................................................................... ........................................... ........................................... ........... ........... ........... ... O ′ .......................................................................................................................................................................................... ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ....... ........................................................................................................... ........................................... ........................................... ........... ........... ........... ... P ..................................... ..................................... ..................................... ..................................... ..................................... ............................... ............................. ................... ................... ................... ................... ................... ................... ................... ................... ................... ................... ................... ................... ................... ................... ................... ........................................... ............................. ............. ............. ............. ............. ............. ............. ............. ............. ............. ............. ........................................ ............................. ~vt ~r ~r ′ Figura 1.1: Ilustrac¸a˜o da transformac¸a˜o de Galileu momento, como na situac¸a˜o inicial, na˜o ha´ movimento relativo interno no sistema constituido pela a´gua e o balde. Pore´m, a superf´ıcie da a´gua na˜o e´ mais horizontal e esta observac¸a˜o permite distinguir “internamente”as duas situac¸o˜es. Para Newton, este exemplo demonstra a necessidade da existeˆncia de um espac¸o absoluto. Movimentos de rotac¸a˜o, assim como outros movimentos acelerados em relac¸a˜o a este espac¸o, sa˜o distingu´ıveis do repouso pelos efeitos inerciais que eles induzem, tal como a deformac¸a˜o da superf´ıcie da a´gua no exemplo do balde. ................................................................................................................................................... ................................................................................................................................................... .............................................................................. ............ ............ ............ ............ ............................................................ ...... ...... ...... ...... ...... ...... ................................................................................................................. .................. .................. .................. ................. ..................................................................................................... ............. ....... ........ ...... ......... .................. .......................................................................................... .......................................................................................................................................................................................... ....................... ............... .......... ........ .......... .............. ....................... ....................................................... .................................................................................................................................... ........................................................................................................................................ ................. .......... ......... ........ ...... .. ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ (a) ................................................................................................................................................... ................................................................................................................................................... .............................................................................. ............ ............ ............ ............ ............................................................ ...... ...... ...... ...... ...... ...... ................................................................................................................. .................. .................. .................. ................. ..................................................................................................... ............. ....... ........ ...... ......... .................. .......................................................................................... .......................................................................................................................................................................................... ....................... ............... .......... ........ .......... .............. ....................... ....................................................... ............................................................................................................................................................................................................................................................................ ................. .......... . ......................................................................................................... ..... ....... ........ ........ ...... .. ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ (b) ................................................................................................................................................... ................................................................................................................................................... ........................................................................................................... ............. ......... ..... ...... ......... ............. .......................... ...................................................................................................................................................................................... ............ ......... ....... ...... ..... .... ..... ..... ................................................................................................ ...... ...... ..... ...................................................... ....... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ...... ..................................................................................... ..... ..... . .......... .................................. ...... ..... .... ..... ...... ...... ...... ...... ...... ...... .... ........................................................................................................ ......... ...... .... ... ...... ....................................................................... ........ ........ ....... ...... ..... ..... .... ...... ...... ...... .......................................................................................................................................................................................... ....................... ............... .......... ........ .......... .............. ....................... ....................................................... .................................................................................................................................... ........................................................................................................................................ ................. .......... . ......................................................................................................... ..... ....... ........ ........ ...... .. ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ................................................................... ..... ... (c) Figura 1.2: O balde de Newton Ernst Mach argumentou que os efeitos inerciais poderiam ser atribuidos ao movimento do sistema considerado em relac¸a˜o ao resto do universo, assim dispensando o conceito de espac¸o absoluto e afirmando o cara´ter relativo de todos os movimentos. 1.2 O´tica A primeira o´tica razoavelmente completa foi desenvolvida por Descartes, que imaginava a propagac¸a˜o da luz como a transmissa˜o de uma pressa˜o entre part´ıculas vizinhas preenchendo o espac¸o. Ja´ para Hooke, a luz era uma vibrac¸a˜o se propagando num “e´ter”homogeˆneo. Outros pesquisadores, entre os quais Newton, preferiam interpretar a luz em termos de corpu´sculos propagando-se em alta velocidade a partir da fonte. A visa˜o ondulato´ria foi geralmente considerada correta a partir das experieˆncias de Young, no comec¸o do se´culo XIX. Estudos dos fenoˆmenos de polarizac¸a˜o permitiram estabelecer o cara´ter transversal das ondas luminosas, embora era dif´ıcil explicar a auseˆncia de vibrac¸o˜es longitudinais do e´ter. Discutimos a seguir algumas observac¸o˜es e experieˆncias de o´tica e as suas interpretac¸o˜es pre-einstei- nianas. 1.2.1 Velocidade da luz As primeiras determinac¸o˜es da velocidade da luz foram baseadas em observac¸o˜es astronoˆmicas. Ro¨mer, em 1676, utilizou as eclipses dos satelites de Ju´piter. Quando a Terra esta´ se afastando de Ju´piter, o tempo que a luz leva para chegar do satelite ate´ no´s aumenta. Portanto, o intervalo aparente entre duas 1.2. O´TICA 5 eclipses sucessivas tambe´m aumenta. O efeito oposto ocorre quando a Terra esta´ se aproximando de Ju´piter. O per´ıodo do movimento orbital de Ju´piter em torno do Sol e´ de mais de 11 anos. Portanto, para uma primeira estimativa, podemos desprezar o deslocamento de Ju´piter na sua o´rbita durante uma revoluc¸a˜o da Terra em torno do Sol. Seja T o per´ıodo de movimento do satelite em torno de Ju´piter. Utilizamos um ı´ndice n para contar as eclipses observadas durante um ano, comec¸ando a contagem (n = 0) quando a distaˆncia entre Ju´piter e a Terra e´ mı´nima. Sejam Ln e Ln+1 as distaˆncias entre Ju´piter e a Terra nos instantes tn e tn+1 de observac¸a˜o de duas eclipses sucessivas [veja a figura (1.3)]. Temos tn+1 − tn = T + Ln+1 − Ln c , (1.14) onde c e´ a velocidade de propagac¸a˜o da luz. Seja N+ o nu´mero de eclipses observadas ate´ que a Terra alcance a posic¸a˜o de maior afastamento em relac¸a˜o a Ju´piter, e t+ o instante de observac¸a˜o da eclipse nu´mero N+ (pro´ximo a meio ano). Enta˜o, t+ = N+−1∑ n=0 (tn+1 − tn) = N+T + LN+ − L0 c = N+T + D c , (1.15) onde D e´ o diaˆmetro da o´rbita da Terra. Obviamente, para o meio ano durante o qual a Terra aproxima-se de Ju´piter, obtemos analogamente t− = N−T − D c . (1.16) Como t+ + t− = 1 ano e N+ + N− ≡ N e´ o nu´mero de eclipses por ano terrestre, podemos deduzir das observac¸o˜es o per´ıodo T = 1 ano/N . Da medida de t+, podemos enta˜o obter o retarde t+ − N+T acumulado no meio ano de afastamento da Terra em relac¸a˜o a Ju´piter. O valor obtido e´ cerca de 17 minutos ou 103 segundos. Como o diaˆmetro da o´rbita da Terra e´ aproximadamente 3 108 km, obtemos de (1.15) c = 3108 km 103 s = 3108m/s . (1.17) Obviamente, um valor mais preciso pode ser obtido com um tratamento mais elaborado. .................... ..................................................................................................................................................... .......... ......... .......................................................................................................................... .... ......... ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ........ ............................ ............ ........ ........ ........ ........ ......... ... ........ ......... ........... ................................................................................................................................ 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Ln Ln+1 Sol Terra Jupiter e seu satelite Figura 1.3: Determinaa˜o da velocidade da luz pela observac¸a˜o das eclipses de um satelite de Ju´piter. A figura mostra a posic¸a˜o da Terra nos comec¸os de duas eclipses sucessivas (entrada do satelite na sombra de Ju´piter). A construc¸a˜o ilustra as equac¸o˜es (1.14) e (1.15). 6 CAPI´TULO 1. FI´SICA PRE´-EINSTEINIANA – REVISA˜O 1.2.2 Aberrac¸a˜o estelar Observac¸o˜es e interpretac¸a˜o Em 1728, Bradley notou que a posic¸a˜o aparente de uma estrela, observada diaramente no mesmo hora´rio, descreve no decorrer do ano uma pequena elipse no ceu. Este efeito esta´ presente mesmo para estrelas muito distantes e na˜o deve ser confundido com a paralaxe, que permite determinar as distaˆncias em que encontram-se as estrelas mais pro´ximas. Para uma estrela cuja posic¸a˜o real no ceu esta´ na direc¸a˜o perpendicular ao plano da o´rbita terrestre, o movimento aparente e´ circular. Dito de outra maneira, para observar tal estrela, sempre na mesma hora do dia, devemos girar o nosso telesco´piode maneira que o seu eixo varra no ano a superf´ıcie de um cone. Bradley mostrou que o meio-aˆngulo δ de abertura deste cone e´ independente da estrela particular observada e vale 20, 5”. A aberrac¸a˜o possui uma explicac¸a˜o elementar na teoria corpuscular da luz, como consequeˆncia da lei de combinac¸a˜o das velocidades. Essencialmente a mesma explicac¸a˜o e´ va´lida na aproximac¸a˜o geome´trica da teoria ondulato´ria. Sejam ~vLS a velocidade da luz em relac¸a˜o a` estrela emissora, ~vTS a velocidade da Terra em relac¸a˜o a` estrela, e ~vLT a velocidade da luz em relac¸a˜o a` Terra. Enta˜o, ~vLT = ~vLS − ~vTS . (1.18) Se denotarmos por θ o aˆngulo de observac¸a˜o, medido em relac¸a˜o a` ecl´ıptica, e por δ o aˆngulo de aberrac¸a˜o [veja a Fig. 1.4], a lei dos senos fornece sin δ = vTS vLS sin θ . (1.19) ............................................................................................................................................................................................................................................................. ............