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souza matos orgs teoria critica no seculo xxi

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ORGANIZ ADO R ES
COLE<;:AO CRiTICA CONTEMPOAANEA
Dire,lio: Josue Pereira da Silva
Titulos Publicados:
Crttica contempordnea ~ ensaios
Josue Pereira da Silva, !ram Jacome Rodrigues e
Myrian Sepulveda dos Santos (orgs.)
Memoria cole/iva e teoria social
Myrian Sepulveda dos Santos
Metamorfoses do trabalho
AndreGorz
J e sse
Patricia
SOU z a
Mattos
Miserias do presente, riqueza do passivel
Andre Gorz
Antropologia e sociedade no Quebec
Celso Azzan Jr.
Reinvenfoes da Africa na Bahia
Patricia de Santana Pinho
o [material - Conhecimento, valor e capital
AndreGorz
Quem tern medo de teoria? A amea9a do
p6s-modernisrno na historiografia americana
Jose Antonio Vasconcelos
Modernidade e domina,ao - Theodor Adorno e a
teoria social contempordnea
Silvio Cesar Camargo
A socia/agia politica do reconhecimento ~ As contribui90es de
Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser
Patricia Mattos
Andre Gorz e seus criticos
Josue Pereira da Silva e Iram Jacome Rodrigues (orgs.)
Conher,;a aproposta da
coler,;ao CroTICA CONTEMPORANEA no site
www.annabhnne.com.br
Teoria crftica
no seculo XXI
S713
Infotbes ]nforma~1io e Tesauro
Souza, Jesse, Org.; Mattos, Patricia, Org.
. ~eoria critica no seculo XXI. / Organizayiio de Jesse Souza e
Patncia Mattos. - sao Paulo: Annablume, 2007. (Critica Contempo-
ninea)
324 p.; 14 x 21cm.
ISBN 978-85-7419-752-4
1. Teoria Sociol6gica. 2. Sociologia. 3. Ciencias Sociais.
4. Globalizayiio. 5. Cultura. 6. Politica. I. Titulo. II. Serie.
CDU 30
CDD 302
Catalogaciio elaborada por Wanda Lucia Schmidt - CRB-8-] 922
Sumario
7 APRESENTA<;:AO
7 0 que e agencia humana?
Charles Taylor
41 0 reconhecimento social e sua refunda,ao filos6fica em
Charles Taylor
Patricia Mattos
55 Pierre Bourdieu, pensador da periferia?
Jesse Souza
181 Trabalho, reconhecimento e democracia: aplicando teorias de
vanguarda ao contexto peri ferico
Fabricio Maciel & Roberto Torres
79 Reconhecimento ou redistribuil'ao? A mudanl'a de
perspectivas na ordem moral da sociedade
Axel Honneth
95 A Teoria critica de Axel Honneth
Giovani Agostini Saavedra
113 Reconhecimento sem etica?
Nancy Fraser
141 A globaliza,ao da democracia sem Estado: publico fraco,
publico forte, constitucionalismo global
Hauke Brunkhorst
163 ldeologia e consciencia
Thomas Leithduser
TEORIA CRiTiCA NO SECULO XXI
CoordenQ(;Qo editorial
Joaquim Antonio Pereira
PaginafQO
Ray Lopes Pereira
CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Pelluela Cafiizal
Norval Baitello Junior
Celia Maria Marinho de Azevedo
Maria Odila Leite da Silva Dias
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff
Cecilia de Almeida Salles
Pedro Jacobi
Lucrecia D'Ah~ssio Ferrara
18 ediyiio: outubro de 2007
© Jesse Souza I Patricia Mattos (orgs.)
ANNABLUME editora. comunicaciio
Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros
05427-100. Silo Paulo. SP. Brasil
Tel. e Fax. (Oil) 3812-6764 - Televendas 3031-9727
http://www.annablume.com.br
213
231
Esfera publica midiatica na America Latina: uma interpretal'iio
com as categorias habermasianas
Gilberta Barbosa Salgado
Ulisses e seu barco: esbo~o para uma critica microssocio16gica
ateoria critica
Raul Francisco Magalhiies
257 Foucault e a crftica racional da racionalidade
Diogo Correa
281 Nietzsche, contemporaneidade e etica: a alegria como resposta
afinnativa
Renarde Freire Nobre
303 Condu9ao da vida cotidiana e desigualdade social: urn estudo
explorativo em Salvador da Bahia
Thomas Kuhn
319 A crftica da vida moderna em Georg Simmel e Walter Benjamin
Sergio Duarte
Os textos reunidos no presente volume pretendem levar ao publico
brasileiro alguns dos autores mais importantes do debate critico na filosofia
social e nas ciencias sociais contemporaneas. Neste volume esta.o presentes
nao apenas textos ineditos em portugues de varios autores fundamentais do
debate te6rico de vanguarda nas ciencias sociais e na filosofia social, mas
tambem analises criticas acerca de seus trabalhos produzidos pela pena de
competentes especialistas brasileiros.
Em urn contexto social, politico e academico de quase absoluta
hegemonia do liberalismo triunfante, estariamos, sem urn pensamento entice
vigoroso, muito mais frageis. Eele que nos permite, por exemp!o, criticar a
"generaliza<;ao liberal" do calculo economica, que imagina a sociedade
modema composta por urn conjunto de homo economicus, intercambiaveis
e fungiveis, com as mesmas disposi90es de comportamento e as mesmas
capacidades de disciplina, autocontrole e auto-responsabilidade, as quais
seriam encontradas em todas as classes sociais. Eprecisamente esse mundo
indiviso e sem conflito que povoa nao s6 a imagina9ao dos poderosos, mas
tambem da midia e dos pressupostos que constroem 0 debate publico entre
n6s.
Nesse registro, hoje amplamente hegemonico, 0 marginalizado e 0
desclassificado social sao percebidos como se fossem individuos com as
mesmas capacidades disposicionais do individuo da classe media.
Precisamente por conta disso, no nosso debate publico, 0 miseravel e sua
rniseria sao percebidos como contingentes e fortuitos, urn mero acaso do
destino, sendo a sua situa9ao de absoluta priva9ao facilmente reversivel,
bastando para isso urna ajuda passageira e t6pica do Estado para que ele
possa andar com as pr6prias pernas. Essa e tambem a logica da politica
social em sociedades como abrasileira, quando ela nao e, 0 que emuito pior,
tornada completamente invisivel pela explora9ao sensacionalista e comercia!
operada pela midia, dos fenomenos cuja manifesta9ao superficial e visivel
sao aviolencia end~mica e 0 crime.
Mas as conseqUencias do liberalismo, que reduz todas as "qualidades"
- a vida moral, cultural e politica- a"quantifica9ao" economica, podem ser
tambem visiveis no debate academico. Exemplos dessa "colonizaIYao" do
horizonte simb6lico pela percep9ao economica do mundo social sao a
dominancia da perspectiva unilateralmente economicista dos fenomenos da
8 Teoria crftica no seculo XXi
sociedade e da quantifica~aoestatistica vazia e sem interpreta9ao do mundo
social que se passa por conhecimento valida. Nesse contexto desencantado,
as perspectivas criticas, como as apresentadas nessa coletanea, sao pe<;as
indispensaveis de resist6ncia. A tematiza,ao de que existem realidades para
aMm da visivel, da "material" e da quantificavel - em suma, para alem da
realidade pronta e acabada construida pelas rela,5es de poder triunfantes -
ea fonte mesma de qualquer pensamento ou a<;ao verdadeiramente criticos.
A presente colemnea, que une, dentre Qutros, autores como Charles
Taylor, Axel Honneth, Nancy Fraser, e textos de estudiosos das obras Michel
Foucault, Nietzsche, Pierre Bourdieu e Habermas, os quais entre si apresentarn
difereo9as e divergencias muitas vezes inconcilhlveis, possui como tio
condutor e converg6ncia profunda precisamente 0 mto de que todos eles
sllspeitam, com boas raz5es, do "dado", ou seja, do mundo como nos e
apresentado pelos donos do tempo presente.
Nossa esperan<ya eque esse conjunto de textos possa ser usado como
materia-prima e estimulo tarnbem para a constru,ao de uma Teoria Critica da
realidade brasileira, realidade essa ainda dominada por interpreta,5es hoje
flagrantemente anacronicas, como se 0 personalismo pre-moderno ainda
espelhasse nossa singularidade social. Aqui, 0 desafio e romper com a artificial
separaltao, ainda vigente na academia brasileira, entre a recep~ao do
pensamento cosmopolita, percebido como mero adomo e fim em si (as teorias
classicas e contemporaneas de todos os curriculos de gradua,ao e p6s-
gradua,ao em ciencias sociais entre n6s), e 0 estudo da realidade brasileira,
percebido como algo apartado e sem comunica~ao com as teorias de
vanguarda acerca das vicissitudes do capitalismo tardio. Esse desafio,
inclusive, ja e tornado como 0 objetivo declarado de alguns textos desse
livro.
JESSESOUZA e PATRicIA MATTOS
oque eagencia humana?1
CHARLES TAYLOR
I
I.
Neste artigo eu gostaria de investigar 0 que esta envolvido na no,ao
de self, de urn agente humano responsavel. a que atribuimos a n6s mesmos
como agentes humanos e que nao podemos atribuir aos animais?
Na verdade, essa questao nos leva rnuito alem, remetendo-nos para
varios debates de fundamental importiincia na filosofia. Eu nao tenho a
pretensao de abordar todos eles, mas gostaria de fazer uma investigaltao
preliminar do tema, usando como guia uma no~ao chave introduzida
recentemente por Harry Frankfurt, e com sua ajuda ver 0 quanta 0 espa,o do
se(fpode ser mapeado.
A no~ao chave e a distinltao entre desejos de primeira e segunda ordem
que Frankfurt realiza em seu "Freedom ofthe will and the concept ofa person".'
Eu tenho urn "desejo de segunda ordem" quando 0 objeto deste desejo e a
pr6pria condi,ao de alguem que possui urn determinado desejo (de primeira
ordem). A intui,ao subjacente il introdu,ao de Frankfurt a esta no,ao e que
ela e essencial na caracteriza~aode uma pessoa ou agente humano, isto e,
para a demarca,ao dos agentes humanos em rela,ao a outros tipos de agente.
Como ele afirma:
1. Traduzido por Roberto Torres e Fabricio Maciel do original "What is a Human
Agency?", TAYLOR, C. Philosophical Papers 1: Human Agency and Language.
Cambridge and New York: Cambridge University Press, 1985, pp. 13-44. A mesma
versao do texto tambem foi publicada antes no volume editado por T. Mischel. The
Self Oxford: Blackwell, 1977.
