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Apostila de Neuroanatomia e Neurofisiologia Edição Final (2012) por Augusto Valadão Junqueira e colaboradores Perguntas frequentes e pontos importantes: 1) A apostila tem todas as matérias? R: Isso depende de eventuais mudanças nos programas das disciplinas, mas de uma forma geral faltam apenas dois tópicos de maior importância. O primeiro é a neuroplasticidade, e o segundo a vascularização do SNC. O último capítulo da presente apostila trata sobre vascularização do encéfalo, mas apenas o suprimento arterial. A drenagem venosa do encéfalo e a vascularização da medula espinhal não se encontram neste material. Ele também não apresenta capítulos que não eram cobrados na época de sua criação: embriologia do sistema nervoso, SNA e nervos espinhais. 2) O material é confiável? Por onde devo estudar? R: Embora o material tenha sido feito por alunos, nenhuma informação contida nele foi inventada (uma constatação bem evidente, mas que precisa ser dita). As referências bibliográficas usadas em cada tópico são devidamente apresentadas no fim de cada capítulo. Dito isso, entenda que o objetivo da apostila não é servir como fonte de questionamento para dados específicos. Este material foi criado como uma ferramenta de complementação ao estudo da neuro, e seu grande objetivo é auxiliar o entendimento da matéria. Recomenda-se ler a apostila antes ou depois de ler algum livro de referência, para ajudar a esclarecer alguns pontos e revisar o que você já estudou. 3) A apostila é atualizada? Com que frequência? R: Este material foi continuamente revisto e atualizado até o fim de 2012. A partir de 2013 o projeto cresceu e mudou de plataforma, dando origem a um canal no Youtube chamado Teoria da Medicina. Lá você encontra vídeo-aulas atualizadas de neuroanatomia, neurofisiologia, anatomia, farmacologia, imunologia e muitas outras disciplinas de base da Medicina com acesso livre para todos. Cada vídeo é um resumo explicativo feito utilizando como base no mínimo 3 a 4 livros de referência sobre o assunto, devidamente indicados na bibliografia de cada um. Para acompanhá-los e poder assisti-los quando quiser basta se inscrever no canal do Youtube e curtir a página criada no Facebook para divulgar o canal: www.youtube.com/teoriadamedicina www.facebook.com/teoriadamedicina 4) Existem ou ainda serão feitas outras apostilas? R: Eu, Augusto Valadão, criei apenas uma de neuroanatomia/neurofisiologia e uma de introdução à farmacologia, ambas acessíveis na reprografia (vulgo xerox) da FCMS/JF. Mas no canal Teoria da Medicina você encontra vídeos de diversas matérias, não deixe de conferir. E existe sempre a possibilidade de outros alunos criarem outras apostilas, o que certamente deveria ser mais estimulado. Lembre-se sempre disso: "Ninguém é tão grande que não possa aprender, nem tão pequeno que não possa ensinar." — Esopo, escritor da Grécia Antiga que viveu supostamente nos séculos VII/VI a.C. Apostila de Neuroanatomia e Neurofisiologia Edição Final (2012) por Augusto Valadão Junqueira e colaboradores 5) Como posso entrar em contato? R: Se tiver qualquer dúvida, sugestão, crítica ou correção a fazer fique a vontade para enviar um e-mail para teoriadamedicina@gmail.com - mesmo comentários relacionados às apostilas podem ser encaminhados para este e-mail, sem problemas. 6) Posso reproduzir/repassar este material para outras pessoas? R: Deve, mas evite reproduzir trechos isolados ou enviar apenas fragmentos, pois fora de contexto eles podem ser entendidos erroneamente. Este material foi desenvolvido e editado entre os anos de 2010 e 2012 por Augusto Valadão Junqueira, acadêmico de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora (FCMS/JF - Suprema), turma 2008-2014, e encontra- se em licença de atribuição Creative Commons (CC) - reprodução permitida, desde que inalterada, creditada e não usada para fins comerciais. Espero que o material seja tão útil para você ao estudá-lo quanto foi para mim ao escrevê-lo! — Augusto Índice dos capítulos: 1 - Visão Geral do Sistema Nervoso 2 - Tecido Nervoso 3 - Sinapses 4 - Medula Espinhal 5 - Vias Descendentes e Reflexos Motores 6 - Vias Ascendentes e Somestesia 7 - Tronco Encefálico 8 - Nervos Cranianos 9 - Cerebelo 10 - Núcleos da Base 11 - Diencéfalo 12 - Telencéfalo 13 - Sistema Límbico 14 - Vascularização do Encéfalo 1 Capítulo 1 – Visão Geral Uma introdução ao sistema nervoso Augusto Valadão Junqueira O sistema nervoso A primeira divisão que devemos ter em mente a respeito do sistema nervoso é a distinção estrutural entre sistema nervoso central (SNC) e sistema nervoso periférico (SNP). O central compreende tudo que se encontra dentro das estruturas ósseas, isto é, a coluna vertebral e o crânio. Na coluna vertebral encontra-se a medula espinhal, enquanto o crânio envolve o que chamamos generalizadamente de encéfalo. O encéfalo possui três estruturas básicas: o tronco encefálico, que se continua inferiormente com a medula; o cerebelo, ligado atrás do tronco encefálico na fossa posterior do crânio; e o prosencéfalo (termo embriológico usado por alguns autores), que pode ser dividido em telencéfalo (os dois grandes hemisférios laterais) e diencéfalo (a parte ímpar central). Há uma discordância entre os autores sobre a definição específica do termo cérebro: para alguns, cérebro é o mesmo que telencéfalo (Bear et al., 2008); para outros, o termo cérebro engloba o telencéfalo e o diencéfalo (Machado, 2006; Lent, 2005); há ainda os que defendem a inclusão do mesencéfalo (parte superior do tronco encefálico) ao telencéfalo e diencéfalo na definição de cérebro (Kandel et al., 2003). O sistema nervoso periférico liga o central aos órgãos efetores através dos nervos. Não é difícil entender que o SNC possui mais corpos de neurônios, enquanto o SNP é constituído principalmente por fibras nervosas. O sistema nervoso central, diferentemente do periférico, é também envolto por três camadas protetoras especiais por dentro do revestimento ósseo: as meninges (de fora para dentro: dura-máter, aracnóide e pia-máter). A principal função do sistema nervoso é integrar informações recebidas com ações ordenadas, tanto em um contexto exterior (a forma como nos relacionamos com o meio) quanto em um contexto interno (o controle de nossas funções fisiológicas internas). Tendo isso em vista, há outra divisão que diz respeito a uma distinção funcional, separando o sistema nervoso em sistema nervoso somático (SNS) e sistema nervoso visceral (SNV). O sistema nervoso somático (ou sistema nervoso da vida de relação) está ligado ao lado voluntário e consciente de nossas ações e sentidos. Será o responsável pela inervação da musculatura estriada esquelética (voluntária), bem como a condução da informação sensorial gerada pela impressão que o mundo aplica em nosso corpo. Soma quer dizer corpo, daí "somático". Origem Capítulo 1 – Visão Geral 2 semelhante tem a palavra somestesia1, que representará os sentidos do corpo. A somestesia inclui sensações exteroceptivas (dor, temperatura, tato e noção de pressão e vibração) e sensações proprioceptivas (termo que será amplamente estudado, ligado às informações de posicionamento do próprio corpo). O sistema nervoso visceral regula a atividade das vísceras através dos reflexos inconscientes do organismo, para manter a homeostasia (equilíbrio fisiológico) do meio interno. Controla a musculatura lisa (involuntária), as glândulas e a musculatura estriada cardíaca (também involuntária) através de seu componentemotor — o sistema nervoso autônomo (SNA; ultimamente também chamado de sistema nervoso vegetativo), dividido em simpático, parassimpático e entérico. Um sentido veiculado pela divisão visceral do sistema nervoso, por exemplo, é a sensação de plenitude alimentar após uma refeição. Há ainda tipos especiais de sentidos (olfato, visão, audição, equilíbrio e paladar), que serão estudados individualmente no capítulo de nervos cranianos. Figura 1.1 – Vista medial do encéfalo. Tálamo e hipotálamo são divisões do diencéfalo. A glândula pineal faz parte do epitálamo, outra divisão do diencéfalo. (Ilustrações: William de Andrade) 1 Não confunda com a sinestesia, que é uma mistura de sentidos. Uma "cor crocante", por exemplo. Capítulo 1 – Visão Geral 3 Figura 1.2 – Sistema nervoso central (SNC): encéfalo e medula. Os hemisférios cerebrais são também chamados de telencéfalo. O tálamo é uma estrutura do diencéfalo. O tecido nervoso Existem dois tipos celulares fundamentais no sistema nervoso: os neurônios (ou células nervosas) e a neuróglia (ou células gliais). Os neurônios representam a unidade funcional do sistema nervoso. São especializados em conduções elétricas rápidas, o que permite a comunicação eficaz de todo o sistema. Possuem um corpo (ou soma) e duas extremidades (comumente referidas como "processos"), de uma forma geral diferenciadas entre uma parte receptora (dendritos) e uma parte emissora (axônio). Os Capítulo 1 – Visão Geral 4 neurônios comunicam-se entre si pelas sinapses. Uma sinapse é um espaço físico — é de fato o espaço entre um neurônio e outro —, e não o fenômeno da transferência de dados, como muitos acham. O fenômeno do impulso propriamente dito chama-se transmissão sináptica. Os neurônios usam neurotransmissores para realizar a tarefa de codificar mensagens transmitidas nas sinapses. A