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6- O DIREITO A PRESTAÇÕES DE SAÚDE

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O direito a prestações de saúde: complexidades, mínimo existencial e o valor das abordagens coletiva e abstrata
Ana Paula de Barcellos
Mestre e Doutora em Direito Público. Professora Adjunta da UERJ. Advogada.
I. O direito constitucional a prestações de saúde. Algumas complexidades.
			Falar de eficácia jurídica dos comandos constitucionais que tratam do direito à saúde significa dizer que há um conjunto de prestações de saúde exigíveis diante do Judiciário por força e em conseqüência da Constituição. Mais que isso, tal afirmação significa que os poderes constituídos estão obrigados a colocar à disposição das pessoas tais prestações, seja qual for o plano de governo ou a orientação política do grupo que, a cada momento, estiver no poder. Embora simples de enunciar, a questão está longe de ser singela.
			Na realidade, em um contexto de recursos públicos escassos, aumento da expectativa de vida, expansão dos recursos terapêuticos e multiplicação das doenças, as discussões envolvendo o direito à saúde – ou, mais precisamente, o direito a prestações de saúde – formam, provavelmente, um dos temas mais complexos no debate acerca da eficácia jurídica dos direitos fundamentais. Por certo é agradável afirmar de forma singela que os direitos à vida e à saúde são protegidos constitucionalmente e devem, portanto, ser assegurados pelo Poder Judiciário. A verdade, porém, é que quando se busca mapear de forma mais precisa o sentido e o alcance dessa afirmação, problemas complexos surgem e não é possível fugir deles. Diversas razões compõem esse quadro de complexidade.
			Em primeiro lugar, os enunciados normativos que versam sobre vida e saúde (como, e.g., o art. 196 da Constituição) buscam proteger e promover um bem da vida que não convive facilmente com gradações. Não há alguma coisa que possa ser descrita com simplicidade como um nível mínimo de saúde ou ainda um mínimo de vida. Ou faz-se um determinado tratamento e obtém-se a cura, ou o indivíduo permanecerá doente ou morrerá. O que seria o mínimo para o portador de leucemia em um estágio tal que a única prestação que lhe pode trazer alguma esperança é o transplante de medula? Ou para alguém com câncer? Em um contexto de recursos escassos, como o Direito pretender lidar com essa circunstância? 
			É certo que essa primeira dificuldade é apenas aparente do ponto de vista lógico. Se o critério para definir o que é exigível do Estado em matéria de prestações de saúde for a necessidade de evitar a morte, a dor ou o sofrimento físico, simplesmente não será possível definir coisa alguma. Praticamente toda e qualquer prestação de saúde poderá enquadrar-se nesse critério, pois é exatamente para tentar evitar a morte, a dor ou o sofrimento que elas foram desenvolvidas�. Na verdade, a maior ou menor eficácia das disposições constitucionais que tratam do tema deve estar relacionada às prestações de saúde disponíveis e não às condições melhores ou piores de saúde das pessoas, mesmo porque muitas vezes não há qualquer controle sobre o resultado final que uma determinada prestação de saúde produzirá no paciente.
			A questão, portanto, é que prestações de saúde podem ser judicialmente exigidas do Poder Público, a serem prestadas diretamente por ele ou pelo particular com custeio público, caso a Administração não possa ou não tenha meios de executar a prestação. Embora seja particularmente útil, do ponto de vista lógico, a distinção entre vida e saúde, de um lado, e prestações de saúde, de outro, ela não minimiza a dureza do tema sob a perspectiva pessoal e emocional e não resolve automaticamente o problema. A segunda dificuldade se coloca inexoravelmente: se essa é a questão, que prestações de saúde devem ser oferecidas pelo Poder Público afinal? Ou, de outra forma, a que prestações de saúde os indivíduos têm direito, ao menos nesse momento histórico, e, portanto, podem exigir? 
			Como é corrente, novas prestações de saúde estão em constante desenvolvimento (felizmente) a custos cada vez maiores: parece inviável conceber um sistema público de saúde que seja capaz de oferecer e custear, para todos os indivíduos, todas as prestações de saúde disponíveis. Com efeito, é difícil imaginar que a sociedade brasileira seja capaz de pagar (ou deseje fazê-lo) por toda e qualquer prestação de saúde disponível no mercado para todos os seus membros�. Ou seja: por vezes, a rede pública de saúde não oferecerá à população determinadas prestações já disponíveis na tecnologia diagnóstica e/ou terapêutica. A definição de quais prestações de saúde são constitucionalmente exigíveis envolve uma escolha trágica�, pois significa que, em determinadas situações, o indivíduo não poderá exigir judicialmente do Estado prestações possivelmente indispensáveis para o restabelecimento ou a manutenção de sua saúde. Esta é uma decisão que, verdadeiramente, gostaríamos de evitar. E este problema nos leva a um terceiro. 
			É certamente penoso para um magistrado negar, e.g., o transplante ou o medicamento importado que poderá salvar a vida do autor da demanda, pelo fato de tais prestações não estarem compreendidas no mínimo existencial que decorre da Constituição e nem constarem de qualquer outra norma jurídica ou de uma opção política adicional veiculada pelo Legislativo ou pelo Executivo�. Nesse contexto, as impressões psicológicas e sociais do magistrado, a quem cabe afinal aplicar a Constituição, não podem ser desconsideradas. Um doente com rosto, identidade, presença física e história pessoal, solicitando ao Juízo uma prestação de saúde é percebido de forma inteiramente diversa da abstração etérea do orçamento e das necessidades do restante da população, que não são visíveis naquele momento e têm sua percepção distorcida pela incredulidade do magistrado, ou ao menos pela fundada dúvida de que os recursos públicos estejam sendo efetivamente utilizados na promoção da saúde básica�.
			Um levantar de olhos e um olhar ao lado, todavia, embora não seja capaz de diminuir o drama humano envolvido nessas situações, revela outros dramas e proporciona um enfoque mais global do problema. Se é terrível negar uma determinada prestação de saúde a um indivíduo, que dizer das milhares de mães que morrem no momento do parto porque os hospitais públicos dos três níveis federativos não as assistem? Ou que dizer das crianças que morrem antes do primeiro aniversário por falta de acompanhamento pediátrico básico�? Ou daquelas que morrem em decorrência de doenças relacionadas com a falta de saneamento, ou as vítimas de malária, hipertensão, diabetes, doença de chagas etc?
 
			A rigor, a única diferença que distingue o autor de uma demanda judicial dessas milhares de pessoas é que estas não têm capacidade de mobilização, nem diante do Judiciário, nem diante da mídia; afora isso, as duas situações são igualmente dramáticas e envolvem decisões, no primeiro caso, do magistrado e, no segundo, do Legislativo e da Administração, acerca das prioridades na área de saúde. A falta de exposição pública das deficiências da saúde básica acaba por produzir um resultado perverso, que é fazer com que ninguém pareça se sentir pessoalmente responsável pela escolha igualmente trágica de investir os recursos em outras prioridades, deixando as pessoas desamparadas. Como se tais decisões houvessem sido tomadas por alguma modalidade contemporânea de mão invisível, e não pelos homens; como se não se tratasse afinal de uma decisão, mas de uma fatalidade, ou no máximo de uma culpa social, coletiva, difusa e inconsistente. 
			Na realidade, tanto em um caso como no outro, isto é, tanto quando o magistrado nega ou concede determinada prestação de saúde, como quando o Poder Público a coloca ou não à disposição (ou quando determinadas prestações são oferecidas em algumas áreas e não em outras), o fato é que sempre há uma decisão, explícita ou implícita, uma escolha que prioriza determinadas situações de necessidade em detrimento de outras. Ao imaginar-se que, através do Judiciário, noâmbito de ações individuais, toda e qualquer prestação de saúde pode ser obtida, criam-se vários problemas que dão origem a um círculo vicioso em que, no fim, a autoridade pública exime-se da obrigação de executar as opções constitucionais na matéria a pretexto de aguardar as decisões judiciais sobre o assunto, ou mesmo sob o argumento de que não há recursos para fazê-lo, tendo em vista o que é gasto para cumprir essas mesmas decisões judiciais. 
			Ocorre que – e neste ponto surge o quarto foco de complexidade na matéria – dificilmente se procura o Judiciário para obter tratamento, e.g., de hipertensão, diabetes, desnutrição, malária, doença de chagas, hepatite A, dengue, cólera, leptospirose, febre tifóide e paratifóide, esquistossomose, infecções intestinais ou ainda para atendimento cardiológico, oftalmológico ou ginecológico preventivo, pré e pós-natal, ou, por fim, para que o Judiciário ordene ao Poder Público a realização ou custeio de um parto. E é assim não porque essas necessidades estejam sendo atendidas perfeita e espontaneamente pelo Poder Público, mas porque a questão não chega aos olhos do Judiciário e a doutrina não tem discutido o tema a ponto de formar um massa crítica consistente. Ou seja: a saúde básica não é acudida nem pelo legislador e pelo administrador, embora este seja um dever jurídico que lhes é imposto pela Constituição, e nem pelo Judiciário.