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................. ........ ....................... ... ......................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... .......... ................. ......... −~vTS ~vLS ~vLT δ θ ϕ Figura 1.4: Ana´lise da aberrac¸a˜o pela combinac¸a˜o das velocidades. Se supormos a estrela “fixa”(em relac¸a˜o ao Sol), podemos identificar ~vTS com a velocidade da Terra no seu movimento em torno do Sol, ou seja vTS ' 30 km/s. Para observar durante um ano uma estrela cuja posic¸a˜o angular verdadeira e´ perpendicular a` orbita terrestre [ϕ = 90o e portanto sin θ = cos δ], precisaremos girar o nosso telesco´pio de maneira que ele descreva um cone de meia-abertura dada por tan δ = vTS vLS . (1.20) Com o valor de δ mencionado acima, obtem-se vLS = 3, 04 108m/s, compat´ıvel com a velocidade da luz medida por Ro¨mer. A mesma ana´lise pode ser feita numa visa˜o ondulato´ria, bastando substituir vLS pela velocidade de propagac¸a˜o da luz no e´ter vLE ≡ c, e supor que o Sol esta´ em repouso no e´ter. Enta˜o, vTS pode tambe´m ser substituida por vTE , a velocidade da Terra em relac¸a˜o ao e´ter, e o resultado (1.20) e´ substituido por tan δ = vTE c . (1.21) 1.2. O´TICA 7 E´ fa´cil convencer-se de que a velocidade de propagac¸a˜o da luz relevante para a explicac¸a˜o da aberrac¸a˜o e´ na verdade a velocidade da luz no telesco´pio. O argumento esta´ ilustrado na Fig. 1.5, que se refere ao caso ϕ = 90o. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. ............ .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. ............ ........................................................ .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. ............ .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. .................. ............ ........................................................ ..................... ..................... ..................... ..................... ..................... ..................... ..................... ..................... ..................... ..................... .................. ......................... .............................. .............................. ............................................ .... ..... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ......... ............................. ................ ....... ................ ................ ....... ................................................................. ....................................... .......................... ....................................... .......................... ............................. .......... ................ .......... ............................ .......... ................... ....... ...................................... .......................... .................................................................................................................. .......................... δ L h ∆x ~vTE Figura 1.5: Ana´lise da aberrac¸a˜o pela propagac¸a˜o da luz no telesco´pio. Sendo L o comprimento do telesco´pio e vLE a velocidade da luz no e´ter que preenche o mesmo, o tempo ∆t que a luz leva para ir da entrada do telesco´pio ate´ o fundo e´ dado por ∆t = h vLE = L cos δ vLE . (1.22) Para que o feixe chegue ao fundo do telesco´pio, o mesmo deve deslocar-se de ∆x = L sin δ durante o este intervalo, ou seja ∆t = ∆x vTE = L sin δ vTE . (1.23) Igualando estas duas expresso˜es, reobtem-se o resultado anterior. Efeito do meio de propagac¸a˜o: experimento de Airy Embora a luz se propaga na auseˆncia de mate´ria, supostamente no hipote´tico e´ter, a sua propagac¸a˜o – valor e direc¸a˜o da velocidade – e´ afetada pela presenc¸a de mate´ria. Em outras palavras: a mate´ria influi nas propriedades do e´ter. Surge enta˜o inevitavelmente a questa˜o da influeˆncia do movimento da mate´ria sobre o e´ter. Arrago ja´ tinha apontado que o movimento das lentes de um telesco´pio em relac¸a˜o ao e´ter poderia influenciar a propagac¸a˜o da luz nas mesmas e exigir uma refocalizac¸a˜o do instrumento na observac¸a˜o de uma estrela no decorrer do ano. Pore´m, nenhum efeito deste tipo era observado. Pelo mesmo argumento, era de se esperar que a aberrac¸a˜o observada fosse diferente caso o tubo do telesco´pio fosse preenchido por um meio material transparente, tal como vidro ou a´gua. Este experimento foi realizado em 1871 por Airy. Lembramos que, de acordo com a o´tica cla´ssica, se denotarmos por c a velocidade (acima denotada vLE) da luz se propagando no e´ter “vazio”,8 enta˜o a velocidade da luz propagando-se numa regia˜o do espac¸o enchida por um meio material de ı´ndice de refrac¸a˜o n e´ c/n. Vale lembrar que o meio de propagac¸a˜o e´ o e´ter, na˜o o meiomaterial. Se o meio material estiver en repouso no referencial do e´ter vazio, a velocidade de propagac¸a˜o e´ c/n neste referencial. Mas se o meio material estiver em movimento em relac¸a˜o ao e´ter vazio, o referencial do e´ter “preenchido”pela mate´ria pode ser diferente do referencial 8Utilizaremos esta expressa˜o para indicar o estado do e´ter numa regia˜o do espac¸o onde na˜o ha´ mate´ria. 8 CAPI´TULO 1. FI´SICA PRE´-EINSTEINIANA – REVISA˜O do e´ter vazio, pois o e´ter pode ser arrastado, parcial ou totalmente, pela mate´ria. Assim, a questa˜o do arraste do e´ter pelo meio material em movimento e´ incontorna´vel na o´tica cla´ssica. Consideraremos sucessivemente as implicac¸o˜es para o experimento de Airy das duas suposic¸o˜es ex- tremas poss´ıveis a respeito desta questa˜o. a) Nenhum arraste do e´ter Neste caso, denotando por vˆ′LE a direc¸a˜o de propagac¸a˜o da luz no meio material, temos dentro do mesmo ~vLE = c n vˆ′LE (1.24) e ~vLT = ~vLE − ~vTE = c n vˆ′LE − ~vTE . (1.25) Devido a` difrac¸a˜o na entrada do telesco´pio, a direc¸a˜o de propagac¸a˜o vˆ′LE difere em geral da direc¸a˜o vˆLE no espac¸o intersideral. Este efeito deve ser levado em conta na ana´lise da aberrac¸a˜o, como mostrado na Fig. 1.6(b). A lei dos senos fornece sin δ′ vTE = sin(pi/2− δ) c/n = cos δ c/n . Ja´ a lei de Snell fornece sin δ = n sin δ′ . (1.26) Combinando estas duas equac¸o˜es, obtemos tan δ = n2 vTE c . (1.27) Comparando a aberrac¸a˜o (1.27) prevista para o telesco´pio cheio com a aberrac¸a˜o (1.21) calculada para o telesco´pio vazio, teriamos enta˜o tan δcheio = n2 tan δvazio , (1.28) ou seja, a aberrac¸a˜o seria maior no caso de um telesco´pio cheio de vidro ou a´gua (n > 1). b) Arraste total do e´ter Neste caso, e´ fa´cil convencer-se de que na˜o haveria aberrac¸a˜o, pois uma vez dentro do telesco´pio, o feixe de luz seria arrastado lateralmente [veja a Fig. 1.6(c)9], acompanhando o movimento do telesco´pio. Portanto, para que a luz chegue ao fundo do telesco´pio, este deveria ser orientado verticalmente. Tambe´m na˜o haveria difrac¸a˜o, ja´ que a luz incidiria perpendicularmente a` superf´ıcie do meio. A hipo´tese de arraste total, que foi defendida principalmente por Stokes, obviamente traz se´rios problemas conceituais. Certamente na˜o poderia ter validade para um meio pouco denso como o ar, ja´ que a aberrac¸a˜o e´ um fato observado. Ao realizar o experimento, Airy descobriu que a aberrac¸a˜o na˜o e´ modificada pelo preenchimento do telesco´pio por um meio material, ou seja tan δcheio = tan δvazio . (1.29) Este resultado e´ intermedia´rio em relac¸a˜o a`s expectativas baseadas nas hipo´teses extremas que acabamos de considerar. Ele indica portanto que o e´ter e´ parcialmente arrastado pelo meio material. 