neuróglia, composta por células gliais (ou células da glia), é cerca de cinco vezes mais abundante que o componente neuronal do tecido nervoso (Moore et al., 2007). É responsável pela sustentação, proteção e nutrição dos neurônios. Possui variações celulares entre o sistema nervoso central e o periférico, o que será melhor estudado no capítulo do tecido nervoso. É importante entender a diferença entre substância cinzenta e substância branca. A primeira refere-se a um aglomerado de corpos de neurônios, enquanto a outra é uma rede de fibras formadas por um agrupamento de prolongamentos de neurônios. "Branca" porque a mielina que envolve as fibras tem essa cor. No SNC a substância cinzenta pode formar um córtex (camada inteira de corpos neuronais) ou um núcleo (aglomerado de substância cinzenta isolado em meio à substância branca), enquanto no SNP tais aglomerados são chamados de gânglios. A única diferença prática entre um núcleo e um gânglio é o fato de estar localizado dentro ou fora do SNC. A substância branca forma tratos (ou fascículos ou ainda lemniscos, nomes que diferem apenas por uma questão quantitativa) no SNC e nervos no SNP, o que nos leva a um outro ponto importante: a diferença entre fibra nervosa e nervo. Uma fibra nervosa é um único axônio de um único neurônio, enquanto um nervo é a estrutura que envolve um agrupamento de muitas fibras (isto é, de muitos axônios). Há uma divisão do sistema nervoso baseada na diferença de organização das substâncias branca e cinzenta: sistema nervoso segmentar e sistema nervoso supra-segmentar. O segmentar inclui o SNP, a medula espinhal e o tronco encefálico. O supra-segmentar compreende o cérebro e o cerebelo. Na medula e no tronco, a substância cinzenta fica no centro e a branca a envolve (ou seja, há uma coluna central de corpos de neurônios envolta por um cilindro de fibras nervosas). No cérebro e cerebelo ocorre o inverso: envolvendo externamente a substância branca, a substância cinzenta forma uma fina camada de corpos neuronais, dando origem ao córtex cerebral e ao córtex cerebelar. Mesmo nas regiões supra-segmentares, entretanto, há corpos de neurônios em meio às redes de fibras da substância branca, mas aqui formando aglomerados mais dispersos e de distribuição irregular: são os já mencionados núcleos. Capítulo 1 – Visão Geral 5 O objetivo deste capítulo é iniciar uma familiarização aos termos da neurologia. Todos esses termos serão estudados individualmente com calma no capítulo referente a cada uma das estruturas do sistema nervoso. Não se preocupe com os nomes novos, ainda não é necessário que saiba todos. Com o tempo aprenderá tudo naturalmente. "Ao término do jogo, o rei e o peão voltam para a mesma caixa." — Provérbio italiano Referências 1. Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: Desvendando o Sistema Nervoso. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2008. 2. Haines DE. Neurociência Fundamental. 3rd ed. São Paulo: Elsevier; 2006. 3. Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da Neurociência. 4th ed. Barueri: Manole; 2003. 4. Lent R. Cem Bilhões de Neurônios. 1st ed. São Paulo: Atheneu; 2005. 5. Machado ABM. Neuroanatomia Funcional. 2nd ed. São Paulo: Atheneu; 2006. 6. Moore KL, Dalley AF. Anatomia Orientada para a Clínica. 5th ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2007. 1 Capítulo 2 – Tecido Nervoso Augusto Valadão Junqueira Lauren Mourão Poças Introdução O tecido nervoso apresenta dois principais componentes: 1) os neurônios, que são células com longos prolongamentos com capacidade de responder a estímulos e 2) as células da glia, que apresentam a função de defesa, revestimento e isolamento, ocupando o espaço entre os neurônios, e ainda participam de outras funções importantes abordadas mais adiante neste capítulo. No sistema nervoso central (SNC) há uma segregação entre os corpos celulares dos neurônios e seus prolongamentos, fazendo com que sejam reconhecidas duas porções distintas, denominadas substância branca e substância cinzenta. A substância cinzenta é formada principalmente por corpos celulares de neurônios, células da glia e prolongamentos de neurônios amielínicos. A substância branca não contém corpos celulares de neurônios, sendo constituída por prolongamentos de neurônios mielinizados e por células da glia. Dos principais componentes do tecido nervoso, o primeiro a ser abordado será o neurônio. Neurônios Os neurônios são células nervosas altamente excitáveis, formadas por um corpo celular, que aloja o núcleo e do qual partem prolongamentos. Quase todos os neurônios apresentam 3 componentes básicos: 1) Corpo Celular: é o centro trófico da célula, sendo também capaz de receber estímulos; 2) Dendritos: prolongamentos numerosos especializados na função de receber os estímulos do meio ambiente, de células epiteliais sensoriais ou de outros neurônios; 3) Axônio: prolongamento único especializado na condução de impulsos que transmitem informações do neurônio para outras células (nervosas, musculares e glandulares por exemplo). Capítulo 2 – Tecido Nervoso 2 Vale ressaltar que os corpos celulares dos neurônios localizam-se somente na substância cinzenta. A substância branca não apresenta corpos de neurônios, mas apenas prolongamentos destes. No SNP os corpos dos neurônios são encontrados em gânglios e seus prolongamentos constituem os nervos. Corpo Celular É o centro metabólico do neurônio, responsável pela síntese de todas as proteínas neuronais, bem como pela maioriados processos de degradação e renovação de constituintes celulares, inclusive de membrana. As funções de síntese e degradação justificam a presença das varias organelas envolvidas nas tais funções como riqueza em ribossomos, Reticulo Endoplasmático Rugoso e Liso, Complexo de Golgi e abundância em mitocôndrias relacionadas à síntese; e à riqueza em lisossomas chamados grânulos de lipofuscina comprovam a função de degradação. A forma e o tamanho do corpo celular são variáveis. Por exemplo: os grânulos cerebelares situados no córtex do cerebelo estão entre os corpos de menor diâmetro do corpo humano medindo apenas 4-5μm, enquanto nesse mesmo córtex, as células de Purkinje estão entre as maiores com diâmetro entre 50-80μm. Quanto a forma, o corpo celular pode se apresentar em formato estrelado, piramidal ou arredondado. Dendritos Em geral, são curtos assemelhando-se com galhos de árvore devido à ramificação profusa destes. Os dendritos aumentam, e muito, a superfície receptora dos neurônios, possibilitando a captação de grande variedade de estímulos, traduzindo-os em alterações do potencial de repouso da membrana. Axônio A grande maioria dos neurônios, senão todos, possui apenas um axônio, que apresenta um formato cilíndrico de comprimento e diâmetro variáveis que se origina do corpo ou de um dendrito principal, em região denominada cone de implantação. Estruturalmente, apresenta o axolema (membrana plasmática) e o axoplasma (citoplasma axônico) contendo microtúbulos, neurofilamentos, retículo endoplasmático liso, mitocôndrias e vesículas. É capaz de gerar, em seu segmento, um potencial de ação ou impulso nervoso que significa uma alteração do potencial de membrana, capaz de repetir-se ao longo do axônio conservando sua amplitude de 70-110mV até atingir a terminação axônica. Entretanto, podemos concluir que o axônio é especializado na geração e condução do potencial de ação. Tal especialização da membrana plasmática se Capítulo 2 – Tecido Nervoso 3 deve à presença de canais de sódio e potássio sensíveis à voltagem, isto é, canais que permanecem fechados no potencial de repouso da membrana e se abrem quando despolarizações de pequena amplitude os atingem. Morfologia De acordo com sua morfologia, os neurônios podem ser classificados nos seguintes tipos: 1) Neurônios Multipolares: apresentam mais de 2 prolongamentos celulares (vários dendritos e um axônio); 2) Neurônios Bipolares: possuem um dendrito e um axônio (ex: neurônios bipolares da retina e do gânglio espiral do ouvido interno); 3) Neurônios Pseudo-unipolares: próximo ao corpo celular, apresentam um prolongamento único, mas este logo se divide em dois, dirigindo-se um ramo para periferia formando a terminação nervosa sensitiva, e outro ramo para o SNC, estabelecendo contatos com outros neurônios. Neuróglia São as células mais freqüentes do tecido nervoso que se relacionam com os neurônios tanto do SNC como do SNP, com funções estruturais e metabólicas. No SNC, a neuróglia compreende os astrócitos, oligodendrócitos, micróglia e células ependimárias. Astrócitos São as maiores células de neuróglia e sua proximidade morfológica a uma estrela fez com que fosse atribuída a esse tipo de células, seu nome. São caracterizadas por inúmeros prolongamentos que se dirigem no sentido da superfície dos órgãos do SNC (encéfalo e medula), onde irão formar uma camada localizada na superfície do tecido nervoso, logo abaixo da pia-máter. Os astrócitos são reconhecidos por dois tipos: (1) astrócitos protoplasmáticos, localizados na substância cinzenta e; (2) astrócitos fibrosos, encontrados na substância branca. Ambos os tipos de astrócitos, através de expansões conhecidas como pés vasculares, apóiam-se em capilares sanguíneos. Pode-se dizer que estas células são de fundamental importância na constituição de barreira hematoencefálica. Seus processos contatam