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s264 Acta Scientiae Veterinariae. 35(Supl 2): s264-s266, 2007. ISSN 1678-0345 (Print) ISSN 1679-9216 (Online) Anemia hemolítica em cães e gatos Hemolytic anemia in dogs and cats Rafael Almeida Fighera Doutorando, Programa de Pós-graduação em Medicina Veterinária, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Laboratório de Patologia Veterinária (LPV), Departamento de Patologia, UFSM, Santa Maria, RS/Brasil. E-mail: anemiaveterinaria@yahoo.com.br ABSTRACT Hemolytic anemia is the reduction in the numbers of an individual’s red blood cells (RBCs) due to shortening of the life span of these cells. There are several hemolytic disorders caused by infectious agents in dogs and cats, namely babesiosis, rangeliosis, trypanoso- miasis, cytauxzoonosis, hemobartonellosis, dirofilariasis and hemolytic anemia associated with the infection by the feline leukemia virus. Non- infectious disorders include immune mediate hemolytic anemia, hemolytic anemias caused by oxidative agents, microangiopathic hemolytic anemia, hemolytic anemias caused by inherited metabolic defects and inherited anomalies of the RBCs membrane. Hematological findings include hypochromic macrocytic anemia with signs of excessive regeneration. Changes in RBCs morphology are frequent and related to the etiopathogenesis of the process. The necropsy findings in dogs and cats that die due to hemolytic crisis include a wide spectrum of changes that make the diagnosis of this condition relatively easy; however, the definite accurate and specific diagnosis of each clinicopathological entity or precipitating disease is only achieved by the combined efforts among practitioners, clinical pathologists and pathologists. Key words: hemolytic anemia, clinical pathology, hematology, hematopathology, diseases of dogs and cats. INTRODUÇÃO A anemia hemolítica consiste na diminuição da quantidade de eritrócitos, e conseqüentemente no decréscimo da concentração de hemoglobina, que ocorre por uma queda na vida média eritróide. A expressão hemólise intravascular define a forma de hemólise em que ocorre a ruptura dos eritrócitos dentro dos vasos sangüíneos, já hemólise extravascular denota a retirada exacerbada dos eritrócitos pelo sistema fagocítico mononuclear. A hemólise extravascular é o principal mecanismo patogênico incriminado no desenvolvimento de anemia hemolítica em cães e gatos, e várias são as anormalidades que podem levar à retirada prematura dos eritrócitos da circulação. A ruptura de uma pequena parcela de eritrócitos na circulação (até 3%) ocorre fisiologicamente em todas as espécies. Dessa forma, um perfeito mecanismo de retirada da hemoglobina livre da circulação não permite que o pigmento se dissocie nos tecidos. Quando ocorre destruição acelerada dos eritrócitos dentro do vaso, a grande quantidade de hemoglobina livre no plasma supera a capacidade desse sistema de retirada, o que leva à hemoglobinemia e, conseqüentemente, deposição de hemoglobina nos tecidos, particularmente nos rins. Anemias hemolíticas infecciosas Vários são os distúrbios hemolíticos induzidos por agentes infecciosos em cães e gatos, dentre eles destacam-se: babesiose (principalmente em cães), rangeliose (apenas em cães), tripanossomíase (principalmente em cães), citauxzoonose (apenas em gatos), hemobartonelose (principalmente em gatos), dirofilariose (principalmente em cães) e anemia hemolítica associada à infecção pelo vírus da leucemia felina (FeLV) (apenas em gatos). Anemias hemolíticas não-infecciosas As anemias hemolíticas não-infecciosas são menos comuns do que os distúrbios induzidos por microorganismos, principalmente em regiões de clima tropical e subtropical. Contudo, em várias regiões do mundo onde o clima é temperado, distúrbios hemolíticos não-infecciosos são a principal causa de hemólise em cães e gatos. As anemias hemolíticas não-infecciosas são subdivididas de acordo com sua etiopatogênese em: imunomediadas, por agentes oxidantes, microangiopáticas, por defeitos metabólicos hereditários e por anormalidades hereditárias da membrana eritróide. Anemias hemolíticas imunomediadas As anemias hemolíticas imunomediadas resultam da diminuição da sobrevida eritróide mediada por imunoglobulinas e/ou pelo complemento e podem ser auto-imunes ou iso-imunes. A anemia hemolítica auto-imune é resultante da produção de auto-anticorpos contra a membrana do eritrócito, que pode ocorrer de uma maneira primária ou secundária. A anemia