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1 Capítulo 2 - Histórico do Movimento Negro no Brasil, luta e resistência da militância às Políticas de Ação Afirmativas, a Declaração de Durban até a Lei 10.639/03: a dívida social do Brasil com a população negra após o 13 de maio Willian Robson Soares Lucindo 1 AS PRIMEIRAS ORGANIZAÇÕES DE LUTA CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE COR NO BRASIL Atualmente, associações e organismos antirracistas se baseiam na unidade racial, inspirados nos projetos de identidade de organizações dos Estados Unidos no período de luta por direitos civis, nos movimentos Pan-africanistas e Negritude. Embora muito importante para formular a unificação de pessoas a partir da raça e questionar a mestiçagem no Brasil, as primeiras organizações das populações afrodescendentes contra o preconceito e a discriminação racial, que incorporava todas as pessoas de origem africana, iniciaram nos primeiros anos após a Abolição. Desde o final do século XIX é possível encontrar jornais e sociedades beneficentes de afrodescendentes, que buscaram criar uma rede de solidariedade entre ex-escravizados e descendentes e, assim, garantir a ascensão social, ter visibilidade e respeitabilidade. As irmandades, desde o período colonial, criaram salas de aulas, fundos de auxílio, eventos em homenagens às/aos santas/os padroeiras/os, conseguindo unir parte das populações de origem africana no Brasil. Mesmo não compreendendo que existia a luta e a identidade racial, essas associações podem ser consideradas como o início do Movimento Negro. As Irmandades e as sociedades beneficentes fundadas entre o final do século XIX e a década de 1930 não se organizavam a partir da noção de raça. Local de origem, tom de pele, ascendência, posição social foram usadas para demarcar seus/suas frequentadores/as. Deste modo, existiram irmandades de pretos e outras de mulatos, além da divisão por nações, mais comum na Bahia. Em Laguna, mulatos/as frequentavam a Sociedade Recreativa União 1 Mestrado em História do tempo presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) sob a orientação do Professor Doutor Norberto Dallabrida e coorientação do Professor Doutor Paulino de Jesus Francisco Cardoso, com a dissertação intitulada "Educação no pós-Abolição: um estudo sobre as propostas educacionais de afrodescendentes (São Paulo/1918-1931)". É professor da rede municipal de São Paulo, também é membro do grupo de pesquisa: "Experiências das populações de origem africana em Santa Catarina no pós- abolição", desenvolvido pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro da Universidade do Estado de Santa Catarina (NEAB/UDESC). 2 Operária, enquanto pretos/as participavam do Clube Cruz e Souza, no início do século XX (ROSA, 2011). Em São Paulo, quem frequentava baile das sociedades se diferenciava dos demais pelas suas roupas e emprego, ficando conhecidos como “negros de baile”, além disso, em meados da década de 1910, nas festas do cordão Camisa Verde os “Negros da Glete”, não podiam participar, ou melhor, “eles ficavam espontaneamente do lado de fora, bebendo pelos botecos e garantindo a segurança”.2 Os frequentadores de sociedades beneficentes e jornais de imprensa negra eram uma minoria das populações afrodescendentes, inseridas no mundo das elites brancas dirigentes e compartilhando seu valor positivista e também evolucionista das civilizações, valorizando, assim, “o modo como a elite branca organizava o mundo” (CARDOSO, 1993, p. 19). Algumas sociedades mantinham jornais, como o jornal Kosmos controlado por um grêmio de mesmo nome. A finalidade dessa manutenção era divulgar os eventos das associações, os acontecimentos dentro e fora da vida associativa, destacando as condutas dos associados, mesmo que de outras instituições. O jornal A Liberdade teve uma sessão dedicada a expor seu desgosto com a prática de pessoas que participavam desses espaços, e agiam contra tudo que era pregado nas sociedades beneficentes. Dizia que estava desgostoso “com Justino Costa, por andar na zona estragada de sapato sujo” (Jornal A Liberdade, 14 dez. 1919) ou “com a Isaura do Carmo, por ter arranjado um novo marido e a mulher deste não sabe” (Idem, 14 dez. 1919). Essas sessões foram classificadas como fofocas por Miriam Ferrara (1981) e por José Correia Leite, um jornalista da época. Ele indica que