Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ORGANIZ ADO R ES COLE<;:AO CRiTICA CONTEMPOAANEA Dire,lio: Josue Pereira da Silva Titulos Publicados: Crttica contempordnea ~ ensaios Josue Pereira da Silva, !ram Jacome Rodrigues e Myrian Sepulveda dos Santos (orgs.) Memoria cole/iva e teoria social Myrian Sepulveda dos Santos Metamorfoses do trabalho AndreGorz J e sse Patricia SOU z a Mattos Miserias do presente, riqueza do passivel Andre Gorz Antropologia e sociedade no Quebec Celso Azzan Jr. Reinvenfoes da Africa na Bahia Patricia de Santana Pinho o [material - Conhecimento, valor e capital AndreGorz Quem tern medo de teoria? A amea9a do p6s-modernisrno na historiografia americana Jose Antonio Vasconcelos Modernidade e domina,ao - Theodor Adorno e a teoria social contempordnea Silvio Cesar Camargo A socia/agia politica do reconhecimento ~ As contribui90es de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser Patricia Mattos Andre Gorz e seus criticos Josue Pereira da Silva e Iram Jacome Rodrigues (orgs.) Conher,;a aproposta da coler,;ao CroTICA CONTEMPORANEA no site www.annabhnne.com.br Teoria crftica no seculo XXI S713 Infotbes ]nforma~1io e Tesauro Souza, Jesse, Org.; Mattos, Patricia, Org. . ~eoria critica no seculo XXI. / Organizayiio de Jesse Souza e Patncia Mattos. - sao Paulo: Annablume, 2007. (Critica Contempo- ninea) 324 p.; 14 x 21cm. ISBN 978-85-7419-752-4 1. Teoria Sociol6gica. 2. Sociologia. 3. Ciencias Sociais. 4. Globalizayiio. 5. Cultura. 6. Politica. I. Titulo. II. Serie. CDU 30 CDD 302 Catalogaciio elaborada por Wanda Lucia Schmidt - CRB-8-] 922 Sumario 7 APRESENTA<;:AO 7 0 que e agencia humana? Charles Taylor 41 0 reconhecimento social e sua refunda,ao filos6fica em Charles Taylor Patricia Mattos 55 Pierre Bourdieu, pensador da periferia? Jesse Souza 181 Trabalho, reconhecimento e democracia: aplicando teorias de vanguarda ao contexto peri ferico Fabricio Maciel & Roberto Torres 79 Reconhecimento ou redistribuil'ao? A mudanl'a de perspectivas na ordem moral da sociedade Axel Honneth 95 A Teoria critica de Axel Honneth Giovani Agostini Saavedra 113 Reconhecimento sem etica? Nancy Fraser 141 A globaliza,ao da democracia sem Estado: publico fraco, publico forte, constitucionalismo global Hauke Brunkhorst 163 ldeologia e consciencia Thomas Leithduser TEORIA CRiTiCA NO SECULO XXI CoordenQ(;Qo editorial Joaquim Antonio Pereira PaginafQO Ray Lopes Pereira CONSELHO EDITORIAL Eduardo Pelluela Cafiizal Norval Baitello Junior Celia Maria Marinho de Azevedo Maria Odila Leite da Silva Dias Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff Cecilia de Almeida Salles Pedro Jacobi Lucrecia D'Ah~ssio Ferrara 18 ediyiio: outubro de 2007 © Jesse Souza I Patricia Mattos (orgs.) ANNABLUME editora. comunicaciio Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros 05427-100. Silo Paulo. SP. Brasil Tel. e Fax. (Oil) 3812-6764 - Televendas 3031-9727 http://www.annablume.com.br 213 231 Esfera publica midiatica na America Latina: uma interpretal'iio com as categorias habermasianas Gilberta Barbosa Salgado Ulisses e seu barco: esbo~o para uma critica microssocio16gica ateoria critica Raul Francisco Magalhiies 257 Foucault e a crftica racional da racionalidade Diogo Correa 281 Nietzsche, contemporaneidade e etica: a alegria como resposta afinnativa Renarde Freire Nobre 303 Condu9ao da vida cotidiana e desigualdade social: urn estudo explorativo em Salvador da Bahia Thomas Kuhn 319 A crftica da vida moderna em Georg Simmel e Walter Benjamin Sergio Duarte Os textos reunidos no presente volume pretendem levar ao publico brasileiro alguns dos autores mais importantes do debate critico na filosofia social e nas ciencias sociais contemporaneas. Neste volume esta.o presentes nao apenas textos ineditos em portugues de varios autores fundamentais do debate te6rico de vanguarda nas ciencias sociais e na filosofia social, mas tambem analises criticas acerca de seus trabalhos produzidos pela pena de competentes especialistas brasileiros. Em urn contexto social, politico e academico de quase absoluta hegemonia do liberalismo triunfante, estariamos, sem urn pensamento entice vigoroso, muito mais frageis. Eele que nos permite, por exemp!o, criticar a "generaliza<;ao liberal" do calculo economica, que imagina a sociedade modema composta por urn conjunto de homo economicus, intercambiaveis e fungiveis, com as mesmas disposi90es de comportamento e as mesmas capacidades de disciplina, autocontrole e auto-responsabilidade, as quais seriam encontradas em todas as classes sociais. Eprecisamente esse mundo indiviso e sem conflito que povoa nao s6 a imagina9ao dos poderosos, mas tambem da midia e dos pressupostos que constroem 0 debate publico entre n6s. Nesse registro, hoje amplamente hegemonico, 0 marginalizado e 0 desclassificado social sao percebidos como se fossem individuos com as mesmas capacidades disposicionais do individuo da classe media. Precisamente por conta disso, no nosso debate publico, 0 miseravel e sua rniseria sao percebidos como contingentes e fortuitos, urn mero acaso do destino, sendo a sua situa9ao de absoluta priva9ao facilmente reversivel, bastando para isso urna ajuda passageira e t6pica do Estado para que ele possa andar com as pr6prias pernas. Essa e tambem a logica da politica social em sociedades como abrasileira, quando ela nao e, 0 que emuito pior, tornada completamente invisivel pela explora9ao sensacionalista e comercia! operada pela midia, dos fenomenos cuja manifesta9ao superficial e visivel sao aviolencia end~mica e 0 crime. Mas as conseqUencias do liberalismo, que reduz todas as "qualidades" - a vida moral, cultural e politica- a"quantifica9ao" economica, podem ser tambem visiveis no debate academico. Exemplos dessa "colonizaIYao" do horizonte simb6lico pela percep9ao economica do mundo social sao a dominancia da perspectiva unilateralmente economicista dos fenomenos da 8 Teoria crftica no seculo XXi sociedade e da quantifica~aoestatistica vazia e sem interpreta9ao do mundo social que se passa por conhecimento valida. Nesse contexto desencantado, as perspectivas criticas, como as apresentadas nessa coletanea, sao pe<;as indispensaveis de resist6ncia. A tematiza,ao de que existem realidades para aMm da visivel, da "material" e da quantificavel - em suma, para alem da realidade pronta e acabada construida pelas rela,5es de poder triunfantes - ea fonte mesma de qualquer pensamento ou a<;ao verdadeiramente criticos. A presente colemnea, que une, dentre Qutros, autores como Charles Taylor, Axel Honneth, Nancy Fraser, e textos de estudiosos das obras Michel Foucault, Nietzsche, Pierre Bourdieu e Habermas, os quais entre si apresentarn difereo9as e divergencias muitas vezes inconcilhlveis, possui como tio condutor e converg6ncia profunda precisamente 0 mto de que todos eles sllspeitam, com boas raz5es, do "dado", ou seja, do mundo como nos e apresentado pelos donos do tempo presente. Nossa esperan<ya eque esse conjunto de textos possa ser usado como materia-prima e estimulo tarnbem para a constru,ao de uma Teoria Critica da realidade brasileira, realidade essa ainda dominada por interpreta,5es hoje flagrantemente anacronicas, como se 0 personalismo pre-moderno ainda espelhasse nossa singularidade social. Aqui, 0 desafio e romper com a artificial separaltao, ainda vigente na academia brasileira, entre a recep~ao do pensamento cosmopolita, percebido como mero adomo e fim em si (as teorias classicas e contemporaneas de todos os curriculos de gradua,ao e p6s- gradua,ao em ciencias sociais entre