também os corpos neuronais, dendritos e axônios e, de maneira especial, envolvem as sinapses, isolando-as. Participam também do controle dos níveis de potássio extra neuronal, captando esse íon e, desta forma, contribuindo na manutenção Capítulo 2 – Tecido Nervoso 4 de sua baixa concentração extracelular. Compreendem o principal sítio de armazenagem de glicogênio no SNC havendo evidências de que podem liberar glicose para uso dos neurônios. As cicatrizes que se formam no espaço deixado pelos neurônios do SNC mortos por doenças ou acidentes são constituídas por astrócitos e decorrem de hiperplasia (proliferação) e da hipertrofia (aumento de volume) dessas células. Esse processo de proliferação de células de glia chama-se gliose. Oligodendrócitos São menores que os astrócitos e apresentam poucos prolongamentos. Essas células são encontradas tanto na substância branca quanto na cinzenta, apresentando-se nessa última, principalmente na proximidade dos corpos celulares dos neurônios, constituindo células satélites que formam uma simbiose com os neurônios. As células satélites dos gânglios nervosos (SNP) têm morfologia diferente e não são consideradas células da glia. Já na substância branca, os oligodendrócitos dispõem-se em fileiras, entre as fibras nervosas (oligodendrócitos interfasciculares) e são responsáveis pela formação da mielina em axônios do SNC. Micróglia As células da micróglia são macrofágicas, fazendo parte do sistema mononuclear fagocitário com funções de remoção, por fagocitose de células mortas, detritos e microorganismos invasores; aumentam no caso de inflamação, especialmente pelo novo aporte de monócitos, vindos pela corrente sanguínea Nesse caso, são denominados microgliócitos reativos, podendo estar repletos de vacúolos digestivos, contendo restos celulares. O corpo dessas células é alongado e pequeno, com núcleo denso e também alongado. São pouco numerosas, sendo encontradas tanto na substância branca como na cinzenta. Células Ependimárias Estas células derivam do revestimento interno do tubo neural embrionário e se mantêm em arranjo epitelial, enquanto as demais daí originadas se diferenciam em células da neuróglia. São células que forram, como epitélio, as paredes dos ventrículos cerebrais e do canal central da medula espinhal e estão em contato com o líquido cefalorraquidiano encontrado nessas cavidades. Nos ventrículos cerebrais, um tipo de célula ependimária modificada recobre tufos de tecido conjuntivo, rico em capilares sanguíneos, que se Capítulo 2 – Tecido Nervoso 5 projetam da pia-máter, constituindo os plexos coriódeos, responsáveis pela formação do líquido cefalorraquidiano. A neuróglia periférica (do SNP) compreende as células satélites e as células de Schwann derivadas da crista neural. As primeiras envolvem pericários dos neurônios dos gânglios sensitivos e do Sistema Nervoso Autônomo enquanto as células de Schwann circundam os axônios, formando sua bainha de mielina. Fibras Nervosas As fibras nervosas são constituídas por um axônio e suas bainhas envoltórias. Grupos de fibras nervosas formam os feixes ou tratos do SNC e os nervos do SNP. Todos os axônios do tecido nervoso do adulto são envolvidos por dobras únicas ou múltiplas formadas por uma célula envoltória. Nas fibras nervosas periféricas, estas células são as de Schwann. No SNC as células envoltórias são os oligodendrócitos. Axônios de pequeno diâmetro são envolvidos por uma única dobra da célula envoltória, constituindo as fibras nervosas amielínicas. Nos axônios mais calibrosos acélula envoltória forma um dobra enrolada em espiral em torno do axônio. Quanto mais calibroso o axônio, maior o número de envoltórios concêntricos provenientes da célula de revestimento. O conjunto desses envoltórios concêntricos é denominado bainha de mielina e as fibras são chamadas fibras nervosas mielínicas. A condução do impulso nervoso é progressivamente mais rápida em axônios de maior diâmetro e com bainha de mielina mais espessa. A bainha de mielina é descontínua, pois se interrompe em intervalos regulares, formando os nódulos de Ranvier. O intervalo entre dois nódulos é chamado de internódulo. Nervos Logo aos sair do tronco encefálico, da medula espinhal ou de gânglios sensitivos, as fibras nervosas motoras e sensitivas reúnem-se em feixes que se associam a estruturas conjuntivas (fibras colágenas), constituindo nervos espinhais e cranianos. Devido à cor da mielina, os nervos são esbranquiçados, exceto os raros nervos muito finos formados somente por fibras amielínicas. O tecido de sustentação dos nervos é constituído por uma camada fibrosa mais externa de tecido conjuntivo denso, o epineuro, que reveste o nervo e preenche os espaços entre os feixes de fibras nervosas. Cada um Capítulo 2 – Tecido Nervoso 6 desses feixes é revestido por uma bainha de várias camadas de células achatadas, justapostas, o perineuro. Dentro da bainha perineural encontram- se os axônios, cada um envolvido pela bainha das células de Schwann (já que nervo existe apenas no SNP), com sua lâmina basal e um envoltório conjuntivo constituído principalmente por fibras reticulares, chamado endoneuro. Referências 1. Junqueira LC, Carneiro J. Histologia básica. 9th Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1999. 2. Machado CRS. Tecido nervoso. In: Machado ABM. Neuroanatomia funcional. São Paulo: Atheneu; 2002.17-33. 1 Capítulo 3 – Sinapses Correntes que geram vida Augusto Valadão Junqueira Introdução Antes de mais nada, entenda o seguinte: uma "sinapse" é um local, uma região, um espaço físico. É o ponto de contato entre dois neurônios. Dependendo de onde for esse ponto em cada neurônio, poderemos ter diferentes tipos de sinapse: axodendrítica (ou seja, entre o axônio de um neurônio e o dendrito de outro – o tipo mais comum), axossomática (entre um axônio e um corpo neuronal, também chamado de soma) e ainda outros tipos menos comuns, como axoaxônicas, dendrodendríticas e somatossomáticas. Existem basicamente dois tipos de sinapse: as sinapses elétricas e as sinapses químicas. As químicas são as únicas que permitem modulação de informações, sendo as predominantes no ser humano. Quase tudo que estudaremos sobre sinapses será referente às sinapses químicas, bem mais sofisticadas e complexas. As sinapses elétricas servem como um mecanismo de sincronização celular, como veremos a seguir. Sinapses elétricas O termo-chave das sinapses elétricas é junção comunicante. As sinapses elétricas são representadas por junções comunicantes (GAP junctions) que tornam as células nervosas acopladas entre si, permitindo assim uma comunicação rápida e eficaz entre elas. A junção comunicante liga o citoplasma de cada célula, permitindo alto nível de interação intercelular. Forma-se, em geral, uma cadeia de células nervosas unidas pelas junções comunicantes, e portanto um potencial de ação gerado em uma delas irá se propagar imediatamente para as células vizinhas, indiferente a qualquer sentido de passagem da informação. Existem junções comunicantes unidirecionais (chamadas junções retificadoras), mas o mais comum são aquelas em que um sinal gerado se difunde em todas as direções. Nas células acopladas pelas sinapses elétricas não há processamento de informações, e portanto os potenciais gerados inicialmente se mantêm inalterados até o fim da cadeia. Há uma clara desvantagem nisso, já que dessa forma não há como modular sinais recebidos, condição sine qua non para todas Capítulo 3 – Sinapses 2 as avançadas funções neurais vistas no ser humano. Mas há também uma vantagem: a rapidez de transmissão permite a sincronização de numerosas populações de células acopladas, algo de grande importância, por exemplo, para a visão. Sinapses químicas Nas sinapses químicas há um espaço entre um neurônio e outro, a fenda sináptica. Isso gera dois "lados" na sinapse: uma membrana pré-sináptica, do neurônio por onde vem o impulso, e uma membrana pós-sináptica, do neurônio para onde o impulso seguirá. Não bastasse isso para diferenciá-las das sinapses elétricas, há ainda diversas especializações específicas nas membranas pré- e pós-sinápticas de cada sinapse química. As propriedades específicas das sinapses químicas permitem que elas sejam processadoras de sinais, enquanto as elétricas são apenas sincronizadores celulares. Enquanto na sinapse elétrica o agente transmissor é uma corrente iônica, na sinapse química a função de transmitir a mensagem entre um e outro neurônio será feita por um transmissor químico, o chamado neurotransmissor. As especializações das membranas sinápticas servirão para possibilitar a produção, liberação, captação e remoção desses neurotransmissores. No terminal pré-sináptico (onde se encontra a membrana pré-sináptica) há vesículas sinápticas, zonas ativas e grânulos de secreção. As vesículas sinápticas são estruturas de armazenamento para os neurotransmissores, que são pequenas moléculas produzidas no próprio terminal sináptico. As zonas ativas possuem duas funções principais: liberam cálcio no interior do terminal (como será visto adiante) e servem como ancoradouros para as vesículas sinápticas, durante o processo de transmissão sináptica que será descrito no próximo parágrafo. Nos grânulos de secreção ficam armazenados os neuromoduladores, que são produzidos no soma neuronal e então transportados ao terminal sináptico. As