a prática de procurar os “podres” das pessoas era comum na imprensa negra, principalmente n‟O Alfinete, que “não dava alfinetadas no sentido político ou ideológico. Eram alfinetadas no sentido de corrigir a moral, denunciar pessoas que aparentemente tinham dignidade mas escorregavam” (CUTI, LEITE, 1992, p. 33). A finalidade de divulgar esses escorregões era mais do que meramente fofocar, nos estatutos das principais sociedades beneficentes paulistanas do início do século XX a conduta inadequada era punida de diversas formas, desde advertência à expulsão do infrator. Assim, essas sessões podem ser vistas como um mecanismo de correção moral. “Denunciar qualquer acto prejudicial ao andamento, ao bom nome do centro” (Estatuto do Centro Recreativo Smart, 1910, p. 2), era um dever dos sócios do Centro 2 Depoimento de Dionísio Barbosa à BRITTO, Ieda Marques. Samba na cidade de São Paulo (1900-1930): um exercício de resistência cultural. São Paulo, FFLCH-USP, 1986, p.69. Negros da Glete eram moradoras/es pobres da parte baixa da alameda Glete do bairro operário da Barra Funda. Lá também existiu um time de futebol, São Geraldo, e seus jogadores ficaram conhecidos pela violência nos jogos. 3 Recreativo Smart. E, para ser admitido como associado do Grêmio Recreativo Dramático Kosmos era preciso atender a algumas exigências: “ser proposto por um sócio em gozo dos seus direitos sociais, por escripto e mencionado o nome, estado civil, profissão, residência”, ser maior de quinze anos e “ter bom comportamento moral e civil” (Estatuto Grêmio Dramático e Recreativo Kosmos, 1921, p. 1). No Centro Recreativo Dansante Defensor da Pátria, poderiam fazer parte do quadro associativo “todas as pessoas de ambos os sexos e de reconhecida idoneidade moral”; o estatuto reforça a condição moral entre os sócios contribuintes, afirmando que para se tornar um destes o candidato deveria ter “bom comportamento moral e civil” (Estatuto Grêmio Recreativo Dansante Defensores da Pátria, 1922, p. 1). Também não era permitida a entrada de pessoas de atos duvidosos nas festas, nem mesmo como convidadas. O Alfinete elogiou a “sempre Exma e gentil esposa [do presidente da Sociedade Chuveiro de Prata], ainda não mãe, [que] proibiu que ali [no Chuveiro de Prata] entrassem Magdalena Roza, Fulgência de Conceição, etc., que são pessoas que a moral manda que fiquem em casa” (Jornal O Alfinete, 27 set., 1921). A vigilância também era feita por alguns membros das sociedades detentoras de cargos específicos para isso: eram eles os 1º e 2º fiscais ou os mestres-salas. Caso um sócio agisse de maneira inadequada, o fiscal do Kosmos ou do Smart deveria chamar a atenção dele por duas vezes em particular, na próxima suspendê-lo e comunicar o presidente, isto nas festas ou reuniões; maneira inadequada poderia ser comprometer uma dama antes que fosse dado sinal para iniciar a quadrilha, voltar do centro do salão desacompanhado das damas ou dos cavalheiros para as contradanças (Estatuto Grêmio Dramático e Recreativo Kosmos, 1921, p. 4; e Estatuto do Centro Recreativo Smart, 1910, p. 11). Além disso, haviam atos impróprios que poderiam causar a eliminação, como frequentar qualquer atividade alcoolizado ouportando armas, ter “mau comportamento dentro ou fora das festas ou reuniões”, faltar com respeito a quem quer que fosse quando estivessem representando sua associação e desrespeitar qualquer sócio ou convidado, assim como desacatar qualquer membro da diretoria (Ibidem) . O policiamento aos associados tinha uma da dupla função nas sociedades recreativas: garantir a desmontagem das bases de discriminação e repressão das manifestações das populações afrodescendentes. Ou seja, as regras de conduta tentavam fazer com que os associados de sociedades beneficentes não se comportassem de forma imoral aos olhos das elites dirigentes e, assim, não poderiam discriminados por conta dos “vícios da raça”. Então, a 4 imposição de um governo das condutas era uma das formas de educação dos afrodescendentes que participavam da vida associativa e liam esses jornais, visando inculcar o respeito à ordem entre os afrodescendentes e, por consequência, conquistar o respeito dos demais setores da sociedade brasileira. Os jornais e as sociedades beneficentes de afrodescendentes das primeiras décadas do século XX criaram uma estrutura de comunicação entre si, que fazia com