2. H. Frankfurt Freedom of the will and the concept of a person. Journal of
Philosophy, 67: I, jan, 1971, pp. 5~20 (Liberdade da vontade e 0 conceito de pessoa).
10 Teoria crltica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES 11
Os seres humanos DaD sao os unicos a terem desejos, motiva~5es
e escolhas. Eles as compartilham com membros de outras especies,
algumas das quais ate mesmo se engajam ern delibera(j:oes e tornam
decisoes baseadas em pensamentos previos. Parece seT
particularmente caracteristico dos seres humanos, entretanto, a
capacidade de fonnar (...) desejos de segunda ordem (...). 3
Em outros tennos, concebemos os animais (pelo menos as mais
elevados) como portadores de desejos, e ate mesmo, em alguns casos, como
tendo que escoTher entre eles, ou ao menos inibindo alguns desejos em
fun9ilo de outros. Mas 0 que e especificamente humano e 0 poder de avalior
nossos desejos, de considerar alguns como desejaveis e outros como
indesejaveis. Isto porque "nenhum animal a!em do homem (...) tern a
capacidade para auto-avalia9ilo reflexiva que se manifesta na forma9ilo dos
desejos de segunda ordem".'
Estou de acordo com Frankfurt que eslo capacidade para avaliar desejos
esta vinculada ao nosso poder de auto-avaliac;ao, que por sua vez eurn trac;o
essencial da maneira de agir (mode ofagency) que n6s reconhecemos como
hurnana. Mas eu acredito que n6s podemos alcanc;ar uma definic;ao mais
delimiloda do que esUi envolvido nesta maneira de agir se fizermos uma
distin9ilo adicional entre dois tipos categ6ricos de avalial'ilo dos desejos.
Assim, alguem pode ponderar duas a90es desejadas para determinar a
moos conveniente, ou para tomar diferentes desejos compativeis (por exernplo,
alguem pode decidir nao comer, mesmo com fome, porque se ele comer mais
tarde podera tambem nadar), ou para alcan9ar a mais completa satisfal'ilo. Ele
pode ate mesmo avaliar qual dos dois objetos desejados mais 0 atrai, como
alguem que avalia uma bandeja de massas para ver se deseja urn eclair ou
um millefeuilles.
Mas 0 que esta ausente nos casos acima ea avalia~ao qualitativa dos
desejos, aquilo que nos ocorre, por exernplo, quando nos abstemos de agir a
partir de urn dado motivo -digarnos, raiva ou inveja- porque os considerarnos
vis e despreziveis. Neste caso, nossos desejos sao classificados em categorias
tais como mais elevados e menos elevados, virtuosos e nao-virtuosos, mais
realizadores e menes realizadores, mais refinades e menes refinados,
3. Idem. p. 6: "Human beings are not alone in having desires and motives, or in making
choices. They share these things with members of certain other species, some of
which even appear to engage in deliberation and to make decisions based on prior
thought. It seems to be peculiarly characteristic of humans, however. that they are
able to form (... ) second order desires (.. .)".
4. Idem, p. 7: "No animal other than man (... ) appears to have the capacity for
reflective self-evaluation that is manifested in the formation of second-order desires".
profundos e superficiais, nobres e vulgares. Eles silo julgados como partes
de modos de vida qualitativamente diferentes: fragmentados ou plenos,
aJienados au livres, santos au meramente humanos, corajosos ou covardes,
e assim pOT diante. I
Intuitivamente, a diferen9a pode ser colocadadeslo forma. No primeiro
caso, que podemos chamar de avalia9ilo fraca, estamos interessados nos
resultados; no segundo, 0 das avalia'toes fortes, 0 interesse ena qualidade
de nossa motivac;ao. Mas dizer isso apenas nestes termos e urn pOllca
precipitado. Pois 0 importante e que a avalia9ilo forte e vinculada ao valor
qualitativo dos diferentes desejos. Eisto que esui ausente em casos tipicos,
em que, por exernplo, eu opto por urn feriado no suI e nao no norte, ou
escolho alm09ar na praia ao inves de comer agora na cidade. Nestes casos a
altemativa favorita nilo e selecionada em fun9ilo do valor subjacente da
motiva9ilo. Aqui, nilo M "nada a escolher" (nothing to choose) entre
motivac;oes.
Mas isso nilo significa (a) que em uma avalia9ilo fraca as motiva90es
sejam homogeneas. Nilo podemos julgar dois objetos do mesmo desejo, ou,
dito de outro modo, dois resultados com a mesma "caracterizac;ao de
desejabilidade" (desirability characterization). Veja 0 exemplo de alguem
que esta hesitante entre passar urn feriado no sui ou no norte. 0 que 0
feriado do norte tern a seu favor ea tremenda beleza da selva, as regioes nao
exploradas, etc.; 0 que 0 do suI tern a seu favor sao as exuberantes terras
tropicais, a sensa9ilo de bem-estar, 0 prazer de nadar no mar, etc. Ou eu
posso considerar que urn feriado e mais divertido e 0 outro mais relaxante.
As altemativas possuem diferentes caracterizal'oes de desejabiJidade.
Neste sentido, elas silo qualitativamente distintas. Mas 0 que esUi ausente
neste caso e uma distinC;ao, enquanto urn valor, entre os desejos, e e por isso
que esta nilo e uma avalia9ilo forte. Eu optei pelo sui ao inves do norte nilo
porque exista algo mais valoroso com respeito a relaxar ou se divertir, mas
basicamente porque "eu prefiro isso" (ffee/like it).
Disto se segue, a fortiori, (b) que avalial'oes fracas nilo silo
s~mplesmente quantitativas. Ou seja: as altemativas nao podem necessa-
riamente se expressar em algumas unidades comuns de calculo e, neste
sentido, se tomar comensuraveis. Isto tern side freqiientemente obscurecido
pela recorrente arnbic;ao de nossa civilizac;ao racionalista em transfonnar
reflexilo pratica, tanto quanto possivel, em calculabilidade, ambil'ilo esta
cuja maior expressao e a doutrina do utilitarismo.
A inclina9ilo do utilitarismo e a de ignorar as distin90es qualitativas de
valor sob a alegac;ao de que elas representam percepc;oes confusas de nossas
preferencias, que seriam quantitativas. A esperanc;a eque, urna vez ignoradas
as avaliac;oes fortes, seriamos capazes de calcular. Eu creio que 0 utilitarismo
esta equivocado em ambas as considera90es. Isto por que decisoes entre
12 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZAOORES
• 13
alternativas que DaD sao distintas em termos valorativos naD sao
necessariamente suscetlveis ao calculo; por exemplo, a escolha entre os
dais feriados acima naD eclararnente tao suscetivel, ou somente em parte (ou
algumas de minhas considera~5esrelevantes para minha escolha do feriado
podem ser,por exemplo, quantificaveis no sentido do custo). Nao hii tambern
nenhurn calculo quando eu olho fixamente a tigela de massas e tento decidir
entre urn eclair e urn millefeuilles.
Todas essas avalia.yoes fracas sao "quantitativas" apenas no fraco
sentido de que elas nao envolvem distin~5es qualitativas de valor. Algumas
vezes explicamos escolhas dessa natureza dizendo que determinada
altemativa foi "mais prazerosa" (morefun) ou "de maior valor" (better value);
mas niio existe quantifica~ao genuina por tras destas express5es: elas Sao
meramente expressoes substitutivas para "preferidas". Os utilitaristas esUlo
de fato corretos em seu pr6prio ponto de partida de rejeitar avalia~5es fortes,
porque ignora-Ias e urna condi~ao necessaria de reduzir razilo pratica a
calculabilidade. Mas isto esta longe de ser urna condi~ilo suficiente.
Nilo podemos tambem dizer (c) que uma avalia~ao fraca esthomente
vinculada a resultados e Dunea com desejos; que todos os casas de desejos
de segunda ordem sao avalia~5es fortes. Isto porque eu posso ler 0 que
Frankfurt chama de "voli~5es de segunda ordem" baseadas em avalia~oes
fracas. Eu tenho urna voli~iio de segunda ordem quando quero que desejos
de primeira ordem orientem minha a~ao. Entao eu posso querer que 0 desejo
de almo~ar-e-nadar-depois seja preponderante, porque sei que, considerando
as duas coisas, terei uma situa~aomais agradavel, pois temo me prejudicar
se voce me oferecer 0 almo~o agora. E eu posso ter desejos de segunda
ordem sabre esta mesma base: eu posso querer rejeitar sobremesas suculentas
para controlar men peso. Mas em todos esses casas as alternativas nao
seriam, por hip6tese, distintas entre si pelo fate de urn desejo ser vulgar, sem
valor, alienante, trivial, hurnilhante, ou algo do tipo. Em resumo, nao existiria
distin~ao qualitativa de valor em rela~ao as motiva~5es.
Do mesmo modo que alguem pode querernao terurn desejo concebido
a partir de urna avalia~ao fraca, alguem tambem pode desejar algo que ainda
nao realizou. Os glutoes romanos orientavam-se por este tipo de desejo de
segunda ordem quando vomitavam para recuperar 0 apetite e realizar 0 prazer
de comer novamente. Isto contrasta forternente com a situayao em que eu
concebo um desejo baseado em uma avalia~ao forte, vendo-o como algo
admirilvel, como, por exemplo, quando quero ser capaz de urn grandiose e
sincero arnor ou de uma lealdade.5
5. N6s podemos acrescentar uma quarta ressalva, de que a avaliacao forte geralmente
nilo e de urn desejo ou de uma motivaCao, mas sim das qualidades de uma acao. Eu
evito alguma ayao porque ela e uma forma covarde de se comportar. uma acao
. A distin,ao entre os dois tipos de avalia~ao nao pode entao ser
snnplesmente compreendida como se fosse uma diferen~aentre urna avali~ao
quantItativa e outra qualitativa, e nem estar pautada na presen~aou ausencia
dos desejos de segunda ordem. Essa distin~aodiz [espeito antes de tudo ao
fato de os desejos serem ou nao diferenciados em tennos de valor. Epor isso
que talvez possamos estabelecer dOis criterios interligados.
(I) Nas avalia~5es fracas, para que algo seja considerado born, basta
que seja desejavel, enquanto que nas avalia~5es fortes existe 0 uso do
"bo~" ou de algurn outro termo avaliativo para 0 qual 0 mera desejo nao e
suficlente. Na verdade, alguns desejos ou realiza~oesdesejaveis podem ser
considerados ruins, humilhantes, despreziveis, vulgares, superficiais, sem
valor, e assim por diante.