diferenças entre neurotransmissores e neuromoduladores serão discutidas mais adiante. A transmissão sináptica na sinapse química é um processo dígito- análogo-digital, isto é, começa de forma digital (impulso elétrico que vem pelo neurônio pré-sináptico), torna-se analógico (neurotransmissores transmitindo a mensagem na fenda sináptica) e volta a ser digital (um novo impulso elétrico é gerado pelo potencial de ação criado na membrana pós-sináptica). Analisemos esse fenômeno passo a passo. A corrente iônica (ou potencial de ação – PA) que chega na membrana pré-sináptica faz com que canais de 𝐶𝑎2+ voltagem- dependentes localizados nas zonas ativas sejam abertos, causando influxo de cálcio para o interior do terminal pré-sináptico. O aumento na concentração do Capítulo 3 – Sinapses 3 𝐶𝑎2+ intracelular faz com que as vesículas sinápticas se fundam com a membrana pré-sináptica, ancorando-se nas zonas ativas (por onde o cálcio entrou) para liberar seu neurotransmissor na fenda sináptica. Essa liberação pode ser feita de duas maneiras: a) por formação de um poro transitório quando a vesícula se une à membrana axoplasmática (membrana plasmática do terminal do neurônio); b) por exocitose completa da vesícula, que se fragmenta na fenda sináptica, com posterior endocitose que a faz voltar para o neurônio pré-sináptico. Uma vez liberados na fenda sináptica, os neurotransmissores se ligam a receptores moleculares presentes na membrana pós-sináptica. Os receptores (que podem ser ionotrópicos ou metabotrópicos) irão então iniciar diferentes processos que afetarão a membrana do neurônio pós-sináptico, gerando um novo potencial de ação que enviará a mensagemadiante, novamente na forma elétrica. As sinapses químicas, seguindo todo esse processo descrito, são estritamente unidirecionais. O neurotransmissor presente na fenda sináptica precisa também ser removido, ou passará a exercer uma ação tóxica. A remoção é feita por um dentre três processos, dependendo do neurotransmissor em questão: a) difusão lateral, em que o neurotransmissor naturalmente "escorrega" para os lados, até que saia da fenda; b) recaptação, em que o neurotransmissor volta ao neurônio pré-sináptico por ação de proteínas transportadoras específicas (principal meio de término das ações das catecolaminas); c) degradação, um processo enzimático que quebra o neurotransmissor em seus substratos (principal meio usado para terminar as ações da acetilcolina, que é degradada pela enzima acetilcolinesterase). Como se pode ver, na sinapse química ocorre um processo bem mais sofisticado que na sinapse elétrica. Isso permite que ela module as informações que passam por ela. É de fundamental importância que um fato nunca seja esquecido: a variação de efeitos que as sinapses químicas podem ter não depende tanto da variedade de neurotransmissores quanto depende da diferença entre os receptores. Ou seja, o que define a ação de uma sinapse não é o neurotransmissor liberado nela, mas sim o receptor que se encontra na membrana pós-sináptica. A acetilcolina, por exemplo, exerce função excitatória na placa motora (onde há receptores nicotínicos musculares), mas é inibitória quando liberada pelo sistema parassimpático no coração (onde prevalecem os receptores muscarínicos 𝑀2). Outro fator que também interfere no efeito de uma transmissão sináptica é a presença de neuromoduladores, que serão estudados ainda neste capítulo. Tendo em vista a importância dos receptores moleculares, veremos em mais detalhes os dois tipos existentes. Capítulo 3 – Sinapses 4 Receptores ionotrópicos x metabotrópicos O receptor molecular de uma transmissão sináptica serve não só para receber um neurotransmissor e gerar um novo potencial de ação no neurônio pós-sináptico (ação imediata), como também para modular a excitabilidade da própria sinapse, preparando-a para as próximas transmissões (ação antecipatória). Uma sinapse, assim, pode ser excitatória (em que há um potencial pós-sináptico despolarizante, aproximando do limiar o potencial de repouso da zona de disparo do neurônio) ou inibitória (em que há um potencial pós-sináptico hiperpolarizante, que afasta do limiar de disparo o potencial de repouso da membrana pós-sináptica). A forma como isso é feito, entretanto, difere os receptores em duas classes: os ionotrópicos e os metabotrópicos. Os receptores ionotrópicos são representados pelos receptores de canais iônicos. Eles têm uma ação mais rápida, pois são eles próprios os canais por onde a troca de íons (como o influxo de 𝑁𝑎+ e a saída de 𝐾+) se realizará no neurônio pós-sináptico. A ligação do neurotransmissor em um receptor ionotrópico causa neste uma mudança de conformação tridimensional (alosteria), abrindo assim o canal (isto é, o próprio receptor) e permitindo a passagem iônica através da membrana. Se o receptor fizer com que predomine o influxo de 𝑁𝑎+ para dentro da célula nervosa (o neurônio pós-sináptico), provocará a despolarização da membrana pós-sináptica e/ou irá gerar um potencial pós-sináptico excitatório (PPSE, já citado como despolarizante). Se, ao contrário, o receptor facilitar a entrada de 𝐶𝑙− ou a saída de 𝐾+, causará um estado de hiperpolarização: é o potencial pós-sináptico inibitório (PPSI, referido acima como hiperpolarizante). A transmissão sináptica rápida desses receptores é vista na maioria das ações motoras e dos processamentos perceptivos no sistema nervoso. Os receptores metabotrópicos são representados por três classes principais (receptores acoplados à proteína G, receptores ligados a quinase e receptores nucleares), que comandam os canais iônicos indiretamente. Neste caso, a função de receber e a função de executar são feitas por estruturas diferentes. O receptor irá apenas reconhecer o neurotransmissor e ativar uma molécula acoplada ao interior da membrana (como por exemplo a proteína G), que será então responsável pelas alterações pós-sinápticas que culminarão com a formação de um potencial de ação. A molécula intermediária do receptor metabotrópico pode fazer isso de duas maneiras: alterando diretamente a atividade de canais iônicos (utilizando-se para isso de proteínas efetoras que completam o efeito da transmissão sináptica, como acontece no caso dos receptores acoplados a uma proteína G efetora) ou ativando uma cascata de segundos mensageiros que acabarão por Capítulo 3 – Sinapses 5 fazer o mesmo (como acontece com os receptores acoplados a uma proteína G transdutora). A ação dos receptores metabotrópicos é mais lenta, relacionando- se a estados emocionais, humor, vigília e algumas formas simples de aprendizagem e memória. Neurotransmissores x neuromoduladores Revendo tudo o que já foi dito, podemos ter uma boa noção da diferença entre neurotransmissores e neuromoduladores: os neurotransmissores agem de forma imediata, passando adiante uma mensagem no momento em que são liberados na fenda sináptica. Eles podem criar potenciais excitatórios e inibitórios na sinapse, sim, mas neste caso mais por efeito dos receptores moleculares que do neurotransmissor; os neuromoduladores, por outro lado, como o nome sugere, focam-se na modulação do estado de excitabilidade sináptica, facilitando ou dificultando a ação dos neurotransmissores que serão eventualmente liberados. Os neurotransmissores, em sua maioria, são pequenas moléculas transmissoras sintetizadas no citoplasma do terminal sináptico e então capturadas e concentradas em vesículas (as vesículas sinápticas), onde ficam protegidas das enzimas de degradação presentes no citosol da célula nervosa. Exemplos consagrados são a acetilcolina (usada nas sinapses neuromusculares, nas sinapses pré-ganglionares do sistema nervoso vegetativo e nas pós-ganglionares da divisão parassimpática, além de diversas sinapses em todo o encéfalo, sendo produzida no núcleo basal de Meynert e liberada então para todo o córtex cerebral), as aminas biogênicas (representadas pelas catecolaminas – dopamina, noradrenalina e adrenalina –, a serotonina e a histamina), os aminoácidos transmissores (glutamato, GABA e glicina) e as purinas (o ATP – famoso por sua função de gerar energia ao ser quebrado nas mitocôndrias das células, o que, como estamos vendo agora, não é sua única função – e um de seus substratos, a adenosina). Em negrito neste parágrafo estão alguns dos neurotransmissores mais conhecidos e estudados. Os neuromoduladores não servem para criar um potencial de ação imediato. Eles apenas alteram o estado da sinapse: modulam a liberação de transmissores, a sensibilidade dos receptores ou a excitabilidade elétrica da célula pós-sináptica. Não são "pequenas moléculas", como dito para os neurotransmissores, mas sim neuropeptídeos (grandes moléculas que só podem ser produzidas no corpo neuronal, sendo então levadas ao terminal sináptico, onde ficarão nos grânulos de secreção) ou gases (como o NO, produzidos apenas no momento de sua liberação, por não ser possível retê-los em nenhuma estrutura). Os neuromoduladores se ligam a receptores Capítulo 3 – Sinapses 6 metabotrópicos e, através da molécula intermediária (proteína G ou uma tirosina quinase, por exemplo), acabam por ativar segundos mensageiros (como o AMPc) que afetarão a célula nervosa pós-sinápticaapós uma cascata de reações. Placa motora: acetilcolina A sinapse neuromuscular é um dos locais mais bem elucidados acerca da transmissão sináptica. Como