que se agisse através de um entendimento, também proporcionou uma ação comunicativa, que extrapolava as funções e conteúdo da comunicação cotidiana, imprimindo a vontade do grupo. Isto significa que construíram uma espécie de esfera pública letrada de afrodescendentes. A discriminação não era combatida somente através do governo de condutas, a esfera pública letrada de afrodescendente criou diversos espaços educativos. A criação de salas de leituras, bibliotecas, cursos de instrução, escolas foram algumas iniciativas dessas pessoas que tentavam retirar as populações afrodescendentes da condição subalterna na sociedade brasileira. Os avanços econômicos das colônias estrangeiras fez confirmar esse período histórico como momento de oportunidades, a ação, logo, tinha que se inspirar nas colônias estrangeiras, como é apontado em O Alfinete. É preciso que todos os homens de cor emitem os bellisimos exemplos das colônias estrangeiras, procurando mandar ensinar uma profissão para seus filhos ganharem a vida no futuro. (…) É preciso que os pretos tenham a aspiração de querer ser alguma coisa no futuro; para isso é preciso que todos tenham força de vontade, ensinando os nossos filhos o que os nossos Paes não pouderam apreender. Avante meus irmãos de cor, caminhae com o progresso da nossa capital. Mandae vossas filhas, para aprenderem costura, bordados e engomados; vossos filhos, depois que sahirem do grupo escolar, mandae aprender officio de sapateiro (trecho ilegível), mechanico encanador e typographo etc Só assim é que todos nossos irmãos de cor, deixarão de ser cosinheiros, copeiros e arrumadores de quarto. 3 Desta forma, as associações e os jornais passaram a se dedicar à construção de espaços escolares, que não fossem esvaziados pelos bailes e outras atividades recreativas, criticando também os usos que os associados faziam das suas instituições. O Alfinete de 1919 dizia: Pensamos que as Sociedades, como ponto de reunião familiar, não devem ser formados unicamente para dançar; precisamos progredir, e para isso, precisamos [de] agremiações que possam sustentar uma escola, um bibliotheca, etc. Apezar das desilusões por que passou o articulista, quando a “Kosmos” inaugurou uma pequena bibliotheca teve de pedir o seu fechamento por falta de leitores, notando-se que os 3 MARTINS, José Benedicto. Os Pretos e o Progresso. O Alfinete, 3 set., 1918. 5 sócios e mesmo o Gremio não faziam despeza alguma com a manutenção da mesma. 4 Na continuação do artigo, o jornalista Frederico Souza pede que as sociedades beneficentes se unissem e tentassem inculcar em seus associados o “amor pelas cousas úteis”, pois não era “raro se encontrar grande numero de rapazes, que (infelizmente) exhibem 5 ou 6 recibos de sociedades dançantes, e esquecem, (porque não possuem) um só de uma sociedade beneficente”. Desta forma, denunciava o esvaziamento das atividades beneficentes das sociedades, por causa dos próprios associados que preferiam as atividades lúdicas, nem as atividades dramáticas eram frequentadas, segundo o artigo. Um artigo do mesmo jornal, publicado um ano antes, talvez nos dê pistas para encontrar os motivos do esvaziamento das atividades beneficentes. Indicava que os afrodescendentes estavam “opprimidos de um lado pelas ideias escravocratas que de todo não desapareceram” e de “outro pela nefasta ignorância em que vegetam”.5 Florestan Fernandes e Roger Bastide entendiam que afrodescendentes, evitando as situações de discriminação racial, não entravam na escola e alguns lugares vistos como próprios das pessoas brancas (BASTIDE, FERNANDES, 2008). D este modo, a dupla opressão apontada pelo jornal seria as duas faces da mesma moeda, o racismo. A opção em pagar mensalidades de sociedades dançantes e não contribuir com as ações beneficentes, era uma forma de se manter inserido na zona de conforto, entre as populações afrodescendentes, e longe do mundo das populações brancas, um espaço que teria que lidar com os conflitos raciais. Mas, a esfera pública letrada afrodescendente projetava táticas de superação desse problema, sendo a principal criar a coesão, como demonstra o final do artigo: se todos procurassem restringir este câncer que a corroe, nasceria a iniciativa, da iniciativa, nasceria a força da cohesão da cohesão, o ideal e do ideal a Victoria final, desse elemento que uma vez, conhecendo o seu papel na marcha da nossa civilisação, poderia ser um factor, muito mais importante da grandeza e prosperidade da nossa querida patria. 