Segue-se disso que (2) quando em urna avalia~ao fraea uma altemativa
desejada e delxada de lado, isto se d!l unicamente em razao de sua contingente
mcompatlbllrdade com uma alternativa ainda mais desejada Eu prefiroalmo~
malS tarde, embora tenha fome agora, simplesmente porque assim pOderei
almo~ar e nadar. Mas eu poderia me contentar com 0 melhor de ambos: se a
piscina estivesse disponivel agora, eu poderia aliviar minha fome imediata
assim como nadar na hora do alm~o. '
Mas isto nao ocorre necessariamente no caso das avalia~oes fortes.
Alguns objetos de desejo podem ser evltados nao porque sejam incompativeis
com ~utros, ou por essa incompatibilidade nao ser contingente. Dessa fonna,
eu eVlto cometer algurn ato de covardia, meSmo tentado a faze-Io, nao porque
este ato impossibilitaria, neste momento, outro ate desejado, COmo almo~ar
agora me impossibilitaria de nadar, mas sim porque 0 pr6prio ato evitado e
considerado desprezivel.
Mas e claro que tambem podemos caracterizar uma altemativa em que
teriamos uma incompatibilidade. Se examinarmos minha visao avaliativa roais
de perto, veremos que valorizo uma a~ao corajosa como parte de urn modo
de vid~; eu aspiro ser. urn deterrninado tipo de pessoa. 50r tornado pela
covardla comprometena essa aspira~ao. Nesse caso h!l incompatibilidade,
mas ela nao e de modo algum contingente. Nao se !rata de uma situa~ao
Clrcunstanclal 0 fato de ser impossivel render-se ao impulso da covardia e
aind~ assim manter-se fie! a urn modo de vida corajoso e integro. Esse modo
de VIda consiste, entre outras coisas, em opor-se aos impulsos de covardia.
humilhante. A questllo pode ser bem-apreendida se considerarmos que nao estamos
falando apenas de des~jos, que estariamos profundamente enganados pensando que
o que esta sendo avahado sao as acOes isoladas de suas motivayOes. Covardia ou
q~alquer outro tipo de comportamento humilhante sao 0 que sao parcialmente em
VlrtUde de suas motivayoes. Assim, avaliayoes fortes necessariamente envolvem uma
distincao qualitativa de desejos.
14 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES ... 15
N~o e casual aqui que haja wna incompatibilidade para aIem de situal'oes
contingentes. Isto porque avalial'oes fortes disponibilizam wna linguagem
de distinl'oes avaliativas, na qual diferentes desejos s~o descritos como
nobres ou vulgares, aglutinadores ou desagregadores, corajosos ou
covardes, esclarecedores ou obscurecedores, e assim por diante. 15to
significa que eles s~o caracterizados por contraste. Cada wn dos conceitos
acima s6 pode ser entendido em relal'~oao seu oposto. Ninguem pode saber
o que ecoragem sem saber 0 que ecovardia, assim como ninguem pade teT
uma n~~.o do vennelho sem teT, digamos assim, uma autra corcomo contraste.
Eessencial que tanto vermelho como coragem sejam compreendidos
com aquilo que s~o contrastados. Eclaro que em termos avaliativos, assim
como com as cores, 0 contraste pade nao seT fcita apenas com urn outro, mas
com vanos. Na verdade, refinar wn vocabulirrio avaliativo pela introdul'~o
de novos termos alteraria 0 sentido dos termos existentes, como tambem
ocorreriano caso das cores. Isto signitica que nas avaliavoes fortes podemos
caracterizar as alternativas por contraste; e de fato, deve ser assim se
quisermos expressar aquilo que e realmente desejavel na alternativa escolhida.
Mas nllo e assim com as avaliatyoes fracas. 6 Certamente n6s somos, em cada
caso, livres para expressar as altemativas de varias maneiras, podendo
algumas ser contrastantes e outras nllo. Assim, eu posso descrever minha
primeira questfto acima como uma escolha entre almotyar agora ou almotyar
mais tarde; e essa e uma descrityao por contraste no sentido de que ela e
essencial para identificar que wna alternativa simplesmente n~o e a outra.
Isto porque 0 tenno "agora" s6 faz sentido em contraste com outros tennos
como "mais tarde", "mais cedo", "amanha", e assim por diante. Na verdade,
dado wn certo contexto (por exemplo, que alguem n~o pode decidir a1mol'ar
no passado), e 0 pano de fundo contrastante necessario para "agora", seria
suficiente como questao apenas me perguntar: "Devo almotyar agora?"; ou
talvez: "Seria melhor altnol'ar mais tarde?".
Mas se eu quero identificar as alternativas em termos de sua
desejabilidade, a caracterizal'~o deixa de ser contrastante. 0 que me leva a
querer almol'ar agora e 0 fato de estar faminto, pois e inc6modo esperar
quando se tern fome e, alem disso,emuito prazeroso comer. 0 que me leva a
6. Pode ser argumentado que os utilitaristas tambem utilizam uma oposil;aO qualitativa,
a saber, aquela entre prazer e sofrirnento. Mas essa nao eprecisamente uma oposil;aO
quaiitativa de desejos acerca de.objetos desejados, que e0 que esta sendo considerado
aqui. De aeordo com a teoria utilitarista, apenas 0 prazer e desejado, pois todos nos
temos aversao ao sofrimento. E claro que podernos eontrapor a evitar;iio do
sofrimento, que em urn eerto sentido e urn desejo, com 0 prazer. E exatamente na
realizal;aO deste contraste que os utilitaristas tern falhado notoriamente.
querer comer depois e que com isso posso nadar. Mas 0 prazer de comer
pode ser totalmente identificado de forma desvinculada do prazer de nadar;
de fato, eu posso ter desfrutado longamente 0 prazer de comer sem nunca ter
conhecido 0 prazer de nadar. As descril'oes desses dois objetos de desejos
nao sao contrastantes, elas apenas sao incompativeis de modo circunstancial
e contingente.
Do mesmo modo, eu posso descrever a questao acerca de minhas
avalial'oes fortes de modo noo contrastante. Posso dizer que a escolha e
entre salvar minha vida, ou talvez evitar sofrimento e dificuldades, de wn
lado, e preservar minha homa, de outro. Agora, certamente eu posso entender
o que e preservar minha vida, e 0 que e desejavel nisso, sem levar em conta
a honra, 0 que tambem vale na evital'~odo sofrimento e das dificuldades. E
mesmo a reciproca, n~o sendo totaltnente verdadeira, ninguem pode entender
"honra" sem alguma referencia ao nosso desejo de evitar a morte, 0 sofrimento
e as dificuldades; isto porque, quando alguem preserva sua honra, dentre
outras coisas, tomando uma posityao sobre determinadas questOes, ele nao
contrasta a defesa da honra simplesmente com a defesa de sua vida, com a
evitatyao do sofrimento, e assim por diante; existem muitos casos em que
alguem pode defender sua pr6pria vida sem prejudicar sua honra, e ate mesmo
sem que esta quest~o se coloque.
E essas descrityoes nao contrastantes podem ate mesmo ser mais
apropriadas para determinados objetivos. Na medida em que certamente
existem condil'oes contingentes que subjazem a pavorosa situa9~0 de
escolher entre morte ou desonra - se pelo menos 0 general nao tivesse me
enviado para 0 front no momento exato do ataque inimigo -, e na verdade em
virtude de wn conjunto contingente de circunst~ciasque agora devo arriscar
minha vida para evitar a desonra. Mas olhando novamente para 0 que torna
a alternativa rejeitada indesejavel, pais neste caso a fuga sena incornpativel
com a honra, a incompatibilidade de modo algwn pode ser contingente: a
conduta honrosa consiste justamente em encarar tal amealj:a contra a vida
quando wna decis~ocomo esta estiver emjogo. Dito de outro modo: devemos
rejeitar a fuga por que ela e"covardia", urn termo que traz em si 0 sentido de
urn conflito nao contingente com a conduta honrosa.
Oeste modo, enquanto wn par de alternativas pode ser descrito de
fonna contrastante ou nao-contrastante, como quando determinamos 0 carater
desejavel (ou n~o-desejavel)pelo qual wna OPI'~Oe rejeitada, nas avalial'oes
fortes as alternativas devem necessariamente ser apresentadas de modo
contrastante. Isto porque, nas avalial'oes fortes, em que dispomos de wna
linguagem de distinl'oes avaliativas, nenhwn desejo e recusado em virtude
de urn mero conflito contingente e circunstancial com outra meta. Agir
covardemente n~o esta em disputa com outros bens pelo fato disso ocupar
o tempo e a energia que precise para persegui-Ios, e isto na verdade pode
16 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES ., '-17
nem alterar minha condi~ao a ponto de comprometer tal busca. A disputa e
mais profunda; e naa econtingente.7
2.
A tendencia utilitaria de nossa civiliza~ao nos induziria a abandonar a
linguagem de oposi90es qualitativas, e isto significaria, sem davida,
abandonar nossa linguagem de avalia~aes fortes, pois seus termos s6 podem
ser defmidos em contraste. E somos induzidos a redefmir questoes sobre as
quais reftetimos segundo este modelo nao-qualitativo.
Digarnos, por exemplo, que eu esteja viciado em comer excessivarnente.
Eu tenho dificuldade em resistir a sobremesas suculentas. Como luto contra
este vicio, na reflexao em que defmo amodera9ao como algo melhor, posso
ver as altemativas de acordo com uma linguagem de oposi~oes qualitativas.
Posso considerar que alguem com pouco controle sobre seus apetites, a
ponto de arruinar sua saude com urn bolo de creme, nao e uma pessoa
admiravel. Quero ser livre desse vicio, ser urn tipo de pessoa cujos apetites
meramente corporais obede9am a aspira90es mais elevadas, e nao me
permitam seguir, sem nenhum remorso ou resistencia, 0 caminho da
incapacidade e da degrada~ao.
Mas eu tambem posso estar inclinado aver este problema de urn ilngulo
totalmente diferente. Posso ser induzido a ve-Io como uma mera questao de
quantidade e satisfa~ao. Comer bolo em excesso aurnenta meu nivel de
colesterol, engorda, prejudica minha saUde e me impede de aproveitar todos
os outros objetos de desejo; assim, isto econsiderado ruim. A essa altura eu
me desprendi de uma linguagem contrastante de avalia~aes fortes. Evitar
altos niveis de colesterol, obesidade, problemas de saude, ser capaz de subir
escadas e assim por diante, tudo isso pode ser definido sem nenhuma
vincula~aocom meus babitos alimentares. Alguem pode inclusive inventar
urn medicarnento que me permitiria comer suculentas sobremesas e ao mesmo
tempo desfrutar todos as outros prazeres, ao passo que nenhum medicamento
permitiria que eu comesse meu bolo e tambem lograsse a dignidade de urn
sujeito autodisciplinado e autonomo, pois euja 0 terei destruido desde minha
primeira abordagem da questao.