é um contato nervo-músculo, trata-se de uma sinapse do SNP. Sendo assim, há uma importante peculiaridade a ser notada: a sinapse não será entre dois neurônios, como descrito até aqui, mas sim entre um neurônio e uma fibra muscular. A região da fibra muscular especializada para sediar uma sinapse é análoga à "membrana pós-sináptica", por ser também o lado final da sinapse. Essa região é chamada de placa motora. É simples de ser estudada e entendida, pois nela há basicamente um neurotransmissor (a acetilcolina) e um tipo de receptor (o receptor nicotínico muscular, que é um exemplo de receptor ionotrópico), ao contrário das sinapses no SNC (que envolvem diversos neurotransmissores e diferentes receptores simultaneamente). Um neurotransmissor, um receptor, um efeito. É assim que funciona a junção neuromuscular: ativação direta. O clássico liga/desliga, como se fosse uma espécie de interruptor. A fibra muscular está ou contraída ou relaxada; é verdade que um músculo pode possuir diferentes graus de contração, mas isso acontece porque em um músculo existem diversas fibras: a quantidade de fibras contraídas é o que define o estado de contração do músculo como um todo. Vista como unidade isolada, a fibra muscular permanece toda contraída ou toda relaxada. Quando um potencial de ação (PA) chega ao terminal nervoso de um neurônio motor pré-sináptico, causa a liberação de acetilcolina (ACh) na fenda sináptica pelos processos já explicados. Atingindo então a placa motora do outro lado da fenda sináptica, a ACh é captada pelos receptores nicotínicos (ionotrópicos) e faz com que eles se abram, liberando o fluxo de íons através da fibra muscular pós-sináptica. O influxo resultante de íons 𝑁𝑎+ produz o potencial sináptico despolarizante chamado potencial da placa motora, que é o que gera a corrente elétrica para causar a contração do músculo. Terminada a transmissão, a ACh é rapidamente degradada pela enzima acetilcolinesterase liberada na fenda sináptica. A placa motora volta ao seu potencial de membrana (potencial de repouso) e a contração termina. Importante notar que os receptores nicotínicos da placa motora são canais dependentes de ligantes, e por isso bem diferentes dos canais Capítulo 3 – Sinapses 7 voltagem-dependentes, porque: a) os canais voltagem-dependentes costumam ser seletivos para um tipo específico de íon (passagem de 𝑁𝑎+ ou 𝐾+), precisando ser ativados conjuntamente em sequência para gerar o potencial de ação corretamente, enquanto o canal dependente de ligante gera sozinho os potenciais da membrana pós-sináptica (a placa motora, no caso) ao permitir passagem tanto de 𝑁𝑎+ como de 𝐾+), com permeabilidade praticamente igual; b) o influxo de 𝑁𝑎+ nos canais voltagem-dependentes é um processo chamado de regenerativo, pois quanto mais canais se abrem, mais canais se abrem: uma vez iniciado o potencial de ação, ele é propagado até que todos os canais estejam abertos, seguindo o princípio do tudo-ou-nada. Os canais dependentes de ligantes, por outro lado, abrem-se em relação direta com a quantidade de ACh disponível. A despolarização produzida nesse caso não leva à abertura de mais canais ativados pelo transmissor. Para se ter uma ideia, se os canais nicotínicos musculares fossem voltagem-dependentes, toda a musculatura de uma dada região iria se contrair involuntariamente quando tentássemos contrair apenas um músculo – o que obviamente não acontece. A sinapse neuromuscular descrita até aqui foi aquela referente à musculatura estriada esquelética (voluntária). Quando se diz placa motora refere-se apenas aos músculos esqueléticos, mas como sabemos existem também dois outros tipos de musculatura – e em ambos a ACh é também utilizada. A acetilcolina, quando usada no coração pelo sistema parassimpático, encontra outro tipo de receptor nas células musculares cardíacas: o receptor muscarínico 𝑀2, um receptor metabotrópico hiperpolarizante (ou seja, de ação indireta e inibitória: completamente oposto ao nicotínico) responsável pelo efeito de bradicardia da ação parassimpática. A ACh é também usada pelo sistema parassimpático na musculatura lisa, onde há uma associação entre os dois tipos de receptores colinérgicos. Sinapses no sistema nervoso central A sinapse neuromuscular difere das sinapses centrais basicamente por três motivos: 1) uma fibra muscular é geralmente inervada por um único neurônio motor, ao passo que uma célula nervosa central conecta-se com centenas de outros neurônios; 2) as aferências recebidas pelas células musculares são sempre excitatórias, enquanto as células nervosas centrais recebem também impulsos inibitórios; 3) na placa motora é usado apenas um tipo de neurotransmissor, a acetilcolina, que ativa um único tipo de receptor, o nicotínico. No SNC diversos transmissores agem ao mesmo tempo em uma única célula, mediando sua atividade por diferentes canais iônicos. Os Capítulo 3 – Sinapses 8 neurônios centrais, portanto, diferentemente das fibras musculares, precisam integrar diversas aferências em uma única resposta coordenada. O neurotransmissor excitatório mais comum no SNC é o glutamato, enquanto o inibitório mais usado é o GABA. Veremos como funcionam os receptores de cada um. Glutamato e seus receptores: NMDA e não-NMDA Existem receptores glutametérgicos (que reconhecem o glutamato) tanto ionotrópicos (nos quais ele age de forma excitatória) quanto metabotrópicos (onde pode agir produzindo tanto excitação quanto inibição). Os receptores ionotrópicos são os que nos interessam agora. São divididos em três tipos: o NMDA (assim chamado por responder ao agonista glutamatérgico N-metil-D- aspartato), o AMPA e o cainato. Esses últimos dois são geralmente agrupados, por serem muito semelhantes, sendo chamados em conjunto de não-NMDA. O receptor glutamatérgico não-NMDA é o responsável por tirar a membrana de seu potencial de repouso, sendo permeável tanto ao 𝑁𝑎+ como ao 𝐾+ e funcionando de maneira muito parecida com a vista na placa motora (que é o padrão encontrado na maioria dos receptores ionotrópicos). O receptor NMDA possui peculiaridades marcantes que merecem ser analisadas, diferenciando-o não só do não-NMDA como dos demais receptores ionotrópicos vistos no SN. Primeiro, ele é um canal catiônico de alta condutância, sendo permeável também ao 𝐶𝑎2+, ao passo que pelo não-NMDA passam apenas o 𝑁𝑎+ e o 𝐾+. Segundo, ele é ao mesmo tempo um canal dependente de ligante e um canal voltagem-dependente. O ligante para que ele funcione precisa ser uma combinação: não basta ser glutamato, é preciso também que haja a presença da glicina, um outro neurotransmissor, formando um processo de cotransmissão (como será visto adiante). A voltagem necessária para que ele se ative é também por um motivo diferente do habitual: normalmente, um canal voltagem-dependente precisa da corrente elétrica porque assim ele sofre alterações conformacionais por um sensor de voltagem intrínseco à membrana; nos canais de NMDA, há uma partícula bloqueadora extrínseca (o 𝑀𝑔2+), que se liga a um sítio na região de abertura do canal e o fecha como uma rolha, bloqueando o fluxo de corrente. Quando a membrana é despolarizada, o 𝑀𝑔2+ é expelido do canal por repulsão eletrostática, permitindo que o canal se abra. Essa despolarização inicial necessária é geralmente causada pelos receptores não-NMDA, de funcionamento mais simples e ativaçãomais rápida. Os receptores não-NMDA, portanto, são responsáveis pelo "começo" da transmissão glutamatérgica (a excitação propriamente dita), enquanto os NMDA, mais lentos e de ação Capítulo 3 – Sinapses 9 prolongada (principalmente pela presença dos canais de 𝐶𝑎2+), assumem a função de manter os potenciais de excitação por mais tempo. Esse processo é importante, por exemplo, em alguns mecanismos da aprendizagem. GABA e seus receptores: GABAA e GABAB Enquanto a transmissão glutamatérica é o mais importante exemplo da ação de receptores despolarizantes (excitatórios), a transmissão GABAérgica é o principal exemplo do funcionamento visto nos receptores hiperpolarizantes (inibitórios). O GABA age em dois receptores: o GABAA e o GABAB. O primeiro é ionotrópico e o segundo metabotrópico. Ambos são inibitórios, mas por motivos diferentes. O GABAA é um receptor que serve como canal para a passagem de cloreto. O influxo de 𝐶𝑙− é o que causa a hiperpolarização da célula pós- sináptica. O GABAB, por sua vez, ativa uma cascata de segundos mensageiros (através de uma molécula intermediária como a proteína G, como vimos sobre os receptores metabotrópicos) que ativam canais de 𝐾+. A saída de 𝐾+ da célula, nesse caso, é o que causa a negatividade intracelular (isto é, o estado de hiperpolarização). Integração sináptica Tendo em mente todas as informações dadas sobre as sinapses químicas, há ainda um fator a ser considerado: "os potenciais sinápticos produzidos por um único neurônio pré-sináptico são caracteristicamente pequenos e não são capazes de excitar uma célula pós-sináptica suficientemente para que esta alcance o limiar para um potencial de ação" (Kandel et al., 2003). Tem-se assim uma questão que não pode ser resolvida simplesmente pela cotransmissão (uso de dois ou mais neurotransmissores na mesma sinapse, como glutamato e glicina) nem pela coativação (funcionamento conjunto de dois ou mais receptores, como o não-NMDA e o NMDA). Esse problema, visto principalmente no SNC, é resolvido por dois fatores: o espaço e o tempo. A somação espacial (vários neurônios pré-sinápticos agindo para estimular um mesmo neurônio pós-sináptico ao mesmo tempo) e a somação temporal (um ou mais neurônios pré-sinápticos estimulando um neurônio pós-sináptico na mesma região várias vezes, até que ele se ative) são os dois mecanismos responsáveis pela produção do potencial de ação na transmissão sináptica do SNC. Capítulo 3 – Sinapses 10 Há, entretanto, um outro problema: nem todas essas somações são qualitativamente iguais. Alguns neurônios excitam, outros inibem, outros modulam cada hora de uma forma. Essas aferências competidoras que um mesmo neurônio recebe são nele integradas por um processo chamado integração neuronal ou sináptica. Essa integração reflete a tarefa com a qual o sistema nervoso é constantemente confrontado: a tomada de decisão. "Uma célula nervosa, em qualquer dado momento, tem duas opções: disparar ou não disparar um potencial de ação" (Kandel et al., 2003). Ou seja, a implicação final de tudo que vimos neste capítulo foi já colocada por Shakespeare através de seu personagem Hamlet há 400 anos atrás: ser ou não ser, eis a questão. "Quem não souber povoar sua solidão, também não conseguirá isolar-se entre a gente." — Charles Baudelaire, poeta francês do século XIX. Referências 1. Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: Desvendando o Sistema Nervoso. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2008. 2. Guyton AC, Hall JE. Tratado de Fisiologia Médica. 11th ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2006. 3. Haines DE. Neurociência Fundamental. 3rd ed. São Paulo: Elsevier; 2006. 4. Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da Neurociência. 4th ed. Barueri: Manole; 2003. 5. Lent R. Cem Bilhões de Neurônios. 1st ed. São Paulo: Atheneu; 2005. 1 Capítulo 4 – Medula Espinhal Pilares de uma estrutura viva Augusto Valadão Junqueira O centro do centro O dicionário define medula como "centro, âmago, parte essencial". Temos, assim, a medula espinhal, a medula óssea, a medula da adrenal, o centro medular do cerebelo e qualquer outra coisa que se refira à parte central de algo. É importante diferenciarmos, portanto, cada uma dessas estruturas em que a palavra "medula" é empregada. A medula espinhal está no centro da espinha dorsal, isto é, da coluna vertebral. A medula óssea está obviamente dentro dos ossos, bem como a medula da adrenal é a parte central desta glândula. O centro medular do cerebelo, como veremos no capítulo específico do cerebelo, é — surpresa! — a região central do cerebelo. No estudo da neurologia, para fins práticos, sempre que dissermos apenas "medula" será uma referência à medula espinhal. A medula é parte do sistema nervoso, e portanto terá tudo que foi dito no capítulo introdutório: neurônios e células gliais, divididos em substância cinzenta e substância branca, com neurotransmissores sendo liberados em sinapses que conectam os diversos neurônios. É também, mais especificamente, parte do sistema nervoso central. Se lembrarmos do que isso significa, entenderemos que ela deve estar envolta por uma estrutura óssea. E está: é circundada pelas vértebras, que em seu conjunto formam a coluna vertebral. Uma característica especial do sistema nervoso central é a presença do envoltório meníngeo, como já foi comentado. Veremos a importância de cada um desses pontos. Vista longitudinal da medula Limitando-se cranialmente com o bulbo (a parte mais inferior do tronco encefálico), a medula vai até a altura do forame magno do crânio, onde há uma rápida alteração tecidual entre a região medular e a região bulbar. Caudalmente, a medula termina ao nível da vértebra L2 (ela de fato não acompanha a coluna vertebral até o final, como muitos poderiam pensar). Esse dado será importante, guarde-o. Guarde também o motivo de ser assim: o Capítulo 4 – Medula Espinhal 2 crescimento neural medular é mais lento que o crescimento ósseo ao longo do processo embriológico, e por isso a coluna vertebral (óssea) acaba por ficar maior que a medula espinhal (neural). Fenômeno oposto ocorre no córtex cerebral e cerebelar: como o crescimento neural dessas regiões é mais acelerado que o ósseo, elas acabam se dobrando de modo a formar giros e sulcos (ou folhas e fissuras), como ainda será visto. A medula termina afilando- se, formando em sua extremidade inferior uma ponta aguda conhecida como cone medular. Segmentos medulares. Eis aqui um tópico que merece ser estudado com atenção. Lembra-se da divisão das vértebras? Cervicais (7), torácicas (12), lombares (5), sacrais (5) e coccígeas (4). A medula também terá todas essas divisões, e a nomenclatura também será igual era feito para as vértebras (C2, T1, L4, etc.). Mas muita calma nessa hora: as divisões das vértebras não são as mesmas da medula. A vértebra T10, por exemplo, não está necessariamente relacionada com o segmento T10 da medula. Isso é o que gera mais confusão nesta parte da matéria, porque muitas vezes há uma ambiguidade sobre uma sigla como L2 se referir a um nível vertebral ou a um segmento medular. Preste sempre atenção se a sigla referida é uma vértebra ou um segmento da medula. Seria plausível esperar que os segmentos medulares fossem correspondentes aos níveis vertebrais, mas isso nem sempre acontece. O que corresponde entre os dois é apenas a projeção dos segmentos medulares, que de fato é equivalente a cada vértebra: as raízes (maissobre elas abaixo) que emergem da vértebra T7, por exemplo, são mesmo as correspondentes ao segmento T7 da medula. Veja a imagem abaixo para entender a fundamental diferença entre a projeção de um segmento medular e o segmento medular propriamente dito (as projeções saem completamente da altura de seu segmento de origem – cursando para baixo – antes de atravessar uma vértebra). Isso acontece também por um motivo embriológico: muito embora a parte óssea cresça mais que a parte neural, no começo as duas são niveladas e por isso as vértebras "puxam" as raízes consigo ao crescer para baixo no desenvolvimento do embrião. A projeção do primeiro segmento medular passa por cima da primeira vértebra, e por isso o C1 do segmento medular vem antes do C1 da primeira vértebra cervical. Sendo assim, com uma observação geométrica simples, entenderemos que os segmentos cervicais são em um a mais que as vértebras cervicais. Abaixo da vértebra C7 emerge a projeção do segmento C8 da medula, e a partir daí todas as projeções emergentes são as mesmas da vértebra em questão. Logo abaixo da vértebra T1 emergem as raízes do segmento T1, abaixo da vértebra T4 emergem as do segmento T4 e assim por diante, até chegar na primeira vértebra coccígea, abaixo da qual emerge o ramo Co1 (existe apenas um segmento coccígeo medular, uma exceção — Capítulo 4 – Medula Espinhal 3 todos os outros além dos cervicais e do coccígeo correspondem ao número de vértebras, isto é: 12 torácicos, 5 lombares e 5 sacrais; a parte cervical possui 8 segmentos e a coccígea apenas um, o que difere das 7 vértebras cervicais e das 4 coccígeas). Figura 4.1 – Vista longitudinal da medula, evidenciando os segmentos medulares e suas raízes. Na região da cauda equina não há medula, apenas raízes. Entenda que nesta vista “de lado” teoricamente não deveríamos ver as projeções das raízes (que saem de cada lado da medula) desta forma (além de elas não serem tão compridas), as projeções da imagem são apenas didáticas. (Ilustrações: William de Andrade) Cada segmento medular projeta dois ramos de cada lado (uma raiz ventral e uma raiz dorsal), que atravessam os forames intervertebrais para sair do sistema nervoso central, passando a constituir o sistema nervoso periférico. Após um curto trajeto, essas duas raízes se unem, formando a partir daí um nervo espinhal. Se observar bem alguma imagem que ilustre as raízes Capítulo 4 – Medula Espinhal 4 medulares, verá que a raiz dorsal possui uma dilatação antes de sua fusão com a raiz ventral para formar um nervo: é o gânglio espinhal. Como foi dito no capítulo de introdução, um gânglio é um aglomerado de corpos de neurônios no sistema nervoso periférico (enquanto um aglomerado de corpos de neurônios no sistema nervoso central se chama núcleo). Os gânglios espinhais (existe um correspondente a cada segmento medular) são onde ficam os corpos dos neurônios sensitivos (pseudo-unipolares) da medula; com isso fica fácil entender que a raiz dorsal, onde ficam os gânglios espinhais (que são sensitivos), é a parte sensitiva da medula. A raiz ventral, por sua vez, é a parte motora. Isso é algo tão importante e será tão exaustivamente repetido que você dificilmente não irá eventualmente guardar, mas não custa avisar: não se esqueça das informações deste parágrafo, pois elas são fundamentais. Os componentes eferentes motores da medula (veiculados pela raiz ventral antes de desembocar no nervo comum) e os componentes aferentes sensitivos (trazidos à medula pela raiz dorsal) serão vistos em detalhes nos próximos capítulos. O agrupamento das raízes nervosas dos últimos segmentos medulares recebe o nome de cauda equina. Como as raízes de cada segmento se projetam para baixo, é evidente que após o fim da medula poderão ser vistas ainda algumas raízes onde não mais há segmentos. Isto é a cauda equina. Vista transversal da medula Lembremo-nos de algo que foi dito no primeiro