			Algumas tentativas de lidar de forma mais adequada com as questões suscitas acima têm sido discutidas pela doutrina e mesmo pela jurisprudência. No presente estudo se vai tratar apenas de duas delas: a tentativa de construção de um mínimo existencial em matéria de prestações de saúde e a colocação do debate, sem prejuízo do plano individual, também no plano das discussões coletivas e abstratas.
II. Tentativa 1 de lidar com a questão: a construção de um mínimo existencial em matéria de prestações de saúde
			A Constituição de 1988 ocupou-se das condições materiais de existência dos indivíduos, pressuposto de sua dignidade, dedicando-lhe considerável espaço no texto constitucional e impondo a todos os entes da Federação a responsabilidade comum de alcançar os objetivos relacionados com o tema. Nesse contexto, como se sabe, a saúde foi um tema tratado com especial destaque. Nada obstante isso, boa parte dos enunciados normativos que tratam do tema assume a forma de princípios ou subprincípios que apresentam indeterminação, maior ou menor, em relação aos efeitos ou fins que pretendem atingir e, além disso, admitem uma multiplicidade de meios e condutas capazes de realizar tais efeitos ou fins. Esta, portanto, é uma questão importante: que efeitos os enunciados constitucionais em matéria de saúde pretendem produzir? Qual é, especificamente, o seu objeto? 
			A resposta convencional a essas questões simplesmente elimina o problema, transferindo-o integralmente para o Legislativo, ou mesmo para o Executivo. Ou seja: caberia a eles dispor a respeito dessas disposições constitucionais, concretizando-as e determinando-lhes o sentido. Essa, todavia, em primeiro lugar, não é uma resposta intelectualmente honesta. Em muitos momentos é possível identificar os efeitos pretendidos pelas disposições constitucionais, como se verá na seqüência. 
			Além disso, a solução de ignorar o problema também não é compatível com os princípios da supremacia da Constituição e do Estado de direito constitucional. Imaginar que cabe ao direito ordinário preencher de sentido as disposições constitucionais, em toda sua extensão, como se a Carta Magna fosse formada por um conjunto de cláusulas vazias e o legislador ou o administrador pudessem livremente dispor a respeito do seu conteúdo, subverte a relação hierárquica existente entre a Constituição e a ordem jurídica em geral. A que estarão vinculados Legislativo e Administração, afinal, se não aos objetivos e fins constitucionais? Embora Legislativo e Administração tenham um papel importante na concretização das metas constitucionais, se lhes competisse fixar livremente o contorno desses fins, que superioridade haveria na Constituição? 
			Por fim, remeter ao legislador e/ou administrador a determinação total dos efeitos dos enunciados em matéria de saúde esvazia inteiramente a fundamentalidade de tais comandos. Lembre-se que a consagração constitucional de tais previsões teve e tem sobretudo o propósito de formar um limite à atuação, ou à omissão, dos poderes constituídos, em garantia das minorias e de todo e qualquer indivíduo�. Se tudo passa a depender da própria atuação desses poderes, perde-se o sentido e a proteção.
			Qual seria, então, a resposta adequada para a questão dos efeitos dos comandos constitucionais? Muitas vezes não é possível, realmente, precisar em toda a extensão o efeito planejado pelo enunciado, mas apenas um conteúdo mínimo. E assim é porque no momento em que determinadas condições – que compõem esse mínimo – são desrespeitadas, há consenso� de que o princípio foi violado. Ou seja: é possível identificar um núcleo de condutas exigíveis e, para além desse núcleo, o enunciado constitucional poderá ser desenvolvido em função das opções do Legislativo e do Executivo em cada momento histórico.
			Note-se que em um Estado democrático e pluralista é conveniente que seja assim, já que há diversas concepções da dignidade que poderão ser implementadas de acordo com a vontade popular manifestada a cada eleição. Nenhuma delas, todavia, poderá deixar de estar comprometida com essas condições elementares, necessárias à existência humana (mínimo existencial), sob pena de violação de sua dignidade que, além de fundamento e fim da ordem jurídica, é pressuposto da igualdade real de todos os homens e da própria democracia�. A identificação desse núcleo, associado ao conceito de mínimo existencial, é igualmente um meio de lidar com outra dificuldade nessa seara: o problema dos custos, ao qual se fará referência adiante. Em suma, e já aplicando a discussão ao tema da saúde: as prestações que fazem parte do mínimo existencial – sem o qual restará violado o núcleo da dignidade da pessoa humana, compromisso fundamental do Estado brasileiro – são oponíveis e exigíveis dos poderes públicos constituídos. 
			É claro que, além desse conjunto de prestações mínimas, o Poder Público poderá optar por atender outras necessidades de saúde, e é bom, e constitucional, que o faça. A diferença em relação ao mínimo existencial está em que, em relação a este, o Judiciário pode praticar um ato específico: determinar concretamente o fornecimento da prestação de saúde com fundamento na Constituição e independentemente de existir uma ação específica da Administração ou do Legislativo nesse sentido.
			Há aqui um ponto importante. O Judiciário poderá e deverá determinar o fornecimento das prestações de saúde que compõem o mínimo, mas não deverá fazê-lo em relação a outras, que estejam fora desse conjunto. Salvo, é claro, quando as opções políticas dos poderes constituídos – afora e além do mínimo – hajam sido juridicizadas e tomem a forma de uma lei�. Também aqui caberá ao Judiciário dar execução à lei. No caso do mínimo existencial, entretanto, a eficácia decorre diretamente do texto constitucional e prescinde da intervenção legislativa. Ou seja: compete ao Judiciário, portanto, determinar o fornecimento do mínimo existencial independentemente de qualquer outra coisa, como decorrência das normas constitucionais sobre a dignidade humana e sobre a saúde. Cabe-lhe também, na seqüência, implementar as opções políticas juridicizadas que vierem a ser tomadas na matéria além do mínimo existencial, na forma das leis editadas. A questão a responder, portanto, é simples de enunciar, embora difícil de responder: em que consiste o mínimo existencial em matéria de saúde? Algumas idéias podem ajudar a reflexão sobre o tema.
			Ora, se todos são igualmente dignos, não é possível proceder a qualquer distinção com base em argumentos pessoais ou particulares. Tendo esse aspecto em vista, pode-secogitar de dois parâmetros capazes de diferenciar as prestações de saúde. O primeiro diz respeito à relação entre o custo da prestação de saúde e o benefício que ela poderá proporcionar para o maior número de pessoas, tendo em vista a quantidade daqueles que necessitam dessa espécie de prestação. Isto é: a preferência seria da prestação de saúde capaz de, pelo menor custo, atender de forma eficaz o maior número possível de indivíduos (é o caso, e.g., das campanhas de prevenção de epidemias através da administração em massa de vacinas).
			Este parâmetro, embora informado por uma saudável idéia de economicidade, certamente merece uma série de críticas, sendo a principal a de que ele consagra um critério utilitarista, como aponta John Rawls�. Pela lógica utilitarista justifica-se o sacrifício de alguns na medida em que tal ação reverta em benefício maior para a maioria, o que faz sentido sob um ponto de vista puramente majoritário e diante de uma situação inevitável de escassez e escolha, mas não se harmoniza com a idéia de igualdade essencial de todos.
			Um segundo parâmetro, que talvez seja capaz de sanar parcialmente os vícios do primeiro, propugna pela inclusão prioritária no mínimo existencial daquelas prestações de saúde de que todos os indivíduos necessitaram – e.g., o atendimento no parto e o acompanhamento da criança no pós-natal –, necessitam – e.g., o saneamento básico e o atendimento preventivo em clínicas gerais e especializadas, como cardiológica, ginecológica etc. – ou provavelmente hão de necessitar – e.g., o acompanhamento e controle de doenças típicas da terceira idade, como a hipertensão, o diabetes, entre outras.
			A lógica desse critério é assegurar que todos tenham direito subjetivo a esse conjunto comum e básico de prestações de saúde como corolário imediato do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, podendo exigi-lo caso ele não seja prestado voluntariamente pelo Poder Público�. Isso, lembre-se, afora tudo o que venha a ser decidido politicamente e juridicizado pelos grupos eleitos a cada momento.
			É interessante observar que as conclusões acima harmonizam-se em boa parte com as quatro prioridades estabelecidas pela própria Constituição para a área da saúde, a saber: 
(i) a prestação do serviço de saneamento (arts. 23, IX; 198, II; e 200 IV);
(ii) o atendimento materno-infantil (art. 227, § 1º, I);
(iii) as ações de medicina preventiva (art. 198, II); e
(iv) as ações de prevenção epidemiológica (art. 200, II).