Epossivel que ser persuadido a ver as coisas nesta perspectiva nao-
qualitativa ajude a resolver meu problema, pois de algum modo, colocar esta
questao em termos de dignidade versus degrada~ao trouxe tantos incomodos
que agora, ao abandonar a perspectiva qualitativa, eu ja posso enfrenta-la.
Mas isso nao e 0 mesmo que decidir qual modo de colocar a questao e malS
7. Devo esta formulayao as contundentes objeyOes de Anne Wilbur Mackenzie contra
toda a tentativa de distinyao entre avaliayoes fortes e fracas.
esclarecedor e verdadeiro. Essa decisao gira em torna do que realmente sao
as nossas motivavoes e de como devemos verdadeiramente caracterizar 0
significado que as caisas tern para 06s.
Trata-se de urn contlito entre auto-interpreta\:aes. Qualquer interpre-
ta~ao que adotarmos formatara parcialmente os <significados que as coisas
terao para n6s. Mas podemos colocar uma questao ainda mais valida mais
fiel a r.ealidade. Urn equivoco aqui nao e apenas realizar uma deS~ri~ao
dlstorclda, como se eu descrevesse urn veiculo motorizado como urn carro
quando na realidade ele e urn caminhao. Nesse caso, n6s concebemos ~
identifica~ao equivocada como distorcendo, num certo sentido, a realidade
e~ questao. Para aquele que tenta me conveneer de que meu problema e
dlgmdade versus degrada~ao, eu fa~o uma identifica~ao equivocada que e
decisiva. Isto nao significa exatamente que eu tenha chamado 0 temor de urn
alto nivel de colesterol de "degrada~ao". Trata-se, ao inves disso, de ressaltar
que medos infantis de puni~ao ou da perda do amor dos pais foram
tran~feridoshTacionalmente para obesidade, para 0 prazer de comer, ou algo
do tlPO (segumdo uma tendencia freudiana vulgar). Minha experiencia com
a obesidade e com a comida e modelada por isso. Mas se eu puder ir alem
dessa "vincula~ao" (hang-up) e enxergar a verdadeira natureza dessa
ansiedade latente, poderei ver 0 quanto ela e desprovida d~ razao, ou seja,
que eu de fato nao carro 0 risco nem de seT punido e nem de perder 0 arnOT
dospais; na verdade existe urna gama completamente diferente de questaes
em Jogo neste caso; problemas de saUde, incapacidade para desfrutara vida
extern~, uma morte prematura por urn ataque cardiaco, e assim pOT diante.
E dessa forma que uma corrente moderna de tendencia utilitarista tenta
reduzir nossas oposi~aes qualitativas a alguma medida homogenea. Nisso
ela seria muito mais plausivel e sofisticada que as correntes anteriores, que
tratam essas oposi90es como se fossem meros equivocos de identifica9ao,
como se 0 que as pessoas buscassern ao serem ofendidas em sua bonra sua
dignidade, sua integridade e assim por diante, fosse simplesmente o~tros
estado.s de satisfa~ao aos quais elas atribuiriam esses termos pomposos.
E claro que existem replicas a essas tentativas de reduzir nossas
avalia~aes a urn modelo nao-qualitativo. N6s podemos admitir 0 contra-
argumento de que a rejei~ao das distin~aes qualitativas e em si mesma urna
ilusilo, alimentada talvez por nossa incapacidade de olhar nossa vida aluz de
algurnas distin~aes, algo como urna falba em nossa for~amoral; ou igualmente
pela op~ao de urna certa postura objetificante em rela~ao ao mundo. Podemos
estar certos de que os utilitaristas mais obstinados sao eles mesmos movidos
por distin~aes qualitativas que permanecem nao-admitidas, que eles admiram
o~odo de vida em que alguem calcula com consciencia e clareza como algo
~als elevado do que uma vida de ilusao auto-indulgente, e que nao 0 elege
slmplesmente como mais satisfat6rio.
18 Teoria critica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Manos - ORGANlZAOORES 19
Nao podemos resolver esta questiio aqui. 0 objetivo de introduzir a
distin,iio entre avali~5es fortes e fracas e contrastar os diferentes tipos de
selfque cada uma delas envolve'. Eu creio que iS50 tamara irresistivelmente
plausivel que nao somas seres cujas ooicas avalia~oes autenticas sao as
nao-qualitativas, como sugere a tradic;ao utilitarista.
Urn sujeito que faz apenas avalia,5es fracas - isto e, toma decisoes
como comer agora au mais tarde, passar urn feriado no norte au no suI -
pode ser chamado de urn "medidor" (weigher) de alternativas. E aquele que
disp5e de urna linguagem de oposi,oes avaliativas hierarquizando desejos
pode ser chamado de urn avaliador forte (strong evaluator).
Agora, podemos concordar que urn simples medidor ja seria reflexivo
num sentido minima, uma vez que ele avalia 0 curso das ac;oes, e algumas
vezes ele e capaz de agir por meio de avalia,oes contrarias ao impulso dos
desejos imediatos. E esta euma caracteristica necessaria do que podemos
chamar de urn selfou de uma pessoa. Ele possui reflexiio, avalia,ao e vontade.
Mas, em contraste com 0 avaliador forte, ele carece de algo mais, algo a que
muitas vezes nos referimos com a metAfora "profundidade".
o avaliador forte enxerga suas alternativas com uma linguagem mais
rica. Ele nao define a desejabilidade apenas pelo que ele deseja, ou pelo que
ele desejajunto com 0 calculo de conseqiiencias; ela tambem e definida por
uma caracterizac;ao dos desejos como mais elevados e menos elevados,
nobres e vulgares, e assim par diante. Quando a reflexao nao se resume ao
calculo de conseqilencias, ela nao e uma questao de concluir que a alternativa
A me atrai mais, ou que me seduz mais do que a B. Ao inves disso, se estou
refletindo como urn avaliador forte, posso articular por que A e mais desejavel
do que B. Eu possuo urn vocabulario de valores.
Em outras palavras, a reflexao de urn simples medidor tennina na
experiencia inarticulada de queAe mais atrativo do que B. Eu me deparo com
urna bandeja de massas, analiso com atentrao, hesito entre urn eclair e urn
mille feuilles. Fica claro para mim que agora prefiro urn eclair, e entao 0
apanho. E evidente que alguem pode dizer muito mais coisas sobre a
atratividade das alternativas em outros casos de simples medi,ao. Quando
eu, por exemplo, estou escolhendo entre urn feriado no norte ou no suI, eu
falo sobre as enormes belezas do norte, da floresta, das regioes virgens, etc.,
ou sobre as exuberantes terras tropicais, a sensatrao de bem-estar e 0 prazer
de nadar no mar, etc., eu posso expressar tudo isso. 0 que nao pode ser
expresso e 0 que torna superior minha escolha fmal pelo suI.
A nossa dificil condi,ao de se deparar com escolhas incomensuraveis
torna a experiencia do simples medidor quanto it superioridade de A sobre B
algo inarticulavel. Ai, 0 papel da reflexao nao seria 0 de articular essa
superioridade, mas sim de resolver uma situatrao imediata, de calcular
conseqilencias, de buscar compensa,ao para urn desejo que pode trazer
desvantagens (como no caso de adiar urn alrno,o para nadar e ahno,ar mais
tarde), superar uma duvida concentrando-me no "sentir" inarticulado das
alternativas em jogo (sera que eu realmente prefrro urn eclair, ou urn mille
feuilles?) I
Mas as experiencias de urn avaliador forte nao sao inarticuladas dessa
fonna. Ha urn ponto de partida constituido por~ma linguagem marcada por
distintroes entre 0 que emais ou menos elevado, nobre ou vulgar, corajoso
ou covarde, pleno ou fragmentado, e assim por diante. 0 avaliador forte
pode articular esta superioridade justamente por que ele possui uma
linguagem de caracterizal'5es contrastantes'
Dessa fonna, no contexto de uma experiencia de escolha reflexiva entre
alternativas incomensuraveis, a avaliatrao forte e uma condic;ao para a
articula,ao, e adquirir uma linguagem de avalia,5es fortes e se tornar alguem
(mals) articulado a respeito de suas pr6prias preferencias. Digamos que talvez
eu nao possa te afinnar contundentemente por que Bach e maior do que
Uszt, mas isso nao me toma totalmente inarticulado: eu posso falar da
"profundidade" de Bach, por exemplo, que e urn tenno que s6 pode ser
compreendido em oposic;ao ao uso correspondente do termo "superfi-
cialidade" que infelizmente se aplica a Liszt. Nesse aspecto me coloco a
frente de onde estava ao articular minha preferencia pelo eclair em rela,ao
ao mille feuilles. Eu nao posso dizer nada sobre isso (nem mesmo que 0
sabor e melhor, 0 que eu poderia dizer, por exemplo, para explicar minha
preferencia pelo eclair em relac;ao acouve-de-bruxelas; pois isto ainda teria
uma margem de inarticula,iio - basta comparar, por exemplo, com 0 julgamento
de que Bach "soa melhor"). E eu tambem estou it frente de onde es!aria se eu
nunca tivesse aprendido uma linguagem para falar sobre musica, se isso
fosse uma experiencia totahnente inarticulavel para mim (entao, e claro, que
seria uma experiencia muito diferente).
8. E pelo fato de as altemativas Serem caracterizadas numa linguagem de contrastes
qualitativos que as escolhas avaliativas fortes apresentam a caracteristica que
mencionamos acima: que nao recusamos uma alternativa em funyao de urn conflito
meramente contingente e circunstancial com a outra que foi escolhida. Ter uma
linguagem de contrastes qualitativos e essencialmente caracterizar 0 nobre em
oposiyao ao vulgar, 0 corajoso em oposiyao ao covarde, e assim por diante. Com
isso em mente, poderiamos en tao entender como a opyao do feriado poderia ser
articulada. N6s podemos decidir pelo sui ao inves do norte porque teriamos uma
experiencia humanamente mais significativa e enaltecedora visitando algumas
civiliza(j:oes antigas do que estando distante dos trajetos do homem. Com esse
exemplo n6s podemos tambem ver que a linguagem das avalia9iks fortes nao precisa
ser exclusivamente etica, como se poderia supor a partir dos exemplos antedores;
ela tambem pode ser estetica, bern como de outra natureza.
20 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES • 21
SeT urn avaliador forte e, desse modo, seT capaz de uma reflexao mais
articulada. Mas isso e ainda mais profundo em urn outro importante sentido.