capítulo. Na medula, da mesma forma que no tronco encefálico, a substância cinzenta (corpos de neurônios) é interna e a substância branca (fibras nervosas) é externa. A parte central vista no corte transversal da medula trata-se, portanto, da substância cinzenta, que no caso da medula assume um formato parecido com o da letra H, e por isso mesmo é chamada de H medular. Observe bem a imagem do corte transversal da medula apresentada a seguir e procure pelas colunas, pelos funículos e pelos sulcos. As colunas (ou cornos) são as partes do H medular, divididas em anterior, posterior e lateral (ou intermédia). A parte lateral está presente apenas entre os segmentos T1 e L2 e entre os segmentos S2 e S4 da medula, que é onde se encontram respectivamente os corpos dos neurônios pré- ganglionares da divisão simpática e parassimpática sacral do sistema nervoso autônomo. Isso você não precisa saber agora em detalhes, guarde apenas que a coluna lateral existe somente de T1 a L2 e de S2 a S4 (segmentos medulares, não vértebras, lembre-se!) e que nela ficam os corpos celulares de neurônios do sistema nervoso autônomo (que é a parte eferente do sistema nervoso Capítulo 4 – Medula Espinhal 5 visceral, como vimos). As outras duas colunas serão mais importantes aqui. Na coluna anterior ficam os corpos dos neurônios motores da medula, chamados também de motoneurônios. Lembra-se que é pela raiz ventral que saem as fibras motoras do SNP? Pois é desses neurônios que elas partem, atravessando o sulco lateral anterior antes de formar a raiz ventral de algum segmento medular. Na coluna posterior ficam os neurônios ligados à sensibilidade, cujos impulsos aferentes chegam pela raiz dorsal de cada segmento medular para penetrar no H medular pelo sulco lateral posterior. Importante notar que os neurônios da coluna anterior são eferentes e por isso estão enviando informações (motoras), enquanto os da coluna posterior são aferentes e estão assim recebendo informações (de sensibilidade). O primeiro neurônio da via motora está no córtex cerebral, enquanto o primeiro da via de sensibilidade está no gânglio espinhal, já mencionado. Os detalhes e as exceções disso serão estudados nos próximos capítulos. Os neurônios dessas colunas se organizam em núcleos (aglomerados de corpos de neurônios no SNC, não se esqueça) até certo ponto bem delimitados. Os da coluna anterior dividem-se em um grupo medial (que está presente em toda a extensão da medula e inerva a musculatura axial, ou seja, o "tronco" do corpo) e um grupo lateral (responsável por inervar a musculatura apendicular — os membros —, presente por isso apenas nas intumescências cervical e lombar, que dão origem respectivamente aos plexos braquial e lombossacral para inervar os membros superiores e inferiores). No núcleo lateral, os neurônios mais mediais inervam a musculatura proximal dos membros, enquanto os mais laterais inervam a musculatura distal. A coluna posterior é mais confusa e rica em núcleos, mas possui dois deles bem destacados: o núcleo torácico ou dorsal (presente apenas de T1 a L2, possui neurônios que se comunicarão com o cerebelo, responsáveis pela propriocepção inconsciente) e a substância gelatinosa (responsável pelo "portão da dor", um mecanismo que regula a entrada de impulsos dolorosos no sistema nervoso). Pelos funículos passam as fibras ascendentes e descendentes que percorrem o interior da medula, ou seja, o interior da "parte baixa" do sistema nervoso central. Como vimos, conjuntos de fibras no SNP são chamados de nervos; no SNC são tratos, fascículos ou lemniscos, dependendo de sua espessura. Esses tratos, fascículose lemniscos estarão percorrendo os funículos da medula. Serão estudados em mais detalhes nos próximos capítulos. Os neurônios que percorrem os funículos são chamados de cordonais, enquanto aqueles eferentes que partem das colunas anteriores e laterais são chamados de radiculares (divididos entre viscerais e somáticos). Essa divisão não é muito importante, mas saiba que ela existe. Os neurônios cordonais são divididos em neurônios de projeção e neurônios de associação, e essa é a parte importante. As fibras dos neurônios de projeção são sempre longas e ascendentes, saindo Capítulo 4 – Medula Espinhal 6 da medula para terminar em alguma estrutura superior (tálamo, cerebelo, etc.). As fibras dos neurônios de associação integram diferentes segmentos medulares, podendo ser ascendentes ou descendentes. Percorrem o fascículo próprio, uma região que envolve o H medular, participando ativamente dos processos de reflexos intersegmentares que serão estudados no próximo capítulo. Tanto os neurônios cordonais quanto os radiculares são neurônios de axônio longo, evidentemente. Existem também neurônios de axônio curto, cujos prolongamentos permanecem sempre dentro da própria substância cinzenta (o H medular, no caso da medula), funcionando como interneurônios (nome que será amplamente explorado até o fim do período) que modulam alguma cadeia sináptica dos neurônios de axônio longo. Dentre eles cabe destacar as células de Renshaw, neurônios de axônio curto da porção medial da coluna anterior que atuam inibindo os neurônios motores da medula. No próximo capítulo falaremos em "interneurônios inibitórios dos motoneurônios". Quando isso acontecer, lembre-se dessas células de Renshaw. Na região anterior ao canal central da medula encontra-se a chamada comissura branca, por onde passam as fibras que se cruzam na medula, como será comentado nos capítulos das vias descendentes e ascendentes. Não se preocupe se ainda não entendeu bem como funciona tudo isso — o corte transversal da medula será muito melhor entendido depois dos estudos que serão feitos nos capítulos de vias descendentes e ascendentes. O mais importante neste capítulo é que você entenda o que são os segmentos medulares. Se não os entendeu bem, releia a seção que trata sobre eles e, se preciso, procure um monitor ou professor. É muito importante que entenda o que é um segmento medular para poder entender grande parte dos casos clínicos que serão estudados. Figura 4.2 – Raízes medulares. Observe que nesta imagem estão representados dois segmentos medulares (projetando um par de raízes ventrais e dorsais cada). Capítulo 4 – Medula Espinhal 7 Figura 4.3 – Vista transversal da medula. As colunas do H medular podem ser chamadas também de cornos. Alguns autores usam o termo “coluna” para se referir aos funículos, por isso tenha cuidado para não confundir. As duas nomenclaturas estão corretas. Meninges medulares Como tudo no SNC, a medula é envolta por três membranas fibrosas chamadas meninges. A mais externa é a dura-máter, formando em volta de toda a medula o chamado saco dural, que termina caudalmente em um fundo-de-saco ao nível da vértebra S2 (lembra-se que a medula propriamente Capítulo 4 – Medula Espinhal 8 dita vai só até L2? A porção final do saco dural é, então, uma região desprovida de medula). A do meio é a aracnóide, e a mais interna chama-se pia-máter. A pia-máter, tal como a dura-máter, também não acaba junto com a medula: ela continua até o hiato sacral, perfurando o fundo do saco dural (que terminou na vértebra S2, claramente antes do hiato sacral) e formando o filamento terminal. Imagine um saco dentro de outro saco; o saco interno é mais fino mas mais longo, perfurando a parte inferior do externo antes de terminar. Essa parte final perfurante do saco interno (a pia-máter) é o que se chama de filamento terminal. Uma vez que as meninges formam três camadas, obviamente há um espaço entre cada uma delas. São os espaços meníngeos. O espaço entre a dura-máter e a camada óssea externa às meninges (o periósteo do canal vertebral) chama-se espaço epidural (ou extradural) e contém tecido adiposo e um plexo venoso (o plexo venoso vertebral interno). O espaço subdural (entre a dura-máter e a aracnóide) é virtual, isto é, na prática não existe muito claramente, já que as duas são intimamente relacionadas. O espaço subaracnóideo está sendo escrito em negrito, e por isso o astuto leitor já percebeu que é de todos o mais importante: localizado entre a aracnóide e a pia-máter, é onde fica o líquor (ou líquido cerebroespinhal ou ainda líquido encefalorraquidiano) que circula pela medula. O líquor é fundamental para o sistema nervoso central, pois serve como um lubrificante que impede o desgaste pelo atrito e amortece qualquer impacto sofrido pelo corpo, ajudando a proteger o SNC. "As únicas pessoas normais são aquelas que você não conhece bem." — Alfred Adler, psiquiatra austríaco do século XX. Referências 1. Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: Desvendando o Sistema Nervoso. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2008. 2. Guyton AC, Hall JE. Tratado de Fisiologia Médica. 11th ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2006. 3. Haines DE. Neurociência Fundamental. 3rd ed. São Paulo: Elsevier; 2006. Capítulo 4 – Medula Espinhal 9 4. Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da Neurociência. 4th ed. Barueri: Manole; 2003. 5. Lent R. Cem Bilhões de Neurônios. 1st ed. São Paulo: Atheneu; 2005. 6. Machado ABM. Neuroanatomia Funcional. 2nd ed. São Paulo: Atheneu; 2006. 7. Rubin M, Safdieh JE. Netter Neuroanatomia Essencial. 1st ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2008. 