n6s), e 0 estudo da realidade brasileira, percebido como algo apartado e sem comunica~ao com as teorias de vanguarda acerca das vicissitudes do capitalismo tardio. Esse desafio, inclusive, ja e tornado como 0 objetivo declarado de alguns textos desse livro. JESSESOUZA e PATRicIA MATTOS oque eagencia humana?1 CHARLES TAYLOR I I. Neste artigo eu gostaria de investigar 0 que esta envolvido na no,ao de self, de urn agente humano responsavel. a que atribuimos a n6s mesmos como agentes humanos e que nao podemos atribuir aos animais? Na verdade, essa questao nos leva rnuito alem, remetendo-nos para varios debates de fundamental importiincia na filosofia. Eu nao tenho a pretensao de abordar todos eles, mas gostaria de fazer uma investigaltao preliminar do tema, usando como guia uma no~ao chave introduzida recentemente por Harry Frankfurt, e com sua ajuda ver 0 quanta 0 espa,o do se(fpode ser mapeado. A no~ao chave e a distinltao entre desejos de primeira e segunda ordem que Frankfurt realiza em seu "Freedom ofthe will and the concept ofa person".' Eu tenho urn "desejo de segunda ordem" quando 0 objeto deste desejo e a pr6pria condi,ao de alguem que possui urn determinado desejo (de primeira ordem). A intui,ao subjacente il introdu,ao de Frankfurt a esta no,ao e que ela e essencial na caracteriza~aode uma pessoa ou agente humano, isto e, para a demarca,ao dos agentes humanos em rela,ao a outros tipos de agente. Como ele afirma: 1. Traduzido por Roberto Torres e Fabricio Maciel do original "What is a Human Agency?", TAYLOR, C. Philosophical Papers 1: Human Agency and Language. Cambridge and New York: Cambridge University Press, 1985, pp. 13-44. A mesma versao do texto tambem foi publicada antes no volume editado por T. Mischel. The Self Oxford: Blackwell, 1977. 2. H. Frankfurt Freedom of the will and the concept of a person. Journal of Philosophy, 67: I, jan, 1971, pp. 5~20 (Liberdade da vontade e 0 conceito de pessoa). 10 Teoria crltica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES 11 Os seres humanos DaD sao os unicos a terem desejos, motiva~5es e escolhas. Eles as compartilham com membros de outras especies, algumas das quais ate mesmo se engajam ern delibera(j:oes e tornam decisoes baseadas em pensamentos previos. Parece seT particularmente caracteristico dos seres humanos, entretanto, a capacidade de fonnar (...) desejos de segunda ordem (...). 3 Em outros tennos, concebemos os animais (pelo menos as mais elevados) como portadores de desejos, e ate mesmo, em alguns casos, como tendo que escoTher entre eles, ou ao menos inibindo alguns desejos em fun9ilo de outros. Mas 0 que e especificamente humano e 0 poder de avalior nossos desejos, de considerar alguns como desejaveis e outros como indesejaveis. Isto porque "nenhum animal a!em do homem (...) tern a capacidade para auto-avalia9ilo reflexiva que se manifesta na forma9ilo dos desejos de segunda ordem".' Estou de acordo com Frankfurt que eslo capacidade para avaliar desejos esta vinculada ao nosso poder de auto-avaliac;ao, que por sua vez eurn trac;o essencial da maneira de agir (mode ofagency) que n6s reconhecemos como hurnana. Mas eu acredito que n6s podemos alcanc;ar uma definic;ao mais delimiloda do que esUi envolvido nesta maneira de agir se fizermos uma distin9ilo adicional entre dois tipos categ6ricos de avalial'ilo dos desejos. Assim, alguem pode ponderar duas a90es desejadas para determinar a moos conveniente, ou para tomar diferentes desejos compativeis (por exernplo, alguem pode decidir nao comer, mesmo com fome, porque se ele comer mais tarde podera tambem nadar), ou para alcan9ar a mais completa satisfal'ilo. Ele pode ate mesmo avaliar qual dos dois objetos desejados mais 0 atrai, como alguem que avalia uma bandeja de massas para ver se deseja urn eclair ou um millefeuilles. Mas 0 que esta ausente nos casos acima ea avalia~ao qualitativa dos desejos, aquilo que nos ocorre, por exernplo, quando nos abstemos de agir a partir de urn dado motivo -digarnos, raiva ou inveja- porque os considerarnos vis e despreziveis. Neste caso, nossos desejos sao classificados em categorias tais como mais elevados e menos elevados, virtuosos e nao-virtuosos, mais realizadores e menes realizadores, mais refinades e menes refinados, 3. Idem. p. 6: "Human beings are not alone in having desires and motives, or in making choices. They share these things with members of certain other species, some of which even appear to engage in deliberation and to make decisions based on prior thought. It seems to be peculiarly characteristic of humans, however. that they are able to form (... ) second order desires (.. .)". 4. Idem, p. 7: "No animal other than man (... ) appears to have the capacity for reflective self-evaluation that is manifested in the formation of second-order desires". profundos e superficiais, nobres e vulgares. Eles silo julgados como partes de modos de vida qualitativamente diferentes: fragmentados ou plenos, aJienados au livres, santos au meramente humanos, corajosos ou covardes, e assim pOT diante. I Intuitivamente, a diferen9a pode ser colocadadeslo forma. No primeiro caso, que podemos chamar de avalia9ilo fraca, estamos interessados nos resultados; no segundo, 0 das avalia'toes fortes, 0 interesse ena qualidade de nossa motivac;ao. Mas dizer isso apenas nestes termos e urn pOllca precipitado. Pois 0 importante e que a avalia9ilo forte e vinculada ao valor qualitativo dos diferentes desejos. Eisto que esui ausente em casos tipicos, em que, por exernplo, eu opto por urn feriado no suI e nao no norte, ou escolho alm09ar na praia ao inves de comer agora na cidade. Nestes casos a altemativa favorita nilo e selecionada em fun9ilo do valor subjacente da motiva9ilo. Aqui, nilo M "nada a escolher" (nothing to choose) entre motivac;oes. Mas isso nilo significa (a) que em uma avalia9ilo fraca as motiva90es sejam homogeneas. Nilo podemos julgar dois objetos do mesmo desejo, ou, dito de outro modo, dois resultados com a mesma "caracterizac;ao de desejabilidade" (desirability characterization). Veja 0 exemplo de alguem que esta hesitante entre passar urn feriado no sui ou no norte. 0 que 0 feriado do norte tern a seu favor ea tremenda beleza da selva, as regioes nao exploradas, etc.; 0 que 0 do suI tern a seu favor sao as exuberantes terras tropicais, a sensa9ilo de bem-estar, 0 prazer de nadar no mar, etc. Ou eu posso considerar que urn feriado e mais divertido e 0 outro mais relaxante. As altemativas possuem diferentes caracterizal'oes de desejabiJidade. Neste sentido, elas silo qualitativamente distintas. Mas 0 que esUi ausente neste caso e uma distinC;ao, enquanto urn valor, entre os desejos, e e por isso que esta nilo e uma avalia9ilo forte. Eu optei pelo sui ao inves do norte nilo porque exista algo mais valoroso com respeito a relaxar ou se divertir, mas basicamente porque "eu prefiro isso" (ffee/like it). Disto se segue, a fortiori, (b) que avalial'oes fracas nilo silo s~mplesmente quantitativas. Ou seja: as altemativas nao podem necessa- riamente se expressar em algumas unidades comuns de calculo e, neste sentido, se tomar comensuraveis. Isto tern side freqiientemente obscurecido pela recorrente arnbic;ao de nossa civilizac;ao racionalista em transfonnar reflexilo pratica, tanto quanto possivel, em calculabilidade, ambil'ilo esta cuja maior expressao e a doutrina do utilitarismo. A inclina9ilo do utilitarismo e a de ignorar as distin90es qualitativas de valor sob a alegac;ao de que elas representam percepc;oes confusas de nossas preferencias, que seriam