Urn avaliador forte efetivamente examina seus desejos e metas de modo
mais profunda porque ele caracteriza suas motivac;oes com maior
profundidade. Caracterizar desejos ou inclina90es como mais valorosos, mais
nobres, ou mais plenos do que outros e considera-los nos termos do tipode
qualidade de vida que eles expressam e sustentam. Eu evito atitudes covardes
porque quero seT uma pessoa corajosa e honrosa. Enquanto 0 que esta em
jogo para 0 simples medidor e a desejabilidade de diferentes prefer~ncias,
defmidas pelos desejos de facto, para 0 avaliador forte a reflexiio tambem
leva em eonta os diferentes modos possiveis de ser urn agente. Motivac;oes
e desejos niio apenas importam em virtude de nos atrair para prefer~ncias,
mas tambem em fun9iio do tipo de vida e do tipo de sujeito que,
especificamente, esses desejos integram.9
Mas se essa dimensiio adicional nos traz urn ganho de profundidade,
e porque ;gora refletimos sobre nossOS desejos em termos do tipo de pessoa
que somas com a posse e a realizac;ao desses desejos. Enquanto a reflexao
sabre 0 que mais preferimos - 0 maximo que urn medidor pade fazer ao
acessar suas motiv~5es - nos mantem, poT assim dizer, na periferia, areflexao
sabre 0 tipo de pessoas que somas nos leva para 0 centro de nossa existencia
enquanto agentes. A avalia~ilo forte niio e apenas uma condi9iio para
articularmos prefer~ncias,mas tambem para articularmos a qualidade de vida
9. Ser urn avaliador forte, desse modo, ever os desejos numa dimensao adicional. E isto
de fato e essencial para nossas importantes distin<;:<1es avaliativas. Tem side
ressaltado, por exemplo, que 0 criterio de uma conduta corajosa nao pode ser
simplesmente 0 desempenho externo numa determinada situa<;:ao. Alguem pode
disparar estupidamente uma metralhadora, ou beber freneticamente porque esta
saturado da vida. Nao e suficiente a presenya do perigo, como nos casos acima.
Suponhamos que urn homem esta tomado por uma incontrolavel fUria, Mio ou desejo
de vingan<;:a, de modo que ele se poe em perigo. Isto tambem nao e coragcm, na
medida em que ele age imbuido por este tipo de motiva<;:ao. Coragem requer que
enfrentemos 0 perigo, sintamos apropriadamente 0 medo, e, portanto, que n6s
tarnbern controlemos 0 impulso de fugir, porque estamos motivados por algo maior
do que 0 mero desejo ou impulso de 'liver. Pode ser a gl6ria, 0 arnor apatria, 0 arnor
a alguem que estamos salvando, ou mesmo 0 noSSO pr6prio sentimento de integridade.
Esta impllcito em tudo isso que urn homem corajoso e movido por algo que podemos
imaginar mais elevado em sua visao. Se alguem, por exemplo, pensar que oao ha nada
mais elevado do que a vida e a evita<;:ao da dor, e estiver convicto de que ninguem
em sa consciencia e de forma responsavel poderia pensar diferente, ele nao teria
espayo em seu vocabulario para a ideia de coragem fisica. Qualquer ate qualifi~ado
com esse tipo de coragem seria considerado como imprudencia, loucura, estuptdez,
au algo do tipo. Se n6s concebemos algum heroismo nos gangsters e porque nessa
era p6s-romantica vemos algo de admin\vel em pessoas que vivem um grandioso
projeto vohado para algum fim, seja qual for este fim.
e 0 tipo de pessoas que somos ou queremos ser. Neste sentido, ela emais
profunda.
E e isto que esta por tras do uso cotidiano da metMora"profundidade"
em rela9iio as pessoas. Em nossa visiio, alguenl e superficial quando
percebemos que ele e insensivel, alheio e desinteressado das questoes
relacionadas aqualidade de sua vida, as quais nos parecem importantes e
fundamentais. Ele vive na superficie porque busca realizar desejos sem ser
motivado por questOes mais "profundas" sobre 0 que esses desejos
expressarn e sustentam em rela.;ao amodos de vida; ou ele se preocupa com
essas questOes de wna forma trivial e irrelevante, como, por exemplo, 0 mero
interesse por urna vida glamourosa e definida pela apar~ncia, ao inves de se
preocupar com 0 que (para n6s) seriam as questoes fundamentais de urna
vida com qualidade.
a utilitarista tipico seria uma figura superficial impossivel, e n6s
podemos avaliar 0 quanto eles vivem sua ideologia de forma autodec1arada
pelo grau de importiincia que atribuem a profundidade.
3.
Dessa forma, urn avaliador forte tern a profundidade e a capacidade de
articula9iio que faltam a urn simples medidor. Mas onde existe articula9iio
existe tambem a possibilidade de urna pluralidade de viso~s que antes niio
existiam. a simples medidorpode hesitar, como no caso do eclair e do mille
feuilles, e suas prefer~ncias momentiineas podem se alterar. Mas niio diriamos
que sua visiio sobre a situa9ilo de escolha ora e de urna maneira, ora e de
outra. Com avalia90es fortes, entretanto, pode haver, e freqlientemente M,
uma pluralidade de visoes a respeito de minha condi9iio, e a escolba pode
nao ser exatarnente entre 0 que e claramente 0 mais elevado e 0 menos
elevado, mas sim entre dois modos incomensunlveis de enxergar a escolha.
Digamos que por volta dos 44 anos eu esteja inclinado a arrumar as
malas e buscar outro trabalbo totalmente diferente. Digo a mim mesmo que e
preciso renovar as fontes de criatividade, pois podemos cair em uma rotina
atrofiante e fatigante, simplesmente reproduzindo as mesmas velhas
trajet6rias; este caminho e uma morte prematura. Rejuvenescimento, ao
contrario, e algo que se obtem com coragem e a90es decisivas; e preciso
estar preparado para uma ruptura, para algo totalmente novo, e assim por
diante. Cobro-me essas coisas quando uma certa disposi9iio atua sobre mim.
Mas em outros momentos tudo isso me parece coisas sem sentido de wn
adolescente. De fato, nada se ganha na vida sem disciplina, determina9ilo e
capacidade de suportar longos periodos de mera caminhada, ate que algo
maior possa dai florescer. Epreciso terum folego constante, criar lealdade a
urn certo trabalho e a uma certa comunidade; e a (mica vida significativa e
aquela enraizada na realiza.;ao desses compromissos, na vivencia de tempos
22 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Matlos - ORGANIZADORES • 23
de sacrificio para estabelecer as bases para outros tempos mais criativos, e
assim por diante.
Vemos que, diferentemente da escolha entre urn eclair e urn mille
feuilles, ou entre ferias no norte ou no sui, quando dois objetos
incomensuraveis nos atraem, estamos diante de "objetos" - cursos de ac;ao
- que s6 podem ser caracterizados atraves das qualidades de vida que eles
representarn, e de modo necessariamente contrastante. Eparte da defmil'ao
da desejabilidade de um objeto que ela apresente uma narrativa sobre a nao-
desejabilidade de um outro objeto. Mas aqui a disputa se da entre duas
caracterizac;:oes contrastantes, e ela introduz uma nova incomensurabilidade.
Quando sinto que a ida para 0 Nepal e a saida, 0 desejo de ficar e uma especie
de covardia, uma fatigada imersao na rotina, uma crescente esclerose que
somente posso curar atraves de uma ruptura. Dedicar-se longamente a uma
experiencia de sacrificios para 56 depois se permitir urn desenvolvimento
pessoal mais profunda esta longe de ser urn compromisso de coragem com
uma trajet6ria de vida original. E quando estou inclinado a nao mudar, minha
ida para 0 Nepal se assemelha a uma tolice adolescente, uma tentativa de ser
jovem novamente pela recusa de agir de acordo com minha idade, de buscar
uma dificil emancipal'ao, de renoval'ao, etc.
Temos aqui uma reflexao sobre 0 que esta em jogo numa disputa de
auto~interpreta~oes, como no exemplo acima do homem que luta contra seu
vicio em doces. A questiio em jogo tern a ver com qual interpretal'ao e mais
verdadeira, mais aut6ntica e mais livre de ilusoes, e que, por outro lado,
envolve uma distorr;fuJ dos significados que as coisas tern para mim. Resolver
esta questao e restaurar a comensurabilidade.
n
1.
Com base na intuil'ao de que a capacidade para ter desejos de segunda
ordem, ou para avaliar desejos, e essencial aagencia humana, tentei distinguir
dois tipos de avalial'oes. Espero que a discussao tenha servido para tornar
a intuil'ao basica mais plausivel, caso Ihe tenha faltado plausibilidade no
inicio. Deve estar claro que urn agente que absolutamente nao avalia seus
desejos seria desprovido de urn minimograu de reflexividade que n6s
associamos a urn agente humano, e tambeID nao teria uma parte essencial do
pano de fundo para 0 que descrevemos como 0 exercicio da vontade.
Eu devo acrescentar, talvez, sem a seguranl'a de que todos vao
concordar, que a capacidade para avaliac;oes fortes, em particular, e
fundamental para a nossa nOl'ao de sujeito humano; sem essa capacidade
urn agente nao teria a profundidade que consideramos essencial para a
condi~ao humana, sem a qual a comunica~ao humana seria impossivel (outra
caracteristica essencial da agencia humana). Mas nao falarei sobre isso aqui.
A questao seria saber se e possivel ter uma ideia convincente de um sujeito
humano para 0 qual as avalial'oes fortes fossem completamente estranhas (0
personagem Meursault, de Camus, seria urn caso desse tipo?), na medida em
que de fato os seres humanos que somos e com os quais vivemos sao todos
avaliadores fortes. .
Mas no restante deste artigo desejo analisar, com a ajuda da nOl'ao
chave de desejos de segunda ordem, outro aspecto do self. a questao da
responsabilidade. Nossa concep~ao dos seres humanos como responsaveis,
de urn modo que nao se aplica aos animais, parece estar ligada acapacidade
de avaliar desejos.
Num certo sentido, a nOl'ao de responsabilidade ja esta embutida na
nOl'ao de vontade. Urn ser capaz de avaliar desejos pode chegar aconclusao
de que tal avalial'ao esta em conflito com desejos mais urgentes. Na verdade,
podemos reconhecer que e uma caracteristica necessaria da capacidade de
avaliar desejos a faculdade de distinguir 0 melhor desejo daqueles que exercem
maior pressao sobre n6s.
Mas, pelo menos em nossa moderna nOl'ao de self, responsabilidade
tern urn sentido mais forte. Concebemos 0 agente nao s6 como alguem que e
parciahnente responsavel pelo que faz em conformidade com suas avalial'oes,
mas tarnbem como alguem responsavel, num certo sentido, pelas pr6prias
avalia~oes. .
o pr6prio termo "avalial'ao" ja sugere esse sentido de responsabilidade,
de acordo com 0 vocabulario moderno, ou quase p6s-nietzschiano, da vida
moral. Esta vinculada ao verbo "avaliar" a nOl'ao de algo que fazemos, de
uma avalial'ao que emerge de nossa atividade avaliativa, e e exatarnente ai
que esta a nossa responsabilidade.