			Concretizando um pouco mais essas prioridades, pode-se dizer que o atendimento materno-infantil (o saneamento será abordado ao final) descreve o acompanhamento pré e pós-natal da gestante e da criança, cujo objetivo principal é prevenir ou tratar doenças que possam afetar a saúde da mãe ou do menor, assegurando também um parto saudável. Isso porque, como se sabe, tanto o parto como os primeiros anos de uma criança constituem um período vital para a formação de suas condições de saúde para o resto da vida�.
			As ações de medicina preventiva são representativas de um conjunto especialmente amplo de ações de saúde, no qual pode ser incluída a prevenção epidemiológica. Afora a questão das epidemias, que envolvem formas específicas de prevenção – como a aplicação de vacinas, a pulverização de substâncias para o extermínio de transmissores de moléstias etc. –, a idéia de “ações de medicina preventiva” exigirá ainda um pouco mais de detalhamento.
			Um parâmetro interessante, que poderá ser utilizado pelo Judiciário na matéria, são as condições mínimas obrigatórias para os planos de saúde, conforme instituído pela Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispôs sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. A Lei nº 9.656/98, art. 12, instituiu quatro modelos de planos básicos, fixando as condições mínimas que cada qual deverá obrigatoriamente oferecer. Os modelos têm as seguintes denominações e seguem apresentados em ordem crescente de abrangência dos serviços oferecidos: (i) atendimento ambulatorial; (ii) internação hospitalar; (iii) atendimento obstétrico; e (iv) atendimento odontológico. As operadoras, naturalmente, poderão oferecer planos mais amplos e sofisticados; em qualquer caso, entretanto, não poderão oferecer menos do que o fixado em lei. 
			O plano que trata apenas de atendimento ambulatorial (art. 12, I, da Lei nº 9.656/98) – o mais limitado de todos, note-se – terá de oferecer, obrigatoriamente, nos termos da lei: (i) consultas médicas, em número ilimitado, em clínicas básicas e especializadas; (ii) serviços de apoio diagnóstico; e (iii) tratamento e demais procedimentos ambulatoriais�. Estas prestações, sem exclusão de outras, são certamente espécies do gênero medicina preventiva, de modo que deverão ser oferecidas obrigatoriamente pelo Estado.
			Ou seja: o particular poderá exigir, e o Judiciário determinar, que o sistema público de saúde realize gratuitamente, e.g., o parto, forneça a vacina necessária, faça o acompanhamento pós-natal da criança, ofereça o atendimento preventivo de clínica geral e especializada, entre outros. Também o Ministério Público e a Defensoria Pública poderão, com grande proveito para os interesses coletivos e/ou difusos e produzindo um impacto coletivo mais relevante (CF, art. 129, III), pleitear judicialmente que tais serviços estejam à disposição da população na quantidade e qualidade necessárias, em cada localidade e de forma permanente, ainda que para isso seja necessária a inclusão obrigatória da despesa no orçamento seguinte. Nesse particular, as associações, e em especial as associações de moradores, nos termos da Lei nº 7.347/85, poderão igualmente pleitear que o serviço seja prestado adequada e regularmente, ou que a comunidade possa utilizar instituições privadas equivalentes que existam na região, enquanto não houver estabelecimento público disponível na área�. Mais adiante se voltará ao tema da dimensão coletiva das prestações de saúde.
			É certo que o intérprete e o aplicador deverão ter especial cuidado para que não sejam violados os princípios da razoabilidade, da economicidade e da isonomia no caso concreto. Isso porque não será razoável ou isonômico que o paciente que obteve tratamento, por força de decisão judicial, em instituição privada, disponha de condições de atendimento muito superiores relativamente àqueles que vêm sendo atendidos pelo serviço de saúde prestado pelo Poder Público. Também a escolha da instituição privada que atenderá o paciente-autor deverá observar o princípio isonômico e o da economicidade, de modo a evitar favorecimento de algumas instituições em detrimento de outras de mesmo padrão, bem como a opção por condições luxuosas (ou obviamente superiores ao padrão médio) às custas do erário público.
			Por fim, ao lado do atendimento materno-infantil e das ações de medicina preventiva, o saneamento – entendido como o processo que inicia com a captação ou derivação da água, seu tratamento, adução e distribuição, e finda com o esgotamento sanitário e a efusão industrial – é uma das medidas de saúde básica mais importantes da atualidade�, merecendo tratamento à parte, já que apresenta outras dificuldades.
			Algumas informações sobre a importância do assunto serão particularmente úteis. Estima-se que 80% das doenças e mais de 1/3 da taxa de mortalidade mundiais decorram da má qualidade da água utilizada pela população ou da falta de esgotamento sanitário adequado�. Trata-se de doenças como a hepatite A, dengue, cólera, diarréia, leptospirose, febre tifóide e paratifóide, esquistossomose, infecções intestinais, dentre outras, que afetam particularmente crianças de até 5 (cinco) anos�. São conhecidas no meio médico, cruelmente, como “doenças de pobre”, ou “doenças do subdesenvolvimento”�. Desde meados da década de 80, a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera o saneamento como a medida prioritária em termos de saúde pública mundial�, até porque, de acordo com essa instituição, US$ 1 investidoem saneamento representa uma economia de US$ 5 em gastos com prestações de saúde curativas.
			No Brasil, embora as informações estatísticas utilizem como base exclusivamente os domicílios permanentes urbanos, estima-se que, em média, apenas 66,3% da população urbana seja atendida por rede coletora de esgoto pública e 80,64% dos domicílios permanentes urbanos sejam abastecidos pela rede geral de distribuição de água. Esses percentuais, é claro, variam de acordo com a região do país e são sensivelmente menores que a média na região Nordeste.�
			Pois bem. Se o Poder Público competente não implementa ações de saneamento básico adequadas, o que se pode fazer? O que se pode exigir judicialmente? A questão, como se vê, é ainda mais complexa do que as que foram abordadas até aqui, e seu exame admite uma subdivisão entre o saneamento básico propriamente dito e medidas acessórias que contribuem para a melhoria das condições de saneamento.
			O saneamento propriamente dito descreve a estrutura acima referida, que inicia com a captação ou derivação da água, seu tratamento, adução e distribuição, e finda com o esgotamento sanitário e a efusão industrial�. De sua própria descrição se pode perceber que o saneamento propriamente dito não é um serviço que se possa isolar, considerando cada indivíduo por ele beneficiado. Mais que isso, a construção das estações de beneficiamento de água e de tratamento de esgoto, da malha distribuidora e coletora e assim por diante atinge pelo menos um Município, no mais das vezes uma região metropolitana inteira (CF, art. 25, § 3º), e, por natural, é definitiva. Trata-se de um monopólio natural: a convivência de duas estruturas de saneamento, atendendo a mesma região, não é possível ou plausível. Por isso mesmo, o saneamento é tradicionalmente considerado um serviço público cuja execução, diferentemente do que se passa com a educação e a saúde�, só pode ser delegada aos particulares nos termos do art. 175 da Carta, ou seja, mediante concessão ou permissão precedida de procedimento licitatório.
			Assim, de acordo com os paradigmas atuais do direito constitucional, não é possível que um indivíduo, ou mesmo o Ministério Público, a Defensoria Pública ou a associação de moradores, diante da ausência de estruturas de saneamento em determinada localidade, possam pleitear sua construção pela iniciativa privada. Nada obstante a fundamentalidade do bem que é a saúde pública, a decisão que determinasse a execução do serviço de saneamento por uma empresa privada violaria outros subsistemas constitucionais de forma muito intensa. Considerando que apenas existirá um prestador do serviço de saneamento em cada localidade�, uma decisão judicial sobre a matéria, nos termos acima, estaria afastando a execução do serviço pelo próprio Poder Público, seu titular, além de decidir de forma definitiva a respeito não apenas da conveniência da concessão a particulares de sua execução, como também acerca do próprio concessionário.
			Desse modo, o máximo que parece possível pretender é a inclusão obrigatória no orçamento do ano seguinte da verba destinada a tal fim� ou, alternativamente, a juízo da autoridade administrativa competente, e respeitado o mesmo prazo, a delegação da execução do serviço a particulares, observado o procedimento constitucional e legal próprio. Em suma: ou a Administração investe os recursos públicos reservados no orçamento na construção das estruturas próprias de saneamento, ou delega sua execução aos particulares. O Poder Público estará obrigado a produzir o resultado saneamento no prazo fixado – o exercício seguinte –, cabendo-lhe a escolha de como fazê-lo.
