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História Antiga e Medieval Aula 19 Os direitos desta obra foram cedidos à Universidade Nove de Julho Este material é parte integrante da disciplina, oferecida pela UNINOVE. O acesso às atividades, conteúdos multimídia e interativo, encontros virtuais, fóruns de discussão e a comunicação com o professor devem ser feitos diretamente no ambiente virtual de aprendizagem UNINOVE. Uso consciente do papel. Cause boa impressão, imprima menos. Aula 19: A Baixa Idade Média: heresia e sociedade Objetivo: Abordar o problema da heresia durante a Baixa Idade Média (séculos X a XV) enquanto objeto de estudo na historiografia. Uma História total A historiografia sobre o período medieval evoluiu significativamente durante o século XX na medida em que abandonou a tradicional abordagem de História Política e procurou levar a cabo aquilo que o movimento dos Annales denominou de “História total”, isto é, a História de toda sociedade, e não somente aquela das camadas dirigentes. No caso da História medieval, o desafio de tal projeto acabou por tornar esta área de estudos um verdadeiro laboratório de experimentação de novas fontes, abordagens, modelos teóricos e metodológicos. O tom de desafio justifica-se por boas razões: durante o período medieval, a Igreja praticamente monopolizava a cultura escrita, de forma que boa parte das fontes utilizadas para a produção do conhecimento histórico registra, na verdade, a sua versão dos relatos. Todos os grupos que não produziram diretamente uma documentação escrita somente são conhecidos a partir do registro eclesiástico ocasional. Como compreender, então, o pensamento destes grupos? Seria possível acessar a interpretação que um camponês fazia de sua própria existência? Essa interrogação levou os historiadores a empreenderem uma busca sistemática por fontes que pudessem levar, ainda que indiretamente, ao conhecimento destas vozes silenciadas na História. É nesse sentido que o estudo das heresias medievais, entre outros temas, tem possibilitado avançar na direção da produção de uma “História total”. A heresia A palavra heresia é a latinização de um termo grego airesis, que quer dizer escolha. Ela representa a escolha de um caminho doutrinário conflitante com a ortodoxia formulada e mantida pela Igreja. Diferentemente do pagão ou do infiel, que cultuam outras divindades, ou do ingênuo que não crê no cristianismo pela ignorância de sua doutrina, o herege é um inimigo interno. Tendo recebido os ensinamentos da doutrina cristã e fazendo parte, portanto, da cristandade, decide deliberadamente divergir das diretrizes da Igreja, conservando-se, entretanto, cristão. A heresia é um desvio que implica, assim, múltiplos aspectos, na medida em que é não somente uma questão de consciência, mas é também uma questão política, pois desafia o poder espiritual e temporal da Igreja. Questão política, portanto, mas também uma questão social. Em primeiro lugar, porque a presença dos hereges supostamente provoca a desagregação dos grupos ortodoxos, atraindo sobre todos o castigo que deveria punir apenas os desviados. Mas, e principalmente, a heresia é uma instituição social, isto é, não é uma crença que se cultiva solitariamente na privacidade de uma consciência. A heresia implica a partilha das crenças heréticas, a doutrinação e uma ritualização particular, constituindo, assim, uma forma de instituição paralela àquela da Igreja oficial. Mais ainda, por tratar-se de crenças proscritas, deve ser praticada sob o manto da ilegalidade, do sigilo e da discrição. Este tipo de prática afeta diretamente a produção e a circulação dos ideais heréticos, pois todos os registros poderão ser utilizados como prova de acusação formal em um tribunal eclesiástico. A heresia circula, assim, utilizando-se principalmente da transmissão oral, prática típica da cultura popular durante a Idade Média. Embora sejam conhecidos livros heréticos, sua posse representava grande perigo, o que inibia sua produção e circulação. Embora muitas das doutrinas heréticas tenham sido formuladas por pensadores sutis e letrados, sua forma de circulação pela