Esta formulal'ao e trazida por Frankfurt quando ele concebe a nOl'ao de
pessoa como possuindo urna "auto-avalia~ao reflexiva que se manifesta na
formal'ao dos desejos de segunda ordem".
Podemos sugerir isto de outra forma. E indiscutivel que temos certos
desejos de primeira ordem. Eles ja estao dados, por assim dizer. Mas n6s
tambem fazemos avalial'oes e formamos desejos de segunda ordem. E esses
nao sao dados, mas sim fomentados, e e nisso que eles envolvem nossa
responsabilidade.
Como podemos entender nossa responsabiJidade? Uma influente
corrente de pensamento no mundo modemo quis entende-Ia como escolha.
a termo nietzscheano "valor", sugerido por nossa nOc;ao de "avalia~ao",
traz a ideia de que criamos os nossos "valores", que eles, em ultima instancia,
dependem de nossa pr6pria adol'ao. Mas dizer que eles repousam em ultima
instancia nessa adoc;ao e dizer que surgem, ao fim e ao cabo, de uma escolha
radical, isto e, de uma escolha que nao se baseia em nenhuma razao. Na
medida em que uma escolha e baseada em razoes, estas razoes sao
24 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES
• 25
simplesmente reconhecidas como validas e nao sao em si mesmas escolhidas.
Se concebennos nossos "valores" como escolhas, enta~ eles deverao, em
ultima instfulcia, repolisar numa escolha radical no sentido acima.
Este, eclaro, e0 caminho tornado por Sartre em L 'eire et Ie neant, onde
ele argumenta que nosso projeto fundamental repousa sobre urna escolha
radical. Esta escolba, afmna Sarlre com seu tipico talento para notaveis
formula90es, e "absurde, en ce sens, qu'il est ce por quoi (...) toutes les
raisons viennentit l'etre"IO Estan09ao de escolharadical tambem e defendida
por uma influente escola anglo-saxonica de fil6sofos da moral.
Mas nossa responsabilidade por nossas avalia90es nao pode ser
entendida atraves de uma escolba radical - caso nossa autocompreensao
for a de agentes com profundidade, de avaiiadores fortes. Isto porque e
totahuente conceblvel urna escolba radical entre avalia90es fortes, mas nao
urna escolha radical das avaiia90es fortes enquanto tais.
Como ilustra<;ao, n6s podemos examinar 0 famoso exemplo sartriano
em L'existentialism est urn humanisme, oude urn jovem rapaz encontra-se
abalado diante da escolha entre ficar ao lado de sua mae enferma ou deixa-Ia
para integrar aResistencia, exemplo este, creio eu, que ilustra exatamente 0
oposto da tese de Sarlre. A tese de Sartre e a de que nao existe, nem em uma
razao que fundamente compromissos morais, nero em algum tipo de
considera<;ao mais abrangente, nenhuma forma de decidir entre essas duas
fortes exigencias. A decisao, seja qual for a sua forma, precisa estar baseada
em urna escolba radical.
A descri9ao que Sarlre faz do dilema e muito poderosa. Mas 0 que
toma essa descri9ao plauslvel e justamente 0 que demonstra 0 equivoco da
posi9ao que Sarlre toma a partir dela. Vemos urn angustiante dilema moral
porque 0 jovem rapaz se vS diante de duas poderosas exigencias morais. De
urn lado, esta sua mae doente que, se abandonada, pode morrer Da terrivel
afli9ao de sequer saber se seu filho ainda esta vivo; de outro lado, esta 0
ehamado de seu pais, eonquistado e devastado pelo inimigo, e, no fundo,
wn ehamado nao apenas de sen pais, ja que 0 inimigo esta destruindo as
verdadeiras bases de rela90es eticas e civilizadas entre os homens.
Mas isso s6 e urn dilema porque as pr6prias exigencias morais nao
foram criadas por urna escolba radical. Se 0 aspecto dramatico dessa condi9ao
pudesse ser dissolvido, isto siguificaria que 0 jovem rapaz poderia, em algurn
momento, simplesmente livrar-se do dilema afinnando amotte ou a inoperancia
de urna das exigSneias. Na verdade, se as exigSncias morais pudessem ser
eriadas por eseolhas radieais, 0 jovem rapaz poderia viver urn grave dilema
entre partir e tomar urn sorvete de casquinha, e, assim, ele novamente nao
poderia decidir.
10. J. P. Sartre. L 'etre et Ie neant. Paris, 1943, p. 559.
A existSncia de dilemas morais nao serve de argumento contra a tese
de que as avalia90es nao repousam em escolbas radicais. Por que deve ser
surpreendente que as avalia~oes eapazes de obter nosso assentimento
possaro estar em eonflito, e as vezes de forma muito eontundente? Gostaria
de defender 0 argumento contrario, de qUe os dilemas morais sao
ineonciliaveis nos termos da teoria da escolha radical.
Agora, nesse easo hipotetico, 0 jovem rapaz precisa tomar sua decisao
atraves de uma escolha radical. Ele deve simplesmente lanpr-se na
~esistSncia ou permanecer em casa com sua mae. Ele nao possui uma
hnguagem para articular a superioridade de uma altemativa em rela9ao it
outra; na verdade, ele nem mesmo dispoe de uma percep9ao rudimentar a
respeito dessa possivel superioridade; as duas possibilidades Ihe parecem
totalmente incomensuraveis. Ele pode apenas projetar-se em urna delas.
Neste sentido e perfeitamente compreensivel a escolha radical. Mas
imagine se ela se aplicasse a todos os casos de urna a9ao moral. Vamos
considerar que eu tenha uma mae enferma e nenhurna outra obriga9ao
concorrente. Fico com ela ou viajo para Riviera no feriado? Nao M duvida de
que devo ficar. Posso nao ficar, e claro. E neste sentido existe uma escolha
radical em aberto: cumprir ou nao 0 meu dever (embora eu possa lan9ar mao
de inumeras racionaliza90es para justificar a 0p9ao de passar 0 feriado na
Cote d'Azur: devo isso a mim mesmo, ap6s ter cuidado de' minha mae com
tanta dedica9ao, enquanto meus irmaos estavam ausentes). Mas a questao
fundamental e se podemos determinar a forma como devemos agir com base
em urna escolha radical.
Como isso poderia ser?Em primeiro lugar, eu estaria diante de duas
altemativas: ficar com minha mae ou viajar para 0 suI. Enquanto escolhas
radicais, as altemativas nao podem ser caraeterizadas de modo contrastante
ou seja, urna nao poderia ser a 0P9ao do dever ass1m como a outra tambe~
nao poderia ser a da indulgencia egolsta, ou algo do tipo.
Esta descrivao contrastante seria criada por escolhas radicais. Mas, no
que consiste esse tipo de escolha? Bern, eu posso ponderar as duas
possibilidades, escolher urna forma de agir e descartar a outra. Mas e al que
somos levados a urn limite, onde escolher toma-se nao escolher. Sera que eu
realmente escolbo levar a cabo urna altemativa? E, acima de tudo, nao M
espa90 para avaliarresolu90es que vern it tona na escolha, como, por exemplo,
"e meu dever ficar com minha mae".
o que e uma resolu9ao vir it tona numa situa9ao de escolba? Nao estou
sugerindo que, com a avaliavao das altemativas, cresc;a continuamente a
sensa9ao de que este julgamento e 0 correto, pois isso nao e urna questao
de escolha radical; mas antes que, com tal avaliavao, nos tomamos mais
pr6ximos de perceber onde repousa nossa obriga9ao. Esse argumento postula
que nossas obriga90es nao emergem de escolhas radicais, e sim de urna
26 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES
..... 27
,
especie de visao a respeito de nossa condic;ao moral. As escolhas estariam
situadas nessa COndi9ilO. Entilo, 0 que significa uma escolha radical surgir
numjulgamento? Seria ela capaz de me levar a aceitar uma posic;ao, como no
caso em que decidi por urna das a90es? Mas qual e a for9a de "aceitar urna
posi9ao"? Eu certamente posso dizer que "e meu dever ficar com minha
mae", mas certamente nao epara issa que se volta 0 consentimento. Suponho
que, de fata, eu possa estar repentinamente tornado pelo sentimento de que
"e meu dever ficar com minha mile"; mas onde estA a razilo para que isso seja
considerado uma escolha?
Para falarmos em escolhas nao podemos estar presos a uma das
alternativas. Em urn certo sentido devemos estar submetidos ao que ambas
t~m de atrativo para dar 0 nosso consentimento a uma delas. Mas, nesse
caso, que tipo de atrativo elas possuem? 0 que me atrai na viajem para Cote
d'Azurtalvez seja evidente, mas 0 que me motiva a ficar com minha mae nao
pode ser a sensll\'ilo de que "e meu dever", pois essa ex hypothesi surgiu da
pr6pria escolha. Esta sensa9ao pode ser apenas urn desejo de Jacto, como
meu desejo pelo sol e pelo mar de Cote d'Azur. Mas ai a escolha em questilo
seria semelhante aquela entre os dois feriados de que falamos na se9ilo
anterior. Estoll sujeito ao atrativo das duas opc;5es incomensuraveis, as
avalio e comeC;o a perceber que uma me atrai mais do que a outra, que seu
atrativo 15 preponderante. au, entao, a questao teimosamente nao se resolve
ate que, em algum momento, eu diga: "Que inferno! Vou ficar!".
o agente de urna escolha radical precisa escolher - se e que ele de fato
escolhe algo - como urn simples medidor (weigher). E isto signifiea, a rigor,
que ele nao pode ser urn avaliador forte, pois suas supostas avalia~oes
fortes resultam de simples medi90es. A aplicar;ilo de uma linguagem de
contrastes capaz de articularuma preferencia repousa em uma resoluvao, em
uma escolha entre coisas incomensufllveis. Mas, entao, 0 usc dessa
linguagem seria falsa em um sentido crucial. Isto porque, supostamente, a
melhor defmi9ilo para a experiencia sobre a qual repousa a aplica9ilo dessa
linguagem seria a de uma preferencia incomensuravel; a experiencia
fundamental que supomos no uso dessa linguagem de contrastes seria, de
fato, aquela tipica de urn simples medidor, nilo a de urn avaliador forte. 0 que
leva esse medidor aconsiderar urna altemativa mais elevada ou mais valorosa
nao 15, suponho mais uma vez, 0 fate de ele vivencia-Ia nesses tennos; por
isso suas avalia90es seriamjulgamentos, e nilo escolhas. Ao inves disso, ele
e levado a preferir urna delas, ap6s considerar 0 que ambas tem como atrativo.
