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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE EDUCAÇÃO FÍSICA E DESPORTOS – CEFD CURSO DE DANÇA – LICENCIATURA Livia Marafiga Monteiro CONDUÇÃO NA DANÇA DE SALÃO: EM BUSCA DO DIÁLOGO CORPORAL Santa Maria, RS 2017 Livia Marafiga Monteiro CONDUÇÃO NA DANÇA DE SALÃO: EM BUSCA DO DIÁLOGO CORPORAL Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao curso de Dança Licenciatura - Universidade Federal de Santa Maria, como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciada em Dança. Orientadora: Profa. Dra. Neila Cristina Baldi Santa Maria, RS 2017 Livia Marafiga Monteiro CONDUÇÃO NA DANÇA DE SALÃO: EM BUSCA DO DIÁLOGO CORPORAL Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao curso de Dança Licenciatura - Universidade Federal de Santa Maria, como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciada em Dança. Aprovado em 04 de dezembro de 2017: Dra. Neila Cristina Baldi (UFSM) Dra. Mara Rubia Alves da Silva (UFSM) Ma. Flávia Marchi Nascimento (UFPEL) Santa Maria, RS 2017 AGRADECIMENTOS Inicialmente gostaria de agradecer à Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), por disponibilizar os recursos necessários para a concretização deste curso. À minha orientadora, Neila Cristina Baldi, pela dedicação irrestrita em me orientar e atenção dispensada a mim durante todo processo de elaboração do trabalho. Aos meus queridos alunos e alunas da Oficina que foram incríveis do início ao fim, compreensivos e maravilhosos em seus relatos nos diários. À minha professora Daniela Lopes e meu professor Lucas Pendezza por todos os ensinamentos, carinho, dedicação e por oportunizarem tantos momentos especiais e inesquecíveis que tive ao lado de pessoas que se tornaram indispensáveis hoje em minha vida. Gratidão enorme a vocês! Aos meus colegas bolsistas da LD Escola de Dança pelos momentos de descontração nas aulas, ensaios e bailes, que me ajudaram a tornar mais leve o período de escrita do trabalho. À minha querida amiga Bibiana Hernandez Gomes de Moraes, pelas conversas proveitosas, debates e pontos de vista compartilhados referente ao tema deste trabalho. Por fim, agradeço imensamente a minha família que me apoiou e incentivou que eu buscasse aquilo que tocaria meu coração e dizer que sem o amor, auxílio e compreensão deles este trabalho não teria chegado ao seu término. Um agradecimento especial ao meu filho Nicolas, que teve paciência, compreendendo meus momentos de ausência, sempre com uma palavra de motivação e carinho. Eu amo vocês! RESUMO CONDUÇÃO NA DANÇA DE SALÃO: EM BUSCA DO DIÁLOGO CORPORAL AUTORA: Livia Marafiga Monteiro ORIENTADORA: Profª. Drª. Neila Cristina Baldi Este trabalho de conclusão de curso tem a intenção de questionar aspectos relacionados à condução nas Danças de Salão. Para isso, foi realizada pesquisa bibliográfica no sentindo de entender as bases históricas das principais configurações dessas danças, como as construções sociais dos papéis de mulheres e homens nas sociedades as quais surgiram estas danças, que resultaram em paradigma dominante, no qual existem papéis distintos a serem desempenhados por damas e cavalheiros e o corpo acaba sendo compreendido apenas como um executor de passos. Além disso, essa pesquisa tem como objetivos descrever como acontece o ensino tradicional da Dança de Salão e repensar novas práticas de ensino-aprendizagem incentivando reformulações nas metodologias existentes. Para isso, utilizou-se da Etnografia e da Autoetnografia, tendo como base observações e apontamentos da autora tanto de aulas de Dança de Salão vivenciadas pela mesma, quanto as ministradas por ela na Oficina de Dança de Salão – condução compartilhada e indução no projeto de extensão 5,6,7 e 8; bem como as anotações de percepções de alunos e alunas que vivenciaram esta Oficina. A proposta era realizar experimentações, a partir da sensibilização e do estímulo a uma interação mais equitativa no que diz respeito às técnicas de comunicação difundidas pelas Danças de Salão, especialmente em relação às de condução e resposta. Além disso, teve como fundamento reestruturar os papeis de condução, de modo que homens e mulheres não precisassem se encaixar em funções típicas como as de cavalheiro-condutor e dama-conduzida. O trabalho conclui que este tipo de abordagem de ensino permite o verdadeiro diálogo corporal. Palavras-chave: Dança de Salão. Condução. Conexão. Escuta Corporal. Diálogo Corporal. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Apresentação de Samba de Gafieira no Natal do Coração, na Praça Saldanha Marinho. ..... 21 Figura 2: Momento para as damas na aula de Salsa no 6º Porto Alegre Salsa Congress. ..................... 26 Figura 3: Apresentação de Salsa no Corujão......................................................................................... 27 Figura 4: Competição Jack and Jill no 7º Porto Alegre Salsa y Bachata Congress. .............................. 29 Figura 5: Apresentação de Bachata no Festival Santa Maria em Dança 2016. ..................................... 29 Figura 6: Aquecimento na primeira aula prática da Oficina. ................................................................ 52 Figura 7: Noções de ritmo. .................................................................................................................... 53 Figura 8: Dinâmica da mesa de vidro. ................................................................................................... 58 Figura 9: Dinâmica da mesa de vidro realizada aos pares..................................................................... 59 Figura 10: Escuta corporal. ................................................................................................................... 61 Figura 11: Escuta corporal. ................................................................................................................... 61 Figura 12: Aula de Kizomba. ................................................................................................................ 63 Figura 13: Contato Improvisação através de contato/apoio de partes do corpo. ................................... 67 Figura 14: Contato Improvisação buscando fluidez e continuidade nas movimentações. .................... 68 Figura 15: Contato Improvisação buscando fluidez e continuidade nas movimentações. ..................... 68 Figura 16: Prática orientada de Forró. ................................................................................................... 71 Figura 17: Prática orientada de Forró. ................................................................................................... 73 Figura 18: Prática orientada de Forró. ................................................................................................... 73 Figura 19: Sentindo a “pequena dança” ou os micromovimentos do colega. ....................................... 76 Figura 20: Sentindo a “pequena dança” ou os micromovimentos do colega. ....................................... 77 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 8 2 DANÇA DE SALÃO: Das origens à condução compartilhada .................................................... 16 2.1 BREVE HISTÓRICO DA DANÇA DE SALÃO...............................................................162.2 A CONDUÇÃO NA DANÇA DE SALÃO .................................................................................... 19 2.2.1 A realidade encontrada no ensino tradicional ......................................................................... 21 2.2.1.1 O papel da dama...........................................................................................................25 2.2.1.2 O papel do cavalheiro...................................................................................................27 2.2.2 Problematizações dentro da realidade encontrada ................................................................. 29 3. UM NOVO OLHAR SOBRE A CONDUÇÃO ............................................................................. 39 3.1 A EXPERIÊNCIA DA OFICINA ................................................................................................... 45 3.1.1Noções rítmicas .......................................................................................................................... 501 3.1.2 O Funcionamento do estímulo corporal para a proposição ................................................... 53 3.1.3 Interação espacial e gestual para conexão visual .................................................................. 566 3.1.4 Escuta Corporal ......................................................................................................................... 59 3.1.5 Contato Improvisação – Improviso aberto .............................................................................. 63 3.1.6 Exercício de condução compartilhada pelo espaço ................................................................. 69 3.1.7 Prática orientada ........................................................................................................................ 70 3.3.8 Consciência Corporal ................................................................................................................. 74 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................... 