1.2.3 Fo´rmula de Fresnel Uma fo´rmula que especifica o quanto o e´ter e´ arrastado por um meio material em movimento foi proposta por Fresnel na base de argumentos um tanto especulativos. Subsequentemente, esta fo´rmula revelou-se capaz de explicar os feno´menos observados. Seguiremos aqui o caminho contra´rio. Utilizaremos o resul- tado nulo do experimento de Airy para estabelecer empiricamente a fo´rmula. Discutiremos brevemente a interpretac¸a˜o da mesma em termos de uma modificac¸a˜o da densidade de e´ter devida a` presenc¸a do meio. Mais importantemente, descreveremos nas pro´ximas sec¸o˜es dois outros experimentos que corroboram a dita fo´rmula. 9Nesta figura, ~v ′LE denota a velocidade da luz no telesco´pio, medida no referencial do “e´ter vazio”. 1.2. O´TICA 9 ..................... ..................... ..................... ............................................................................................................................................................................................ .......... ................ .......... ....................................................................................................... ............................................................................................................................................................................... .......... .................. ........ ...................................................... .......... ................ ........... . . ........... ........ ............. ....... . . . ... ... ... ... ... .. δ cvˆLE cvˆLE −~vTE ~vLT (a) ..................... ..................... ..................... ....................................................................................................................................................... .......... ................ .......... ....................................................................................................... ................................................................................................................................................... ......... .................... ...... ...................................................... .......... ................ .......... ..................................... . . . . . ........ .......... .......... ........ . . . . . ... ... ... ... ... .. δ δ′ cvˆLE c n vˆ ′ LE −~vTE ~vLT (b) ..................... ..................... ..................... ...................................................................................................................................................... .......... ................ .......... ....................................................................................................... ............................................................................................................................................... ....... ................ .......... ...................................................... .......... ................ .......... . . . ....... ............ ......... ......... . . . cvˆLE ~v′LE −~vTE c n vˆLT (c) ..................... ..................... ..................... ...................................................................................................................................................... .......... ................ .......... ............................................................ ....................................................................................................................................... .......... .................. ........ ...................................................... .......... ................ .......... ..................................... . . . ........ ............ ......... .......... . . . ... ... ... ... ... .. δ δ′ cvˆLE c n vˆLE′ ~vE′E=−(1−κ)~vTE ~vLT (d) Figura 1.6: Diagramas de composic¸a˜o das velocidades para o experimento de Airy: (a) telesco´pio vazio; (b) telesco´pio cheio, nenhum arraste do e´ter; (c) idem, arraste total; (d) idem, arraste parcial: seguindo Fresnel, o coeficiente κ foi escolhido de maneira a obter a mesma aberrac¸a˜o de que no caso (a). Arraste parcial Seja ~vME a velocidade de um meio material M em relac¸a˜o ao e´ter vazio E. Denotamos por E′ o e´ter no meio material. Por suposic¸a˜o, este e´ter e´ parcialmente arrastado pelo meio, na direc¸a˜o de movimento deste. A velocidade do e´ter arrastado E′ em relac¸a˜o ao e´ter vazio E pode ser escrita na forma ~vE′E = κ~vME , (1.30) com κ um nu´mero entre 0 e 1 que denominamos coeficiente de arraste. Sendo n o ı´ndice de refrac¸a˜o do meio, a velocidade, medida em relac¸a˜o ao e´ter arrastado, da luz propagando-se no meio material em movimento e´ ~vLE′ = c n vˆLE′ . (1.31) onde vˆLE′ e´ a direc¸a˜o da velocidade da luz em relac¸a˜o ao e´ter arrastado. A velocidade daluz em relac¸a˜o ao e´ter vazio e´ enta˜o ~vLE = ~vLE′ + ~vE′E = c n vˆLE′ + κ~vME . (1.32) A velocidade da luz no meio material, medida em relac¸a˜o ao mesmo, e´ portanto ~vLM = ~vLE − ~vME = c n vˆLE′ − (1− κ)~vME . (1.33) Determinac¸a˜o do coeficiente de arraste A aplicac¸a˜o da fo´rmula de arraste parcial (1.32) a` ana´lise da aberrac¸a˜o esta´ ilustrada na Fig. 1.6. A lei dos senos da´ agora sin δ′ (1− κ) vTE = sin(pi/2− δ) c/n = cos δ c/n , e combinando esta equac¸a˜o com a lei de Snell, obtem-se tan δ = (1− κ)n2 vTE c , (1.34) ou tan δcheio = (1− κ)n2 tan δvazio . (1.35) 10 CAPI´TULO 1. FI´SICA PRE´-EINSTEINIANA – REVISA˜O Para reproduzir o resultado de Airy, precisamos escolher κ = 1− 1 n2 , (1.36) que vem a ser a hipo´tese de Fresnel para o coeficiente de arraste do e´ter por um meio material em movimento. Embora a fo´rmula de Fresnel seja essencialmente ad hoc, ele sugeriu interpreta´-la com indicando um aumento da “densidade de e´ter”no meio material. Especificamente, ele postulou que a densidade de e´ter num meio material e´ proporcional ao quadrado do ı´ndice de refrac¸a˜o. Ou seja, sendo ρ a densidade do e´ter vazio e ρ′ a densidade do e´ter na presenc¸a de mate´ria, temos ρ′ = n2ρ (1.37) e a densidade de “excesso de e´ter”e´ (n2− 1)ρ. Fresnel supus ainda que somente este excesso e´ arrastado, com velocidade igual a` velocidade v do meio. Enta˜o o “centro de massa do e´ter”e´ arrastado com velocidade vE′E = ρ× 0 + (n2 − 1)ρ× v n2ρ = (1− 1 n2 )v . Uma interpretac¸a˜o um tanto diferente foi proposta mais tarde por Stokes. Ele tambe´m postulava a relac¸a˜o (1.37), mas para ele, todo o e´ter dentro do meio movia-se com velocidade vE′E e havia “conservac¸a˜o do e´ter”, de maneira que a equac¸a˜o de continuidade (para o e´ter), escrita no referencial do meio, dava ρv = ρ′(v − vE′E) = n2ρ(v − vE′E) , o que leva tambe´m a` expressa˜o de Fresnel para vE′E . Como veremos, a relatividade restrita fornece uma explicac¸a˜o puramente cinema´tica da fo´rmula de Fresnel, dispensando inteiramente o e´ter. Como a fo´rmula de Fresnel foi essencialmente montada para reproduzir o resultado do experimento de Airy, e´ importante verificar que ela e´ capaz de reproduzir tambe´m os resultados de outros experimentos. Dois exemplos sa˜o discutidos abaixo. 