quantitativas. A esperanc;a eque, urna vez ignoradas as avaliac;oes fortes, seriamos capazes de calcular. Eu creio que 0 utilitarismo esta equivocado em ambas as considera90es. Isto por que decisoes entre 12 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZAOORES • 13 alternativas que DaD sao distintas em termos valorativos naD sao necessariamente suscetlveis ao calculo; por exemplo, a escolha entre os dais feriados acima naD eclararnente tao suscetivel, ou somente em parte (ou algumas de minhas considera~5esrelevantes para minha escolha do feriado podem ser,por exemplo, quantificaveis no sentido do custo). Nao hii tambern nenhurn calculo quando eu olho fixamente a tigela de massas e tento decidir entre urn eclair e urn millefeuilles. Todas essas avalia.yoes fracas sao "quantitativas" apenas no fraco sentido de que elas nao envolvem distin~5es qualitativas de valor. Algumas vezes explicamos escolhas dessa natureza dizendo que determinada altemativa foi "mais prazerosa" (morefun) ou "de maior valor" (better value); mas niio existe quantifica~ao genuina por tras destas express5es: elas Sao meramente expressoes substitutivas para "preferidas". Os utilitaristas esUlo de fato corretos em seu pr6prio ponto de partida de rejeitar avalia~5es fortes, porque ignora-Ias e urna condi~ao necessaria de reduzir razilo pratica a calculabilidade. Mas isto esta longe de ser urna condi~ilo suficiente. Nilo podemos tambem dizer (c) que uma avalia~ao fraca esthomente vinculada a resultados e Dunea com desejos; que todos os casas de desejos de segunda ordem sao avalia~5es fortes. Isto porque eu posso ler 0 que Frankfurt chama de "voli~5es de segunda ordem" baseadas em avalia~oes fracas. Eu tenho urna voli~iio de segunda ordem quando quero que desejos de primeira ordem orientem minha a~ao. Entao eu posso querer que 0 desejo de almo~ar-e-nadar-depois seja preponderante, porque sei que, considerando as duas coisas, terei uma situa~aomais agradavel, pois temo me prejudicar se voce me oferecer 0 almo~o agora. E eu posso ter desejos de segunda ordem sabre esta mesma base: eu posso querer rejeitar sobremesas suculentas para controlar men peso. Mas em todos esses casas as alternativas nao seriam, por hip6tese, distintas entre si pelo fate de urn desejo ser vulgar, sem valor, alienante, trivial, hurnilhante, ou algo do tipo. Em resumo, nao existiria distin~ao qualitativa de valor em rela~ao as motiva~5es. Do mesmo modo que alguem pode querernao terurn desejo concebido a partir de urna avalia~ao fraca, alguem tambem pode desejar algo que ainda nao realizou. Os glutoes romanos orientavam-se por este tipo de desejo de segunda ordem quando vomitavam para recuperar 0 apetite e realizar 0 prazer de comer novamente. Isto contrasta forternente com a situayao em que eu concebo um desejo baseado em uma avalia~ao forte, vendo-o como algo admirilvel, como, por exemplo, quando quero ser capaz de urn grandiose e sincero arnor ou de uma lealdade.5 5. N6s podemos acrescentar uma quarta ressalva, de que a avaliacao forte geralmente nilo e de urn desejo ou de uma motivaCao, mas sim das qualidades de uma acao. Eu evito alguma ayao porque ela e uma forma covarde de se comportar. uma acao . A distin,ao entre os dois tipos de avalia~ao nao pode entao ser snnplesmente compreendida como se fosse uma diferen~aentre urna avali~ao quantItativa e outra qualitativa, e nem estar pautada na presen~aou ausencia dos desejos de segunda ordem. Essa distin~aodiz [espeito antes de tudo ao fato de os desejos serem ou nao diferenciados em tennos de valor. Epor isso que talvez possamos estabelecer dOis criterios interligados. (I) Nas avalia~5es fracas, para que algo seja considerado born, basta que seja desejavel, enquanto que nas avalia~5es fortes existe 0 uso do "bo~" ou de algurn outro termo avaliativo para 0 qual 0 mera desejo nao e suficlente. Na verdade, alguns desejos ou realiza~oesdesejaveis podem ser considerados ruins, humilhantes, despreziveis, vulgares, superficiais, sem valor, e assim por diante. Segue-se disso que (2) quando em urna avalia~ao fraea uma altemativa desejada e delxada de lado, isto se d!l unicamente em razao de sua contingente mcompatlbllrdade com uma alternativa ainda mais desejada Eu prefiroalmo~ malS tarde, embora tenha fome agora, simplesmente porque assim pOderei almo~ar e nadar. Mas eu poderia me contentar com 0 melhor de ambos: se a piscina estivesse disponivel agora, eu poderia aliviar minha fome imediata assim como nadar na hora do alm~o. ' Mas isto nao ocorre necessariamente no caso das avalia~oes fortes. Alguns objetos de desejo podem ser evltados nao porque sejam incompativeis com ~utros, ou por essa incompatibilidade nao ser contingente. Dessa fonna, eu eVlto cometer algurn ato de covardia, meSmo tentado a faze-Io, nao porque este ato impossibilitaria, neste momento, outro ate desejado, COmo almo~ar agora me impossibilitaria de nadar, mas sim porque 0 pr6prio ato evitado e considerado desprezivel. Mas e claro que tambem podemos caracterizar uma altemativa em que teriamos uma incompatibilidade. Se examinarmos minha visao avaliativa roais de perto, veremos que valorizo uma a~ao corajosa como parte de urn modo de vid~; eu aspiro ser. urn deterrninado tipo de pessoa. 50r tornado pela covardla comprometena essa aspira~ao. Nesse caso h!l incompatibilidade, mas ela nao e de modo algum contingente. Nao se !rata de uma situa~ao Clrcunstanclal 0 fato de ser impossivel render-se ao impulso da covardia e aind~ assim manter-se fie! a urn modo de vida corajoso e integro. Esse modo de VIda consiste, entre outras coisas, em opor-se aos impulsos de covardia. humilhante. A questllo pode ser bem-apreendida se considerarmos que nao estamos falando apenas de des~jos, que estariamos profundamente enganados pensando que o que esta sendo avahado sao as acOes isoladas de suas motivayOes. Covardia ou q~alquer outro tipo de comportamento humilhante sao 0 que sao parcialmente em VlrtUde de suas motivayoes. Assim, avaliayoes fortes necessariamente envolvem uma distincao qualitativa de desejos. 14 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES ... 15 N~o e casual aqui que haja wna incompatibilidade para aIem de situal'oes contingentes. Isto porque avalial'oes fortes disponibilizam wna linguagem de distinl'oes avaliativas, na qual diferentes desejos s~o descritos como nobres ou vulgares, aglutinadores ou desagregadores, corajosos ou covardes, esclarecedores ou obscurecedores, e assim por diante. 15to significa que eles s~o caracterizados por contraste. Cada wn dos conceitos acima s6 pode ser entendido em relal'~oao seu oposto. Ninguem pode saber o que ecoragem sem saber 0 que ecovardia, assim como ninguem pade teT uma n~~.o do vennelho sem teT, digamos assim, uma autra corcomo contraste. Eessencial que tanto vermelho como coragem sejam compreendidos com aquilo que s~o contrastados. Eclaro que em termos avaliativos, assim como com as cores, 0 contraste pade nao seT fcita apenas com urn outro, mas com vanos. Na verdade, refinar wn vocabulirrio avaliativo pela introdul'~o de novos termos alteraria 0 sentido dos termos existentes, como tambem ocorreriano caso das cores. Isto signitica que nas avaliavoes fortes podemos caracterizar as alternativas por contraste; e de fato, deve ser assim se quisermos expressar aquilo que e realmente desejavel na alternativa escolhida. Mas nllo e assim com as avaliatyoes fracas. 