78 REFERÊNCIAS....................................................................................................................................81 APÊNDICE A..........................................................................................................................85 APÊNDICE B .................................................................................................................................... 877 8 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho discute a condução na Dança de Salão. É sabido que, por uma convenção histórica e sociocultural estabeleceu-se um modelo, concebido como tradicional nas danças de salão, no qual os homens é quem conduzem as mulheres no momento da dança, configurando-se assim um tipo de comunicação que, na minha avaliação, pode ser considerada um monólogo corporal, sendo este um padrão sustentado massivamente nos estabelecimentos de ensino de Dança de Salão até hoje. Como declara Míriam Strack (2017, p.70) “tradicionalmente, a condução se apresenta como um monólogo do Cavalheiro que faz com que a Dama apenas escute e reproduza os passos”. É também possível compreender melhor a ideia de monólogo na dança através de um dos conceitos da palavra trazido pelo dicionário, “monólogo é o discurso que não deixa oportunidade aos outros interlocutores de intervirem.” (PRIBERAM, 2013, s.n) Monólogo aqui é entendido como algo instituído como a única alternativa de interação entre pares, o que não está errado, pois como complementa Strack (2017, p.70), “mesmo o monólogo é válido, quando o mesmo é escolhido como uma dentre as várias opções.” Entretanto é necessário enfatizar a necessidade de ampliarmos os horizontes comunicacionais na dança e trazer novas opções de interações corporais. Outro aspecto relevante quando abordamos particularidades da comunicação é a ideia de que o dançar a dois pode remeter ao estabelecimento de uma relação colaboracionista, como a proposta de Jonas Feitoza (2011, p.9), que traz o conceito de Cocondução, que deve ser “compreendido como uma igualdade de propósitos, ou seja, as ações de ambos os corpos, mesmo com suas singularidades e distinções, objetivam a realização da dança (a dois).” Constata-se aqui a ideia de que dançar em cooperação implica na disponibilidade assertiva das partes envolvidas, onde o princípio dos movimentos propostos, ou o início do dançar, pode ter origem dos dois agentes entremeados para esse fim. Este trabalho, portanto, tem como objetivo geral questionar o ato de conduzir nas danças de salão, preconizando algumas respostas em relação a quais aspectos e relevâncias estão implícitos no mesmo, além de trazer vivências para o desenvolvimento de uma nova consciência na dança de pares, desejando assim, principalmente, estabelecer o diálogo corporal através da ressignificação da condução para uma abordagem compartilhada com induções de movimentos1. Creio ser importante ressaltar que a intenção não é retirar dos homens a função da condução e transferir para as mulheres, mas sim estabelecer um maior 1 No capítulo 3 os conceitos de abordagem compartilhada e induções de movimento serão melhores explanados. 9 diálogo entre parceiros, sugerindo que o termo condução possa ser reformulado e também compreendido como proposição2, dentro da concepção de uma possibilidade de escolha para viabilizar o andamento de uma dança que se supõe ser a dois, almejando assim, torná-la mais equânime entre os participantes e por consequência mais prazerosa, rica e criativa. Pesquisar a respeito da condução teve motivações pontuais que brotaram por meio de percepções advindas da minha prática nessas danças. Tomo como base principal meus quase quatro anos ininterruptos vivenciando diferentes gêneros de dança de salão, nos quais algumas sensações foram aos poucos surgindo e tornando-se significativas para que despertasse algumas percepções sobre a minha dança. Um dos acontecimentos, mais recente, e que foi talvez o principal ao longo do meu percurso até aqui, foi o fato de eu ter começado a sentir o que posso chamar de uma monotonia na minha dança, era como se eu estivesse sempre dançando uma coreografia repetida sendo que isso acontecia em ambientes de baile, onde a dança acontece de forma improvisada3. Além disso, comecei a reparar nos demais pares que dançavam ao redor, ou em momentos que eu ficava como espectadora nos bailes, e notei que, de forma geral, as danças em suas movimentações eram todas muito parecidas na execução de suas estruturas. Essas observações trouxeram-me questionamentos - eu me indagava por quais motivos isso se configurava - e, com o suporte de algumas leituras, foi possível aguçar minha visão sobre o tema condução, e assim amadurecer o desejo de pesquisar sobre o mesmo, pois acredito que muitas explicações para o que eu estava sentindo advinham do modelo tradicional de conduzir e ser ensinado pelas escolas de dança. Em momentos de reflexão pude vislumbrar que até as marcas deixadas no meu corpo, ao longo do meu tempo de prática, têm ligação com o tema do trabalho e me afetavam de uma maneira considerável. Foram tensões corporais recorrentes, marcas roxas, unhas quebradas, dores musculares, entre outros machucados que aconteceram devido a conduções bruscas e sem percepção alguma de uma parte expressiva de parceiros na dança, aos quais tive a oportunidade de interagir em aulas, bailes e ensaios. Como objetivos específicos, este trabalho busca descrever como acontece o ensino tradicional na dança de salão, repensar novas práticas de ensino-aprendizagem, incentivando reformulaçõesnas metodologias existentes; e trazer um novo olhar para a condução. Para isso, 2 O termo proposição é concebido aqui como a substituição da palavra condução, tornando a ação mais empática como sendo uma sugestão que a outra pessoa acata ou não, podendo inclusive sugerir um novo movimento em contrapartida. (STRACK, 2017, p.70). 3 O termo improvisação na dança de salão será elucidado no capítulo 3. 10 foi realizada uma Oficina4 prática de experimentação de uma forma de dançar que seja mais flexível e dialogada, trazendo a ideia de que tanto a proposição/condução quanto a indução de movimentos possa acontecer, partindo de ambas as pessoas envolvidas na dança. Durante dez encontros, entre agosto e outubro, com duração de uma hora por semana, em duas turmas, a experimentação foi realizada e, no período, foram colhidos depoimentos sobre o processo por meio dos diários das alunas e alunos colaboradores da Oficina. A condução na dança de salão tem sido alvo de atenção por parte de alguns pesquisadores e pesquisadoras que já chamaram a atenção para o tema (STRACK, 2017; FEITOZA, 2011; SANTOS, 2016), e também por alguns profissionais da área da dança de salão. Acredito que esta pesquisa se justifica devido à ocorrência de grandes mudanças no comportamento de mulheres e homens na sociedade, nas quais a maneira com que dançamos consequentemente se altera naturalmente em busca de adaptações a esse cenário, trazendo-nos reflexões acerca de práticas historicamente desempenhadas nos mesmos moldes, acarretando o discernimento de levarmos em consideração o conteúdo político reproduzido, especialmente, nos locais de ensino. Portanto, o tema dessa pesquisa contribui para a área da dança na medida em que propõe outro entendimento de como as pessoas podem dialogar entre si, dançando, além de lançar um olhar indagador sobre conceitos arraigados dentro de paradigmas socioculturais por muito tempo fixados na dança de salão. Compreendendo que todo ensino é dotado de relevâncias peculiares, no qual professoras e professores, como formadores de opinião, possuem um papel fundamental na construção do pensamento de alunas e alunos e a reprodução dos mesmos em sociedade, além de contribuições efetivas no desenvolvimento da sensibilidade humana em suas relações interpessoais. Sendo assim, acredito que seja importante que os educadores e educadoras estejam receptivos a repensar suas práticas de ensino, não somente em aspectos corporais técnicos, mas igualmente em um nível de formação correspondente ao contexto contemporâneo em que vivemos, o que na maioria das vezes não acontece, como constata Marcelo Grangeiro (2014, p. 85), quando afirma que: Há um forte desinteresse pela maioria dos profissionais e dançarinos de salão em conhecer qualquer conteúdo que não seja a execução de passos e/ou sequências coreografadas, onde o desenvolvimento de várias outras questões subjacentes do ensinar e aprender têm sido, praticamente sempre, marginalizados. 