hemolítica auto-imune é considerada uma das causas mais freqüentes de doença hemolítica em cães, mas é descrita com uma freqüência muito menor em gatos. O termo primário ou idiopático é utilizado quando o distúrbio ocorre sem nenhuma doença subjacente ou precipitante, já hemólise imune secundária está ligada ao uso de fármacos, ao contato com substâncias químicas e à infecção por alguns microorganismos. Os fármacos mais incriminados são o levamizol em cães e o propiltiouracil em gatos. Em relação aos microorganismos, várias enfermidades infecciosas podem cursar com hemólise imune, dentre elas: babesiose (cães), rangeliose (cães), hemobartonelose (gatos) e anemia hemolítica associada à infecção pelo FeLV (gatos). Fighera R.A. 2007. Anemia hemolítica em cães e gatos. Acta Scientiae Veterinariae. 35: s264-s266. s265 Anemias hemolíticas por agentes oxidantes As chamadas anemias hemolíticas por agentes oxidantes são resultantes da quebra do metabolismo antioxidativo do eritrócito, uma alteração bioquímica que leva à formação de metemoglobina e, conseqüentemente, alteração na morfologia eritróide. O aumento nos níveis de metemoglobina causa desnaturação da molécula protéica, que pode ser visualizada na forma de inclusões eritróides conhecidas como corpúsculos de Heinz. Muitos agentes oxidantes possuem a capacidade de induzir essas transformações, eles podem estar presentes em plantas, fármacos ou substâncias químicas. Anemias hemolíticas microangiopáticas As anemias hemolíticas microangiopáticas são decorrentes da fragmentação eritróide devido a alterações da microvasculatura. Esses distúrbios levam à formação de microtrombos no interior dos vasos, o que faz com que as células se rompam no momento da aderência aos filamentos de fibrina. Teoricamente qualquer enfermidade que curse com alterações da microvasculatura e desencadeie formação de trombos pode originar anemia hemolítica, mas, na prática, os quadros são relacionados principalmente com síndrome hemolítico-urêmica e hemangiossarcoma. Anemias hemolíticas por defeitos metabólicos hereditários Anemias hemolíticas por defeitos metabólicos hereditários ocorrem raramente em cães e gatos, principalmente no que se refere a deficiências enzimáticas relacionadas com o metabolismo antioxidativo dos eritrócitos, ou seja, deficiências de enzimas da glicólise anaeróbica, da via do monofosfato da hexose e do metabolismo do glutation. Outros distúrbios meta- bólicos hereditários ainda mais raros ocorrem por alterações no metabolismo das porfirinas e dos nucleotídeos. Anormalidades hereditárias de membrana têm sido ocasionalmente descritas em cães, principalmente vinculadas a determinadas raças, dentre elas destacam-se a estomatocitose hereditária e a eliptocitose hereditária por deficiência da banda 4.1. Outras anemias hemolíticas Outras anemias hemolíticas, de causa desconhecida ou com patogênese que não se assemelha a nenhuma das anteriormente citadas, ocorrem em cães e gatos, dentre elas destacam-se a intoxicação por chumbo e a anemia hemolítica não-esferocítica hereditária. A anemia hemolítica não-esferocítica hereditária é um distúrbio idiopático herdado como um caráter autossômico dominante, descrito principalmente em cães das raças Poodle e Beagle. A intoxicação pelo chumbo pode levar ao desenvolvimento de anemia hemolítica em animais, embora mais comumente esse elemento cause anemia sidero- blástica por inibir enzimas do metabolismo das porfirinas. Hematologicamente, os distúrbioshemolíticos são vistos como anemia macrocítica hipocrômica com sinais de regeneração excessiva. Nos esfregaços observa-se anisocitose, policromasia, metarrubricitemia, rubricitemia, corpúsculos de Howell-Jolly e, ocasionalmente, pontilhado basofílico. A reticulocitose é uma constante, embora em raras ocasiões tenham sido descritos casos de anemia hemolítica arregenerativa. Em alguns casos podem ocorrer trombocitose e desvio à esquer- da regenerativo em pacientes que estão desenvolvendo processo hemolítico. Outros achados hematológicos estão relacio- nados à etiopatogênese do distúrbio e incluem, por exemplo, a presença de esferócitos (anemias hemolíticas imunomediadas), ceratócitos, esquizócitos (anemias hemolíticas microangiopáticas), corpúsculos de Heinz, excentrócitos, degmócitos, “células- fantasmas” e metemoglobinemia (anemias hemolíticas por agentes oxidantes). Muitas são as alterações da bioquímica clínica observadas em cães e gatos com doenças hemolíticas, relacionadas com cada doença