6 Certamente n6s somos, em cada caso, livres para expressar as altemativas de varias maneiras, podendo algumas ser contrastantes e outras nllo. Assim, eu posso descrever minha primeira questfto acima como uma escolha entre almotyar agora ou almotyar mais tarde; e essa e uma descrityao por contraste no sentido de que ela e essencial para identificar que wna alternativa simplesmente n~o e a outra. Isto porque 0 tenno "agora" s6 faz sentido em contraste com outros tennos como "mais tarde", "mais cedo", "amanha", e assim por diante. Na verdade, dado wn certo contexto (por exemplo, que alguem n~o pode decidir a1mol'ar no passado), e 0 pano de fundo contrastante necessario para "agora", seria suficiente como questao apenas me perguntar: "Devo almotyar agora?"; ou talvez: "Seria melhor altnol'ar mais tarde?". Mas se eu quero identificar as alternativas em termos de sua desejabilidade, a caracterizal'~o deixa de ser contrastante. 0 que me leva a querer almol'ar agora e 0 fato de estar faminto, pois e inc6modo esperar quando se tern fome e, alem disso,emuito prazeroso comer. 0 que me leva a 6. Pode ser argumentado que os utilitaristas tambem utilizam uma oposil;aO qualitativa, a saber, aquela entre prazer e sofrirnento. Mas essa nao eprecisamente uma oposil;aO quaiitativa de desejos acerca de.objetos desejados, que e0 que esta sendo considerado aqui. De aeordo com a teoria utilitarista, apenas 0 prazer e desejado, pois todos nos temos aversao ao sofrimento. E claro que podernos eontrapor a evitar;iio do sofrimento, que em urn eerto sentido e urn desejo, com 0 prazer. E exatamente na realizal;aO deste contraste que os utilitaristas tern falhado notoriamente. querer comer depois e que com isso posso nadar. Mas 0 prazer de comer pode ser totalmente identificado de forma desvinculada do prazer de nadar; de fato, eu posso ter desfrutado longamente 0 prazer de comer sem nunca ter conhecido 0 prazer de nadar. As descril'oes desses dois objetos de desejos nao sao contrastantes, elas apenas sao incompativeis de modo circunstancial e contingente. Do mesmo modo, eu posso descrever a questao acerca de minhas avalial'oes fortes de modo noo contrastante. Posso dizer que a escolha e entre salvar minha vida, ou talvez evitar sofrimento e dificuldades, de wn lado, e preservar minha homa, de outro. Agora, certamente eu posso entender o que e preservar minha vida, e 0 que e desejavel nisso, sem levar em conta a honra, 0 que tambem vale na evital'~odo sofrimento e das dificuldades. E mesmo a reciproca, n~o sendo totaltnente verdadeira, ninguem pode entender "honra" sem alguma referencia ao nosso desejo de evitar a morte, 0 sofrimento e as dificuldades; isto porque, quando alguem preserva sua honra, dentre outras coisas, tomando uma posityao sobre determinadas questOes, ele nao contrasta a defesa da honra simplesmente com a defesa de sua vida, com a evitatyao do sofrimento, e assim por diante; existem muitos casos em que alguem pode defender sua pr6pria vida sem prejudicar sua honra, e ate mesmo sem que esta quest~o se coloque. E essas descrityoes nao contrastantes podem ate mesmo ser mais apropriadas para determinados objetivos. Na medida em que certamente existem condil'oes contingentes que subjazem a pavorosa situa9~0 de escolher entre morte ou desonra - se pelo menos 0 general nao tivesse me enviado para 0 front no momento exato do ataque inimigo -, e na verdade em virtude de wn conjunto contingente de circunst~ciasque agora devo arriscar minha vida para evitar a desonra. Mas olhando novamente para 0 que torna a alternativa rejeitada indesejavel, pais neste caso a fuga sena incornpativel com a honra, a incompatibilidade de modo algwn pode ser contingente: a conduta honrosa consiste justamente em encarar tal amealj:a contra a vida quando wna decis~ocomo esta estiver emjogo. Dito de outro modo: devemos rejeitar a fuga por que ela e"covardia", urn termo que traz em si 0 sentido de urn conflito nao contingente com a conduta honrosa. Oeste modo, enquanto wn par de alternativas pode ser descrito de fonna contrastante ou nao-contrastante, como quando determinamos 0 carater desejavel (ou n~o-desejavel)pelo qual wna OPI'~Oe rejeitada, nas avalial'oes fortes as alternativas devem necessariamente ser apresentadas de modo contrastante. Isto porque, nas avalial'oes fortes, em que dispomos de wna linguagem de distinl'oes avaliativas, nenhwn desejo e recusado em virtude de urn mero conflito contingente e circunstancial com outra meta. Agir covardemente n~o esta em disputa com outros bens pelo fato disso ocupar o tempo e a energia que precise para persegui-Ios, e isto na verdade pode 16 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES ., '-17 nem alterar minha condi~ao a ponto de comprometer tal busca. A disputa e mais profunda; e naa econtingente.7 2. A tendencia utilitaria de nossa civiliza~ao nos induziria a abandonar a linguagem de oposi90es qualitativas, e isto significaria, sem davida, abandonar nossa linguagem de avalia~aes fortes, pois seus termos s6 podem ser defmidos em contraste. E somos induzidos a redefmir questoes sobre as quais reftetimos segundo este modelo nao-qualitativo. Digarnos, por exemplo, que eu esteja viciado em comer excessivarnente. Eu tenho dificuldade em resistir a sobremesas suculentas. Como luto contra este vicio, na reflexao em que defmo amodera9ao como algo melhor, posso ver as altemativas de acordo com uma linguagem de oposi~oes qualitativas. Posso considerar que alguem com pouco controle sobre seus apetites, a ponto de arruinar sua saude com urn bolo de creme, nao e uma pessoa admiravel. Quero ser livre desse vicio, ser urn tipo de pessoa cujos apetites meramente corporais obede9am a aspira90es mais elevadas, e nao me permitam seguir, sem nenhum remorso ou resistencia, 0 caminho da incapacidade e da degrada~ao. Mas eu tambem posso estar inclinado aver este problema de urn ilngulo totalmente diferente. Posso ser induzido a ve-Io como uma mera questao de quantidade e satisfa~ao. Comer bolo em excesso aurnenta meu nivel de colesterol, engorda, prejudica minha saUde e me impede de aproveitar todos os outros objetos de desejo; assim, isto econsiderado ruim. A essa altura eu me desprendi de uma linguagem contrastante de avalia~aes fortes. Evitar altos niveis de colesterol, obesidade, problemas de saude, ser capaz de subir escadas e assim por diante, tudo isso pode ser definido sem nenhuma vincula~aocom meus babitos alimentares. Alguem pode inclusive inventar urn medicarnento que me permitiria comer suculentas sobremesas e ao mesmo tempo desfrutar todos as outros prazeres, ao passo que nenhum medicamento permitiria que eu comesse meu bolo e tambem lograsse a dignidade de urn sujeito autodisciplinado e autonomo, pois euja 0 terei destruido desde minha primeira abordagem da questao. Epossivel que ser persuadido a ver as coisas nesta perspectiva nao- qualitativa ajude a resolver meu problema, pois de algum modo, colocar esta questao em termos de dignidade versus degrada~ao trouxe tantos incomodos que agora, ao abandonar a perspectiva qualitativa, eu ja posso enfrenta-la. Mas isso nao e 0 mesmo que decidir qual modo de colocar a questao e malS 7. Devo esta formulayao as contundentes objeyOes de Anne Wilbur Mackenzie contra toda a tentativa de distinyao entre avaliayoes fortes e fracas. esclarecedor e verdadeiro. Essa decisao gira em torna do que realmente sao as nossas motivavoes e de como devemos verdadeiramente caracterizar 0 significado que as caisas tern para 06s. Trata-se de urn contlito entre auto-interpreta\:aes. Qualquer interpre- ta~ao que adotarmos formatara parcialmente os <significados que as coisas terao para n6s. Mas podemos colocar uma questao ainda mais valida