4 Oficina de Dança de Salão – Condução compartilhada e indução, dentro do Projeto de Extensão 5,6,7 e 8 ,que aconteceu de 22 de agosto a 31 de outubro, às terças-feiras, em dois horários (às 17:30 e às 18:30), no Complexo Didático Artístico (CDA) da UFSM. Ver plano de curso no Apêndice A. 11 Além da condução, trago inquietações sobre as funções das damas/mulheres na dança de salão, pois no senso comum do ensino tradicional, elas acabam sendo limitadas em apenas embelezar a dança, realizando adornos e enfeites5, sendo sensuais, delicadas ou leves, entre outros adjetivos que as qualificam dentro do estereótipo feminino, igualmente construído pela sociedade. Porém há mulheres que gostam - ou talvez se fossem incentivadas, gostariam - de um engajamento mais ativo na dança, como em meu caso, em que não me interessa apenas parecer atraente e uma boa executora de passos e sim buscar significações mais profundas através de minhas movimentações, ideia que fui desenvolvendo com o tempo através de uma autorreflexão sobre o sentido de ser dama na dança de salão. Desta forma, acredito que seja necessário que, principalmente as professoras, problematizem a função das damas na dança, incentivando as alunas a despertarem para essas questões, fugindo da postura simplista e quase sempre com uma visão retrógrada, com que o feminino é vislumbrado nas danças de pares, inclusive pelos próprios agentes do ensino. No decorrer deste trabalho, irei mostrar que a visão que considero limitada a que se destinam as mulheres na dança de salão está também atrelada e sendo influenciada pela condução, quando partida única e exclusivamente dos cavalheiros, deixando quase sempre as mulheres com a única opção de terem uma função estética na dança. Além disso, esse trabalho discute de forma mais específica a formação das professoras de dança de salão, que é diferente de como os homens professores são formados. Isso ainda diz respeito às aulas e de como elas são direcionadas, pois como no modelo tradicional de ensino as mulheres não aprendem a conduzir, por consequência acabam não se tornando diretamente aptas a ensinar e para que isso aconteça é indispensável um empenho redobrado por parte das que desejam tornarem-se professoras e serem de fato ativas no processo de ensino e aprendizagem das danças de salão. Tendo a mim, juntamente com os participantes da Oficina como personagens principais, o presente trabalho se caracteriza como uma pesquisa de cunho qualitativo, pois está interessado na profundidade de compreensão do grupo social envolvido e, para isso, lança-se da Autoetnografia e da Etnografia como ferramentas para aporte metodológico. A palavra etnografia advém da junção de duas palavras gregas: ethnos (nação) e grapho (escrevo) que significa literalmente “descrição dos povos” e constitui-se como um método com o qual se opera, predominantemente, a pesquisa de campo nas ciências 5 Movimentos realizados quase que exclusivamente pelas damas na dança de salão, principalmente utilizando-se de mãos, braços e pernas quando estiverem livres, ou seja, em momentos específicos, desde que não atrapalhe a condução. 12 antropológicas, pois segundo Mônica Dantas (2016, p.171), “é a partir da descrição etnográfica que se elabora o conhecimento específico da Antropologia.” No seu surgimento, o método etnográfico era utilizado como um recurso apenas para coleta de dados, no qual o pesquisador não se envolvia de forma mais expressiva e aprofundada no campo de atuação, permanecendo apenas como um observador do mesmo. Porém essa maneira de se pensar a Etnografia foi sendo reavaliada, tornando-se alvo de críticas, “o que levou os pesquisadores a questionarem suas relações com os sujeitos e grupos estudados e a propor novos modos reflexivos e autorreflexivos de produção de conhecimento.” (MARCUS; FISHER apud DANTAS, 2016, p. 171) É interessante considerar que, neste tipo de metodologia, há um entrecruzamento das realidades e saberes intrínsecos de cada indivíduo, bem como aspectos culturais e sociais que não podem ser ignorados, pois de acordo com Amurabi Oliveira (2013, p.179): Ao contrário de outras metodologias que nos possibilitam tornar a experiência social um objeto de reflexão, a Etnografia transforma tal experiência em meio para a delimitação e investigação do objeto, o que se mostra bastante complexo quando envolve a realidade educacional. Um dos principais recursos que contribuíram para a elaboração desta pesquisa foi a Oficina prática de dança de salão, onde a participação ativados alunos e alunas participantes teve importância fundamental para legitimar a abordagem da pesquisa. Portanto, o método etnográfico veio dar o suporte necessário para que eu pudesse observar a produção dos alunos e alunas dentro de um campo específico de ação, a Oficina. O artifício principal utilizado para gerar material de análise e inspiração para escrita foram os diários de campo, tanto meus quanto dos alunos e alunas, contribuindo para a pesquisa de forma direta e efetiva, pois: Se o diário é instrumento que o pesquisador se utiliza em campo também é ele que permite um afastamento do campo, possibilitando tanto uma análise do desenvolvimento da pesquisa, quanto uma autoanálise do pesquisador e de sua estada no universo de investigação. (OLIVEIRA, 2013, p. 175) Neste sentido, utilizo tanto a autoetnografia dos alunos e alunas em relação ao vivido, quanto a minha etnografia em relação a eles. Como exposto acima, dos diários emergem informações para além do pesquisado, pois as autoanálises dos alunos e alunas, tanto corporais quanto de sensibilidades, passam indubitavelmente por abstrações de âmbito pessoal, envolvendo nuances e um rico terreno do autoconhecimento de cada sujeito, uma vez que foi incentivado sempre que os mesmos buscassem em si as respostas para indagações de 13 foro mais íntimo e que dialogavam com as propostas das aulas. Se existiam dificuldades nos exercícios de contato, em caso afirmativo, por que achavam que isso ocorria? Ou então para atentarem se conseguiam, com alguma facilidade, escutar as propostas corporais de seus parceiros de dança ou se na maioria das vezes já chegavam executando as proposições sem aguardar o jogo corporal de perguntas e respostas, como no exercício de contato improvisação, por exemplo. Assim, na minha avaliação, fica evidente que a Oficina não serviu somente para uma produção de dados devido à necessidade da minha pesquisa, mas igualmente buscou afetar alunas e alunos de forma direta e significativa com objetivos específicos nas aulas, que de uma forma ou de outra, trouxeram consequências diferenciadas para cada um dos participantes. Aqui vale ressaltar a importância de se levar em consideração os aspectos sutis da vida dos mesmos, não somente ligadas à dança, até porque a maioria quase não teve ou têm essa vivência, e também nunca fizeram aulas, mas se deve estar atento, igualmente, aos registros pessoais ligados à corporeidade de cada indivíduo, pois estes aspectos influenciam diretamente no andamento das aulas, e naquilo que será construído pelo grupo. Sendo assim o método Etnográfico de pesquisa em dança no presente trabalho, justifica-se não somente pela participação ativa dos indivíduos que vivenciaram a Oficina, mas também porque o relato escrito de suas experimentações no processo, além de trazer sensações e impressões individuais subjetivas que enriquecem o campo de análise de forma significativa aos mesmos, ainda dialoga de forma direta com minha vivência dentro do tema apresentado. Ao mesmo tempo em que existe um campo de observações, a metodologia utilizada trouxe de forma direta minhas experiências, entrelaçadas à investigação e às vivências nos campos de imersão que englobam especialmente as aulas que frequento com assiduidade, além de cursos, workshops, bailes e ensaios, caracterizando-se assim em uma Autoetnografia, que também serviu de caminho metodológico, inclusive aos integrantes das aulas da Oficina. Segundo Sylvie Fortin (2009, p.83): A Autoetnografia (próxima da autobiografia, dos relatórios sobre si, das histórias de vida, dos relatos anedóticos) se caracteriza por uma escrita do “eu” que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si. A partir da afirmação conceitual acima fica evidente a fusão entre a bagagem pessoal da pesquisadora no campo de estudo, relativas à dança e a vida, pois “o investigador fica comprometido como instrumento, objeto e sujeito da investigação, na medida em que progride sua imersão no campo.” (DANTAS, 2016, p.170). 14 Os subsídios empregados na captação de sentidos e inspiração para esse trabalho foram provenientes de fontes variadas, através da observação e descrição da realidade presenciada por mim, e transcritas em diários de campo, da Oficina realizada, bem como de reflexões mais aprofundadas de aulas, bailes, ensaios, oficinas, workshops, conversa com colegas e profissionais da área, vídeos, fotos, entre outras paisagens que por ventura ganharam magnitude e foram significativas no decorrer da elaboração da pesquisa, frutos da concepção e compreensão do tema pela autora, contando com o suporte de embasamentos teóricos, mas especialmente pelas significações e consequências da vivência prática envolvendo os vários aspectos ligados à questão temática. Aqui destaco a relevância de uma maior importância do exercício da escrita (diários), quando comparado aos demais recursos para a produção das informações que interessam ao pesquisador, como pode ser enfatizado por Fortin (2009, p.80), quando afirma que: Pouco importa o tipo de observação participante que será adotada, o pesquisador tomará cuidado de consignar sua vivência sobre o campo. Seu relatório de bordo, crônica da ação ou carnê de prática (diferentes apelações são utilizadas de maneira quase intercambiável) compreende evidentemente a descrição dos gestos e palavras dos protagonistas do estudo, mas também as análises espontâneas ou intuições que poderiam surgir no calor da ação. Além destas notas descritivas e analíticas, ele registrará as notas metodológicas, quer dizer, as adaptações que não deixam nunca de espalhar o percurso de um estudo em arte onde o imprevisível surge e deve ser sempre compreendido. Mesmo a questão da pesquisa pode ser modificada e o pesquisador terá a vantagem de poder retraçar a gênese graças as suas notas de campo. Vale ressaltar que os recursos para geração de dados foram sendo construídos de forma dinâmica e, muitas vezes, de uma maneira inusitada, pois as