1.2.4 Experimento de Hoeck (1868) Um feixe de luz monocroma´tica e´ dividido em duas componentes que descrevem em sentidos opostos um percurso retaˆngulo e sa˜o enta˜o recombinadas para formar uma figura de interfereˆncia. Sobre um dos lados do retaˆngulo, orientado paralelamente ao movimento da Terra, ha´ um trecho constituido por um tubo de comprimento, L cheio de a´gua. O experimento consiste em observar o deslocamento da figura de interfere˜ncia induzido por uma rotac¸a˜o de 180o do aparato. Para a ana´lise da diferenc¸a de tempos de percurso, precisamos considerar somente o trecho percorrido na a´gua e o trecho correspondente sobre o lado oposto do retaˆngulo. Supomos que a velocidade da Terra em relac¸a˜o ao e´ter esta´ orientada para a direita na Fig. 1.7. Usando de novo a relac¸a˜o (1.32), temos para o tempo de percurso da componente 1: t1 = L c+ v + L c/n+ κv − v , e para a componente 2: t2 = L c− v + L c/n− κv + v . A diferenc¸a e´ δt = t1 − t2 = − 2Lv c2 − v2 + 2(1− κ)Lv (c/n)2 − (1− κ)2v2 ' − 2Lv c2 [1− (1− κ)n2] , onde termos de ordem (v/c)2 foram desprezados. Quando o aparato e´ girado de 180o, os papeis das componentes 1 e 2 sa˜o trocados, de maneira que a diferenc¸a de tempo de percurso passa a ser −δt. Isto produz um delocamento da figura de interfere˜ncia (em porc¸a˜o de franja) de ∆Φ = −2ν δt . 1.2. O´TICA 11 .................................................................................... ..................... ............................................................................................................................................................... ..................... ................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................. ................ .......... ................................................................... ..... ................ ..... ................ ................ ................ ................ ................ ................ ................ ................................... ..................... ................ ................ ................ ................ ................ ................ ................ ..................................................................................................................................................................... .................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................. ..................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... ................................................... ................ ...................................... ...................... .......... ...................... ...................... .......... ...................... ...................... .......... ...................... ...................... .......... ................................................ ........................... ..................... .................................................................................... ..................... L 1 2 a´gua F D ~v Figura 1.7: Esquema do experimento de Hoeck. Nenhum deslocamento da figura de interfereˆncia foi observado por Hoeck, o que implica em δt = 0 e portanto κ = 1− 1 n2 , confirmando a hipo´tese de Fresnel. 1.2.5 Experimento de Fizeau (1851) Este experimento estuda a propagac¸a˜o da luz na a´gua emmovimento no labora´torio. Um feixe monocroma´tico e´ dividido em duas componentes, uma das quais percorre uma distaˆncia 2L na a´gua em movimento com velocidade v no sentido da propagac¸a˜o, ao passo que a outra componente percorre a mesma distaˆncia 2L na a´gua em movimento com a mesma velocidade v, mas no sentido oposto ao da luz. [veja a Fig. 1.8] As duas componentes sa˜o enta˜o recombinadas e compara-se as figuras de interfereˆncia obtidas com a a´gua em movimento e parada. ............................................................................. ................ ................ ................ ................ ............. ................ ................ ................ ................ ............. ............................................................................. ............................................................................. ................ ................ ................ ................ ............. ................ ................ ................ ................ ............. ........................................................................................................................................................................................................................................................................ .......................... ..................................................................................................... ..................................................................................................................................................................................................................... ........................................................................................................................................................................................... .......................... ..................................................................................................... ..................................................................................................................................................................................................................... ........................................................................................... ............................ ............................ ............................ ....... ....................................................... .................................. ..................... .............................................................................................................................................. .............................................................................................................................................. .................. .................. .................................................................................................................................................................................. ..................................................... ..................................................... ............................................................................ ................ ................ ........................... ..................... ................ ................ ........................... ..................... ................ ................ ........................... ..................... ........... ........... ........... ........... ........... ........... ........... ........... ........... . L F D Figura 1.8: Esquema do experimento de Fizeau. Utilizando a relac¸a˜o (1.32), a diferenc¸a entre os tempos de percurso dos dois caminhos o´ticos e´ ∆t = 2L( 1 c/n− κv − 1 c/n+ κv ) = 4Lκv (c/n)2 − κ2v2 ' 4Lκvn2 c2 , onde termos de ordem (v/c)2 foram desprezados. O deslocamento da figura de interfereˆncia provocado 12 CAPI´TULO 1. FI´SICA PRE´-EINSTEINIANA – REVISA˜O pelo movimento da a´gua e´ enta˜o (em frac¸a˜o de franja): ∆Φ = ν∆t = c λ ∆t = 4n2 L λ v c κ . (1.38) Fizeau utilizou luz de comprimento de onda λ ' 5, 3 10−7m e canos de comprimento L ' 1, 5m, o que da´ L/λ ' 2, 8 106. A velocidade da a´gua era v ' 7m/s, de maneira que v/c ' 2, 3 10−8. Com n ' 1, 33 e portanto (usando a fo´rmula de Fresnel) κ ' 0, 435, obtem-se ∆Φ ' 4× 1, 77× 2, 8 106 × 2, 3 10−8 × 0, 435 ' 0, 20 . O valor observado por Fizeau foi ∆Φobs ' 0, 23 , o que ele considerou “quase igual”ao valor calculado. 1.2.6 Experimento de Michelson e Morley (1887) A discussa˜o acima mostra que os fenoˆmenos o´ticos observados num referencial em movimento com ve- locidade v em relac¸a˜o ao e´ter podem ser explicados, na ordem v/c, supondo que o meio de propagac¸a˜o e´ o e´ter e usando a lei usual de combinac¸a˜o vetorial das velocidades. Isto inclui propagac¸a˜o num meio material, desde que seja levado em conta o arraste do e´ter seguindo a prescric¸a˜o de Fresnel. O experimento de Michelson e Morley mostrou que isto na˜o e´ verdade para efeitos de ordem (v/c)2. ................................................................ ..................... ............................................................................................................................................................................................................ ..................... .............................................................................................................................. ........................................................................................................................................................................ ............... ... ............................................................................................ ..... ................ ..... ................ ................ ................ ................ ................ ................ ................ ................................... ..................... ................ ................ ................ ................ ............ .............................................................................................................................................. ..... ................ ..... ......................................... ...................... ...................... ...... ................ ................ ......... .................................................................................... ..................... ........................... ..................................................................... ........................... ..................... ...................... ..... ................ ..... L L′ F D A B C ~v ...................... ...................... ...... ...................... ...................... ...... ......................................... ................. ................. ................. ................. ................. ................. ................. ................. ................. ................. .......................... ..................... ................. ................. ................. ................. ................. ................. ................. ................. ................. ................. ................................................................................................................................................................................................................................. ... ................ ..... .................................................................................................................................................... ............... ......... ..... ........................ ........................ ...... . ...... . ... ... ... ... ... ... ... . ... ... ... ... ... ... ... ..... .. ...... . ..................... ..................... v tAC v tCA c tAC c tCA L′ (a) (b) AI AF CR Figura 1.9: Experimento de Michelson e Morley; (a): esquema do aparato; (b) diagrama para o ca´lculo do tempo de propagac¸a˜o na direc¸a˜o transversal. Um feixe de luz monocroma´tica e´ dividido em duas componentes que se propagam em direc¸o˜es per- pendiculares, uma das quais coincide com a direc¸a˜o do movimento da Terra. As componentes do feixe sa˜o refletidas por espelhos e propagam-se de volta ate´ o ponto de separac¸a˜o inicial, onde se recombinam para formar uma figura de interfereˆncia [veja a Fig. 1.9(a)]. Gira-se o aparato de maneira a inverter os papeis do brac¸o paralelo e do brac¸o perpendicular a` Terra. Observa-se o deslocamento da figura de inter- fereˆncia induzido por esta rotac¸a˜o. Calcularemos os tempos de percurso, supondo que a luz propaga-se com velocidade c em relac¸a˜o ao e´ter, no qual a Terra esta´ em movimento com velocidade v. O tempo de propagac¸a˜o do pontode separac¸a˜o A ate´ o espelho B e´ dado por c tAB = L+ v tAB → tAB = L c− v . 1.3. TEORIA ELETROMAGNE´TICA 13 Semelhantemente, o tempo de propagac¸a˜o de volta do espelho B ate´ o ponto A e´ dado por c tBA = L− v tBA → tBA = L c+ v . Somando, o tempo de percurso, ida e volta, do brac¸o do interferoˆmetro paralelo ao movimento da Terra e´ tABA = 2Lc c2 − v2 . A Fig. 1.9(b) ilustra a situac¸a˜o pertinente para o ca´lculo do tempo de percurso ao longo do brac¸o perpendicular a` linha de movimento da Terra. AI representa a posic¸a˜o (em relac¸a˜o ao e´ter) da laˆmina de separac¸a˜o no instante da separac¸a˜o, AF a posic¸a˜o da laˆmina no instante da reunia˜o, e CR a posic¸a˜o do espelho C no instante da reflexa˜o. Pelo teorema de Pita´goras (c tAC)2 = (v tAC)2 + L′2 , e portanto tACA = 2tAC = 2L′√ c2 − v2 . A diferenc¸a de tempo de propagac¸a˜o e´ δt = tABA − tACA = 2 c √ 1− (v/c)2 ( L√ 1− (v/c)2 − L ′) , (1.39) Quando o aparato e´ girado por 90o, os papeis dos brac¸os invertem-se, o que obviamente leva a` diferenc¸a de tempos de propagac¸a˜o δt′ = t′ABA − t′ACA = 2 c √ 1− (v/c)2 (L− L′√ 1− (v/c)2 ) . (1.40) O deslocamento da figura de interfereˆncia e´ enta˜o dado por ∆Φ = ν(δt′ − δt) = ν 2 c √ 1− (v/c)2 (L+ L ′)(1− 1√ 1− (v/c)2 ) ' − c λ L+ L′ c ( v c )2 ' −L+ L ′ λ ( v c )2 , (1.41) em frac¸a˜o de franja. Michelson e Morley utilizaram luz de comprimento de onda λ ' 5, 9 10−7m e os brac¸os do inter- feroˆmetro tinham 11m de comprimento. Isto leva a (L+L′)/λ ' 3, 7 107. Como v/c ' 10−4, esperava-se enta˜o ∆Φ ' −0, 37 . Apesar de o aparato possuir precisa˜o suficiente para observar um deslocamento no mı´nimo 20 vezes menor de que isto, nenhum deslocamento foi observado. 