mais fiel a r.ealidade. Urn equivoco aqui nao e apenas realizar uma deS~ri~ao dlstorclda, como se eu descrevesse urn veiculo motorizado como urn carro quando na realidade ele e urn caminhao. Nesse caso, n6s concebemos ~ identifica~ao equivocada como distorcendo, num certo sentido, a realidade e~ questao. Para aquele que tenta me conveneer de que meu problema e dlgmdade versus degrada~ao, eu fa~o uma identifica~ao equivocada que e decisiva. Isto nao significa exatamente que eu tenha chamado 0 temor de urn alto nivel de colesterol de "degrada~ao". Trata-se, ao inves disso, de ressaltar que medos infantis de puni~ao ou da perda do amor dos pais foram tran~feridoshTacionalmente para obesidade, para 0 prazer de comer, ou algo do tlPO (segumdo uma tendencia freudiana vulgar). Minha experiencia com a obesidade e com a comida e modelada por isso. Mas se eu puder ir alem dessa "vincula~ao" (hang-up) e enxergar a verdadeira natureza dessa ansiedade latente, poderei ver 0 quanto ela e desprovida d~ razao, ou seja, que eu de fato nao carro 0 risco nem de seT punido e nem de perder 0 arnOT dospais; na verdade existe urna gama completamente diferente de questaes em Jogo neste caso; problemas de saUde, incapacidade para desfrutara vida extern~, uma morte prematura por urn ataque cardiaco, e assim pOT diante. E dessa forma que uma corrente moderna de tendencia utilitarista tenta reduzir nossas oposi~aes qualitativas a alguma medida homogenea. Nisso ela seria muito mais plausivel e sofisticada que as correntes anteriores, que tratam essas oposi90es como se fossem meros equivocos de identifica9ao, como se 0 que as pessoas buscassern ao serem ofendidas em sua bonra sua dignidade, sua integridade e assim por diante, fosse simplesmente o~tros estado.s de satisfa~ao aos quais elas atribuiriam esses termos pomposos. E claro que existem replicas a essas tentativas de reduzir nossas avalia~aes a urn modelo nao-qualitativo. N6s podemos admitir 0 contra- argumento de que a rejei~ao das distin~aes qualitativas e em si mesma urna ilusilo, alimentada talvez por nossa incapacidade de olhar nossa vida aluz de algurnas distin~aes, algo como urna falba em nossa for~amoral; ou igualmente pela op~ao de urna certa postura objetificante em rela~ao ao mundo. Podemos estar certos de que os utilitaristas mais obstinados sao eles mesmos movidos por distin~aes qualitativas que permanecem nao-admitidas, que eles admiram o~odo de vida em que alguem calcula com consciencia e clareza como algo ~als elevado do que uma vida de ilusao auto-indulgente, e que nao 0 elege slmplesmente como mais satisfat6rio. 18 Teoria critica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Manos - ORGANlZAOORES 19 Nao podemos resolver esta questiio aqui. 0 objetivo de introduzir a distin,iio entre avali~5es fortes e fracas e contrastar os diferentes tipos de selfque cada uma delas envolve'. Eu creio que iS50 tamara irresistivelmente plausivel que nao somas seres cujas ooicas avalia~oes autenticas sao as nao-qualitativas, como sugere a tradic;ao utilitarista. Urn sujeito que faz apenas avalia,5es fracas - isto e, toma decisoes como comer agora au mais tarde, passar urn feriado no norte au no suI - pode ser chamado de urn "medidor" (weigher) de alternativas. E aquele que disp5e de urna linguagem de oposi,oes avaliativas hierarquizando desejos pode ser chamado de urn avaliador forte (strong evaluator). Agora, podemos concordar que urn simples medidor ja seria reflexivo num sentido minima, uma vez que ele avalia 0 curso das ac;oes, e algumas vezes ele e capaz de agir por meio de avalia,oes contrarias ao impulso dos desejos imediatos. E esta euma caracteristica necessaria do que podemos chamar de urn selfou de uma pessoa. Ele possui reflexiio, avalia,ao e vontade. Mas, em contraste com 0 avaliador forte, ele carece de algo mais, algo a que muitas vezes nos referimos com a metAfora "profundidade". o avaliador forte enxerga suas alternativas com uma linguagem mais rica. Ele nao define a desejabilidade apenas pelo que ele deseja, ou pelo que ele desejajunto com 0 calculo de conseqiiencias; ela tambem e definida por uma caracterizac;ao dos desejos como mais elevados e menos elevados, nobres e vulgares, e assim par diante. Quando a reflexao nao se resume ao calculo de conseqilencias, ela nao e uma questao de concluir que a alternativa A me atrai mais, ou que me seduz mais do que a B. Ao inves disso, se estou refletindo como urn avaliador forte, posso articular por que A e mais desejavel do que B. Eu possuo urn vocabulario de valores. Em outras palavras, a reflexao de urn simples medidor tennina na experiencia inarticulada de queAe mais atrativo do que B. Eu me deparo com urna bandeja de massas, analiso com atentrao, hesito entre urn eclair e urn mille feuilles. Fica claro para mim que agora prefiro urn eclair, e entao 0 apanho. E evidente que alguem pode dizer muito mais coisas sobre a atratividade das alternativas em outros casos de simples medi,ao. Quando eu, por exemplo, estou escolhendo entre urn feriado no norte ou no suI, eu falo sobre as enormes belezas do norte, da floresta, das regioes virgens, etc., ou sobre as exuberantes terras tropicais, a sensatrao de bem-estar e 0 prazer de nadar no mar, etc., eu posso expressar tudo isso. 0 que nao pode ser expresso e 0 que torna superior minha escolha fmal pelo suI. A nossa dificil condi,ao de se deparar com escolhas incomensuraveis torna a experiencia do simples medidor quanto it superioridade de A sobre B algo inarticulavel. Ai, 0 papel da reflexao nao seria 0 de articular essa superioridade, mas sim de resolver uma situatrao imediata, de calcular conseqilencias, de buscar compensa,ao para urn desejo que pode trazer desvantagens (como no caso de adiar urn alrno,o para nadar e ahno,ar mais tarde), superar uma duvida concentrando-me no "sentir" inarticulado das alternativas em jogo (sera que eu realmente prefrro urn eclair, ou urn mille feuilles?) I Mas as experiencias de urn avaliador forte nao sao inarticuladas dessa fonna. Ha urn ponto de partida constituido por~ma linguagem marcada por distintroes entre 0 que emais ou menos elevado, nobre ou vulgar, corajoso ou covarde, pleno ou fragmentado, e assim por diante. 0 avaliador forte pode articular esta superioridade justamente por que ele possui uma linguagem de caracterizal'5es contrastantes' Dessa fonna, no contexto de uma experiencia de escolha reflexiva entre alternativas incomensuraveis, a avaliatrao forte e uma condic;ao para a articula,ao, e adquirir uma linguagem de avalia,5es fortes e se tornar alguem (mals) articulado a respeito de suas pr6prias preferencias. Digamos que talvez eu nao possa te afinnar contundentemente por que Bach e maior do que Uszt, mas isso nao me toma totalmente inarticulado: eu posso falar da "profundidade" de Bach, por exemplo, que e urn tenno que s6 pode ser compreendido em oposic;ao ao uso correspondente do termo "superfi- cialidade" que infelizmente se aplica a Liszt. Nesse aspecto me coloco a frente de onde estava ao articular minha preferencia pelo eclair em rela,ao ao mille feuilles. Eu nao posso dizer nada sobre isso (nem mesmo que 0 sabor e melhor, 0 que eu poderia dizer, por exemplo, para explicar minha preferencia pelo eclair em relac;ao acouve-de-bruxelas; pois isto ainda teria uma margem de inarticula,iio - basta comparar, por exemplo, com 0 julgamento de que Bach "soa melhor"). E eu tambem estou it frente de onde es!aria se eu nunca tivesse aprendido uma linguagem para falar sobre musica, se isso fosse uma experiencia totahnente inarticulavel para mim (entao, e claro, que seria uma experiencia muito diferente). 