mesmas sempre estiveram em constantes modificações contando com o acréscimo de novos relatos que contribuíram e serviram como material norteador durante o processo de criação do trabalho. Ou ainda uma informação complementava a outra, tanto o retorno das alunas e alunos quanto minhas anotações pessoais no contexto da Oficina e fora da Universidade, provando assim, as relações existentes entre um universo e outro. Pois como afirma Oliveira (2013, p.163): Esse processo contínuo de anotação e descrição na pesquisa etnográfica possui uma finalidade, pois é por meio desses dados que buscaremos relacionar fatos aparentemente singulares a outros acontecimentos, pois uma das questões fundamentais para a Etnografia é a dimensão da totalidade. Ou seja, por mais que os locais de análise tenham abrangido diversidades bem demarcadas em vivências e experimentações, tanto minhas quanto dos participantes da 15 Oficina, ao final de cada reflexão sempre foi possível um ponto de interseção entre os mesmos, pois “o método etnográfico pressupõe, no processo contínuo com o outro, um exercício de alteridade, por meio do qual não apenas esse outro é pensado, mas também nós mesmos.” (OLIVEIRA, 2013, p. 177). O presente trabalho foi estruturado da seguinte forma: no primeiro capítulo, apresento uma introdução ao tema, justificando o objeto de pesquisa, bem como esclarecendo sobre a metodologia de pesquisa escolhida. No seguinte capítulo inicio com um breve contexto histórico de como a dança de salão surgiu e da sua chegada ao Brasil, focando em relevâncias sobre o surgimento do ensino. Na sequência,descrevo a realidade encontrada no ensino habitual da dança de salão, além de como o conhecimento é transferido aos alunos e alunas, principalmente em aspectos ligados à condução, também abordando de forma específica a realidade local, a partir de impressões advindas de relatos narrados por mim, segundo minhas experiências transcritas no diário; e por fim abordo problematizações que advêm dessa realidade. O capítulo 3 disserta sobre o surgimento de novas possibilidades de se dançar a dois, através de um olhar diferenciado em relação à condução, discorre ainda a respeito da experiência da Oficina realizada como um laboratório de experimentações para conscientizar as pessoas no desenvolvimento e na busca pelo diálogo corporal. 16 2. DANÇA DE SALÃO: DAS ORIGENS À CONDUÇÃO COMPARTILHADA 2.1 BREVE HISTÓRICO DA DANÇA DE SALÃO O advento da Dança de Salão remonta à época do Renascimento, quando eram chamadas de danças sociais, pois objetivavam o estreitamento das relações de amizade, de romance, de parentesco em festas, confraternizações, entre outros contextos que envolviam diversão e lazer. A denominação de salão está ligada ao fato de ser praticada em salas com espaços amplos e porque quando as danças sociais adentraram os salões da nobreza passaram a ter uma grande visibilidade, reforçando esse nome, especialmente a partir do reinado do Rei Luís XIV, na França. Fato é que a dança de salão era praticada, tanto pelas camadas populares da sociedade, quanto pelos nobres. Por mais que ela tenha sido, por muito tempo, dançada pela nobreza. “Dentro da classificação das danças, podemos afirmar que a dança de salão está também inserida na categoria de dança popular por ter suas origens nas causas sociais, políticas ou outros acontecimentos.” (GRANGEIRO, 2014, p.61). Um bom exemplo de uma dança que aflorou nas camadas populares com um forte apelo de libertação das opressões do meio social, advindas de exploração, foi o Tango, além de sofrer uma marginalização pelas camadas abastadas da sociedade, como constatado abaixo: Com a alta taxa de imigrantes e as péssimas condições de trabalho, viver em Buenos Aires passou a ser um grande problema: surgiram os conventillos, conjuntos habitacionais, nos quais muitas pessoas habitavam nos bairros populares (arrabal). Esses locais de encontro entre negros, imigrantes, criollos e compadres onde era permitido dançar o tango. (SILVEIRA, 2012, p.4) Há indícios que apontam que as Danças de Salão praticadas pela nobreza europeia, a partir de certo período histórico, tiveram sua inspiração oriunda de modo direto das danças populares. Como afirma Grangeiro (2014, p. 60), sua evolução obedeceu ao seguinte trajeto: iniciou-se no templo, foi para a aldeia, em seguida para a igreja, depois para as praças, os salões e por último os palcos. Algo relevante a ser mencionado é que a dança vivenciada pelas camadas mais populares da sociedade eram dotadas de maior flexibilidade no que diz respeito à execução de passos, era um improviso que nascia da espontaneidade dos pares: Historicamente, as danças de salão tais quais as conhecemos hoje, nasceram sendo dançadas de forma improvisada, sem figuras pré-estabelecidas. A partir da desconstrução de passos de danças de salão europeias e improvisações cada vez mais virtuosas dos dançarinos, os bailes ocorriam com o improviso total de 17 movimentos pelos pares. Não havia ‘passos certos’ e as figuras eram copiadas, revisitadas e reformuladas a todo instante. (STRACK, 2017, p.33) No Brasil a Dança de Salão, em seu princípio, chegou trazida pelos colonizadores portugueses, ainda no século XVI. Como não poderia ser diferente, o modelo de se dançar pela corte europeia foi transferido para o Brasil e, assim como lá, com peculiaridades demarcadas em ser social e realizada em grandes salões. Segundo Marco Perna (2001), no século XIX, com a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil, as danças sociais como a polca, a quadrilha, a valsa e o xote chegam ao Brasil. Com o tempo, a configuração de pares dançada no modelo europeu começou a sofrer forte influência da cultura dos povos que já habitavam as regiões colonizadas, posteriormente com a fusão dos ritmos africanos, com a música e a dança europeia. Assim foi possível o nascimento dos principais gêneros musicais e danças brasileiras, como o Lundu, o Maxixe e, mais tarde, o Samba de Gafieira, a Lambada, o Forró, entre outros. Destaco aqui a importância do Maxixe no panorama inicial da Dança de Salão no Brasil: O Maxixe foi o embrião do que hoje dançamos nos salões de todo o Brasil e quão importante foi para o desenvolvimento da dança de salão brasileira. Não se sabe exatamente quem foi o criador dessa dança, o que se sabe é que as danças daquela época seguiam o modelo europeu de dançar. (GRANGEIRO, 2014, p.67) Sendo assim, quando as Danças de Salão, provenientes da cultura popular, se tornaram alvo de grande atenção por parte da nobreza, além de começarem a sofrer lapidações no sentido de se encaixarem aos variados moldes típicos da corte, a figura do professor começa a aparecer. Nesse contexto, os que ensinavam eram os dançarinos mais habilidosos e que eram contratados pela elite para essa função, especialmente dançarinos de classe social mais baixa, assim a nobreza também poderia ter acesso às danças praticadas por esses grupos. Isso pode ser constatado por Grangeiro (2014, p. 32-33), quando afirma que: Há algumas décadas, as danças de salão eram ensinadas por dançarinos que se destacavam no salão. A figura do professor relacionava-se básica e diretamente, àquele dançarino que sabia fazer mais passos e através de repetições, enfatizavam aspectos técnicos dos movimentos. É importante frisar que essa cultura advinda de épocas passadas, no qual os dançarinos que se destacavam eram convidados para serem professores, persiste até os dias atuais predominando no ensino não formal, pois conforme Sérgio Santos (2016, p.11), “existe uma 18 ideia errônea de que ensinar Danças de Salão se trata da reprodução de passos existentes e de que ao saber reproduzir os movimentos de dama e cavalheiro, a pessoa está apta a ensinar Danças de Salão.” Concordo com o autor nessa afirmação que nos aponta para uma visão equivocada de ensino, pois como não existe uma formação específica em Dança de Salão mais aprofundada em estudos do corpo e aspectos cognitivos diversos, a maneira com que professoras e professores se posicionam diante do cenário educacional acaba sendo quase do modo como aprenderam, reproduzindo fórmulas e, na minha avaliação, contribuindo para uma desvalorização na área de conhecimento da dança, especificamente das danças de salão. Além de que isso pode ter implicações negativas consideráveis, como pode ser especificado abaixo por Maristela Zamoner (2004, p.9): Uma das consequências que podem ser apontadas ao se verificar esta situação diz respeito ao domínio de técnicas didáticas. Outro aspecto refere-se ao conhecimento sobre educação que todo professor, seja qual for o conteúdo que ministre, deve ter. Este conhecimento é essencial para compreensão da abrangência das ações dos professores e no caso da dança de salão, também dos coreógrafos, que detém funções educativas com o aluno e com o público. Historicamente, as culturas se encarregam de atribuir as distinções e formar uma direção de comportamento às mulheres e outra dimensão aos homens. E quando falamos em gênero, na vastidão e diversidade de seu contexto, logo nos vem à cabeça as divisões que se fazem para delimitar marcadores nomeados, naturalizados e reforçados desde a infância com atribuições como sendo próprias para meninos oupara meninas. Sendo assim, pode-se afirmar, então, que as construções sociais para homens e mulheres, são formadas por uma cultura e as configurações encontradas nos salões onde a dança de pares acontecia era reflexo direto de como a sociedade se apresentava naquela época. Papéis distintos de gênero feminino e masculino ocupavam diferentes atribuições sociais o que foi transferido para a dança: A dança de salão surgiu em um período da história da humanidade, e em uma sociedade tal, que uma das regras de convivência familiar era vulgarmente conhecida como: “o homem é a cabeça do casal”. Naturalmente, esta condição refletiu-se no produto artístico e de entretenimento da época, a dança de salão. (ZAMONER, 2011, p.1) A partir do panorama geral da origem das Danças de Salão, é possível constatar que em uma perspectiva histórica, elas emergiram dentro de uma conformação na qual o protagonismo do dançar em relação a atitudes de iniciativas e dominação sempre foi a dos homens, sendo os mesmos agentes irrestritos da evolução da dança enquanto ela acontecia. Essa configuração era um reflexo da sociedade em que se vivia, e pode-se afirmar que ainda 19 hoje presenciamos um machismo arraigado e predominante nas relações sociais, algo que se expressa na dança, especialmente a de pares. Particularmente, no que diz respeito ao ensino hoje, não vejo os homens como vilões nesse processo e sim indivíduos carregados pela cultura estabelecida de séculos, onde fazer parte desse universo de papéis bem distintos e demarcados sempre foi, e ainda é, naturalmente encarado de uma forma praticamente inalterada. 