hematopoética específica ou com cada condição primária que precipitou a crise. Entretanto, no geral, essas alterações incluem: aumento da alanina aminotransferase (ALT) e da aspartato aminotransferase (AST) pela necrose hepática secundária à hipóxia centrolobular decorrente da anemia grave, aumento da AST e da lactato desidrogenase e diminuição da haptoglobina pela ruptura dos eritrócitos no interior dos vasos sangüíneos, leve aumento da uréia e da creatinina decor- rente da má perfusão renal (azotemia pré-renal) em casos de hemólise extravascular e acentuado aumento nesses parâmetros nos casos de hemólise intravascular devido à necrose tubular aguda induzida pela hemoglobina (uremia renal). Os níveis de bilirrubina estão sempre aumentados em decorrência da hemólise extravascular, principalmente da bilirrubina indireta, um parâmetro de pouca valia clínica. No exame comum de urina, a urina pode estar amarelo-escura ou âmbar, em decorrência da grande quantidade de urobilinogênio e bilirrubina excretados (hemólise extravascular) ou apresentar uma coloração semelhante a do vinho-tinto em decorrência da grande quantidade de hemoglobina (hemólise intravascular). Nos casos de hemólise extravascular, o exame químico realizado com auxílio da fita reagente será positivo para bilirrubina. Se ocorrer hemoglobinúria, esse mesmo exame apontará sangue oculto em grande quantidade. A avaliação microscópica do sedimento urinário nos casos de hemólise intravascular com conseqüente hemoglobinúria revela grande quantidade de células renais e cilindros de hemoglobina. Os cães e gatos que morrem em decorrência de crise hemolítica apresentam na necropsia uma gama de achados que permitem o diagnóstico com certa facilidade. As mucosas externamente visíveis são ictéricas, principalmente quando a hemólise é extravascular, e o sangue é vermelho-claro e pouco viscoso. O baço é acentuadamente aumentado de volume e, ao corte, tem aparência carnosa. O fígado, que também freqüentemente está aumentado de volume, assume uma coloração vermelho-alaranjada em decorrência da grande quantidade de pigmento biliar e a vesícula biliar está freqüentemente distendida por bile espessa. Nos casos em que a hemólise é intravascular, no interior da bexiga há urina pigmentada por hemoglobina. Os rins são vermelho-escuros ou enegrecidos e a serosa do intestino delgado assume um tom róseo, típico de embebição por hemoglobina ante-mortem. A medula óssea é vermelha e ocupa toda a cavidade medular dos ossos longos. Fighera R.A. 2007. Anemia hemolítica em cães e gatos. Acta Scientiae Veterinariae. 35: s264-s266. s266 Vários são os achados histológicos que um quadro hemolítico poderá desencadear, dentre elas destacam-se a necrose tubular aguda induzida pela hemoglobinúria ou metemoglobinúria (nefrose hemoglobinúrica), a necrose hepática centro- lobular causada pela hipóxia, os infartos focais em decorrência do bloqueio de pequenos capilares por restos de eritrócitos rompidos nas anemias hemolíticas microangiopáticas ou por aglutinação de eritrócitos na doença das aglutininas frias e a hemossiderose em pacientes que se recuperam de distúrbios hemolíticos extravasculares crônicos. A medula óssea dos animais que desenvolvem crise hemolítica demonstra acentuada eritropoese, vista na citologia como queda na relação mielóide/eritróide e na histologia como substituição do tecido adiposo por células hematopoéticas com alta taxa mitótica. Focos de eritropoese extramedular podem ser observados com grande freqüência no baço e no fígado, e menos comumente nos linfonodos e nas adrenais. CONCLUSÕES Baseado em todos esses aspectos clínicos, laboratoriais e patológicos aqui retratados, observa-se que os distúrbios hemolíticos podem ser diagnosticados com certa facilidade, entretanto, é importante ressaltar que o diagnóstico definitivo de cada entidade clinicopatológica ou doença precipitante só será conseguido através do esforço conjunto entre clínicos, patolo- gistas clínicos e patologistas. REFERÊNCIAS 1 Feldman B.F., Zinkl J.G. & Jain N.C. 2000. Schalm’s Veterinary hematology. 5th edn. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 1344p. 2 Fighera R.A. 2001. Anemia em medicina veterinária. Santa Maria: Fighera, 214p. 3 Jain N.C. 1986. Schalm’s Veterinary hematology. 4th edn. Philadelphia: Lea & Febiger, 1912p. 4 Jain N.C. 1993. Essential veterinary hematology. Philadelphia: Lea & Febiger, 417p. www.ufrgs.br/favet/revista Supl 2
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