8. E pelo fato de as altemativas Serem caracterizadas numa linguagem de contrastes qualitativos que as escolhas avaliativas fortes apresentam a caracteristica que mencionamos acima: que nao recusamos uma alternativa em funyao de urn conflito meramente contingente e circunstancial com a outra que foi escolhida. Ter uma linguagem de contrastes qualitativos e essencialmente caracterizar 0 nobre em oposiyao ao vulgar, 0 corajoso em oposiyao ao covarde, e assim por diante. Com isso em mente, poderiamos en tao entender como a opyao do feriado poderia ser articulada. N6s podemos decidir pelo sui ao inves do norte porque teriamos uma experiencia humanamente mais significativa e enaltecedora visitando algumas civiliza(j:oes antigas do que estando distante dos trajetos do homem. Com esse exemplo n6s podemos tambem ver que a linguagem das avalia9iks fortes nao precisa ser exclusivamente etica, como se poderia supor a partir dos exemplos antedores; ela tambem pode ser estetica, bern como de outra natureza. 20 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES • 21 SeT urn avaliador forte e, desse modo, seT capaz de uma reflexao mais articulada. Mas isso e ainda mais profundo em urn outro importante sentido. Urn avaliador forte efetivamente examina seus desejos e metas de modo mais profunda porque ele caracteriza suas motivac;oes com maior profundidade. Caracterizar desejos ou inclina90es como mais valorosos, mais nobres, ou mais plenos do que outros e considera-los nos termos do tipode qualidade de vida que eles expressam e sustentam. Eu evito atitudes covardes porque quero seT uma pessoa corajosa e honrosa. Enquanto 0 que esta em jogo para 0 simples medidor e a desejabilidade de diferentes prefer~ncias, defmidas pelos desejos de facto, para 0 avaliador forte a reflexiio tambem leva em eonta os diferentes modos possiveis de ser urn agente. Motivac;oes e desejos niio apenas importam em virtude de nos atrair para prefer~ncias, mas tambem em fun9iio do tipo de vida e do tipo de sujeito que, especificamente, esses desejos integram.9 Mas se essa dimensiio adicional nos traz urn ganho de profundidade, e porque ;gora refletimos sobre nossOS desejos em termos do tipo de pessoa que somas com a posse e a realizac;ao desses desejos. Enquanto a reflexao sabre 0 que mais preferimos - 0 maximo que urn medidor pade fazer ao acessar suas motiv~5es - nos mantem, poT assim dizer, na periferia, areflexao sabre 0 tipo de pessoas que somas nos leva para 0 centro de nossa existencia enquanto agentes. A avalia~ilo forte niio e apenas uma condi9iio para articularmos prefer~ncias,mas tambem para articularmos a qualidade de vida 9. Ser urn avaliador forte, desse modo, ever os desejos numa dimensao adicional. E isto de fato e essencial para nossas importantes distin<;:<1es avaliativas. Tem side ressaltado, por exemplo, que 0 criterio de uma conduta corajosa nao pode ser simplesmente 0 desempenho externo numa determinada situa<;:ao. Alguem pode disparar estupidamente uma metralhadora, ou beber freneticamente porque esta saturado da vida. Nao e suficiente a presenya do perigo, como nos casos acima. Suponhamos que urn homem esta tomado por uma incontrolavel fUria, Mio ou desejo de vingan<;:a, de modo que ele se poe em perigo. Isto tambem nao e coragcm, na medida em que ele age imbuido por este tipo de motiva<;:ao. Coragem requer que enfrentemos 0 perigo, sintamos apropriadamente 0 medo, e, portanto, que n6s tarnbern controlemos 0 impulso de fugir, porque estamos motivados por algo maior do que 0 mero desejo ou impulso de 'liver. Pode ser a gl6ria, 0 arnor apatria, 0 arnor a alguem que estamos salvando, ou mesmo 0 noSSO pr6prio sentimento de integridade. Esta impllcito em tudo isso que urn homem corajoso e movido por algo que podemos imaginar mais elevado em sua visao. Se alguem, por exemplo, pensar que oao ha nada mais elevado do que a vida e a evita<;:ao da dor, e estiver convicto de que ninguem em sa consciencia e de forma responsavel poderia pensar diferente, ele nao teria espayo em seu vocabulario para a ideia de coragem fisica. Qualquer ate qualifi~ado com esse tipo de coragem seria considerado como imprudencia, loucura, estuptdez, au algo do tipo. Se n6s concebemos algum heroismo nos gangsters e porque nessa era p6s-romantica vemos algo de admin\vel em pessoas que vivem um grandioso projeto vohado para algum fim, seja qual for este fim. e 0 tipo de pessoas que somos ou queremos ser. Neste sentido, ela emais profunda. E e isto que esta por tras do uso cotidiano da metMora"profundidade" em rela9iio as pessoas. Em nossa visiio, alguenl e superficial quando percebemos que ele e insensivel, alheio e desinteressado das questoes relacionadas aqualidade de sua vida, as quais nos parecem importantes e fundamentais. Ele vive na superficie porque busca realizar desejos sem ser motivado por questOes mais "profundas" sobre 0 que esses desejos expressarn e sustentam em rela.;ao amodos de vida; ou ele se preocupa com essas questOes de wna forma trivial e irrelevante, como, por exemplo, 0 mero interesse por urna vida glamourosa e definida pela apar~ncia, ao inves de se preocupar com 0 que (para n6s) seriam as questoes fundamentais de urna vida com qualidade. a utilitarista tipico seria uma figura superficial impossivel, e n6s podemos avaliar 0 quanto eles vivem sua ideologia de forma autodec1arada pelo grau de importiincia que atribuem a profundidade. 3. Dessa forma, urn avaliador forte tern a profundidade e a capacidade de articula9iio que faltam a urn simples medidor. Mas onde existe articula9iio existe tambem a possibilidade de urna pluralidade de viso~s que antes niio existiam. a simples medidorpode hesitar, como no caso do eclair e do mille feuilles, e suas prefer~ncias momentiineas podem se alterar. Mas niio diriamos que sua visiio sobre a situa9ilo de escolha ora e de urna maneira, ora e de outra. Com avalia90es fortes, entretanto, pode haver, e freqlientemente M, uma pluralidade de visoes a respeito de minha condi9iio, e a escolba pode nao ser exatarnente entre 0 que e claramente 0 mais elevado e 0 menos elevado, mas sim entre dois modos incomensunlveis de enxergar a escolha. Digamos que por volta dos 44 anos eu esteja inclinado a arrumar as malas e buscar outro trabalbo totalmente diferente. Digo a mim mesmo que e preciso renovar as fontes de criatividade, pois podemos cair em uma rotina atrofiante e fatigante, simplesmente reproduzindo as mesmas velhas trajet6rias; este caminho e uma morte prematura. Rejuvenescimento, ao contrario, e algo que se obtem com coragem e a90es decisivas; e preciso estar preparado para uma ruptura, para algo totalmente novo, e assim por diante. Cobro-me essas coisas quando uma certa disposi9iio atua sobre mim. Mas em outros momentos tudo isso me parece coisas sem sentido de wn adolescente. De fato, nada se ganha na vida sem disciplina, determina9ilo e capacidade de suportar longos periodos de mera caminhada, ate que algo maior possa dai florescer. Epreciso terum folego constante, criar lealdade a urn certo trabalho e a uma certa comunidade; e a (mica vida significativa e aquela enraizada na realiza.;ao desses compromissos, na vivencia de tempos 22 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Matlos - ORGANIZADORES • 23 de sacrificio para estabelecer as bases para outros tempos mais criativos, e assim por diante. Vemos que, diferentemente da escolha entre urn eclair e urn mille feuilles, ou entre ferias no norte ou no sui, quando dois