2.2 A CONDUÇÃO NA DANÇA DE SALÃO É interessante trazer o conceito do dicionário dos principais significados da palavra conduzir e que traduzem com bastante clareza, em termos práticos, como a condução nas danças de salão é realizada nos padrões tradicionais: Verbo transitivo: 1. Servir de condutor a. 2. Levar. 3.Trazer, transportar.4. Transmitir. 5. Encaminhar. Verbo transitivo e intransitivo: 6. Estar ou ter capacidade para estar no comando de um veículo (ex.: conduzir um caminhão; aprendeu a conduzir). (PRIBERAM, 2013, s.n.) A condução nas danças de salão é o preceito elementar e considerado imprescindível para que a dança aconteça e se desenvolva, e para isso temos os papéis e comportamento de damas e cavalheiros muito bem delimitados, pois segundo Ana Julia Pinto Pacheco (1999, p. 166) “condução significa os procedimentos pelos quais o homem conduz/dirige a mulher durante a evolução dos passos dancísticos.” Sendo assim, a relação que se estabelece é de que uma pessoa deve desempenhar uma função ativa (homens) e a outra, consequentemente, torna-se o agente passivo (mulheres) durante a dança, pois: Tradicionalmente o Cavalheiro conduz a Dama durante toda a dança, mesmo nos momentos em que o par se solta. O papel de condutor cabe à pessoa que estiver desempenhando o Cavalheiro, bem como o de conduzida cabe a quem estiver como Dama. (STRACK, 2017, p.28) Porém, conduzir na dança nem sempre foi como conhecemos hoje, em que para cada passo a ser executado é necessário uma condução específica. Quando do surgimento da Dança de Salão, via-se mais liberdade nos movimentos de ambos os envolvidos, e a partir daí surgiam danças improvisadas com inovações nos repertórios corporais que por consequência tornavam-se mais criativos e inusitados. Com o passar do tempo, a popularização da Dança de Salão e a grande procura por parte das pessoas, foi necessária a sistematização de 20 metodologias que fossem possíveis de serem aplicadas para que os alunos e alunas aprendessem a dançar. Assim sendo, como afirma Strack (2017, p.34), “surgiram a padronização dos passos, figuras e devidas conduções que conhecemos atualmente e que continuam a ser reproduzidas nas aulas, facilitando a transmissão do conhecimento, e nos bailes.” Para fins didáticos, a condução é pensada em quatro tipos: invasão e ausência, gestual, indicativa e corporal (STRACK, 2017). Segundo Strack, a mais utilizada é a indicativa, na qual a parte corporal mais requisitada para conduzir são as mãos; a condução gestual se dá, primordialmente, através do contato visual, enquanto a de invasão e ausência acontece, por exemplo, quando um abre espaço para o outro passar ou na dinâmica de passo básico frente e trás que é quando avanço e meu parceiro recua e vice versa. A condução que mais chama atenção para fins desse estudo é a corporal, pois é que mais consegue ser o agente de percepções mútuas de escuta corporal, e que, em minha opinião, precisa de uma atenção mais aprimorada para contribuir no desenvolvimento de sintonia e conexão entre pares. Nessa condução utilizamos a mobilidade do tronco para transferir informações a respeito dos movimentos que se deseja que o par execute. Aqui é importante ressaltar que os tipos de condução e seu ensino são desenvolvidos com aplicabilidades distintas entre os papéis desempenhados por damas e cavalheiros, enquanto um aprende a técnica que conduz (cavalheiros), o outro precisa apenas seguir (damas). Para melhor compreensão da dinâmica de como a Dança de Salão tradicional funciona, é possível imaginar a condução e resposta de um passo como se fossem códigos ou peças com um dispositivo de encaixe único, e que o detentor da peça que deve ser encaixada, e que corresponde a um passo x, seja somente o cavalheiro. Para cada passo, figura e sequências existem conduções específicas às quais devem obter a resposta adequada da dama, assim ela só precisa oferecer a peça correta para o encaixe da peça/código que o cavalheiro deseja fixar. Nesse tipo de interação, apenas os cavalheiros escolhem as peças que querem utilizar e se, porventura, o código doador do cavalheiro não encaixa no código receptor da dama, a dança não acontece. Por isso que, na Dança de Salão, entendemos as damas como sendo passivas e os cavalheiros ativos no processo de ensino/aprendizagem da dança. Pode-se atestar isso na citação abaixo: Para que essa harmonia seja encontrada, estabeleceu-se que as duas pessoas do casal devem ter conhecimento prévio dos passos que serão feitos nos gêneros musicais correspondentes (ao menos os passos básicos) e que o cavalheiro será quem escolherá quais desses passos serão feitos, em que momento serão feitos e em qual 21 dinâmica musical serão feitos. Após estas escolhas, o mesmo deve conduzir a dama para que ela realize os passos junto com ele. (STRACK, 2013, p.12) Figura 1: Apresentação de Samba de Gafieira no Natal do Coração, na Praça Saldanha Marinho. Fonte: Flayane Höehr Silva (dezembro, 2014). 2.2.1. A realidade encontrada no ensino tradicional Tradicionalmente o ensino das danças de salão tem como ponto de partida ensinar o público masculino a conduzir o público feminino, sendo esse o norte principal de todas as aulas, pois como afirma Fernanda Cristina Monte (2015, p.2), “cavalheiros e damas, em sua maioria aprendem, desde sua primeira aula, qual é o papel que irão desempenhar na prática.” Então praticamente todo tempo de aula exige concentração redobrada dos homens da turma, pois a metodologia das aulas é desenvolvida no sentido de transferir formas de condução para que os cavalheiros possam compreender e assim conseguirem transmitir às suas damas seus desejos de movimentações que anseiam executar. Assim sendo, é muito comum as mulheres estarem dispersas, pois como as aulas são praticamente, o todo o tempo, diretivas aos homens, muitas vezes elas não prestam muita atenção, já que só precisam seguir corporalmente seus pares no sentido de entender o que está sendo conduzido, tornando a responsabilidade da dançamaior em relação aos cavalheiros. Abaixo temos a comprovação dessa premissa quando a autora reitera que: 22 Em todas as aulas os primeiros preceitos da dança, passados de forma detalhada, são dirigidos a eles, como: manter a postura corporal, ter atitudes firmes, saber agir com precisão, saber conduzir os movimentos, ser responsável pela proteção da dama, entre outros. Só depois sabemos quais são os procedimentos destinados às damas que, geralmente, são repassados de forma rápida. (PEREIRA, 2011, p.105) Em muitos casos até a disposição espacial com que as aulas são organizadas faz com que somente os homens fiquem em uma posição que os favoreça a enxergar o que está sendo ministrado e quase sempre as mulheres ficam de costas e não conseguem visualizar o que os professores estão ensinando. Dentro desse entendimento de condução unilateral que é possível caracterizar um monólogo na dança, na qual “somente um dos lados fala e o outro somente compreende.” (DALAZEN, 2013, p.7). Portanto, temos apenas uma viabilidade de comunicação existente entre pares, o que apresenta algumas consequências pontuais em termos corporais e inter-relacionais, o que poderá ser compreendido mais adiante quando serão abordadas as problematizações decorrentes do modelo tradicional de ensino. Mas o que é possível assegurar é que basicamente “na Dança de Salão espera-se da dama uma atitude gestual de sedução e sensualidade, enquanto do cavalheiro espera-se uma atitude viril de liderança.” (QUINTANILHA, 2016, p.117). Entendendo que muitos profissionais da área das danças de salão não costumam levar em consideração áreas do conhecimento que podem servir de subsídio para um aprimoramento e atualização do ensino e aprendizagem da dança, no que tange à área da educação, ou seja, é possível afirmar que nas formas metodológicas com as quais as danças de salão são ensinadas existe um descompasso com a evolução social em uma concepção de mundo contemporâneo, pois como afirma Feitoza (2011, p. 67) “encontramos professores utilizando metodologias de ensino fundamentadas em conceitos