1 Capítulo 5 - Vias Descendentes e Reflexos Motores O corpo afeta o mundo Augusto Valadão Junqueira Introdução Quando estudamos a neurologia básica, precisamos ter em mente exatamente do que estamos falando. Poderá ser, de uma forma geral, sobre movimento, sobre sensibilidade ou sobre associação. Neste capítulo trataremos de um tema ligado ao movimento. As vias descendentes podem estar relacionadas também com modulação sensorial ou motricidade visceral, mas as que estudaremos aqui estão ligadas exclusivamente ao controle do movimento somático (musculatura estriada esquelética), tanto a parte voluntária quanto a parte automática reflexa. "Descendentes" porque obviamente se originam em estruturas superiores do sistema nervoso central, seguindo um trajeto descendente. Há basicamente duas divisões: o sistema lateral (ou via descendente lateral), que terminará nos neurônios laterais do corno anterior da medula, e o sistema medial (ou via descendente medial), que irá até os motoneurônios mediais. O primeiro compreende o trato córtico-espinhal lateral e o rubro- espinhal, enquanto o segundo inclui os tratos córtico-espinhal anterior, retículo- espinhal, vestíbulo-espinhal e tecto-espinhal (ou teto-espinhal). Veremos cada um em mais detalhes. As vias córtico-espinhais Como o próprio nome diz, são vias que se originam no córtex cerebral e vão até a medula espinhal. Por isso vias córtico-espinhais. Quando é dito que elas se originam no córtex, você precisa entender o que isso significa: os corpos destes neurônios estão na substância cinzenta do córtex cerebral. Todo o resto dessas vias (desde a sua saída do córtex cerebral até a medula) será representado pelas fibras que são os axônios desses neurônios. Como vimos, no SNC o agrupamento de fibras é chamado de trato, fascículoou lemnisco. No caso das vias descendentes teremos tratos. Daí trato córtico-espinhal. Os corpos desses neurônios estão localizados em uma região bem definida do cérebro, conhecida como córtex motor primário (ou M1). Existe um sulco que corta a região superficial central do cérebro de um lado a outro, Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 2 formando uma "metade anterior" e uma "metade posterior". Esse sulco se chama sulco central. A área imediatamente anterior a esse sulco é o giro pré- central, por estar antes do sulco central. É no giro pré-central que se encontram os neurônios que darão origem ao trato córtico-espinhal. O trato córtico-espinhal sai do córtex cerebral integrando a coroa radiada, passa entre os núcleos da base como parte da cápsula interna e ao chegar no tronco encefálico passa a ser um agrupamento de fibras mais bem definido. Você não precisa saber detalhes sobre essas estruturas, mas saiba pelo menos o que elas são: a coroa radiada é o maior conjunto de fibras (isto é, substância branca) que sai do córtex cerebral, passando a se chamar cápsula interna ao passar por entre os núcleos da base, que são agrupamentos de corpos de neurônios em meio à substância branca do encéfalo. Ao chegar na metade inferior do bulbo, onde há uma estrutura bilateral conhecida como pirâmide, grande parte (cerca de 80%) das fibras do trato córtico-espinhal se cruza, atravessando a decussação das pirâmides para ir ao lado oposto antes de continuar a descer. Decussar é o mesmo que cruzar; decussação das pirâmides é a região do bulbo onde há o cruzamento dessas fibras, assim chamado por ficar entre as pirâmides de cada lado. As fibras que se cruzam vão descer pelo funículo lateral (lembra-se dos funículos da medula?) do lado oposto, constituindo o trato córtico-espinhal lateral, enquanto a pequena parte que não se cruza continua pelo funículo anterior do mesmo lado, formando o trato córtico-espinhal anterior. Por isso o trato córtico-espinhal lateral é também chamado de piramidal cruzado, enquanto o anterior é o piramidal direto. Mas muito cuidado nessa hora: logo antes de terminar seu trajeto na medula, o trato córtico-espinhal anterior também se cruza, atravessando o plano mediano pela comissura branca para inervar um motoneurônio medular do lado oposto ao que teve origem. Tem-se assim a seguinte situação: como ambos os tratos córtico-espinhais acabam por ser cruzados, o córtex de um hemisfério cerebral comanda os neurônios motores do lado oposto da medula e, por conseguinte, a musculatura do lado oposto do corpo. Nunca mais se esqueça disso. Via descendente lateral Vimos que a origem dos dois tratos córtico-espinhais (lateral e anterior) é a mesma, mas seu destino é fundamentalmente diferente. O trato córtico- espinhal lateral (TCEL) terminará no núcleo lateral do corno anterior da medula, ou seja, os neurônios responsáveis pela inervação da musculatura apendicular. O trato córtico-espinhal anterior (TCEA), por sua vez, terminará no núcleo medial deste mesmo corno e portanto será visto na próxima seção. Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 3 Além do TCEL, o trato rubro-espinhal termina também no núcleo lateral de motoneurônios. Tem esse nome pois é um feixe de fibras que se origina no núcleo rubro, um agrupamento de corpos neuronais do mesencéfalo. Lembre-se que o mesencéfalo é o componente superior das três divisões do tronco encefálico. As fibras do trato rubro-espinhal são cruzadas (diz-se contralaterais ou heterolaterais), da mesma forma que as do TCEL. Elas atravessam o plano mediano no tegmento mesencefálico (uma região do mesencéfalo), logo na altura de sua origem, descendo a medula pelo funículo lateral juntamente com o TCEL. Por tudo isso o trato córtico-espinhal lateral e o rubro-espinhal são chamados em conjunto de via descendente lateral. Enquanto o TCEL se liga a todos os neurônios do grupo lateral do corno anterior da medula, o trato rubro-espinhal liga-se apenas a alguns deles. Como já foi estudado, a parte mais medial desses neurônios controla a musculatura proximal dos membros, enquanto a parte mais lateral é responsável pela musculatura distal (incluindo mãos, dedos...). Há uma discordância entre os autores sobre quais neurônios exatamente são inervados pelo trato rubro- espinhal: alguns consideram que sejam os neurônios mais mediais (Machado, 2006), enquanto outros defendem que sejam na verdade os neurônios mais laterais (Haines, 2006). O mais importante é saber que a função do trato rubro- espinhal no ser humano é pequena, servindo apenas como um suporte ao TCEL. Em caso de lesão do trato rubro-espinhal (o que é raro acontecer isoladamente na prática) haveria uma certa perda de força nos membros do lado afetado, mas os movimentos finos seriam mantidos intactos pela ação do TCEL. Isso pode se manifestar, por exemplo, por tremores vistos principalmente mediante esforço físico do membro afetado. Já uma lesão do trato córtico- espinhal lateral (e quando falamos isso entenda bem que pode significar tanto uma lesão no córtex motor, onde estão os corpos neuronais, quanto uma lesão nas fibras que deles se originam, em qualquer parte de seu longo trajeto – da mesma forma que no exemplo anterior a lesão poderia se dar tanto no núcleo rubro quanto nas fibras que dele partem para formar o trato rubro-espinhal), dada a maior importância funcional deste feixe, acarreta em uma perda completa das funções motoras complexas dos membros. Essa é uma função exclusiva do TCEL, não podendo ser compensada pela ação de outra via. Via descendente medial É uma via cujos tratos terminarão na porção medial do corno anterior da medula, inervando os motoneurônios responsáveis pela musculatura axial (do "tronco"). O primeiro componente da via descendente medial já foi visto: o trato córtico-espinhal anterior. Ele é responsável pela movimentação voluntária Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 4 (guarde isso: praticamente tudo que tem origem no córtex cerebral será o componente voluntário de alguma coisa) da musculatura axial do corpo. Vimos também que ele desce a medula pelo funículo anterior — o mesmo acontecerá com todos os tratos da via descendente medial, com a diferença que nem todos são cruzados. Veremos cada um. O trato retículo-espinhal tem esse nome por se originar na formação reticular. A formação reticular é uma extensa e complexa estrutura do tronco encefálico com diversas funções, ocupando cada uma de suas três divisões. As porções ligadas à movimentação somática pertencem à formação reticular pontina e bulbar (isto é, a formação reticular presente na ponte e no bulbo). É ipsilateral (o mesmo que homolateral, o que quer dizer que não se cruza, terminando do mesmo lado do corpo em que se origina). Está também ligada aos movimentos axiais voluntários, além de ser o elemento-chave em alguns movimentos estereotipados (como o ato de caminhar) e em ajustes posturais antecipatórios, necessários para que o corpo entre em uma posição estável e firme antes que possamos exercer os movimentos finos que a via descendente lateral irá realizar (como firmar o braço antes de começar a escrever, ou o goleiro que flexiona as pernas antes de saltar). O trato vestíbulo-espinhal se origina nos núcleos vestibulares, um conjunto de quatro núcleos (lateral, medial, superior e inferior, formando uma espécie de cruz) de cada lado no tronco encefálico, responsáveis por manter o equilíbrio da cabeça em relação ao corpo. Os núcleos de origem do trato vestíbulo-espinhal são o núcleo vestibular
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