1.3 Teoria eletromagne´tica 1.3.1 Ate´ 1870 Ac¸a˜o a distaˆncia • Teorias inspiradas pela teoria da gravitac¸a˜o de Newton. • Forc¸a eletromagne´tica deriva de um potencial instantaˆneo (vetorial). • Teorias desenvolvidas principalmente por Franz Ernst Neumann (1845) e Wilhelm Weber (1848) 14 CAPI´TULO 1. FI´SICA PRE´-EINSTEINIANA – REVISA˜O Propagac¸a˜o de campos no e´ter • Teorias inspiradas pela mecaˆnica dos meios cont´ınuos. • Teoria de James Clerck Maxwell (1873), interpretada por ele como descrevendo tenso˜es propagando- se num hipote´tico meio diele´trico. • As equac¸o˜es de Maxwell preve´m a propagac¸a˜o de ondas eletromagne´ticas, cuja velocidade e´ dada em termos das unidades ele´tricas e magne´ticas. [Previsa˜o teo´rica de Hermann von Helmholtz, verificada experimentalmente por Hertz (1888)]. • A velocidade das ondas eletromagne´ticas e´ numericamente muito pro´xima da conhecida veloci- dade da luz no va´cuo, o que leva a` interpretac¸a˜o da luz como um fenoˆmeno eletromagne´tico e a` identificac¸a˜o do meio diele´trico de Maxwell com o e´ter, meio hipote´tico de propagac¸a˜o das ondas luminosas. 1.3.2 Eletromagnetismo em meios materiais em movimento Interpretac¸a˜o de Hertz das equac¸o˜es de Maxwell • Num meio material em repouso – presumivelmente em relac¸a˜o ao eter – os fenoˆmenos eletro- magne´ticos sa˜o supostos descritos pelas equac¸o˜es de Maxwell envolvendo os campos ~E, ~D, ~B, ~H, com termos de fontes, junto com as equac¸o˜es constitutivas nas quais aparecem a constante diele´trica e a permeabilidade magne´tica do meio. • Hertz generalizou as equac¸o˜es, supondo-as va´lidas na mesma forma no referencial de repouso do meio, mesmo se este estiver em movimento. Para dar consisteˆncia matema´tica a esta suposic¸a˜o, interpretou as derivadas temporais que aparecem nas equac¸o˜es como derivadas convectivas. Lem- bramos que a derivada convectiva e´ dada, em termos das derivadas parciais temporal e espaciais calculadas num referencial no qual a velocidade do meio e´ ~v, por d dt = ∂ ∂t + ~v · ∇ . • Quando formuladas num referencial no qual o meio material esta´ em movimento, as equac¸o˜es do eletromagnetismo conteriam portanto termos adicionais, que dependem da velocidade do meio. Este termos implicariam em novos efeitos f´ısicos, um dos quais Ro¨ntgen alegou ter observado em 1888. Esta observac¸a˜o na˜o foi confirmada por outro experimento, realizado em 1903 por Eichenwald, o que levou a descartar a teoria de Hertz. • A hipo´tese de Hertz pode ser interpretada como equivalente a supor que o eter e´ inteiramente arrastado por um meio material em movimento. Vale lembrar que havia evideˆncias contra´rias em fenoˆmenos o´ticos, que indicavam apenas um arraste parcial. Teoria de Lorentz • Lorentz desenvolveu uma interpretac¸a˜o da teoria de Maxwell baseada nas ideias seguintes: – Os campos eletromagne´ticos descrevem o estado do e´ter num dado ponto e instante. – O estado do e´ter e´ afetado pela presenc¸a e pelo movimento da mate´ria. Atrave´s de manipulac¸o˜es das equac¸o˜es de Maxwell norteadas por estas ideias, ele chegou a`s con- cluso˜es seguintes: – A fo´rmula de Fresnel pode ser obtida imtroduzindo um “tempo local”, sem interpretac¸a˜o f´ısica. 1.3. TEORIA ELETROMAGNE´TICA 15 – Um corpo material em movimento em relac¸a˜o ao e´ter e´ contraido na direc¸a˜o do movimento por um fator γ = 1√ 1− (v/c)2 . (1.42) Notamos que isto pode explicar o resultado nulo do experimento de Michelson-Morley, pois se L e L′ sa˜o os comprimentos em repouso (em relac¸a˜o ao e´ter) dos brac¸os do interferoˆmetro, enta˜o temos que substituir L→ L √ 1− (v/c)2 em (1.39) e L′ → L′ √ 1− (v/c)2 em (1.40), o que leva obviamente a um resultado nulo no lugar de (1.41). Esta interpretac¸a˜o do resultado de Michelson e Morley tinha sido proposta independentemente pot FitzGerald; por isto e´ a referida contrac¸a˜o e´ conhecida como contrac¸a˜o de FitzGerald-Lorentz. – A partir dos resultados de Lorentz, Poincare´ demonstrou que a eletrodinaˆmica e´ completamente invariante frente a uma transformac¸a˜o conjunta do tempo e do espac¸o, que ele nomeou trans- formac¸a˜o de Lorentz. [Como veremos, esta transformac¸a˜o surge naturalmente na cinema´tica einsteiniana.] 16 CAPI´TULO 1. FI´SICA PRE´-EINSTEINIANA – REVISA˜O Cap´ıtulo 2 Princ´ıpios da Relatividade Restrita Neste cap´ıtulo, definimos a classe de sistemas de refereˆncia – denominados referenciais inerciais – que desempenham um papel central na formulac¸a˜o dos princ´ıpios da relatividade restrita. Enunciamos os dois postulados que sa˜o comumente adotados como fundamentos da teoria. Demonstramos que a adoc¸a˜o simultaˆnea destes postulados requer uma modificac¸a˜o profunda do conceito de tempo: o tempo absoluto de Newton e´ substituido por um tempo relativo, que depende do referencial considerado. Discutimos em seguida algumas propriedades ba´sicas das transformac¸o˜es de coordenadas entre referenciais inerciais. A partir do segundo postulado, identificamos uma quantidade invariante frente a estas transformac¸o˜es, o invariante fundamental, que caracteriza a geometria do espac¸o-tempo da relatividade restrita. 2.1 Referenciais inerciais 2.1.1 Axiomas Comec¸aremos por enunciar um conjunto de suposic¸o˜es a respeito dos referenciais inerciais e de pro- priedades a eles atribuidas. Embora sejam bastante naturais, deve-se admitir que elas poderiam even- tualmente revelar-se incompat´ıveis entre si ou com os postulados fundamentais. Ale´m disto, mesmo consistente, a teoria resultante poderia mostrar-se inadequada para a descric¸a˜o dos fenoˆmenos. Eviden- temente, apenas atrave´s de experimentos poderemos estabelecer a validade da teoria. • As relac¸o˜es espaciais (distaˆncias e direc¸o˜es), medidas por re´guas r´ıgidas em repouso, satisfazem os axiomas da geometria Euclideana. • Existe um tempo universal, no sentido de aplica´vel a todos os fenoˆmenos. Podemos imaginar que este tempo e´ medido por relo´gios ideais, em repouo no referencial em questa˜o. Vale notar quena˜o esta´ atribuido ao tempo um cara´ter absoluto. Ele pode depender do referencial considerado. • Quando medidas em termos deste tempo e destas distaˆncias e direc¸o˜es, as velocidades de todas as part´ıculas livres permanecem constantes em mo´dulo e direc¸a˜o. • Para definir completamente um referencial inercial, e´ necessa´rio escolher a origem do sistema de coordenadas espaciais, as direc¸o˜es e os sentidos dos eixos espaciais,1 a origem e o sentido do eixo temporal. Evidentemente, para a especificac¸a˜o de valores nume´ricos, ainda e´ preciso definir as escalas, ou seja, especificar as unidades. • Em consequeˆncia das propriedades enunciadas acima, podemos imaginar um referencial inercial como definido por uma rede de part´ıculas livres em repouso relativo. Podemos imaginar que sobre cada uma destas part´ıculas esta˜o gravados os valores das suas coordenadas espaciais. Podemos imaginar ainda que cada part´ıcula carrega um relo´gio que indica o tempo universal associado ao referencial em questa˜o. Assim, poderemos considerar a determinac¸a˜o da posic¸a˜o e do tempo de 1Afora aviso contra´rio, utilizaremos coordenadas cartesianas. 