 
			A situação é diferente quando se trate de medidas acessórias que contribuem para a melhoria das condições de saneamento, a que faz referência o art. 23, IX, da Constituição, valendo notar que o dispositivo referido confere competência comum a todos os entes federativos para a promoção de tais medidas�. São exemplos dessas medidas o recolhimento e o tratamento do lixo doméstico, a drenagem e limpeza de rios e valas etc. Nessas hipóteses, caso o Poder Público se recuse ou simplesmente não tenha meios para prestar tais serviços em determinada localidade, nada impede que, por força de decisão judicial, eles sejam executados por empresas ou entidades privadas, na forma como já se expôs acima. 
III. Tentativa 2 de lidar com a questão: discutindo o direito a prestações de saúde sob as perspectivas coletiva e abstrata
			O quadro que se expôs resumidamente no primeiro tópico deste estudo, e os problemas descritos, assumem como ponto de observação o individual e subjetivo. Ou seja: que serviços devem ser oferecidos pelo Estado aos indivíduos, que poderão, portanto, exigi-los, caso eles não sejam prestados. A mesma questão, porém, pode ser visualizada sob outra perspectiva.
			Parece não haver dúvida de que as políticas públicas em matéria de saúde, dentre outros objetivos, terão, necessariamente, de atender à saúde básica da população e alguns parâmetros para a construção de um mínimo existencial na matéria já foram descritos acima. Imagine-se, porém, que, a despeito do que dispõe a Constituição, em determinada localidade do país não haja posto de saúde ou que, embora ele exista, não haja médicos suficientes para atender ao quantitativo populacional; que não exista atendimento médico à gestante ou à criança nem serviços diagnósticos ou tratamentos ambulatoriais adequados. Imagine-se ainda que, a despeito da inexistência desses serviços, o orçamento municipal e/ou estadual do ano examinado ano não destina recursos para atender essa necessidade.
			Veja-se bem. Se o indivíduo tem direito às prestações referidas acima é porque se concluiu que o Estado tem realmente o dever jurídico de oferecer tal serviço. E se isso é verdade, esse dever existe não apenas em face do autor de uma eventual demanda judicial, mas também em face de todos aqueles que se encontrem em situação equiparável. Isto é: aqueles que não tiveram acesso a alguma das prestações referidas (e que eventualmente morreram na fila de um hospital público sem atendimento) não deixaram de ter direito a esse serviço, do ponto de vista jurídico, pela circunstância de não terem ido a juízo postulá-lo individualmente. 
			Dito de outro modo: da mesma forma que um indivíduo pode ir a juízo postular que o Estado cumpra o seu dever jurídico, também aqueles privados da fruição do mesmo bem ou serviço – porque, e.g., ele não é prestado em determinada localidade – poderão, diretamente ou por meio de algum substituto processual�, pretender judicialmente que o Estado cumpra seu dever, e.g., de instalar um posto de saúde na região. Em outras palavras: se o direito individual à prestação existe, deve haver igualmente a possibilidade de tutela coletiva (para defesa de direitos coletivos ou difusos), sobretudo quando se trate de pretensões materiais necessárias à dignidade humana. Mas é possível avançar um pouco mais no raciocínio.
			Se o Estado tem o dever de oferecer determinada prestação em matéria de saúde por força do próprio texto constitucional – isto é: se se trata de uma prioridade definida pela Constituição sob a forma de um consenso mínimo oponível a todos os grupos políticos –, parece lógico concluir que o Poder Público está obrigado a tomar decisões orçamentárias coerentes com esse dever. Veja-se: se o Estado está obrigado, pela Constituição, a oferecer serviços que custam dinheiro, concluir que o mesmo Estado estaria absolutamente livre para investir os recursos disponíveis como lhe pareça melhor – inclusive livre para não investir nos serviços referidos – parece um contra-senso.
			Nesse cenário, se há carência de postos de saúde, Executivo e Legislativo estão obrigados, no âmbito do orçamento, a destinar os recursos necessários à prestação de tais serviços. A não alocação de verbas nesses termos descreverá uma deliberação incompatível com a Constituição e, por isso mesmo, inválida. E se se trata de um deverjurídico – isto é: o dever de alocar os recursos necessários para a prestação de serviços exigidos constitucionalmente –, sua inobservância deve poder ser objeto de controle jurisdicional.
			Em outras palavras: se se entende que um indivíduo tem direito a determinada prestação de saúde é porque se concluiu que o Estado tinha o dever – a rigor prévio – de oferecê-la, não apenas ao autor da demanda, mas a todos que necessitem da mesma providência. E se há de fato esse dever oponível ao Estado – por se haver concluído que a prestação de saúde integra o conceito de mínimo existencial –, o Poder Público deve estar obrigado a destinar recursos para custear a prestação de saúde referida em caráter geral, sendo inválida a não alocação orçamentária nesses termos. 
			O que se quer destacar com esses exemplos é que a discussão acerca do direito a prestações de saúde não tem – não deve ter – reflexos apenas individuais. Para além do controle individual, e sem prejuízo dele, é possível cogitar de controles coletivos e mesmo abstratos. O controle coletivo já foi referido acima. Quanto ao controle abstrato, sua possibilidade decorre da seguinte circunstância: destinar recursos para determinadas finalidades específicas constitui uma regra constitucional cuja inobservância gera invalidade que deve poder ser sanada ou por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ou representação por inconstitucionalidade, a ser apreciada pelos Tribunais de Justiça�) ou, eventualmente, por meio de ADPF (assumindo que a questão envolverá preceito fundamental�), em qualquer caso perante o Supremo Tribunal Federal. 
			É certo que as conexões descritas acima – entre o controle individual e o coletivo e entre este e o abstrato – talvez tenham sido apresentadas de forma excessivamente singela. A elaboração consistente dessas ligações exige o exame sério de todos os aspectos pertinentes do problema que, entretanto, não serão discutidos aqui�. Seja como for, parece irrefutável a conclusão de que, sem prejuízo e para além do controle individual, os controles coletivo e abstrato têm um papel relevante a desempenhar na defesa dos aspectos materiais da dignidade humana e do que se identificou acima como mínimo existencial, ainda que a extensão e a profundidade desse papel ainda estejam em discussão. Na verdade, a importância das modalidades de controle coletiva e abstrata é alimentada de forma particular pelas limitações próprias ao controle subjetivo individual, que em determinados ambientes podem desencadear efeitos colaterais pouco desejáveis. É para esse aspecto particular do tema que se pretende chamar atenção.
			O controle subjetivo individual – isto é: a demanda individual ajuizada pelo interessado, titular do direito subjetivo – tem, por sua própria estrutura e natureza, de lidar com o argumento da reserva do possível. Com efeito, diante da alegação do Poder Público de que não há recursos ou de que os recursos disponíveis estão vinculados a outras despesas, nos termos do orçamento, há pouco que o magistrado possa fazer para examinar o ponto de forma consistente. A possibilidade de levar a cabo perícias do orçamento e da execução orçamentária dos entes públicos no âmbito de ações individuais não parece plausível. Assim, no mais das vezes, o magistrado tem três opções: (i) ignorar o argumento; (ii) curvar-se a ele; ou (iii) fazer um juízo de razoabilidade genérico, baseado na sua percepção (parcial) da realidade e no seu bom senso. Um magistrado pode considerar que uma prestação de R$ 50.000,00 deve ser custeada pelo Poder Público pois tal valor, imagina o juiz, provavelmente não interfere gravemente com as disponibilidades de recursos públicos; fosse o custo de R$ 500.000,00, porém, talvez a conclusão fosse diversa; fosse outro o juiz, é possível que outras fossem as conclusões. 
			Essa dificuldade, porém, parece ser substancialmente minimizada uma vez que o controle sobre a omissão estatal na prestação de determinado bem ou serviço se coloque no plano coletivo (para defesa de direitos difusos ou coletivos) e sobretudo no plano abstrato (constitucionalidade de alocações orçamentárias), e isso por algumas razões. Em primeiro lugar, a discussão coletiva ou abstrata exigirá naturalmente um exame do contexto geral das políticas públicas discutidas – o que em geral não ocorre no contexto de ações individuais –, tornando mais provável esse exame, já que os legitimados ativos (Ministério Público, Defensoria Pública e associações) terão melhores condições de trazer tais elementos aos autos e discuti-los. Será possível ter uma idéia mais realista de quais as dimensões da necessidade (isto é: qual o custo médio, por mês, do atendimento de todas as pessoas que se qualificam como titulares daquele bem ou serviço) e qual a quantidade de recursos disponível como um todo.