objetos incomensuraveis nos atraem, estamos diante de "objetos" - cursos de ac;ao - que s6 podem ser caracterizados atraves das qualidades de vida que eles representarn, e de modo necessariamente contrastante. Eparte da defmil'ao da desejabilidade de um objeto que ela apresente uma narrativa sobre a nao- desejabilidade de um outro objeto. Mas aqui a disputa se da entre duas caracterizac;:oes contrastantes, e ela introduz uma nova incomensurabilidade. Quando sinto que a ida para 0 Nepal e a saida, 0 desejo de ficar e uma especie de covardia, uma fatigada imersao na rotina, uma crescente esclerose que somente posso curar atraves de uma ruptura. Dedicar-se longamente a uma experiencia de sacrificios para 56 depois se permitir urn desenvolvimento pessoal mais profunda esta longe de ser urn compromisso de coragem com uma trajet6ria de vida original. E quando estou inclinado a nao mudar, minha ida para 0 Nepal se assemelha a uma tolice adolescente, uma tentativa de ser jovem novamente pela recusa de agir de acordo com minha idade, de buscar uma dificil emancipal'ao, de renoval'ao, etc. Temos aqui uma reflexao sobre 0 que esta em jogo numa disputa de auto~interpreta~oes, como no exemplo acima do homem que luta contra seu vicio em doces. A questiio em jogo tern a ver com qual interpretal'ao e mais verdadeira, mais aut6ntica e mais livre de ilusoes, e que, por outro lado, envolve uma distorr;fuJ dos significados que as coisas tern para mim. Resolver esta questao e restaurar a comensurabilidade. n 1. Com base na intuil'ao de que a capacidade para ter desejos de segunda ordem, ou para avaliar desejos, e essencial aagencia humana, tentei distinguir dois tipos de avalial'oes. Espero que a discussao tenha servido para tornar a intuil'ao basica mais plausivel, caso Ihe tenha faltado plausibilidade no inicio. Deve estar claro que urn agente que absolutamente nao avalia seus desejos seria desprovido de urn minimograu de reflexividade que n6s associamos a urn agente humano, e tambeID nao teria uma parte essencial do pano de fundo para 0 que descrevemos como 0 exercicio da vontade. Eu devo acrescentar, talvez, sem a seguranl'a de que todos vao concordar, que a capacidade para avaliac;oes fortes, em particular, e fundamental para a nossa nOl'ao de sujeito humano; sem essa capacidade urn agente nao teria a profundidade que consideramos essencial para a condi~ao humana, sem a qual a comunica~ao humana seria impossivel (outra caracteristica essencial da agencia humana). Mas nao falarei sobre isso aqui. A questao seria saber se e possivel ter uma ideia convincente de um sujeito humano para 0 qual as avalial'oes fortes fossem completamente estranhas (0 personagem Meursault, de Camus, seria urn caso desse tipo?), na medida em que de fato os seres humanos que somos e com os quais vivemos sao todos avaliadores fortes. . Mas no restante deste artigo desejo analisar, com a ajuda da nOl'ao chave de desejos de segunda ordem, outro aspecto do self. a questao da responsabilidade. Nossa concep~ao dos seres humanos como responsaveis, de urn modo que nao se aplica aos animais, parece estar ligada acapacidade de avaliar desejos. Num certo sentido, a nOl'ao de responsabilidade ja esta embutida na nOl'ao de vontade. Urn ser capaz de avaliar desejos pode chegar aconclusao de que tal avalial'ao esta em conflito com desejos mais urgentes. Na verdade, podemos reconhecer que e uma caracteristica necessaria da capacidade de avaliar desejos a faculdade de distinguir 0 melhor desejo daqueles que exercem maior pressao sobre n6s. Mas, pelo menos em nossa moderna nOl'ao de self, responsabilidade tern urn sentido mais forte. Concebemos 0 agente nao s6 como alguem que e parciahnente responsavel pelo que faz em conformidade com suas avalial'oes, mas tarnbem como alguem responsavel, num certo sentido, pelas pr6prias avalia~oes. . o pr6prio termo "avalial'ao" ja sugere esse sentido de responsabilidade, de acordo com 0 vocabulario moderno, ou quase p6s-nietzschiano, da vida moral. Esta vinculada ao verbo "avaliar" a nOl'ao de algo que fazemos, de uma avalial'ao que emerge de nossa atividade avaliativa, e e exatarnente ai que esta a nossa responsabilidade. Esta formulal'ao e trazida por Frankfurt quando ele concebe a nOl'ao de pessoa como possuindo urna "auto-avalia~ao reflexiva que se manifesta na formal'ao dos desejos de segunda ordem". Podemos sugerir isto de outra forma. E indiscutivel que temos certos desejos de primeira ordem. Eles ja estao dados, por assim dizer. Mas n6s tambem fazemos avalial'oes e formamos desejos de segunda ordem. E esses nao sao dados, mas sim fomentados, e e nisso que eles envolvem nossa responsabilidade. Como podemos entender nossa responsabiJidade? Uma influente corrente de pensamento no mundo modemo quis entende-Ia como escolha. a termo nietzscheano "valor", sugerido por nossa nOc;ao de "avalia~ao", traz a ideia de que criamos os nossos "valores", que eles, em ultima instancia, dependem de nossa pr6pria adol'ao. Mas dizer que eles repousam em ultima instancia nessa adoc;ao e dizer que surgem, ao fim e ao cabo, de uma escolha radical, isto e, de uma escolha que nao se baseia em nenhuma razao. Na medida em que uma escolha e baseada em razoes, estas razoes sao 24 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES • 25 simplesmente reconhecidas como validas e nao sao em si mesmas escolhidas. Se concebennos nossos "valores" como escolhas, enta~ eles deverao, em ultima instfulcia, repolisar numa escolha radical no sentido acima. Este, eclaro, e0 caminho tornado por Sartre em L 'eire et Ie neant, onde ele argumenta que nosso projeto fundamental repousa sobre urna escolha radical. Esta escolba, afmna Sarlre com seu tipico talento para notaveis formula90es, e "absurde, en ce sens, qu'il est ce por quoi (...) toutes les raisons viennentit l'etre"IO Estan09ao de escolharadical tambem e defendida por uma influente escola anglo-saxonica de fil6sofos da moral. Mas nossa responsabilidade por nossas avalia90es nao pode ser entendida atraves de uma escolba radical - caso nossa autocompreensao for a de agentes com profundidade, de avaiiadores fortes. Isto porque e totahuente conceblvel urna escolba radical entre avalia90es fortes, mas nao urna escolha radical das avaiia90es fortes enquanto tais. Como ilustra<;ao, n6s podemos examinar 0 famoso exemplo sartriano em L'existentialism est urn humanisme, oude urn jovem rapaz encontra-se abalado diante da escolha entre ficar ao lado de sua mae enferma ou deixa-Ia para integrar aResistencia, exemplo este, creio eu, que ilustra exatamente 0 oposto da tese de Sarlre. A tese de Sartre e a de que nao existe, nem em uma razao que fundamente compromissos morais, nero em algum tipo de considera<;ao mais abrangente, nenhuma forma de decidir entre essas duas fortes exigencias. A decisao, seja qual for a sua forma, precisa estar baseada em urna escolba radical. A descri9ao que Sarlre faz do dilema e muito poderosa. Mas 0 que toma essa descri9ao plauslvel e justamente 0 que demonstra 0 equivoco da posi9ao que Sarlre toma a partir dela. Vemos urn angustiante dilema moral porque 0 jovem rapaz se vS diante de duas poderosas exigencias morais. De urn lado, esta sua mae doente que, se abandonada, pode morrer Da terrivel afli9ao de sequer saber se seu filho ainda esta vivo; de outro lado, esta 0 ehamado de seu pais, eonquistado e devastado pelo inimigo, e, no fundo, wn ehamado nao apenas de sen pais, ja que 0 inimigo esta destruindo as verdadeiras bases de rela90es eticas e civilizadas entre os homens. Mas isso s6 e urn dilema porque as pr6prias exigencias morais nao foram criadas por urna escolba radical. Se 0 aspecto dramatico dessa condi9ao pudesse ser dissolvido, isto siguificaria que 0 jovem rapaz poderia, em algurn momento, simplesmente livrar-se do dilema afinnando amotte ou a inoperancia de urna das exigSneias. Na verdade, se as exigSncias morais pudessem ser eriadas por eseolhas radieais, 0 jovem rapaz poderia viver urn grave dilema entre partir e tomar urn sorvete de casquinha, e, assim, ele novamente nao poderia decidir. 