e metáforas linguísticas que induzem um entendimento defasado de dança, corpo e do corpo na dança.” Fato é que o corpo na Dança de Salão é, praticamente sempre, interpretado de uma maneira superficial, ainda levando de forma considerável somente aspectos ligados à construção social dos gêneros, por exemplo. A configuração padrão homem e mulher é o que predomina e é assimilado como sendo o normal para que o aprendizado se torne viável. Isso se justifica muito através do conceito de condução, pois já que é o cavalheiro quem conduz e a dama a quem toca a função de responder a essa ação, nada mais coerente que tenhamos aqui nesses moldes de ensino a configuração dama x cavalheiro, com gêneros opostos. Na citação abaixo é possível confirmar a existência desse paradigma e algumas implicações desse modelo, quando o autor traz a seguinte compreensão: 23 Assevera-se que a técnica de “condução”, que é muito bem empregada por diversos profissionais e com êxito no processo de ensino-aprendizagem, pode ser mal interpretada como uma imposição social, o que descaracteriza a liberdade vigente entre ambos os indivíduos que compõem o par e a essência em que essas danças se baseiam. Por isso, não é a técnica da “condução” que faz o problema, mas sim, o falso entendimento que alguns profissionais fazem dela, como álibi para impor certas “verdades” que causam essa problemática envolvendo a relação de gênero, homem e mulher, e as imposições da sociedade. (DALAZEN, 2013, p.4) Outro ponto que chama a atenção no perfil das aulas tradicionais é que o ensino das técnicas dos diferentes estilos de Dança de Salão está pautado, basicamente, na transferência de passos prontos em forma de sequências – o que chamo de “combos”, que são repassados aos alunos e alunas, no qual os mesmos apenas têm a preocupação de aprender para depois reproduzir. Isso acontece principalmente em aulas de iniciados e intermediários, nas quais os alunos e alunas já estão com alguma base estruturada de técnica básica, o que significa que, quanto mais experientes se tornam (tempo de vivência no gênero de dança), mais complexas ficam as sequências ensinadas – ou seja, os “combos” – uma vez que nas aulas iniciantes são ensinados apenas passos básicos e figuras/passos separados para posteriormente combiná-los, o que virá a se tornar as sequências prontas. Sendo assim, quando senti monotonia em minha dança, algo mencionado anteriormente por mim como uma das motivações que me levaram ao tema deste trabalho, uma das justificativas é o fato de que nos bailes há sempre reprodução de sequências prontas, o que torna a dança repetitiva, inclusive nas trocas de pares, pois dançamos de forma padronizada, na qual todos realizam as mesmas movimentações praticamente o tempo todo. Acho importante enfatizar que os passos prontos ou “combos” não são necessariamente ruins, o que a mim toca em questionar é o fato de as aulas serem regidas somente nesse modelo, sem outros interesses e preocupações. Esse ponto de vista encontra confirmação nas palavras de Grangeiro (2014, p.55): Não há uma proposta de rejeição a ensinar passos, a valorizar técnicas e outros indicadores básicos da dança. Estes elementos são imprescindíveis. Fica evidente, no entanto, a supervalorização dada a estas questões em detrimento a outros indicadores também importantes. É importante esclarecer que o foco central que abarca todo o modelo de ensino tradicional tem a condução como a protagonista das ações didáticas que impulsionam professoras e professores a criarem suas metodologias, desenvolvendo recursos que sejam possíveis o ensino de técnicas de condução. As outras diversas características dentro dos padrões de ensino estão imbricadas dentro de um modelo educacional, no qual cavalheiros são 24 os principais elementos norteadores das aulas, devido ao imperativo de terem que aprender a conduzir, algo que será explicitado no item que descreverá o papel dos cavalheiros. Vale relembrar que, tradicionalmente, o que define alguém a realizar a atividade de professor é seu desempenho na dança, ou seja, é o fato dos sujeitos dançarem bem sob a ótica dos olhos, principalmente do público, que ao vê-los dançando solicita que os mesmos os ensinem também a dançar igual, a “dançar bem” segundo eles. Isso perpassa, geralmente, pelo domínio da quantidade de passos e sequências que os bons dançarinos em questão já têm incorporadas, para que assim possam repassá-las aos alunos e alunas. A citação abaixo traz essa confirmação, quando nos diz que: O ensino da dança de salão não está balizado em nenhuma teoria de aprendizagem, muito pelo contrário, ele acontece de forma espontânea sem embasamento científico e metodológico, focado na figura do “professor” enquanto uma pessoa que dança bem e conhece a maioria dos passos a serem executados e, como detentor do conhecimento, centraliza as informações e o aprendizado. (AFONSO; ALMEIDA, 2009, p.1). Outra característica marcante do ensino tradicional é que o aprendizado dos passos se dá no modelo da cópia, no qual os professores e professoras mostram o movimento e os alunos e alunas copiam. Modificações nessa estrutura de como ensinar configuram-se em um desafio para os professores, pois exigem desapego a ideias há muito tempo sistematizadas como embasamento didático. No entanto: Repensar o ato de ensinar e aprender as danças de salão, neste momento, torna-se necessário e urgente, para que possamos construir corpos mais inteligentes e acessíveis a novos aprendizados, corpos esses livres de vícios de referências exclusivas do professor, da dependênciado espelho e outros indicadores. Assim sendo, os alunos poderão de alguma forma, desenvolver-se nas danças de salão de uma maneira mais abrangente e não apenas como um corpo que obedece e procura imitar os movimentos de outro corpo dançando. (GRANGEIRO, 2014, p.38) Muitas outras características do ensino tradicional das Danças de Salão poderiam ser aqui descritas, porém foi priorizado manter-se o foco na condução e em sentidos ligados diretamente a ela. Também foi optado fazer menção a tópicos que estão igualmente relacionados à escuta e diálogo corporal, que intencionam a busca pela conexão na dança, ainda que por ora não detalhados e que será feito posteriormente, trazendo a compreensão de que todos esses fatores conversam entre si como em uma rede de influências mútuas, que não podemos mais negligenciar quando queremos compartilhar nossa dança com outros indivíduos, tornando-a, de fato, como sendo a dois. 25 2.2.1.1 O papel da dama As damas na Dança de Salão, tal como as conhecemos dentro uma concepção histórica e social na construção do seu papel, possuem incumbências muito específicas no que diz respeito a seu desempenho na dança. A principal habilidade a ser desenvolvida pelas damas com o tempo é sua capacidade de resposta em relação ao estímulo de condução do cavalheiro. Portanto, é necessário que as mesmas aprimorem sua escuta corporal, para que assim consigam compreender quais movimentações poderão estar sendo conduzidas, muitas vezes sendo instruídas em aula a não pensarem e sim a apenas a deixarem-se levar pelo cavalheiro, ou ainda, no que diz respeito a música, devem escutá-la através do corpo do cavalheiro, ou seja, através do que o mesmo esteja querendo interpretar. A função principal das damas na Dança de Salão fica clara na citação abaixo, quando o autor afirma que: Voltando ao tema condução e boa dama. Volto a afirmar que a boa dama não pensa. Ela sente a condução e faz determinado passo sem que tivesse pensado em fazer. Esse é o caso ideal. Boa dama e um cavalheiro com boa condução. (PERNA, 2011, p.101). Ou seja, através da afirmação acima fica clara a função restrita das damas, dentro de ações muito específicas e enquadradas, que as tornam o agente passivo da dança, pois: Na perspectiva de condução é sempre o cavalheiro que perguntará ativamente e a dama responderá passivamente, concordando com a pergunta. Não acontecerão casos de a dama responder de maneira discordante ou de resposta que já seja uma pergunta. (SILVEIRA, 2012, p.24). Além disso, às damas também cabem às atribuições estéticas da dança, ou seja, seu embelezamento por meio de adjetivos que as qualifiquem como sendo sensuais, charmosas, elegantes, graciosas, delicadas, entre outros. Isso também justifica a criação de metodologias de ensino voltadas somente para elas, ensinando-as adornos e enfeites prontos, para que depois possam ser utilizados no momento de se dançar a dois, desde que, obviamente, não atrapalhe a condução e o andamento da dança. Sobre o posicionamento das professoras em relação ao ensino destinado às mulheres, o trecho citado abaixo transcreve a ideia de como essas realidades se dão na prática: Os ensinamentos são para manterem-se sempre pacientes a espera das primeiras ações do cavalheiro, deixando seu corpo continuamente em alerta para eventuais manipulações. Ela também ensina a maneira de exaltar a sensualidade, como por 26 exemplo, demonstrando a forma correta de passar a mão pelos cabelos. (PEREIRA, 2011, p. 78). Dessa forma, a criatividade das mulheres na dança fica restrita somente a tornar a dança estética e visualmente agradável, e até nisso pode-se trazer outro ponto de reflexão, que diz respeito à autonomia das mulheres, pois quase sempre não se estimula à autenticidade e espontaneidade dos corpos femininos para que elas próprias descubram e até mesmo inventem formas próprias de autodescobrirem-se e colocarem suas próprias maneiras de enfeitar sua dança, se assim o desejarem. Como afirma Elisa Quintanilha (2016, p.127), “muito melhor do que apenas aprender floreios seja a investigação sobre si mesmo ao longo da realização dos passos e com o tempo permitir que seus próprios enfeites surjam na sua prática gradativamente”. Acho interessante comentar que os cavalheiros, considerados como detentores de uma mente mais flexível no contexto tradicional das danças de salão, são os que permitem algum espaço às damas para que possam ornamentar a dança. Aqui compreendo como sendo uma concessão que alguns cavalheiros fazem para que as damas possam ter alguma liberdade em momentos específicos da dança. Sabe-se que alguns cavalheiros conduzem até os enfeites e adornos das damas, ou seja, que realmente se incomodam com o fato delas poderem realizar algo que fuja ao controle dos mesmos. Figura 2: Momento para as damas na aula de Salsa no 6º Porto Alegre Salsa Congress. Fonte: Dana Vargas (setembro, 2016). 