			Em segundo lugar, é comum a afirmação de que, preocupado com a solução dos casos concretos – o que se poderia denominar de micro-justiça –, o juiz fatalmente ignora outras necessidades relevantes e a imposição inexorável de gerenciar recursos limitados para o atendimento de demandas ilimitadas: a macro-justiça�. Ora, na esfera coletiva ou abstrata examina-se a alocação de recursos ou a definição de prioridades em caráter geral (e.g., o dever de construir um posto de saúde), de modo que a discussão será prévia ao eventual embate pontual entre micro e macro-justiças. Lembre-se ainda, como já se referiu, que a própria Constituição estabelece percentuais mínimos de recursos que devem ser investidos em determinadas áreas: é o que se passa com educação, saúde (CF, arts. 198, § 2º e 202) e com a vinculação das receitas das contribuições sociais ao custeio da seguridade social (CF, art. 195). Nesse caso, o controle em abstrato – da alocação orçamentária de tais recursos às finalidades impostas pela Constituição – torna-se substancialmente mais simples.
			É bem de ver que a noção de mínimo existencial foi em boa parte desenvolvida para minimizar, e quiçá neutralizar, essa primeira dificuldade observada no âmbito do controle subjetivo individual. A idéia é a de que o argumento da reserva do possível não pode ser suscitado contra a exigibilidade do mínimo existencial pois seu conteúdo descreve o conjunto de prioridades constitucionalmente definidas para a ação estatal.
			Isto é: prioritariamente a qualquer outra atividade, cabe ao Estado empregar recursos para o atendimento daquilo que se entenda, em determinado momento histórico de uma sociedade, o mínimo existencial. Assim, se algum indivíduo demonstra encontrar-se desprovido dos bens ou serviços inerentes a esse mínimo, é porque o Estado, em um momento anterior, terá agido de forma inconstitucional, destinando recursos a outros fins sem haver atendido, antes, a prioridade constitucional. Nesse contexto, ao empregar o conceito do mínimo existencial o juiz está dispensado de examinar o argumento da reserva do possível, uma vez que essa questão já terá sido avaliada quando da construção do próprio conceito.
			Nada obstante a grande utilidade e importância dessa idéia, a verdade é que seu emprego no âmbito das ações individuais eventualmente enseja dois efeitos colaterais pouco desejáveis. Em primeiro lugar, é compreensível a dificuldade que o magistrado possa ter de conter-se nos limites do mínimo existencial, sobretudo em áreas como as que envolvem prestações de saúde e assistenciais. Negar a um doente com rosto, identidade, presença física e história pessoal, que solicita ao Juízo uma prestação de saúde não incluída no mínimo existencial nem autorizada por lei, mas sem a qual ele pode vir mesmo a falecer, é uma decisão íntima dura e, por isso mesmo, freqüentemente não tomada�. O tema já foi examinado acima.
			Os problemas aqui são vários. A prestação de saúde concedida por um magistrado a determinado indivíduo deveria poder ser concedida também a todas as demais pessoas na mesma situação, pois o conteúdo do mínimo existencial é dado por prestações em relação às quais seja factívelafirmar que todos os indivíduos têm direito, e não apenas aqueles que vão ao Judiciário�. 
			Se a decisão judicial que concede determinado bem ou serviço não pode ser razoavelmente universalizada, acaba-se por consagrar uma distribuição no mínimo pouco democrática dos bens públicos: todos custeiam – sem que tenham decidido fazê-lo – determinadas necessidades de alguns, que tiveram condições de ir ao Judiciário e obtiveram uma decisão favorável. Repita-se que no caso do mínimo existencial, diferentemente, há sim uma decisão política fundamental – constitucional –, pela qual toda a sociedade comprometeu-se a custeá-lo para assegurar a dignidade de todos os homens, ao menos em patamares mínimos. O ponto já foi examinado e não é preciso voltar a ele.
			Ao mesmo tempo em que tais prestações são concedidas a autores isolados de ações judiciais, centenas de pessoas morrrem sem atendimento adequado na rede pública de saúde por falta de prestações que, por certo, estariam compreendidas no conceito de mínimo existencial. Talvez a omissão na oferta de tais prestações seja imputável a outras razões – que podem ir desde prioridades inconstitucionais na alocação de recursos, má gestão, até a prática de crimes –, que não guardem relação alguma com o custo gerado pela decisão judicial referida. É impossível não considerar, entretanto, que a verba necessária ao cumprimento da decisão judicial sai de uma mesma rubrica e reduz os recursos disponíveis para o atendimento do restante da coletividade.
			Não há como eliminar tais problemas e não é o caso, por óbvio, de impedir o processamento de demandas individuais, mas de tentar, paralelamente a elas, discutir a questão em outras sedes, de modo a produzir mais igualdade, ampliar a efetividade das disposições constitucionais e evitar efeitos colaterais observados no contexto das demandas individuais. Com efeito, uma vez que o tema deixe de ser discutido quase que exclusivamente no âmbito de ações individuais, para receber atenção também sob a perspectiva do controle coletivo e/ou abstrato, as distorções referidas poderão ser minimizadas. Até porque decisões tomadas no contexto desses controles já serão gerais, por sua própria natureza, atingindo a sociedade como um todo e, com isso, eliminando a distribuição desigual de que se tratou acima e produzindo maior igualdade no atendimento da população, sobretudo daquela que não tem acesso ao Judiciário. A própria percepção, por parte dos magistrados, de que as opções públicas na alocação de recursos não são aleatórias ou puramente caprichosas, mas sujeitam-se a alguma forma de controle vinculado à realização dos fins constitucionais, pode contribuir para uma melhor adequação ao seu papel institucional nesse contexto. 
			Em segundo lugar, e sob outra perspectiva, uma outra limitação inerente ao controle individual e subjetivo envolve a possibilidade de adaptação do conceito de mínimo existencial às alterações pelas quais a sociedade venha a passar. Embora menos comum, até porque menos freqüente no tempo, essa limitação merece também uma nota. 
			O conceito de mínimo existencial é construído historicamente, em face das circunstâncias e possibilidades da sociedade, tanto financeiras e econômicas quanto culturais, tomado o termo em sentido abrangente. A alteração desse quadro, ao longo do tempo, justificará a rediscussão e adaptação daquele conceito, sobretudo para fins de sua ampliação. Nada obstante, o magistrado, diante de uma demanda individual que lhe caiba conhecer e decidir, dificilmente terá condições de fazer essa avaliação. Faltar-lhe-ão sobretudo dados sobre, e.g., a expansão da capacidade financeira e econômica da sociedade, a situação do atendimento, pelo país afora, das necessidades associadas ao conceito de mínimo existencial com o qual se vinha operando até então, dentre outras considerações relevantes. No âmbito do controle coletivo ou abstrato, diversamente, tais elementos poderão ser examinados de forma mais consistente, viabilizando a evolução madura da noção de mínimo existencial e o avanço da discussão.
			Não deixa de ser curioso observar que, quando se trata de ações individuais, ou o magistrado sucumbe à tentação descrita acima – concedendo, generosamente, as prestações que lhe são solicitadas pelas partes, sem maiores preocupações – ou, restringe-se, conscienciosamente, aos limites daquilo que se convencionou integrar o mínimo existencial. Se esta segunda postura for adotada, os problemas indicados antes perdem importância. Nada obstante, em face da passagem do tempo e da alteração das circunstâncias sociais, se o único espaço de discussão para o tema for formado pelo conjunto de ações individuais, a ausência de dados para análise poderá levar à cristalização do conceito de mínimo existencial. Mais uma vez, a convivência de ações coletivas e abstratas com as individuais poderá vir a superar essa limitação.
			Por fim, uma última observação relevante. Embora toda e qualquer discussão judicial que determine prestações ou imponha custos ao Poder Público possa ser descrita como uma interferência nas políticas públicas, parece certo que quando essa interferência ocorre no plano das demandas coletivas ou das ações abstratas de controle de constitucionalidade seu impacto é substancialmente maior. Uma crítica que se poderia formular desde logo pode ser enunciada nos seguintes termos: por que o Direito e o Judiciário, a pretexto de interpretação do texto constitucional, deveriam, ou mesmo poderiam, imiscuir-se com um tema como esse – políticas públicas –, tipicamente reservado à deliberação política majoritária? A definição e a execução das políticas públicas já estariam submetidas ao controle político-social dos grupos de oposição e da população em geral, que manifesta sua opinião sobre o assunto ao menos nas eleições. A invasão pelo Direito, e pela Constituição em particular, do espaço próprio do pluralismo político produziria – alega-se – um grave desequilíbrio em prejuízo da democracia.
			Não há dúvida de que definir quanto se deve gastar de recursos públicos, com que finalidade, em que e como são decisões próprias da esfera de deliberação democrática, e não do magistrado. A própria Constituição o reconhece ao dispor sobre as competências do Executivo e do Legislativo no que diz respeito à elaboração do orçamento, a sua execução e controle. Assim, é certo, a invasão dessa seara pelo Direito poderia produzir um desequilíbrio equivocado, que sufocaria o funcionamento regular e o desenvolvimento da democracia. Nada obstante, há três outras assertivas, que também são certas, e que devem ser consideradas nesse mesmo contexto.