oralidade implicava um acesso mais próximo à realidade dos rústicos. É nesse quadro complexo de relações sociais que a pesquisa sobre as heresias medievais permitiu conhecer não somente os hereges ricos e nobres, mas ainda os pobres camponeses e uma grande quantidade de grupos marginais que não faziam parte dos esquemas de classificação social. Heresia, ordem e desordem social Como bem demonstrou Georges Duby, o esquema funcional que descreve a organização social medieval a partir de um esquema de ordens (sociais) deve ser reconsiderado criticamente. Essa concepção, elaborada no início do século XI, teve como um de seus principais formuladores o bispo Adalberon de Laon, que assim a registra: O domínio da fé é uno, mas há um triplo estatuto na Ordem. A lei humana impõe duas condições: o nobre e o servo não estão submetidos ao mesmo regime. Os guerreiros são protetores das igrejas. Eles defendem os poderosos e os fracos, protegem todo mundo, inclusive a si próprios. Os servos, por sua vez, têm outra condição. Esta raça de infelizes não tem nada sem sofrimento. Fornecer a todos alimentos e vestimenta: eis a função do servo. A casa de Deus, que parece una, é portanto tripla: uns rezam, outros combatem e outros trabalham. Todos os três formam um conjunto e não se separam: a obra de uns permite o trabalho dos outros dois e cada qual por sua vez presta seu apoio aos outros. (apud FRANCO JUNIOR, 2001, p. 89) No texto citado, a sociedade medieval é descrita a partir da interação mútua e ordenada de três grupos sociais (ordens): Oratores: os clérigos Bellatores: os guerreiros Laboratores: os trabalhadores Outro autor, contemporâneo de Adalberon de Laon, o também bispo Eadmer de Canterbury, utiliza-se de uma metáfora para registrar a mesma concepção: “A razão de ser dos carneiros é fornecer leite e lã, a dos bois trabalhar a terra, a dos cães defender os carneiros e os bois dos lobos” (apud FRANCO JUNIOR, 2001, p. 90) Georges Duby analisou com sagacidade esta concepção, apontando que ela não se refere a uma descrição da sociedade medieval tal como era historicamente, mas expressa uma idealização produzida por membros do alto clero para justificar a supremacia de alguns grupos sobre os demais. Mecanismo ideológico, portanto, que expressa uma ordem desejada, mas jamais alcançada. Mas esta concepção “prescritiva” (diz como a sociedade deveria ser) acabou por constituir, anacronicamente, o imaginário das gerações seguintes, que a tomaram como descritiva. É notável, nesse sentido, como ainda nos referimos à sociedade feudal como uma sociedade de “ordens”, constituída por “Sacerdotes, guerreiros e trabalhadores” (HUBERMAN, 1974, p. 11-25). O estudo dos grupos heréticos medievais lançou luz sobre a situação histórica concreta dos grupos sociais que estavam ausentes no discurso ideológico dominante, permitindo romper as amarras impostas pelo circuito da cultura letrada monopolizada pela Igreja. Eis o conteúdo desta aula. Acesse agora a plataforma AVA para aprofundar seus estudos e trocar informações com os colegas e com o professor. * O QR Code é um código de barras que armazena links às páginas da web. Utilize o leitor de QR Code de sua preferência para acessar esses links de um celular, tabletou outro dispositivo com o plugin Flash instalado. REFERÊNCIAS BATISTA NETO, J. História da baixa idade média (1066-1453). São Paulo: Ática, 1989. DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988. FRANCO JR., Hilário. As cruzadas. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. ______. A Idade Média: nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. ______. O feudalismo. 2. ed. São Paulo: Brasiliense. 1984. HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 10. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. LADURIE, Emmanuel Le Roy. Montaillou. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. A usura na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1989. ______. Os intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1989. QUEIROZ, Tereza Aline Pereira de. As heresias medievais. São Paulo: Atual, 1988.
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