27 Figura 3: Apresentação de Salsa no Corujão. Fonte: Silvio Kaufmann (julho, 2015). 2.2.1.2 O papel do cavalheiro Aos cavalheiros são designadas diversas tarefas e muitas vezes todas de forma simultânea. É de responsabilidade principal dos homens a condução durante a dança, pois “é o cavalheiro a quem cabe conduzir e à dama, ser conduzida [...] Cabe a ele decidir formalmente quais passos e figuras serão executados.” (RIED, 2003, p.37) Porém também fazem parte dos encargos dos mesmos cuidar da sua dama, além de destacá-la nos bailes, estar atento ao fluxo do salão, encontrar o tempo forte da música e assim manter o ritmo, aplicar os fundamentos da Dança de Salão, variar os passos, ser criativo, entre outros. Não é à toa a constatação de que homens levam mais tempo para aprender a dançar do que as mulheres, devido à sobrecarga que lhes é exigida. Portanto, o tempo de aprendizado para que um cavalheiro possa ser considerado como tendo um bom desempenho na dança costuma ser maior em relação às damas, e “pensando em alunos iniciantes, desempenhar todas as funções citadas ao mesmo tempo, permanecendo dentro do ritmo da música pode ser um verdadeiro tormento, levando muitos homens a desistirem de dançar.” (STRACK, 2017, p.33) O aspecto condução designado aos homens também encontra justificativas em contextos históricos e sociais na construção de estereótipos demarcados em características 28 físicas e psicológicas que seriam de caráter masculino, fazendo uma contraposição às particularidades desempenhadas pelas damas, sendo constatado na fala de Betina Ried (2003, p.37), pois “o conduzir do cavalheiro exige segurança, determinação, objetividade, habilidade e domínio técnico, enquanto que o seguir da dama, por sua vez, requer sensibilidade, empatia, criatividade e emotividade.” Permito-me fazer algumas ressalvas na fala da autora, quando define características, separando-as de acordo com os gêneros. As distinções entre o feminino e o masculino sempre estiveram presentes na sociedade, reforçados desde a infância com rótulos sobre o que é de meninas e de meninos, incluindo emoções e sentimentos aos quais são permitidos a uns e negados aos outros a naturalidade de extravasar. Sendo assim, considero que seja necessário desfazer essas imposições atribuídas aos gêneros, pois sabemos que na vida real isso de fato não acontece, em razão de que emoções variadas são experimentadas por ambos os gêneros de forma natural a partir da condição humana de cada um, pois “na atualidade, aquele universo masculino repleto de homens viris, poderosos e dominantes reside muito mais no imaginário social do que na realidade.” (PEREIRA, 2011, p. 112) Na dançatemos consequências pontuais na maneira com que os indivíduos são classificados como sendo aptos ou não a praticarem determinados estilos. Na Dança de Salão, especificamente, notamos esses marcadores de gênero bastante explicitados no que diz respeito à segregação de funções, incluindo até mesmo aspectos subjetivos como capacidade de realizar algo. A ideia de que cavalheiros não precisam desenvolver aspectos da sensibilidade os torna, na visão tradicional da Dança de Salão, indivíduos que não precisam conhecer a fundo e, muito menos, aprimorar a escuta corporal na dança: Para o Cavalheiro, a escuta corporal não é muito solicitada, muito menos treinada em aula, pois ele é quem vai decidir os passos, não precisando “escutar” o que o corpo da Dama tem a dizer. Porém, seu papel vai além de conduzir. Primeiro, o mesmo precisa decidir qual passo irá fazer. Logo em seguida, conduzir a Dama para que ela faça o mesmo passo que ele. Por fim, executar o passo junto com a Dama, dentro do ritmo da música. Todas essas três etapas ocorrem em frações de segundo, mas devem ser bem realizadas para o bom andamento da dança. (STRACK, 2017, p. 32) A partir das explanações mencionadas acima, é possível afirmar que, o fato dos cavalheiros serem os agentes ativos da dança não confere a eles, necessariamente, somente vantagens e sim os torna alvo de algumas consequências negativas que serão abordadas logo a seguir. 29 Figura 4: Competição Jack and Jill no 7º Porto Alegre Salsa y Bachata Congress. Fonte: Mariana Heberle Reis (setembro, 2017). Figura 5: Apresentação de Bachata no Festival Santa Maria em Dança 2016. Fonte: Studio N (setembro, 2016). 30 2.2.2 Problematizações dentro da realidade encontrada Especialmente no que diz respeito ao ensino e aprendizagem é possível elencar alguns pontos conflitantes acerca do ensino tradicional da Dança de Salão, no qual a condução quando realizada estritamente nos moldes padrões gera o desencadeamento de algumas consequências pontuais para ambos os participantes que intencionam compartilhar uma dança. Começo essa discussão indagando aspectos relacionados aos gêneros feminino e masculino, em termos arraigado princípios históricos de séculos passados que foram os inspiradores para o embasamento na formulação da ideia de condução que temos hoje na Dança de Salão: Os mesmos séculos não foram suficientes para mudar esta regra na dança de salão, em que o cavalheiro conduz, ou propõe movimentos, e a dama os aceita para que algo aconteça. Nesta arte, congelou-se um tempo histórico que não existe mais. (ZAMONER, 2011, s.n.) O habitual ensino da Dança de Salão deixa brechas incontestáveis, demonstrando o quanto o contexto de sua prática pode ser machista, pois se faz analogias aos papéis de dama e cavalheiro, com os papéis de gênero esperados dentro da cultura patriarcal, na qual as vontades do sexo masculino são as que prevalecem. O ensino das técnicas de condução aos homens acaba deixando subentendida a ideia de dominação de um gênero sobre o outro, pois assim cavalheiros “aprendem que o corpo feminino, na Dança de Salão, é um corpo admissível de ser ‘dominado’ pelas regras de condução.” (PEREIRA, 2011 p.106). Ele acrescenta que: Outro discurso fundamental observado nas aulas é de que para as damas restam apenas à “obediência” dos comandos masculinos e a paciência pela espera desses movimentos. O papel da mulher de responder a condução masculina na prática é exercido quando os movimentos femininos são sempre executados logo após os movimentos masculinos. Não sendo permitida sua execução simultaneamente, muito menos antecipadamente. Dando a entender que o corpo feminino é ao mesmo tempo tocado e manipulado, tratado na execução dos passos, giros e rodopios como um objeto orientado sempre pela administração masculina. (PEREIRA, 2011, p.108). Neste sentido, há uma restrição na criatividade das damas, que se tornam “livres” somente no momento de fazer uso de enfeites e adornos, que podem “consistir em uma elevação de braço, cruzada de perna, movimentações de mãos e dedos, postura de braços, 31 virada de cabeça” (QUINTANILHA, 2016, p.127), e aqui pode ser feito um adendo na medida em que nem toda dama gosta de adornar ou enfeitar sua dança, ou seja, não faz questão nenhuma de utilizar os floreios estéticos tão preconizados para que a dança se torne bonita. É possível pensar em uma dança que para as damas tende a se tornar limitada dentro de um espaço que as restringem nas possibilidades de aprimoramento individual de suas corporeidades, quando até mesmo em condições de improviso, as mesmas encontram-se cerceadas como indivíduos que apenas respondem a estímulos, pois “desde o princípio a estrutura da dança se encontra fechada, em um tom de monólogo, onde somente o homem fala e a mulher escuta.” (SILVEIRA, 2012, p.21) Sendo assim, fica claro o quanto falta, ainda, para que a criatividade das damas esteja de fato sendo considerada de igual para igual em relação aos homens. Meu ponto de vista sempre é visando liberdades de escolha, partindo do pressuposto que devemos ter as opções devidas para isso. Não é errado enfeitar a dança, o questionado aqui é a imposição para que isso aconteça como uma condição da dança se tornar atrativa aos olhos das outras pessoas, ou simplesmente, usar adornos por usar, muitas vezes de forma mecânica e sem um sentido relevante de forma individualizada. Por isso, acredito na construção de uma dança a partir de cada indivíduo, onde eu como mulher/dama aposto no autoconhecimento para, assim, descobrir que dança afinal é a minha. Será que acabo dançando a dança de outras mulheres, como se estivesse sendo uma cópia ou reproduzindo técnicas corporais que na verdade não me dizem nada de forma significativa? São indagações para refletir, na medida