			Em primeiro lugar, tornou-se corrente a afirmação de que o gozo minimamente adequado dos direitos fundamentais, ou de pelo menos alguns deles, é indispensável para o funcionamento regular da democracia e, especificamente, para a existência do próprio controle social das políticas públicas. Isto é: ainda que não se quisesse reconhecer um valor autônomo a tais direitos e à sua proteção, ao menos será preciso assumir dois axiomas para que as pessoas possam participar do procedimento de deliberação�: reconhecer que todos os indivíduos são livres e iguais�. Sem o respeito a um conjunto básico de direitos fundamentais, os indivíduos simplesmente não têm condições de exercer sua liberdade, de participar conscientemente do processo político democrático e do diálogo no espaço público�. Em outras palavras: o sistema de diálogo democrático não tem como funcionar adequadamente se os indivíduos não dispõem de condições básicas de existência digna �. 
			Essa constatação teórica ganha especial significado em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil, nos quais uma quantidade significativa da população habilitada formalmente a participar do processo democrático vive em situação de pobreza extrema. Alguns dados ajudam a visualizar o quadro. Segundo informação disponível no site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome– MDS, em março de 2006, mais de 8,6 milhões de famílias, receberam o benefício do Bolsa-Família�, destinado a famílias que tenham renda per capita mensal de até R$ 100,00. A informação oficial dá conta, porém, que o programa atinge apenas cerca de 60% a 85% das famílias pobres (variando em função do Estado examinado)�. É possível imaginar então, de acordo com a avaliação oficial, que haja ao menos 11 milhões de famílias cujos membros vivem com até R$ 100,00 mensais. Imagine-se que em cada uma dessas famílias haja 3 (três) indivíduos habilitados para participar do processo democrático: 33 milhões de pessoas vivendo em situação de pobreza extrema. Note-se que não foram incluídas na estatística as famílias cuja renda per capita ultrapassa R$ 100,00, mas que não atinge, e.g., R$ 415,00 – valor do salário-mínimo a partir de 01.03.2008. 
			O ponto não é novo, nem especialmente complexo. Em condições de pobreza extrema ou miserabilidade, e na ausência de níveis básicos de educação e informação, a autonomia do indivíduo para avaliar, refletir e participar conscientemente do processo democrático estará amplamente prejudicada. Nesse ambiente, o controle social de que falavam os críticos do controle jurídico apresenta graves dificuldades de funcionamento. Há mais, porém.
			Na ausência de controle social, a gestão das políticas públicas no ambiente das deliberações majoritárias tende a ser marcada pela corrupção, pela ineficiência e pelo clientelismo�, este último em suas variadas manifestações: seja nas relações entre Executivo e parlamentares – freqüentemente norteada pela troca de favores� –, seja nas relações entre os agentes públicos e a população. Nesse contexto, manipulado em suas necessidades básicas�, o povo acaba por perder a autonomia crítica em face de seus representantes. É fácil perceber que corrupção, ineficiência e clientelismo minam a capacidade das políticas públicas de atingirem sua finalidade: garantir e promover os direitos fundamentais e, em particular, com prioridade, o mínimo existencial. Os recursos públicos são gastos, mas o status geral dos direitos fundamentais na sociedade sofre pouca melhora – ou apenas melhoras transitórias – e, a fortiori¸ as condições da população de participar adequadamente do processo democrático permanecem inalteradas. O ciclo então se renova: sem controle social, persistem a corrupção, a ineficiência e o clientelismo. Mais recursos públicos são desperdiçados e muito pouco se produz em favor da promoção dos direitos fundamentais. Esse, portanto, é o primeiro registro importante a ser feito.
			Em segundo lugar, a discussão sobre onde estabelecer a fronteira entre o direito constitucional e a política, apesar de poder e dever ser travada também no plano teórico, depende substancialmente das opções constitucionais concretas que cada país haja formulado. A deliberação majoritária que deu origem, no Brasil, à Carta de 1988, pode ter decidido conferir um espaço mais amplo ao direito, e impor maiores condicionamentos jurídicos aos poderes públicos, do que, e.g., a Constituição da Noruega ou do Chile.
			E embora as decisões veiculadas nas Constituições possam ser legitimamente criticadas e interpretadas de forma mais restrita ou abrangente em função do arcabouço teórico empregado pelo intérprete, elas certamente não podem ser ignoradas. Seria no mínimo irônico que o teórico do direito, a pretexto de defender o espaço democrático, ignorasse a deliberação majoritária concretizada na Constituição, para substituí-la por sua própria convicção sobre a matéria.
			Em terceiro lugar, é importante não transformar a questão em uma falsa escolha entre dois extremos. Não existem apenas duas opções radicais: a colonização total da política pelo direito ou a absoluta ausência de controle jurídico em matéria de políticas públicas. Existem possibilidades intermediárias de controle aguardando desenvolvimento.
			Algumas conclusões podem ser esboçadas quanto aos temas que se acaba de examinar. A primeira delas é a de que, no contexto de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento como o Brasil, o debate em torno do controle jurisdicional de políticas públicas em muitas ocasiões está relacionado de forma direta com a garantia e promoção daqueles direitos elementares reconhecidos como necessários ao próprio funcionamento da deliberação democrática. Ou seja: a discussão brasileira se desenvolve, no mais das vezes, em um momento prévio, de construção das condições indispensáveis para a existência afinal de um debate público e democrático. Junte-se a isso, no caso brasileiro, que a Carta de 1988 decidiu juridicizar variados temas nesse ambiente; a inconveniência que algum teórico visualize nessa opção não altera o fato da sua existência. 
			Em todo o caso – e essa é uma segunda conclusão importante –, deve-se reconhecer a necessidade de contenção daquilo que se poderia denominar de “messianismo” jurídico. Exatamente por força do ambiente político e social dos países em desenvolvimento (de que o Brasil é um exemplo), a frustração e a impaciência com o ritmo e os frutos do processo democrático ordinário podem conduzir ao desprezo – ainda que velado – por esse processo, capaz de alimentar a tentação de malversar o direito para transformá-lo em instrumento de afirmação da concepção política do intérprete. O lembrete de que o direito constitucional e a política majoritária são fenômenos diversos, ainda que próximos, é da maior importância nesse contexto. 
IV. Conclusão
			A efetivação do direito à saúde se localiza na fronteira tormentosa e pouco nítida entre o campo do Direito e o do processo político majoritário. É bem verdade que a implementação judicial desse direito envolve necessariamente uma diminuição da esfera de decisão política do Poder Público. Nada obstante, é igualmente correto que a promulgação de uma Constituição escrita e rígida já traduz um ideal de limitação do processo majoritário, bem como que a supremacia da Lei Fundamental não constitui apenas um artifício retórico.
			Além disso, o que se tem à vista, diante do direito à saúde, não é algo de secundário ou supérfluo, mas a titularidade de uma posição subjetiva vinculada à satisfação de uma necessidade vital, pressuposto essencial da dignidade humana. Tratando-se, porém, de um direito prestacional, avolumam-se dificuldades teóricas e práticas relacionadas à sua exigibilidade em juízo. A tais dificuldades o direito à saúde agrega, ainda, e com especial evidência, os problemas psicológicos de se tomar uma decisão crucial à vida do jurisdicionado, sem perder de vista a unidade do Direito, uma visão global do Estado e da sociedade, e a escassez de recursos para fazer frente a necessidades ilimitadas. Enfim, o tema, como se vê, não é nada fácil.
			O presente estudo, porém, pretendeu fixar alguns parâmetros para a efetivação judicial do direito à saúde, posicionando-se de forma clara a favor da ampliação do papel dos controles coletivo e abstrato na matéria, a fim de que as decisões tomadas tenham subsídios melhores e em maior número, bem como de potencializar e universalizar os benefícios das medidas. Mas além – é claro – da concretização dos direitos fundamentais e da potencialização da democracia brasileira, o grande objetivo do artigo foi contribuir para a intensificação do debate acadêmico acerca de um tema tão complexo e importante como o direito à saúde.