6 Assim, vivendo em um período em que “tudo se progride”, a vitória chegaria se a humildade fosse combatida e se as populações de origem africana estivessem apresentáveis, mas não só nas roupas e/ou nas condutas, era preciso ir além. Seria “preciso freqüentar escolas, propagar a boa imprensa, instituir sociedades Beneficentes, Educativas, Literárias, 4 SOUZA, Frederico Baptista de. Ilusão. O Alfinete, 9 mar., 1919. 5 OLIVEIRA. Para os Nossos Leitores. O Alfinete, 22 set. 1918, p. 1. 6 OLIVEIRA. Para os Nossos Leitores. O Alfinete, 22 set. 1918. p.1. 6 com reuniões intimas”, sem usar como desculpa a falta de recursos, pois a união faria com que os mais “destacados” ajudassem os mais carentes (Jornal O Clarim, 06 jan. 1924). Apesar de não se reconhecerem em termos raciais, quando se propuseram a debater os problemas sociais, sempre expuseram a existência da discriminação às populações consideradas oriundas da escravização, e para elas elaboraram discursos e ações em favor de sua ascensão econômica e reconhecimento de suas culturas. Por esses motivos, a esfera pública letrada de afrodescendentes do início do século XX é reconhecida como parte da história dos movimentos sociais negros, mesmo sem reconhecer e/ou rejeitar a ideologia da raça. A primeira grande manifestação antirracista pautada pela raça no Brasil foi a Frente Negra Brasileira, entre 1931 à 1937. Ela foi fundada em São Paulo por membros Centro Cívico Palmares, o qual foi criado para ser um lugar de debate em contraponto às sociedades beneficentes, que focavam mais no baile e nas recreações. Quando o Palmares não conseguiu se sustentar, ao tentar construir um salão para funcionar como escola para crianças afrodescendentes, Arlindo Veiga dos Santos e outros membros continuaram a se encontrarpara discutir a situação de pobreza em que viviam as populações de cor. O jornalista estava atento aos debates sobre a raça no mundo e foi um dos responsáveis pela mudança de postura nos jornais controlados por afrodescendentes, que incorporaram o termo negro para autodenominação no final da década de 1920. A FNB teve como veículo de comunicação o periódico A Voz da Raça, que além de denunciar a discriminação racial, trazia discurso de união e forjamento da raça brasileira, e não só raça negra. Baseado na experiência das outras associações paulistas cobrou de seu quadro associativo uma conduta que não fosse criticada por nenhum outro setor da sociedade. Conseguiu criar salas de aulas para crianças negras, manteve um grupo cênico e exaltou a importância das populações africanas escravizadas na construção da sociedade do nosso país, a fim de elevar a autoestima de seus/suas descendentes. Assim como os jornais anteriores, A Voz da Raça também lutava contra a apatia das populações negras, frente aos seus problemas e na busca pela elevação social. Porém, nas primeiras organizações acreditavam que a apatia se formava por estarem oprimidos, “de um lado pelas ideias escravocratas que de todo não desapareceram” e de “outro pela nefasta ignorância em que vegetam” (Jornal O Alfinete, set. 1918), enquanto para a Frente Negra era criada pelos “vícios da raça”. Para combater esses vícios intentaram diversas campanhas contra o alcoolismo, a desunião, a prostituição feminina. 7 Maria Angélica Maués (1991), ao analisar a trajetória do discurso racial, aponta que havia no discurso das lideranças das instituições da década de 1930 a assimilação da ideologia do branqueamento, ao se referirem como culpados pelos ditos “vícios da raça”. De fato as falas das lideranças eram carregadas de valores das elites brancas, isso também é encontrado nas ações dos membros das primeiras sociedades beneficentes, e buscavam incorporar esses valores ao restante das populações negras. Mas a assimilação também foi uma maneira de luta, uma vez que ao agirem da maneira dita correta desarmavam o discurso de que o problema estava nos modos como viviam. Assim escreviam no número 8 de A Voz da Raça: E havemos de vencer. Vencer ante a nós mesmos; vencer as paixões ruins que nos dominam; as qualidades más, o álcool, o samba desenfreado, o descrédito imerecido; vencer a incompreensão, a cobiça, o orgulho, o despeito que vem confirmar a lúgubre frase de Patrocínio - inimigo