em que acredito em uma dança agente de transformações íntimas que extrapolam os limites das técnicas codificadas, na qual é essencial que as mulheres busquem a sua própria dança, mesmo quando a mesma vier pautada em algum código e mesmo que tenhamos professoras a nos ensinar ou mostrar um caminho. Presumo ser indispensável que as mesmas experimentem e desenvolvam o seu próprio jeito de manifestar a técnica, e creio que isso seja possível apenas quando nos aventuramos de forma intransferível nesse processo de descobertas que a dança pode ter para cada uma de nós, tendo a consciência de que os corpos são diferentes e, assim sendo, não há possibilidades de padronizarmos movimentos corporais, sejam eles passos, adornos ou enfeites. As percepções acerca de si mesmas passam pelo terreno imprescindível da autonomia, a qual, na minha avaliação, deve ser sempre estimulada e trabalhada pelos educadores em suas aulas. Entretanto, algo que acaba acontecendo é que como as mulheres recebem um ensino que já as tornam passivas no processo de assimilação das técnicas, elas não se sentem aptas a expressar uma postura mais ativa na dança. Em uma reportagem de Keila Barros 32 (2014, s.n.) há a fala da professora Sheila Santos que retrata essa realidade, onde a mesma nos diz que “é preciso que ambos saibam falar e ouvir, só que normalmente a gente só ensina o rapaz a falar e a menina a ouvir, então, quando ela tem liberdade, não sabe o que fazer com aquilo, e ele não tem sensibilidade pra ouvir.” (SANTOS apud BARROS, 2014, s.n.) Outro fato a ser mencionado dentro da condição passiva das damas é que devido às mesmas não estarem despertas a outras possibilidades e recursos corporais, as quais deveriam chegar nelas através do aprendizado, sobretudo no que diz respeito à condução, a maioria delas nãocostuma questionar nada que lhes fuja a compreensão e que poderia ser alvo de indagações que enriqueceriam consideravelmente a dança de cada uma. Seguindo essa linha de raciocínio, é também muito comum ouvir falar em um comportamento feminino esperado delas na dança, baseado em o que um homem espera de uma mulher/dama para que o cavalheiro queira dançar com ela, ou escolhê-la em um salão de bailes dentre as muitas opções disponíveis, uma vez que o número de mulheres em bailes é superior e por consequência, cavalheiros, tornam-se escassos nesses ambientes. Outro ponto a ser questionado nas danças de pares tradicionais é a configuração mulher/homem. Como não é visto com bons olhos pessoas do mesmo gênero dançarem entre si, muitas mulheres esperam bastante até poderem ter uma oportunidade para dançar, já que não devem dançar entre si. Ainda encontramos dificuldades na aceitação de novas formas de enxergar dois corpos que se unem com o propósito único de dançar: As propostas de uma dama mais presente na condução da dança de salão e as novas possibilidades de formação de pares com dois homens ou duas mulheres sugerem uma remodelação profunda nas práticas de dança de salão, e consequentemente, nas formas de conduzir. Essas mudanças ainda encontram uma forte resistência em nossa sociedade atual, demonstrando grande dificuldade em aceitar diferentes formas de orientação sexual, além de não admitir uma maior conquista de espaço das mulheres. (NUNES; FROEHLICH, 2016, p.2) Na passagem abaixo fica evidenciado mais alguns dos imperativos direcionados às damas atrelados, dessa vez, à escuta corporal: A dama deve acompanhar o cavalheiro na direção em que ele conduzir. A dama nunca deverá começar a dança por si só, devendo ela acompanhar o cavalheiro em qualquer tipo de condução esteja ele dançando bem ou mal. Por isto, ela deve estar sempre sensível e atenta ao toque do cavalheiro em suas costas. (GONZAGA, 1996, p. 20) Porém é oportuno frisar que quando solicitado às damas que refinem sua sensibilidade através da escuta corporal, para que assim possam compreender a condução e responder 33 adequadamente, fica comprovado que, na prática, é algo que não acontece assim de repente como em um passe de mágica: [...] apenas sentir a condução pode não ser suficiente num primeiro momento. Inicialmente, a dama precisa entender como essa condução é feita, e quais passos são pedidos para cada determinada condução, para poder segui-la. Se apenas ‘sentir a condução’ fosse o suficiente, então um cavalheiro que sabe dançar poderia conduzir com uma dama que não está acostumada a isso e ela seria capaz de realizar todos os movimentos que ele pedisse através da condução, somente sentindo-a. (STRACK, 2017, p.14) Portanto para que uma dama seja conduzida de forma “relativamente fácil” se faz necessário que a mesma já tenha alguma vivência dentro do gênero de dança em questão, onde a condução estará agindo. Essa prerrogativa é confirmada por Strack (2017, p.42), desfazendo a ideia de que “há um pensamento comum na sociedade de que a mulher não precisa saber dançar, caso o homem seja um bom condutor.” Sendo assim, fica claro que cavalheiros serem apenas bons condutores não é garantia para um bom andamento de uma dança, pois existem outros fatores permeados na aprendizagem que precisam ser alvo de atenção por parte de todos os agentes envolvidos nesse processo, professoras, professores, alunas e alunos. Algo que será explanado, de forma mais específica, posteriormente. Discorrendo ainda sobre as mulheres, dessa vez focando nas que desejam tornarem-se professoras, é constatado que dentro do modelo unilateral de condução, as mesmas não são preparadas para esse ofício, pois como só precisam acompanhar os cavalheiros, não há necessidade de compreender as técnicas e os mecanismos envolvidos na condução. Isso ficou notório em minhas participações em workshops e congressos, nos quais as mulheres (pares de professores) passam praticamente a aula toda sem falar nada, e quando falam, é sempre sobre algum aspecto funcional para as damas não atrapalharem a condução, livrando os braços para que não obstruam o caminho, ou a adornarem/enfeitarem de forma bonita e eficiente, mantendo-se a ideia de não interromper o fluxo pré-estabelecido da dança pelo cavalheiro. Outro fato bastante comum e, pode-se até dizer fixado como um padrão, é a menor relevância que se dá às mulheres no sentido de conhecer seus nomes por si só, sem que estejam atreladas a um homem professor, ou ainda muito menos as que seguem uma carreira independente de terem um parceiro profissional ou não. Essa realidade foi exposta igualmente na reportagem feita por Keila Barros (2014, s.n.), dessa vez trazendo a fala da professora Katiusca Dickow, quando nos traz o relato de um diálogo entre professores, descrito abaixo: Conversando com um grupo de profissionais, comentei que a dança de salão é muita machista e aí um homem me questionou: “mas será que ela não vai ficar muito 34 feminista?”. Minha resposta foi que talvez ela precise ficar feminista, por um período, até que as mulheres se posicionem. Até pouco tempo, os eventos anunciavam ‘professor fulano de tal e partner6, o nome da mulher nem aparecia. Eu mesma passei por isso. Hoje, conquistei meu espaço, mas muitos ainda são resistentes a ideia de uma mulher em carreira solo. (DICKOW apud BARROS, 2014, s.n.) Importante saber que o início da profissionalização da Dança de Salão no Brasil teve uma mulher como protagonista. Seu nome era Maria Antonieta Guaycurús de Souza, porém sua figura tornou-se esquecida, provavelmente pelo fato de ela ser uma mulher, além de estar inserida em um contexto de época que não a favorecia - devido à existência de um machismo mais generalizado, quando comparado aos dias atuais. Maria Antonieta chegou ao Rio de Janeiro, vindo do Amazonas, aos 14 anos, com os pais. Em 1945 passou a ser instrutora de dança na Academia Moraes, tendo formado nomes como Jaime Arôxa e Carlinhos de Jesus (DRUMMOND, 2004). Em relação ao gênero masculino também é possível detectar desconfortos existentes no universo considerável de exigências que tangem às diversas incumbências desempenhadas por eles. O homem que chega para aprender a dançar se torna o cavalheiro que vai incorporar características próprias para essa função Muitas vezes a aprendizagem pode se tornar opressora, uma vez que impõe a eles praticamente todo o ônus em tornar a dança prazerosa e funcional para o casal, onde: Os homens devem ser autoritários, enquanto os Cavalheiros fazem prevalecer sua vontade através da condução. A eles também há uma série de exigências, que nas danças de salão foram elencadas ao falarmos sobre as várias responsabilidades que recaem sobre os Cavalheiros ao dançar. Às mulheres, espera-se que sejam submissas, da mesma forma que das Damas espera-se que se submetam à condução do Cavalheiro com o qual se está dançando. (STRACK, 2017, p. 44) Não é de hoje que a figura masculina, e o seu papel designado pela sociedade, traz obrigatoriedades no comportamento de homens: devem apresentar características de provedores, másculos e viris, enquanto aquele que demonstra suas emoções e vivencia abertamente sua afetividade torna-se alvo de preconceitos. Isso acaba sendo transferido para a Dança de Salão na simbologia da condução, quando tradicionalmente apenas o homem é considerado o ser pensante no processo de aprendizagem. Quase sempre ele deixa de lado o sentir, pois sua entrega na dança fica comprometida pelo excesso de atribuições que lhe cabe: 6 “Partner: parceiro, parceira, par, sócio, associado, sócia,
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