Mas claro que ate mesmo esta concep9ilo de escolha poderia nilo ser
aceitAvel para 0 te6rico da escolha radical. Ele recusaria reduzir essas escolhas
a decisoes, como a de passar urn feriado no norte ou no suI. Isto porque ele
supoe que essas escolhas nao se restringem a simples registros de
preferencias, e 15 por isso que elas sao concebidas como escolhas radicais.
Mas 0 que e uma escolha radical para alem do simples registro de
preferencias? Bem, e possivel que eu decida exatamente seguir urna dessas
preferencias. E entao diga: "Que infemo!Vou ficar!". Mas isso, sem duvida
. ,.'
eo que conslgo fazer no caso da escolha envolvendo 0 feriado, onde eu, por
exemplo, nilo formulo uma concep9ilo sobre a preferencia que e inerente e
pr6pria da alternativa escolhida. Minba decisilo nilo cria urna distin9ilo entre
as duas alternativas.
Epossivel que nas escolhas radicais eu desconsidere poi- completo as
preferencias. Nilo se trata de que eu tenba falhado em minba tentativa de
decidir sobre urna preferencia, me reSlando seguir cegamente uma delas e
sim que, neste tipo de escolha, as preferencias nao Sao levadas em con~a.
Mas, enlilo, 0 que e levado em conta? Aqui chegamos no limite de urna
incoerencia. Vma escolha que nao leva em conta alguma coisa, na qual 0
agente nao se sente motivado por nenhuma das altemativas, ou desconsidere
cornpletamente essa motiva~ao, ainda seria uma escolha? a que isso poderia
ser? Bem, 0 fato e que ele de repente segue uma 0p9ilo. E isso ainda poderia
ser feito em urn nivel de abstra9ilo. 0 que torna essa opr;ilo uma escolha?
Talvez isso esteja relacionado a algo que 0 agente pense ser a causa de sua
a9ilo. Mas 0 que isso pode ser? Quem sabe repetir obstinadamente para si
mesmo "devo escolher uma delas", "devo escolher urna delas"? Certamente
nilo e isso. Ele deve, antes, ponderar as alternativas, avali"; a desejabiJidade
de cada urna, de modo que a escolha tenba alguma rela9ilo com isso. Talvez
ele considere que A e mais desejavel em todos os aspectos, e ainda assim
escolha B; ou talvez ele tenha percebido repentinamente sua preferencia por
B. Em ambos os casos, sua escolha esta claramente ligada a sua preferencia,
por mais que esta tenha surgido, repentinamente, de uma inversao de criterios.
Mas uma escolha inteiramente desvinculada da desejabilidade das
altemativas nao poderia ser compreendida como uma escolha.
A teoria da escolha radical e, de fato, profundamente incoerente, pois
ela almeja conciliar avalia9ilo forte e escolharadical. Ela deseja ter avalia90es
fortes e ao mesmo temo negar a elas 0 status de resolu90es. 0 resultado e
que ela sucumbe diante de urna investigar;ilo mais detida: para manter sua
coereneia, a teoria da escolha radical torna-se, de fato, algo totalmente
diferente. Ou bem levamos a serio aquelas considera90es que importam em
nossa decisoes morais, 0 que nos obriga a reconhecer que elas, em sua
maioria, nao surgem de escolhas radicais, ou enta~ tentamos a todo custo
sustentar nossas escolhas radicais independentemente de qualquer
avalia9ilo, de modo que elas deixem de ser escolhas entre avalia90es fortes
para ser uma mera expressao de preferencias; e, se seguinnosadiante e
te~tarmos desvincular nossas escolhas de nossas preferencias de [acto,
catremos, ao fInal, em urn comportamento sem criterio que nunca poderiamos
chamar de escolha.
28 Teoria erillea no seeulo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES 29
E verdade que a teoria mantem sua aparencia de plausibilidade ao
admitir discretamente que avalia,aes fortes podem estar, de dois modos,
alem do alcance de urna escolha radical. Em primeiro lugar, a grande obje,ao
it nossa tentativa de mostrar que escolhas morais radicais nao passam de
meras preferencias de urn simples medidor e que as escolhas consideradas
pela teoria dizem respeito a questaes basicas e fundamentais, como a de
nossojovem rapaz acima que tinha que decidirentre sua mae e aResistencia.
Mas essas questaes nao sao basicas e fundamentais em virtude de escolhas
radicais; sua importancia e dada au revelada em uma avaIia9ao que e
constat",l., e nao escolhida. A verdadeira for,a da teoria da escolha radical
vern do sentimento de que existem diferentes perspectivas morais, de que
existe, como dissemos na se~ao anterior, uma pluralidade de visoes morais,
entre as quais e muito dificil fazer urn julgamento. Podemos concluir que a
wica fonna de decidir entre elas e atraves da escolha radical que 0 jovem
rapaz precisou adotar.
E esse raciocinio, pOT sua vez, nos leva a uma segunda avalia9ao forte,
que esta alem da escolha. Se esta e a condi,ao humana, entao e claramente
finito mais honesto, mais esclarecedor, menos confuso emenDS ilus6rio estar
ciente desta condi,ao e assurnir a inteira responsabilidade pornossas escolhas
radicais. Apostura de "boafe" e melhornao em virtude da escolha radical, mas
sim porque nossa caracteriza,ao da condi,ao hurnana reserva it escolha radical
esta importante fun,ao. E se assurninnos que esta e nossa condi,ao moral, e
mais honesto, corajoso, auto-esc1arecedor e, conseqiientemente, mais elevado
como modo de vida, escolher com lucidez do que esconder nossas escolhas
na suposta estrutura das coisas, fugindo da pr6pria responsabilidade e mentindo
para si mesmo com urna profunda autoduplicidade.
Quando percebemos aquilo que confere plausibilidade it teoria da
escolha radical veffiOS como as avaliac;Oes fortes sfto inescapaveis em nossa
concep,ao do agente e de sua experiencia; assim 0 e porque tais avalia,aes
tambem estao vinculadas it nossa no,ao de self, de modo que elas reaparecem
ate mesmo quando pareciam excluidas.
2.
Isso pode ser observado de urn outro angulo, considerando urn outro
modo de demonstrar 0 equivoco da teoria da escolha radical. Mencionei na
ultima se,ao que as avalia,aes fortes podem ser consideradas profundas
porque, a partir delas, avaliamos nao apenas as preferencias desejadas,
mas tambem 0 tipo de vida e a qualidade do agente que estas preferencias
definem para n6s. Isto esta profundamente vinculado com noSsa no,ao de
identidade.
Com 0 tenno "identidade" eu desejo ressaltar as situa,aes em que
falamos de "encontrar apr6pria identidade" au em passar por uma "crise de
identidade". Aqui nossa identidade e definida por nossas avalia,oes
fundamentais. Encontrar a res posta para a questao "qual e minha
identidade?" nao e possivel com uma lista de propriedades separadas dessas
avali"l'aes, como minha descri,ao fisica, procedelicia, origem, habilidades e "
assim por diante. Todas essas propriedade~ podem constituir minha
identidade, mas somente de urn modo: se pertencer a urna certa linhagem for
algo crucial para mim, se eu tiver orgulho disso e conceber esse pertencimento
como algurna coisa que me inclui em urna classe de pessoas cujas qualidades
eu valorizo em minha condi,ao de agente, qualidades estas que receho desse
panG de fundo como atributos que passam a integrar minha identidade. E
esta sera fortalecida se eu acreditar que nossas qualidades morais sao, em
grande medida, nutridas por nosso panG de fundo, de modo que se voltar
contra ele e uma grave auto-rejei,ao.
Desse modo, minha linhagem e parte de minha identidade porque ela
esta vinculada a certas qualidades que valorizo, ou porque acredito que
devo valoriza-Ias como algo que e parte inlrinseca de mim, pois, do contrlirio,
estaria me auto-rejeitando. Em todo caso, 0 conceito de identidade esta
vinculado a certas avalia,aes fortes das quais nao posso me separar. Isto
ocorre porque estou convictamente identificado com minhas avalia,aes fortes,
porque considero que algumas de minhas propriedades admitem somente
uma detenninada avalia,ao forte em rela,ilo mim,ja que tais propriedades
sao de tal modo cruciais em relac;ao ao que sou enquanto agente, ou seja,
enquanto urn avaliador forte, que realmente nao posso repudia-Ias. Com
esse repudio eu teria minha interioridade violentamente desagregada e seria
incapaz de avaliar com autenticidade.
Portanto, nossa identidade e definida por certas avalia,aes que sao
inseparaveis de nossa condi,ao de agentes. Sem elas deixariamos de ser n6s
mesmos, e isso nao significa que seriamos apenas diferentes, no sentido de
ter outras propriedades - 0 que, na verdade, ocorreria ap6s urna mudan,a,
ainda que pequena-, e sim que anulariamos apossibilidade de seITI10S agentes
que avaliam; significa que nossa existSncia como pessoas e, conseqUen-
temente, nossa capacidade de aderir a certas avaliayoes seriam impossiveis
fora de urn horizonte fonnado por essa avaliac;Oes essenciais; enfim, que
nossa condi,ao de pessoa estaria integralmente corrompida.
Dessa forma, se alguma tortura ou lavagem cerebral me obrigasse a
abandonar as convicyoes que defin em minha identidade, eu seria
desagregado, nao seria mais urn sujeito capaz de saber minha posi,ao no
mundo e de conhecer 0 sentido que as coisas possuem paramim; eu sofreria
urna terrivel corrosao daquelas capacidades que definem urn agente hurnano.
Se eu, por exemplo, fosse de alguma fonna induzido a repudiar minha linhagem,
seria violado como pessoa, pois estaria repudiando urn componente
fundamental da base sobre a qual detennino e avalio meu pr6prio sentido
30 Teoria critlca no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos ~ ORGANIZADDRES
I
das caisas. Esse repudio seria inaut6ntico e, com ele, eu me tomaria incapaz
de fazer qualquer outra avalia9ao autentica.
A n09ao de identidade nos traz como referencia certas avaJia90es que
sao essenciais, pais sao elas que defmem 0 fundamento ou 0 horizonte
indispensavel a partir do qual nos tomamos pessoas que refletem e avaliam.
Nao ter ou nao encontrar esse horizonte e, de fata, uma terrivel experiencia
de perda e desagrega9ao. Epor isso que podemos falar em urna "crise de
identidade" quando perdemos nossa referencia existencial. Urn se((decide e
age a partir de certas avalia90es fundamentais.