do negro é o próprio negro. Ao passo que acreditavam poder superar os “vícios da raça”, a FNB entendia que todos esses problemas ocorriam por conta da situação vivida e não por ordem biológica. O perigo está na fácil conclusão de que as populações negras têm uma predisposição a esses “vícios”. A FNB foi dissolvida no governo Vargas em 1937, o qual manteve poucas associações desse caráter abertas. Na verdade, o combate à discriminação racial era feito por associações que valorizavam a recreação e aspectos culturais, de forma pontual. A partir da década de 1940 as associações de afrodescendentes voltaram a ter força, através de centros de culturas e humanitários, companhias de teatros e jornais. Sensíveis às críticas, procuraram não abrir conflito direto contra a discriminação (ANDREWS, 1998). O NOVO MOVIMENTO NEGRO Das diversas instituições de afrodescendentes criadas pós-Estado Novo destacaram-se: União dos Homens de Cor, Teatro Experimental do Negro, Centro de Cultura Negra, Cruzada Social e Cultural do Preto Brasileiro, Centro de Cultura Luiz Gama, Frente Negra Trabalhista; os jornais Alvorada, Niger, Novo Horizonte, Mundo Novo, A Tribuna Negra, Quilombo e a revista Senzala. Todas se preocuparam em debater e valorizar a cultura de origem africana, elevar a autoestima das populações afrodescendentes e cuidar da educação destas. Entretanto, aponta George Andrews, surgiu um grupo de afro-brasileiros mais jovens que tendiam a ser melhor instruídos que a maior parte dos brasileiros negros (ou brancos), politicamente conscientes e 8 profundamente perturbados em relação ao seu status de negros em uma sociedade racialmente estratificada (ANDREWS, 1998, p. 300). Estes jovens acreditavam que tudo que vinham fazendo não era o suficiente, entendiam que a discriminação continuava oprimindo e não importava o grau de instrução. Também estavam atentos aos movimentos internacionais da Negritude, Pan-africanismo e aos processos de libertação dos países africanos, além da luta por direitos civis nos Estados Unidos da América. Abdias Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN) e editava o periódico Quilombo, que se espalhou pelo país. Em 1950, o TEN organizou o I Congresso do Negro Brasileiro, em que foi recomendado o “estudo das reminiscências africanas no país bem como dos meios de remoção das dificuldades dos brasileiros de cor e a formação de Institutos de Pesquisas, públicos e particulares, com esse objetivo” (NASCIMENTO, 1968, p. 293). Nascimento também questionava seus conteúdos, considerava o sistema educacional como instrumento para a manutenção da discriminação racial, que praticava a ostentação da Europa e dos Estados Unidos. Se a consciência é a memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte inalienável da consciência brasileira? Onde e quando a história da África, o desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características, do seu povo, foram ou são ensinadas nas escolas brasileiras? Quando há referência ao africano ou negro, é no sentido do afastamento e da alienação da identidade negra. Tampouco na universidade brasileira o mundo negro-africano tem acesso. O modelo europeu ou norte-americano se repete, e as populações afro-brasileiras são tangidas para longe do chão universitário como gado leproso. Falar em identidade negra numa universidade do país é o mesmo que provocar todas as iras do inferno, e constitui um difícil desafio aos raros universitários afro-brasileiros (NASCIMENTO, 1978, p. 95). Desta forma, exigia mudança nos conteúdos da educação formal, não bastava entrar no sistema educacional. É importante lembrar que até o período Vargas, a iniciativa privada era responsável por grande parte das escolas, mesmo quando gratuita, por isso na esfera pública letrada de afrodescendente a preocupação em criar e adentrar em espaços de instruções. Por conta da ditadura militar de 1964, as organizações sociais tiveram um refluxo e, mesmo sem desaparecer, as associações de afrodescendentes tiveram problemas de atividades e de organizar protestos. No final da década de 1970 foi possível o surgimento de organizações políticas, inclusive o surgimento o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial – que depois abreviou seu nome e até hoje é chamado de Movimento Negro Unificado ou MNU. 9 O surgimento do MNU estava combinado ao aniversário de 90 