� O TJRJ, por exemplo, excluiu os aparelhos auditivos do rol de prestações exigíveis entendendo que eles não são indispensáveis à preservação da saúde, v.: TJRJ, j. 13.02.2007, AI 2006.002.27573, Rel.ª Des.ª Cássia Medeiros: “Agravo de Instrumento - Antecipação de tutela ação de obrigação de fazer - Fornecimento gratuito de aparelho auditivo a pessoa necessitada. Decisão que, em Ação de Obrigação de Fazer proposta em face do Estado do Rio de Janeiro e do Município do Rio de Janeiro, concedeu a antecipação de tutela requerida, para determinar aos réus que forneçam à autora o aparelho de surdez descritona inicial. Encontra-se pacificado neste Tribunal o entendimento no sentido de que decorre dos artigos 6º e 196 da Constituição Federal e da Lei n.º 8.088/90 a responsabilidade solidária do Estado e dos Municípios relativamente ao fornecimento gratuito de medicamentos a pessoas necessitadas (verbete sumular n.º 65). Embora o aparelho auditivo possa assegurar à agravada melhoria na sua qualidade de vida, inexiste prova inequívoca de que o mesmo é indispensável à preservação de sua saúde ou que esta se encontre em risco. Precedentes do Tribunal. Provimento do recurso para revogar a antecipação de tutela deferida”. No mesmo sentido, TJRJ, j. 02.08.2006, Ap. Civ. 2006.001.32130, Rel.ª Des.ª Suimei Meira Cavalieri: “Saúde pública. Aparelho auditivo. Hipossuficiência econômica. Ponderação entre o mínimo existencial e a reserva do possível. A Constituição da República assegura o direito à saúde e prevê, em contrapartida, o dever do Estado, mediante políticas sociais e econômicas, de viabilizar o acesso universal igualitário a serviços e ações para sua proteção e recuperação (art. 196). Para tanto, os recursos públicos, já tão escassos, devem ser destinados a pessoas hipossuficientes economicamente, a fim de atender ao maior número de necessitados e de forma igualitária, como determina a Lei Maior. Desse modo, o Poder Público cumpre seu papel quando assegura o mínimo existencial sob o limite da reserva do possível, uma vez que a realização do direito social à saúde, consistente em uma prestação positiva, está subordinada às possibilidades do orçamento. Na espécie, a insuficiência auditiva comprovada pela autora não se apresenta de forma grave a justificar o desembolso pelo orçamento público de tão elevada quantia (R$4.600,00). É fácil imaginar que a postulação coletiva de tal equipamento comprometeria a receita pública destinada a atender, com prioridade, os casos de urgência e enfermidade grave. Desprovimento do recurso”.
� Ronald Dworkin, Sovereign virtue. The theory and practice of equality, 2000, pp. 1-16, 65-73 e 308-19. O autor tenta propor critérios para definir quanto a sociedade (norte-americana, por natural) estaria disposta a pagar a título de prestações de saúde.
A discussão já começou a chegar ao STF e o ponto foi observado, ainda que de forma indireta, pela Ministra Ellen Gracie ao deferir em parte suspensão de tutela antecipada requerida pelo Estado de Alagoas para limitar a responsabilidade do Estado ao fornecimento dos medicamentos previstos na portaria pertinente do Ministério da Saúde. V. STF, DJU 05.03.2007, STA 91, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie: “Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados “(...) e outros medicamentos necessários para o tratamento (...)” dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade”.
� Guido Calabresi e Philip Bobbitt, Tragic Choices (The conflicts society confronts in the allocation of tragically scarce resource), 1978.
� Lei estadual do Rio Grande do Sul nº 9.494, de 7 de janeiro de 1992: dispõe sobre a obrigatoriedade de tratamento e internamento a portadores de AIDS e dá outras providências.
� Na medida em que avance o debate jurídico sobre o orçamento e as políticas públicas, é possível que essa percepção do magistrado, amplamente compreensível, sofra alguma alteração.
� Alguns dados estatísticos sobre mortalidade infantil e materna podem ser encontrados no sítio: <tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2005/matriz.htm>.
� Gilmar Ferreira Mendes, Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, 1998, p. 43: “A submissão dessas posições a regras jurídicas opera um fenômeno de transmutação, convertendo situações tradicionalmente consideradas de natureza política em situações jurídicas” (grifo no original).
� O recurso ao consenso social não introduz um dado de subjetividade ou de decisionismo extra à questão ou diverso do que já é comum a qualquer interpretação jurídica ou decisão judicial. A interpretação como um todo necessita recorrer, com maior ou menor intensidade e freqüência, ao sentido que razoavelmente se extrai de expressões e idéias em dado meio social e histórico. De toda sorte, registre-se apenas que só se pode falar de consenso social em um Estado no qual os direitos individuais, ao menos os direitos típicos de liberdade, sejam respeitados de forma consistente e contínua e no qual a imprensa seja livre. No Brasil, felizmente, estas são condições que se desenvolveram de forma bastante razoável desde a promulgação da Carta de 1988. Certamente é corriqueiro que não haja consenso a respeito de muitos temas pontuais no âmbito da sociedade. No que diz respeito à dignidade humana, isso também acontece. Superado o núcleo básico do princípio, é natural que haja diferentes concepções do que significa a dignidade e de como ela pode ser alcançada. Entretanto, se a sociedade não for capaz de reconhecer a partir de que ponto as pessoas se encontram em uma situação indigna, isto é, se não houver consenso a respeito do conteúdo mínimo da dignidade, estar-se-á diante de uma crise ética e moral de tais proporções que o princípio da dignidade da pessoa humana terá se transformado em uma fórmula totalmente vazia, um signo sem significado correspondente. Se não é possível vislumbrar a indignidade em nenhuma situação, ou todos os indivíduos desfrutam de uma vida digna – e aí sequer se cogitará do problema –, ou simplesmente não se conhece mais a noção da dignidade.
� Juan Carlos Gavara de Cara, Derechos fundamentales e desarrollo legislativo – La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn, 1994, pp. 219 e 227.
� Lei estadual do Rio Grande do Sul nº 9.494, de 7 de janeiro de 1992: dispõe sobre a obrigatoriedade de tratamento e internamento a portadores de AIDS e dá outras providências.
� John Rawls, Uma teoria da justiça, 1993, p. 40 e ss..
� TJRJ, j. 05.08.2003, Ap. Civ. 2003.001.07643, Rel. Des. Carlos C. Lavigne de Lemos: “A saúde está incluída entre os direitos sociais, sendo dever comum à Uniâo, Estados, Distrito Federal e Municípios, entes políticos que têm responsabilidade solidária. Princípios do mínimo existencial e da reserva do possível, que decorrem da dignidade da pessoa humana”.
� Informações sobre a importância da formação da criança de 0 a 6 anos podem ser encontradas no site da Secretária de Estado de Assistência Social (SEAS), Programa Atenção à criança de 0 a 6 anos. Disponível em: <www.presidencia.gov.br>.
� Luiz Antonio Rizzatto Nunes, Comentários à lei de plano privado de assistência à saúde, 2ª ed., 2000, pp. 2-3 e 37 e ss..
� Andreas J. Krell, Controle judicial dos serviços públicos básicos na base dos direitos fundamentais sociais. In: Ingo Wolfgang Sarlet (org.), A constituição concretizada – Construindo pontes com o público e o privado, 2000, pp. 34 e 57: “O controle dos Tribunais de Contas, onde houver, se restringe aos aspectos formais dos gastos. Até hoje existem municípios onde se gasta – legalmente! – mais dinheiro em divertimentos populares (contratação de ‘trios elétricos’) ou na manutenção da Câmara do que em toda área de saúde pública. (...) Um orçamento público, quando não atende aos preceitos da Constituição, pode e deve ser corrigido mediante alteração do orçamento consecutivo, logicamente com a devida cautela. Em casos individuais, pode ocorrer a condenação do Poder Público para a prestação de determinado serviço público básico, ou o pagamento de serviçoprivado (exemplo: reembolso das despesas de atendimento em hospital particular)”. Existente – como há – obrigação (e omissão) do Estado na matéria, parece razoável aplicar analogicamente o art. 249, do Código Civil de 2002: “Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível”. Apenas um detalhe: exige-se, porém, prévia decisão judicial autorizativa.
� Em 5 de janeiro de 2007 foi editada a Lei nº 11.445, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico.
� Catherine Allais, O estado do planeta em alguns números. In: Barrère Martine (org.), Terra, patrimônio comum, 1992, p. 250, apud Paulo de Bessa Antunes, Direito ambiental, 1996, p. 259. V. também sobre o tema Léo Heller, Saneamento e saúde, 1997. (Disponível em: <www.opas.org.br/ambiente/UploadArq/Saneam_Saude_Final.pdf>). 
� R. Franceys, J. Pickford y R. Reied, Guía para el desarrollo del saneamiento in situ, OMS, 1994, p. 9-10.
� Elida Sá, A reciclagem como forma de educação ambiental, Revista de Direito Ambiental 4:123, 1996.
� R. Franceys, J. Pickford y R. Reied, Guía para el desarrollo del saneamiento in situ, OMS, 1994, p. 4.
� Dados mais detalhados podem ser obtidos no sítio: <tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2005/matriz.htm>.
� No que diz respeito ao saneamento, a competência para a prestação do serviço será ou dos Municípios, se se tratar de interesse local (art. 30, V), ou dos Estados, conforme se cuide de interesse comum regional (art. 25, § 3º). 