17 18 CAPI´TULO 2. PRINCI´PIOS DA RELATIVIDADE RESTRITA ocorreˆncia de um evento como uma operac¸a˜o local, qual seja a leitura dos valores indicados pela “part´ıcula-relo´gio”mais pro´xima. • Um referencial em movimento retil´ıneo uniforme em relac¸a˜o a um referencial inercial tambe´m e´ inercial. Inversamente, um referencial em movimento acelerado em relac¸a˜o a um referencial inercial na˜o e´ inercial. Assim os referenciais inerciais formam uma classe cujos membros esta˜o em movimento relativo uniforme. • Um referencial inercial e´ espacialmente homogeˆneo e isotro´pico, na˜o somente nas suas propriedades geome´tricas, mas tambe´m no que diz respeito aos resultados de qualquer experimento. Mais explici- tamente, um experimento definido por uma translac¸a˜o ou uma rotac¸a˜o de um experimento dado produzira´ um resultado obtido, a partir do resultado do experimento dado, pela mesma translac¸a˜o ou rotac¸a˜o. • Um referencial inercial e´ temporalmente homogeˆneo, ou seja experimentos ideˆnticos realizados em e´pocas diferentes produzem resultados ideˆnticos. A definic¸a˜o de referencial inercial apresentada acima utiliza o conceito de “part´ıcula livre”. Na mecaˆnica de Newton, esta idealizac¸a˜o seria aproximada por uma part´ıcula muito afastada de qualquer outra, de maneira que as interac¸o˜es, inclusive a forc¸a gravitacional, possam ser desprezadas. Na luz da teoria da relatividade geral de Einstein, este conceito deve ser modificado, pois na˜o e´ mais poss´ıvel remover a gravitac¸a˜o, que passa a fazer parte da pro´pria estrutura do espac¸o-tempo. Assim, o conceito de part´ıcula livre deve ser substituido pelo conceito de part´ıcula caindo livremente no campo gravitacional, ou seja, submetida somente a` gravitac¸a˜o. Como a acelerac¸a˜o gravitacional e´ independente da massa, se considerarmos part´ıculas caindo livremente numa regia˜o do espac¸o-tempo suficientemente limitada para que o campo gravitacional nela presente possa ser aproximado por um campo uniforme, estas part´ıculas estara˜o em movimento relativo uniforme. Assim, poderemos associar a este conjunto de part´ıculas uma classe de referenciais inerciais, quais sejam, os referenciais acompanhando o movimento de queda livre das part´ıculas naquela regia˜o. Embora os referenciais inerciais possuam extensa˜o infinita, a sua relevaˆncia f´ısica e´ limitada a` regia˜o em questa˜o. Geometricamente, a relatividade restrita consiste na aproximac¸a˜o local do espac¸o-tempo curvo da relatividade geral por um espac¸o-tempo plano, cujos sistemas de coorde- nadas sa˜o os referenciais inerciais. 2.2 Postulados fundamentais Enunciamos a seguir os dois postulados que conjuntamente formam o alicerce da relatividade restrita. 2.2.1 Princ´ıpio de relatividade Todas as leis da f´ısica sa˜o ideˆnticas em todos os referenciais inerciais. Ou ainda, dois experimentos ideˆnticos realizados em referenciais inerciais diferentes produzem resultados ide˜nticos. Pode-se considerar que este postulado generaliza para toda a f´ısica o princ´ıpio Galileano de relatividade que fundamenta a mecaˆnica de Newton. A rigor, este primeiro postulado ja´ esta´ impl´ıcito nos axiomas adotados acima para os referenciais inerciais. Para demonstrar esta afirmac¸a˜o, consideremos um referencial S no qual esta´ sendo realizado um experimento E, e outro referencial S′ o qual esta´ sendo realizado um experimento E′, intrinsicamente ideˆntico a E. Primeiro, argumentamos que necessariamente existe um terceiro referencial S′′ no qual as velocidades de S e S′ sa˜o iguais e opostas. Para tanto, consideramos em S uma famı´lia S′′(α) de referenciais em movimento colinear com S′, e tal que S′′(0) esta´ em repouso em S e S′′(1) acompanha S′. Enta˜o, quando α varia de 0 a 1, o mo´dulo da velocidade de S em relac¸a˜o a S′′(α) cresce a partir de 0, enquanto que o mo´dulo da velocidade de S′ em relac¸a˜o a S′′(α) decresce ate´ 0. Ha´ portanto necessariamente um valor de α para o qual estes mo´dulos de velocidades sa˜o iguais. E´ facil enta˜o convencer-se de que e´ poss´ıvel, por translac¸a˜o, rotac¸a˜o, e translac¸a˜o temporal em S′, transformar o experimento E′ num experimento que difere de E apenas por uma rotac¸a˜o de 180o em S′′. Portanto, pelos axiomas de homogeneidade e isotropia dos referenciais inerciais, os resultados de E e E′ devem ser ideˆnticos. 2.3. RELATIVIDADE DA SIMULTANEIDADE 19 2.2.2 Princ´ıpio de invariaˆncia da velocidade da luz Existe um referencial inercial no qual a velocidade da luz no va´cuo e´ uma constante c, independente da direc¸a˜o de propagac¸a˜o e das propriedades da fonte, inclusive da velocidade da mesma. Considerado isoladamente, este postulado poderia ser interpretado como definindo o referencial do e´ter, que a visa˜o pre-einsteiniana imaginava ser o meio de propagac¸a˜o da luz. Pore´m, aceito em conjunc¸a˜o com o primeiro postulado, ele pode ser reformulado como: a velocidade da luz no va´cuo e´ a mesma constante c em todos os referenciais inerciais. Uma vez colocado nesta forma, fica claro que este postulado e´ incompat´ıvel com a lei Galileana (1.12) de transformac¸a˜o das velocidades e exige portanto uma revisa˜o profunda dos conceitos fundamentais de tempo e de espac¸o. O segundo postulado fornece um me´todo pra´tico para a determinac¸a˜o, por um observador localizado na origem de um referencial inercial, da posic¸a˜o e do instante de ocorreˆncia de um evento. Basta o observador medir os tempos de emissa˜o e recepc¸a˜o de um pulso de luz refletido “pelo evento”, e observar a direc¸a˜o do pulso refletido. Este procedimento, conhecido como “me´todo do radar”, sera´ discutido adiante. Embora a velocidade da luz desempenhe um papel destacado nos princ´ıpios assim apresentados, e´ preciso enfatizar que a conceitualizac¸a˜o da relatividade restrita na˜o requer a existeˆncia do fenoˆmeno particular chamado “luz”. O segundo postulado poderia ser substituido pela seguinte afirmac¸a˜o: existe um limite finito para a velocidade de propagac¸a˜o de qualquer sinal. Do primeiro postulado, segue enta˜o que o valor do limite em questa˜o e´ independente do referencial inercial considerado. Na˜o e´ necessa´rio que exista um sinal f´ısico real que alcance este limite. Tambe´m demonstraremos adiante que e´ poss´ıvel estabelecer as equac¸o˜es de transformac¸a˜o das coor- denadas de posic¸a˜o e tempo numa mudanc¸a de referencial inercial, apenas utilizando as propriedades de grupo destas transfomac¸o˜es. As transformac¸o˜es admiss´ıveis dependem de um paraˆmetro que possui dimensa˜o de velocidade, mas na˜o precisa ser associado a` propagac¸a˜o de um sinal. 2.3 Relatividade da simultaneidade Uma consequ¨eˆncia direta da adoc¸a˜o conjunta dos dois postulados e´ a inexisteˆncia de um tempo absoluto
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