anos da Abolição da escravatura e dois fatos extremos de discriminação racial que ganharam destaque e se tornaram públicos. Em 28 de abril Robson Silveira, um jovem negro, foi morto enquanto estava sob a custódia policial, com sinais de tortura e sem nenhuma denúncia contra ele, e duas semanas depois quatro jovens negros foram expulsos do Clube de Regatas Tietê, onde jogavam vôlei. Durante os debates em comemoração ao 13 de maio de 1888, intelectuais, professoras/es, artistas e estudantes negras/os que frequentavam as associações culturais e cívicas apontaram para a necessidade de combater o racismo com outras armas, além da instrução e conscientização de negras/os. Era preciso pressionar as organizações públicas e privadasà “também combater e criar ações para expandir as oportunidades econômicas, educacionais, saúde e etc.” (ANDREWS, 1998, p. 302). Desta maneira, o discurso e as ações mudaram totalmente. Se antes as falas eram carregadas de valores das elites brancas, começaram a questioná-los, entendendo serem responsáveis pela discriminação. Portanto, não bastaria mais se educar, era preciso discutir a educação e como ela atuava (atua) no reforço das práticas discriminatórias. Em vez de somente dizer que as/os negras/os não buscam estudar, procuram saber o porquê disso e qual ação seguir para a eliminação desse problema. Ou seja, o “problema do negro” se torna o problema da sociedade brasileira. Durante o processo de redemocratização as entidades do Movimento Negro participaram de diversas discussões. Em 1986, houve a Convenção Nacional do Negro pela Constituinte. Nela os representantes desejavam que na educação fosse incluída a história do Negro no Brasil e da África, que também a propaganda de preconceitos de religião, de raça, cor ou classe fosse proibida. Ações estaduais e municipais também foram feitas, e alguns estados e cidades constituíram leis surgidas das reivindicações do Movimento Negro. MOVIMENTO NEGRO E AS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS Em 1995, durante a comemoração dos 300 anos de Zumbi dos Palmares, diversas organizações do Movimento Negro resolveram realizar uma grande marcha em Brasília denunciando a discriminação racial e os crimes e mobilizando a luta contra a desigualdade racial. Os milhares de manifestantes conseguiram uma declaração de Fernando Henrique Cardoso, então Presidente da República, concordando com a existência do racismo, seus males e o compromisso do governo brasileiro em combater toda e qualquer discriminação 10 racial. No ano seguinte foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, responsável por pensar medidas de ações afirmativas que atacassem as desigualdades sofridas pelas populações negras. Entretanto, não foi a primeira vez que se discutiu políticas de ações afirmativas para as populações negras no Brasil. Em 1983, o então deputado federal Abdias do Nascimento apresentou o projeto de Lei 1332, que pretendia criar mecanismos de compensação à discriminação racial. Suas principais propostas eram reservas de vagas para mulheres negras e homens negros no serviço público, 20% para cada, além de incentivos à empresa privada que contribuísse com a erradicação do racismo e incorporação da história e cultura africana e afro- brasileira nos livros didáticos, que as demonstrassem de forma positiva (SOARES, OLIVEIRA, 2012, p. 11-12). Tal projeto não foi aceito, assim como outros, feitos por ele, objetivando colocar em evidência a cultura e a história afro-brasileira, bem como a existência do racismo. Os projetos de Abdias Nascimento não foram aprovados porque negavam, consequentemente, a existência da democracia racial no Brasil, o que era impossível na época. A pressão de Organizações Não Governamentais do Movimento Negro e os fóruns internacionais sobre discriminação tornaram possível pôr fim à ideia de democracia racial e, assim, discutir o racismo, a desigualdade racial e todos os males causados por eles. Outra situação importante para discussão das relações raciais no Brasil foi a III Conferência Internacional contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, África do Sul, em 2001. Antes do evento, houve encontros entre acadêmicos e militantes que elaboraram as diretrizes de discussão a serem levados pela comitiva brasileira – o Brasil foi representado por 41 delegados e 5 assessores técnicos –, também