� A própria Constituição autoriza expressamente a prestação dos serviços de saúde e de educação pelos particulares, concomitantemente com o Poder Público, de modo que não se aplica aqui o art. 175 da Constituição, como se vê dos arts. 199 e 209 da Carta.
� Ainda que seja possível desmembrar o processo de saneamento em si, de modo que empresas diversas executem, e.g., o tratamento da água e a coleta do esgoto, de toda sorte, em relação a cada uma dessas etapas, só poderá haver um prestador do serviço.
� Considerando-se a atual jurisprudência do STF em matéria de orçamento público, seria útil, ainda, acrescentar que tal determinação não se esgotaria na autorização dos gastos pertinentes, abarcando também – e principalmente – a execução concreta dos atos necessários à implementação do serviço em questão.
� CF: “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) IX – promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”.
� Como o Ministério Público ou a Defensoria Pública, por exemplo.
� A ADIn seria cabível apenas em face de leis orçamentárias federais e estaduais, já que não cabe ADIn em face de leis municipais. Estas poderiam ser discutidas em abstrato em face das Constituições dos Estados-membros, dependendo de seu teor.
� A tradicional jurisprudência do STF entendia incabível ADIn contra lei orçamentária por visualizar nela lei de efeitos concretos (QO na ADIn 1640-DF, DJ 03.04.98, Rel. Min. Sydney Sanches). No julgamento da ADIn 2.925-DF (Rel.ª Min.ª Ellen Gracie, DJU 19.12.2003, Rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio), porém, vários Ministros registraram a conveniência de modificar esse entendimento, tanto assim que a ADIn foi conhecida. Parece, no entanto, que o tema ainda se encontra em discussão na Corte.
� V., sobre o tema, dentre outros, Celso Antônio Bandeira de Mello, Controle judicial dos atos administrativos, Revista de Direito Público 65:27-38, 1983; Maria Paula Dallari Bucci, As políticas públicas e o direito administrativo, Revista Trimestral de Direito Público 13:134-44, 1996; Fábio Konder Comparato, Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, Revista dos Tribunais 737:11-22, 1997; Andreas Krell, Controle judicial dos serviços públicos básicos na base dos direitos fundamentais sociais. In: Ingo Wolfgang Sarlet (org.), A Constituição concretizada: construindo pontes entre o público e o privado, p. 25-60, 2000; Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Políticas públicas. A responsabilidade do administrador e do ministério público, 2000; Américo Bedê Freire Júnior, O controle judicial de políticas públicas, 2005; Ana Paula de Barcellos, Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas, Revista de Direito Administrativo 240:83 e ss., 2005; Eduardo Appio, Controle judicial das políticas públicas no Brasil, 2006; Ana Paula de Barcellos, Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (org.), A constitucionalização do direito, 2007, p. 599-636.
� Richard A. Posner, Economic analysis of law, 1992; Gustavo Amaral, Direito, escassez e escolha – em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas, 2001; e Flávio Galdino, Introdução à teoria dos custos dos direitos. Direitos não nascem em árvores, 2005.
� STJ, DJU 07.10.2002, RMS 13.452/MG, Rel. Min. Garcia Vieira: “Constitucional e Administrativo. Mandado de Segurança. Objetivo: reconhecimento do direito de obtenção de medicamentos indispensáveis ao tratamento de retardo mental, Hemiatropia, epilepsia, tricotilomania e transtorno orgânico da personalidade. Denegação da ordem. Recurso ordinário. Direito à saúde assegurado na constituição federal (art. 6º e 196 da CF). Provimento do recurso e concessão da segurança”; STJ, DJU 04.09.2000, RMS 11.183/PR, Rel. Min. José Delgado: “Constitucional. Recurso ordinário. Mandado de segurança objetivando o fornecimento de medicamento (riluzol/rilutek) por ente público à pessoa portadora de doença grave: esclerose lateral amiotrófica - ELA. Proteção de direitos fundamentais. Direito à vida (art. 5º, caput, CF/88) e direito à saúde (arts. 6º e 196, CF/88)”; STJ, DJU 09.02.2004, MS 8.740/DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha: “Administrativo. Mandado de segurança. Doença congênita grave. Mielomeningocele infantil. Necessidade de tratamento por meio de aparelho terapêutico não fabricado no país. Dever do estado. Direito fundamental à vida e à saúde”; e STJ, DJU 23.09.2004, REsp 625.329/RJ, Rel. Min. Luiz Fux: “Recurso especial. SUS. Fornecimento de medicamento. Paciente com bócio difuso tóxico com hipertiroidismo. Direito à vida e à saúde. Dever do Estado”. 
� Veja-se que é preciso estabelecer aqui um equilíbrio entre o dever ser e a distância máxima que ele ode manter do ser antes de se tornar inútil e perder sua capacidade de transformá-lo. As prestações do mínimo existencial devem ser concebidas considerando a capacidade financeira e econômica de uma dada sociedade em determinado momento histórico. Seria inútil construir um conceito inteiramente a-histórico e incapaz de se comunicar com a realidade. Por outro lado, o caráter normativo (dever ser) do mínimo existencial está em impor determinadas prioridades na utilização dos recursos globais existentes.
� John Rawls, Uma teoria da justiça, 1993, p. 221. V. também pp. 81 e 222. Mais especificamente, vale conferir os seguintes trechos de seu Liberalismo político, 1992, pp. 32 e 33: “En especial, el primer principio, que abarca los derechos y libertades iguales para todos, bien puede ir precedido de un principio que anteceda a su formulación, el cual exija que las necesidades básicas de los ciudadanos sean satisfechas, cuando menos en la medida en que su satisfacción es necesaria para que los ciudadanos entiendan y puedan ejercer fructíferamente esos derechos y esas libertades. Ciertamente, tal principio precedente debe adoptarse al aplicar el primer principio”. 
� Aulis Aarnio, Reason and Authority, 1997, p. 217 e ss.; e Robert Alexy, Derechos, razonamiento jurídico y discurso racional. Revista Isonomia 1:48-9, 1994.
� Jurgen Habermas, Direito e democracia entre facticidade e validade, vol. I, 2003, p. 154 e ss.; Antônio CavalcantiMaia, Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia. In: Ricardo Lobo Torrese Celso Albuquerque Mello (orgs.), Arquivos de direitos humanos, vol. II, 2000, p. 58 e ss.; Rogério Soares do Nascimento, A Ética do discurso como justificação dos direitos fundamentais na obra de Jürgen Habermas. In: Ricardo Lobo Torres (org.), Legitimação dos direitos humanos, p. 451-98, 2002; Gustavo Binenbojm, A nova jurisdição constitucional brasileira, 2001, p. 47 e ss.; e Cláudio Pereira de Souza Neto, Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático. In: Ricardo Lobo Torres e Celso de Albuquerque Mello (orgs.), Arquivos de direitos humanos, vol. IV, 2002.
� Sobre o tema das relações entre democracia e direitos fundamentais, v. Landelino Lavilla, Constitucionalidad y legalidad. Jurisdicción constitucional y poder legislativo. In: Antonio López Pina (org.), División de poderes e interpretación – Hacia una teoría de la praxis constitucional, 1997, p. 58-72; Tomás de la Quadra; Antonio La Pergola; Antonio Hernández Gil; Jorge Gustavo Rodríguez-Zapata; Zagrebelsky; Francisco P. Bonifácio; Erhardo Denninger e Conrado Hesse. Metodos y criterios de interpretación de la Constitución. In: Antonio López Pina (org.), División de poderes e interpretación – Hacia una teoría de la praxis constitucional, 1997, p. 134; e Francisco Fernández Segado, La teoría jurídica de los derechos fundamentales en la Constitución Española de 1978 y en su interpretación por el Tribunal Constitucional, Revista de Informação Legislativa 121:77, 1994: “(...) los derechos son, simultáneamente, la conditio sine qua non del Estado constitucional democrático”.
� Disponível em: <www.mds.gov.br/ascom/bolsafamilia/bf_poruf_part.pdf>. Acesso 20.05.2006.
� Disponível em: <www.mds.gov.br/ascom/bolsafamilia/bf_atendimento_uf.pdf>. Acesso em: 20.05.2006.
� Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001, p. 740: “Clientelismo: prática eleitoreira de certos políticos que consiste em privilegiar uma clientela (“conjunto de indivíduos dependentes”) em troca de votos; troca de favores entre quem detém o poder e quem vota”.
� O contingenciamento prévio, por parte do Poder Executivo, e posterior liberação de verbas de interesse dos parlamentares, tendo em conta seu nicho de atuação política, é um exemplo dessa espécie de relacionamento.
� Em geral por meio de políticas de assistencialismo populista que geram uma dependência permanente entre o eleitor e o agente público.
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