Isto e impossivel na teoria da escolha radical. 0 agente da escolha
radical, ex hypothesi, nao teria nenhurn horizonte de avalia9ao no momento
de sua escolha. Ele seria inteiramente desprovido de urna identidade, urna
especie de ponto sem dimensoes (extensionless point), urn mero movimento
no vazio (a pure leap into the void). Mas ai estamos diante de uma
impossibilidade OU, no maximo, de uma descrivao da mais assustadora
aliena9ao mental. 0 sujeito da escolha radical e urna outra vers1io da recorrente
figura que nossa civiliza9ao deseja realizar: 0 ego descorporificado
(disembodied ego), 0 sujeito que pode objetivar tudo, inclusive a si mesmo,
e escolher a partir de urna liberdade radical. Mas a promessa desse
autodominio total seria, de fato, a mais plena autodestrui9ao.
3.
Que sentidos podemos atribuir entao it responsabilidade do agente
sem que ela seja entendida nos termos da escolha radical? Concluiremos que
nao somos, em nenhum sentido, responsaveis por nossas avalia'Yoes?
Creio que nao, pois ha urn outro sentido em que somos responsaveis.
Nossas avalia90es nao sao escolhidas. Pelo contrario, elas sao articula90es
do que sentimos como valoroso, mais elevado, mais pleno, mais realizador, e
assim por diante. E como articula,oes elas nos oferecern urn outro ponto de
apoio para 0 conceito de responsabilidade. Vamos entao examina-Io.
Grande parte de nossas motiva'Yoes ~ nossos desejos, aspira'Yoes,
avalia90es - nao sao simplesmente dados. N6s as formulamos em palavras ou
em imagens. Na verdade, pelo fato de sermos animais lingiiisticos, a articula91io
de nossos desejos e aspira90es nao pode se dar apenas dessa ou daquela
forma, segundo modelos ja concebidos. Assim, nao somos simplesmente
movidos por fOf9as psiquicas comparaveis itgravidade ou ao eletromagnetismo,
que, de forma rasa, podem ser entendidas como for9as dadas, mas sim por
"forc;:as"ll psiquicas articuladas ou interpretadas de urn certo modo.11. Coloquei a expressoo entre aspas par que as motivac.:oes subjacentes que chamamos
de "forc.:as" ou "impulsos" somente silo acessiveis atraves da interpretac.:ilo dos
comportamentos e dos sentimentos. Nesse caso, e muito dificil trac.:ar a diferenc.:a
Nesse nivel, articula~ao nao esimplesmente descri~ao, no sentido de
caracterizar urn objeto totalmente aut6nomo, ou seja, urn objeto que nao
pade ser alterado nem no que ele ee nem no gran e no tipo de evidencia que
ele pade ter com a descric;ao. Assim, caracterizar umotmesa como marrom ou
urna cadeia de montanhas como pontiaguda e urna simples descri9ao.
As articula90es, ao contrario, sao tentativas de formular 0 que esta
inicialmente incompleto, confuso e malformulado. E esse tipo de formula9ao
ou de reformula9ao nao isenta seu objeto de altera90es. Fomecer urna
determinada articula9ao e, de certo modo, moldar 0 sentido do que n6s
desejamos ou do que consideramos importante.
Vejamos 0 exemplo acima do homem que enfrenta a obesidade e que
percebe isso como urna questao meramente quantitativa de maximizar a
satisfa9ao, e nao como urna disputa entre dignidade e degrada9ao. Vma
mudan'Ya transfonnaria sua disputa interior em uma experiencia totalmente
diferente.
As motiva~oes em oposi9ao - a suplica por urn bolo de creme e a
insatisfa9ao consigo pr6prio por causa desse deleite -, que aqui sao os
"objetos" submetidos a uma nova descri'Yao, nao sao independentes no
sentido esb09ado acima. Quando aquele homem consegue aceitar a nova
interpreta9ao do desejo de se autocontrolar, 0 pr6prio desejo e alterado. A
verdade e que, com relac;:ao a essa mesma aspirac;:ao, se ele deixa de comer 0
bolo de creme nao mais como urna busca por dignidade e auto-respeito, a
motiva9ao toma-se completamente diferente.
Eclaro que, ate mesmo nesse caso, n6s tentamos quase sempre manter a
identidade do objeto que e submetido a urna nova avalia91io - tamanha e a
vincula'Yao aos modelos ordinarios de descric;:fio. Podemos pensar, digamos, em
termos de algum sentlmento imaturo de vergonha ede~ao que nao se faz
presente em nosso desejo de resistir ao prazer em excesso, que assim teria como
sua (mica meta racional 0 acrescimo de satisf~ao integral. Assim, podemos ter
a impressao de que os elementos pennanecem os mesmos, de que sao apenas
rearranjados. Mas, analisando mais de perto, vemos que as mudan9as trazidas
pela nova descri9ao tambem alteram 0 sentimento de vergonha. Ele pode se
<lissipar por completo ou se tomar algo tota1mente <liferente.
Portanto, podemos dizer que nossas auto-interpreta90es constituem
parcialmente nossa experiencia.lsto porque urna descri9ao alterada de nossas
motiva90es pode ser inseparavel de urna mudan9a nessas motiva90es. Mas
isto nao significa estabelecer urna rela9ao causal: nao estou dizendo que,
alterando nossas descri'Yoes, teremos como resultado a altera'Yao de nossa
entre a metafora e a teoria basica. Cf. Paul Ricoeur. De l'interpretation. Paris,
1965; e 0 meu "Force et sens", in G. Madison (ed.). Sens et existence. Paris, 1975.
32 leoria critica no seculo XXI Jesse Souza I Patrfcia Mattos - ORGANIZAOORES
l,
experiencia. Significa, ista siro, que certos tipos de experiencia slio impossiveis
sem certas autodescric;oes. A qualidade especifica da experiencia mostrada
no casa· d.a obesidade, em que considero as alternativas apenas por uma
medic;iio de utilidade, ficando isento da ameac;a de degradac;iio e
autodesprezo, niiO pode existir sem a caracterizaC;iio "redutora" que fac;o dos
dois desejos em disputa, como se fossem somente dois tipos diferentes de
vantagens. Essa descric;iio redutora e parte da forma calculista e objetificante
com a qual eu vivencio esta escolha. Podemos dizer que a descric;iio e
"constitutiva" da experiencia, e esse e0 termo que a partir de agora usarei
nesse tipo de relac;iio.
Mas 0 fato de as auto-interpretac;oes serem constitutivas da experiencia
niio diznada sobre como ambas se modificam. De fato, parece que a mudanc;a
poderia surgir de dois modos. Em algurnas circunstilncias somos, por n6s
mesmos ou numa interlocu~ao, levados arefletir, e as vezes adquirimos uma
nova forma de veT nossa condi<;llo com a qual alteramos nossa experiencia.
Mas, fundarnentalmente, parece que determinadas descric;oes daexperiencia
sao inacessiveis ou incompreensiveis para algumas pessoas exatamente pOT
causa da natureza especifica de snas experiencias. Para alguem com uma
forte experiencia de enfrentar a obesidade como se ela fosse uma degradac;iio,
a descri<;ao "redutora" seria uma caricatura desagradavel, uma evita<;ao
desavergonbada da realidade moral- como quando reagimos a camutlagem
de urn crime policial atraves de uma linguagem orwelliana, por exemplo,
chamando urn genocidio de "soluC;iio defmitiva".
o vinculo constitutivo entre descrif;.ao e experit3ncia admite influencia
causal em ambas as direc;oes: algumas vezes ela pode nos permitir modificar
a experiencia atraves de novas concep90es; mas, fundamentalmente, sao as
formas profundarnente incorporadas de nossa experiencia que circunscrevem
essas concepc;Oes.
As descric;Oes que fazemos de nossas motivac;oes, assim como 0 esforc;o
de formular 0 que consideramos importante, nao sao, em virtude dessarelac;ao
constitutiva, simples relatos de objetos dotados de uma autonomia plena. E
elas tambem niio siio simples descric;oes arbitrluias, onde vale qualquer coisa.
Existem interpretac;oes mais ou menos adequadas, mais ou menos verdadeiras,
mais ou menos perspicazes e mais ou menos auto-ilus6rias. Epela dupla face
da articulac;iio, porque ela pode estar errada, ou mesmo porque pode formular
urn equivoca, que algumas vezes encontramos articulac;oes que trazem uma
distorC;iio da realidade em questiio. Niio falamos somente de erros, mas, com
freqiiencia, tambem de ilusoes e enganos.
Podemos colocar a questiio do seguinte modo. Nossa tentativa de
fonnular 0 que consideramos importante deve, como lima descric;ao, se
esforc;ar para ser fiel a algurna coisa. Mas aquilo que devemos ser fieis niio e
urn objeto independente, com maneira e grau fixos de se tomar evidente, mas
sim urn sentido amplarnente inarticulado de algo que e de importilncia decisiva
Uma articulac;iio desse objeto tende a tornil-lo algo diferente do que ele era
anteriormente.
E, no mesma sentido, uma nova articu]ac;ao de l1rp "'objeto" DaD 0 deixa
evidente ou obscuro para n6s da mesma forma ou no mesma grau que antes.
A formulac;iio do "objeto" 0 faz acessivel de novas maneiras. Isto, de fato, e
bem ilustrado pelo nosso exemplo do homem enfrentando a obesidade.
Com isso, nossas articulac;oes, exatamente porque em parte modelam
os objetos, chamam nossa responsabilidade de urn modo que niio acontece
com meTas descric;oes. Isto acontece de duas formas interwrelacionadas, que
correspondem as duas direc;oes da intluencia causal mencionadas acima.
Primeiro porque, muitas vezes, as concepc;oes que podemos fazer de
nossas pr6prias motivac;Oes e do que e importante e valoroso siio limitadas
pela configurac;iio de nossa experiencia, como, por exemplo, quando urna
falha em compreender uma certa concepc;iio ou em enxergar 0 prop6sito de
uma assertiva moral e tomada como urn julgamento a respeito do carilter da
pessoa em quest110. Vma pessoa insensivel, ou urn famitico, n110 consegue
enxergar 0 que infringem aos outros, 0 tipo de sofrimento que causam a eles.
Ela niio ve, por exemplo, que sua atitude afronta profundarnente 0 sentimento
de honra de alguem, ou que talvez esteja arruinando a auto-estima de urna
pessoa. Ela e a prova de todo nosso argumento. .
Eta niio consegue nos ouvir porque estil, em si mesma, fechada a todo
tipo de sensibilidade, ou, talvez possamos dizer, ao pr6prio sentido de valor
pessoal; e isto, por sua vez, pode estar relacionado a experiencias que ela
viveu anterionnente. Essas experiencias precedentes se fazem presentes na
configura'Yao das experiencias atuais, nas

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