colocaram nos meios de comunicação a brutal desigualdade racial existente entre brancos e negros no Brasil. A Conferência de Durban foi fundamental para o debate de políticas de ações afirmativas no Brasil porque, mesmo com a declaração de reconhecimento da discriminação e da desigualdade racial por Fernando Henrique Cardoso, muitos setores do Poder Público se recusavam a elaborar propostas contra os males do racismo. O Ministério de Educação foi um dos mais resistentes, insistindo que a desigualdade racial no sistema escolar era um problema social e do mau funcionamento do ensino básico público. Para Antônio Sergio Guimarães, em Durban, o empenho pessoal do presidente levou a chancelaria brasileira a aposentar definitivamente a doutrina da „democracia racial‟, reconhecendo, em fórum internacional, as desigualdades raciais do país e se comprometendo a revertê- las pela adoção de políticas afirmativas. Como consequência, depois de Durban, 11 vários segmentos da administração pública brasileira passaram a adotar cotas de emprego para negros, tais como os ministérios da Justiça e da Reforma Agrária. No entanto, no setor crucial, a educação, tudo que se logrou foi a criação de uma comissão de trabalho (GUIMARÃES, 2003, p. 255-256). A criação de reservas de vagas para pessoas negras é uma política de ação afirmativa, mas não é a única. Antes do Brasil, Estados Unidos, alguns países da Europa e da Ásia já utilizavam tais políticas para enfrentar problemas de intolerância e desigualdades causados por elas. Jacques d‟Adesky define ações afirmativas como um conjunto de experiências de correção de desigualdades oriundas de tensões raciais, étnicas ou religiosas, elas são formas de proteção de grupos em desvantagem social. A Índia foi onde se começou a usar as ações afirmativas, ainda no processo de emancipação colonial, passando pela Malásia, Holanda, Canadá, Inglaterra e França (GUIMARÃES, 2003). A experiência dos Estados Unidos é referência para a implementação do sistema brasileiro. Nos anos 1960, as instituições estatais norte-americanas, sob pressão do movimento de direitos civis, constituíram políticas de ação afirmativa, com destaque para a criação da Comissão Presidencial sobre Igualdade no Emprego e a decisão da Suprema Corte de proibir o uso de testes ou outros dispositivos para admissão que não se relacionassem ao desempenho de tarefas do ofício, em 1971. A proibição da Suprema Corte aconteceu no caso Griggs contra Duke Power Company. Para atender às políticas de igualdade de direitos, a companhia, que antes aceitava afro-americanos somente nos canteiros de obras, impôs teste de QI e diploma de segundo grau para a contratação de pessoas nas áreas fora do canteiro. Isso fez com que um número menor de pessoas negras fossem contratadas em comparação às brancas, além disso, o teste não era requisitado para os brancos e nem avaliava a competência em realizar as tarefas. Deste modo, para os juízes, a companhia realizava testes que não tinham a função de saber a capacidade dos candidatos, seja ao emprego ou promoção, mas sim discriminar afro-americanos. Para Ronald Walters, o ato da Suprema Corte colocou em questão não a intenção de discriminar, mas os efeitos dessas práticas sobre as vítimas. O autor ainda afirmar que a intenção em criar políticas de ação afirmativa é ajudar na formação de uma sociedade democrática, e “a medida em que os negros, no passado e no presente, são submetidos ao uso de critérios raciais em que decisões básicas para as suas vidas são tomadas por outras pessoas que não são eles mesmos, a promoção de igualdade exige um regime de melhoramento” (WALTERS, 1995, p. 131). 12 Existem muitas críticas às políticas de ações afirmativas, em especial o pensamento de que para garantir a democracia, deve-se dar chances iguais a todos/as e que caberia aos negros adquirir as habilidades necessárias à participação eficiente na ordem competitiva. Segundo Ronald Waltersexiste problema nessa argumentação. Em primeiro lugar, há uma lacuna construída historicamente entre brancos e negros de tal modo que os negros, muitas vezes, não são capazes de competir com os brancos. Em segundo lugar, mesmo nos espaços em que negros possuem as mesmas habilidades que os brancos, devido aos padrões injustos baseados na discriminação racial, os negros continuam impossibilitados de competir. E, por último, numa sociedade em que as formas de interação social são baseadas em círculos de convivência, como laços familiares, relações de amizade, entre outros, as oportunidades de empregos e negócios aparecem e são firmados nesses espaços. Como a desigualdade racial provoca uma separação significativa, a falta de acesso dos negros a essas interações sociais com os brancos, em termos de igualdade, lhes tem sido desvantajosa. Em nosso país, o problema, como diz Antônio Sérgio Guimarães é o fato do ideário antirracista de negação da existência de “raças”, fundiu-se rapidamente com uma política de negação do racismo como fenômeno social. Tal ideário, combinado com as duas ditaduras, engessaram a sociedade civil, contribuindo para a perpetuação de um silêncio criminoso sobre as múltiplas violências que atingiram de forma brutal as populações não brancas. Então, as raças no Brasil aparecem como produtos sociais, formas de identidade baseada numa ideia biológica errônea, mas eficaz socialmente para forjar, manter e reproduzir diferenças e privilégios (GUIMARÃES, 1999). Não por acaso, a primeira legislação antirracista, a famosa Lei Afonso Arinos, partia do pressuposto de que o Brasil não era uma sociedade racista. Sendo os poucos casos de agressão apenas manifestação de preconceito racial, atitude individual que tornada contravenção penal, um ato ilícito de pequena gravidade, que como tal, deveria receber uma punição branda. Desse modo, as iniciativas positivas no sentido de promover o desenvolvimento das populações negras são ainda muito tímidas. Outra dificuldade é a ausência de informações confiáveis que possam traçar em detalhe os aspectos das desigualdades no cotidiano. Nos últimos anos, o Movimento Negro e seus aliados antirracistas têm alcançado algumas vitórias importantes. O acesso ao ensino superior através do sistema de cotas, em universidades 13 públicas estaduais e federais, e por meio do Programa Universidade para Todos do Ministério da Educação (PROUNI), nas instituições privadas. Segundo informações publicadas no diário Valor Econômico, edição de 08.11.2011, com base nos Estudos do DATAPOPULAR, as mudanças sociais e econômicas produzidas na última década, fizeram com que a renda bruta dos negros chegasse em 673 bilhões de reais. Estes que correspondem hoje 51,7% da população, segundo a PNAD de 2009. Neste sentido, de acordo com Renato Meirelles, diretor do instituto, as políticas de ação afirmativa são fundamentais para agregar valor à renda dessas pessoas por meio do acesso à educação superior. Entretanto, outras políticas afirmativas foram as sanções das Leis 10.639 em 2003 e, a sua modificação, 11.645 em 2008, bem como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana de 2004. Essas medidas foram criadas para lidar com os problemas na educação básica, grau de escolaridade em que existe uma grande taxa de evasão das populações não brancas. Militantes e pesquisadores preocupados com a saída prematura de estudantes, notaram que uma justificativa repetitiva era a falta da sensação de pertencimento aos valores da escola. Isso ocorre porque os conteúdos ensinados causam constrangimentos nos estudantes não brancos, associados somente a escravos, índios dizimados na colonização, pessoas preguiçosas, que não contribuíram positiva e intelectualmente para a sociedade brasileira atual. O ensino universalista eurocêntrico transforma as populações de origem africana e indígenas em meros penduricalhos na história do Brasil. As leis 10.639/03 e 11.645/08 e as Diretrizes exigem a mudança de foco dessa história. Garantem que as populações indígenas e de origem africana tenham espaço de estudo, a partir de dinâmicas próprias e expondo suas atuações enquanto sujeitos na formação do Brasil e do mundo. Atualmente livros didáticos reformularam seus conteúdos para se adequarem às leis, cursos de formação de professores são oferecidos por secretarias de educação e diversas linhas de financiamento são abertas para que as Leis sejam implementadas, sendo problema a formação inicial. Mesmo com diversos concursos criados para a disciplina de História da África nas universidades públicas, as leis não exigem que esta disciplina seja obrigatória no ensino superior. Acabam voltando-se mais ao ensino básico. 14 Referenciais Bibliográficos ANDREWS, George Reid. 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