10. J. P. Sartre. L 'etre et Ie neant. Paris, 1943, p. 559. A existSncia de dilemas morais nao serve de argumento contra a tese de que as avalia90es nao repousam em escolbas radicais. Por que deve ser surpreendente que as avalia~oes eapazes de obter nosso assentimento possaro estar em eonflito, e as vezes de forma muito eontundente? Gostaria de defender 0 argumento contrario, de qUe os dilemas morais sao ineonciliaveis nos termos da teoria da escolha radical. Agora, nesse easo hipotetico, 0 jovem rapaz precisa tomar sua decisao atraves de uma escolha radical. Ele deve simplesmente lanpr-se na ~esistSncia ou permanecer em casa com sua mae. Ele nao possui uma hnguagem para articular a superioridade de uma altemativa em rela9ao it outra; na verdade, ele nem mesmo dispoe de uma percep9ao rudimentar a respeito dessa possivel superioridade; as duas possibilidades Ihe parecem totalmente incomensuraveis. Ele pode apenas projetar-se em urna delas. Neste sentido e perfeitamente compreensivel a escolha radical. Mas imagine se ela se aplicasse a todos os casos de urna a9ao moral. Vamos considerar que eu tenha uma mae enferma e nenhurna outra obriga9ao concorrente. Fico com ela ou viajo para Riviera no feriado? Nao M duvida de que devo ficar. Posso nao ficar, e claro. E neste sentido existe uma escolha radical em aberto: cumprir ou nao 0 meu dever (embora eu possa lan9ar mao de inumeras racionaliza90es para justificar a 0p9ao de passar 0 feriado na Cote d'Azur: devo isso a mim mesmo, ap6s ter cuidado de' minha mae com tanta dedica9ao, enquanto meus irmaos estavam ausentes). Mas a questao fundamental e se podemos determinar a forma como devemos agir com base em urna escolha radical. Como isso poderia ser?Em primeiro lugar, eu estaria diante de duas altemativas: ficar com minha mae ou viajar para 0 suI. Enquanto escolhas radicais, as altemativas nao podem ser caraeterizadas de modo contrastante ou seja, urna nao poderia ser a 0P9ao do dever ass1m como a outra tambe~ nao poderia ser a da indulgencia egolsta, ou algo do tipo. Esta descrivao contrastante seria criada por escolhas radicais. Mas, no que consiste esse tipo de escolha? Bern, eu posso ponderar as duas possibilidades, escolher urna forma de agir e descartar a outra. Mas e al que somos levados a urn limite, onde escolher toma-se nao escolher. Sera que eu realmente escolbo levar a cabo urna altemativa? E, acima de tudo, nao M espa90 para avaliarresolu90es que vern it tona na escolha, como, por exemplo, "e meu dever ficar com minha mae". o que e uma resolu9ao vir it tona numa situa9ao de escolba? Nao estou sugerindo que, com a avaliavao das altemativas, cresc;a continuamente a sensa9ao de que este julgamento e 0 correto, pois isso nao e urna questao de escolha radical; mas antes que, com tal avaliavao, nos tomamos mais pr6ximos de perceber onde repousa nossa obriga9ao. Esse argumento postula que nossas obriga90es nao emergem de escolhas radicais, e sim de urna 26 Teoria crftica no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES ..... 27 , especie de visao a respeito de nossa condic;ao moral. As escolhas estariam situadas nessa COndi9ilO. Entilo, 0 que significa uma escolha radical surgir numjulgamento? Seria ela capaz de me levar a aceitar uma posic;ao, como no caso em que decidi por urna das a90es? Mas qual e a for9a de "aceitar urna posi9ao"? Eu certamente posso dizer que "e meu dever ficar com minha mae", mas certamente nao epara issa que se volta 0 consentimento. Suponho que, de fata, eu possa estar repentinamente tornado pelo sentimento de que "e meu dever ficar com minha mile"; mas onde estA a razilo para que isso seja considerado uma escolha? Para falarmos em escolhas nao podemos estar presos a uma das alternativas. Em urn certo sentido devemos estar submetidos ao que ambas t~m de atrativo para dar 0 nosso consentimento a uma delas. Mas, nesse caso, que tipo de atrativo elas possuem? 0 que me atrai na viajem para Cote d'Azurtalvez seja evidente, mas 0 que me motiva a ficar com minha mae nao pode ser a sensll\'ilo de que "e meu dever", pois essa ex hypothesi surgiu da pr6pria escolha. Esta sensa9ao pode ser apenas urn desejo de Jacto, como meu desejo pelo sol e pelo mar de Cote d'Azur. Mas ai a escolha em questilo seria semelhante aquela entre os dois feriados de que falamos na se9ilo anterior. Estoll sujeito ao atrativo das duas opc;5es incomensuraveis, as avalio e comeC;o a perceber que uma me atrai mais do que a outra, que seu atrativo 15 preponderante. au, entao, a questao teimosamente nao se resolve ate que, em algum momento, eu diga: "Que inferno! Vou ficar!". o agente de urna escolha radical precisa escolher - se e que ele de fato escolhe algo - como urn simples medidor (weigher). E isto signifiea, a rigor, que ele nao pode ser urn avaliador forte, pois suas supostas avalia~oes fortes resultam de simples medi90es. A aplicar;ilo de uma linguagem de contrastes capaz de articularuma preferencia repousa em uma resoluvao, em uma escolha entre coisas incomensufllveis. Mas, entao, 0 usc dessa linguagem seria falsa em um sentido crucial. Isto porque, supostamente, a melhor defmi9ilo para a experiencia sobre a qual repousa a aplica9ilo dessa linguagem seria a de uma preferencia incomensuravel; a experiencia fundamental que supomos no uso dessa linguagem de contrastes seria, de fato, aquela tipica de urn simples medidor, nilo a de urn avaliador forte. 0 que leva esse medidor aconsiderar urna altemativa mais elevada ou mais valorosa nao 15, suponho mais uma vez, 0 fate de ele vivencia-Ia nesses tennos; por isso suas avalia90es seriamjulgamentos, e nilo escolhas. Ao inves disso, ele e levado a preferir urna delas, ap6s considerar 0 que ambas tem como atrativo. Mas claro que ate mesmo esta concep9ilo de escolha poderia nilo ser aceitAvel para 0 te6rico da escolha radical. Ele recusaria reduzir essas escolhas a decisoes, como a de passar urn feriado no norte ou no suI. Isto porque ele supoe que essas escolhas nao se restringem a simples registros de preferencias, e 15 por isso que elas sao concebidas como escolhas radicais. Mas 0 que e uma escolha radical para alem do simples registro de preferencias? Bem, e possivel que eu decida exatamente seguir urna dessas preferencias. E entao diga: "Que infemo!Vou ficar!". Mas isso, sem duvida . ,.' eo que conslgo fazer no caso da escolha envolvendo 0 feriado, onde eu, por exemplo, nilo formulo uma concep9ilo sobre a preferencia que e inerente e pr6pria da alternativa escolhida. Minba decisilo nilo cria urna distin9ilo entre as duas alternativas. Epossivel que nas escolhas radicais eu desconsidere poi- completo as preferencias. Nilo se trata de que eu tenba falhado em minba tentativa de decidir sobre urna preferencia, me reSlando seguir cegamente uma delas e sim que, neste tipo de escolha, as preferencias nao Sao levadas em con~a. Mas, enlilo, 0 que e levado em conta? Aqui chegamos no limite de urna incoerencia. Vma escolha que nao leva em conta alguma coisa, na qual 0 agente nao se sente motivado por nenhuma das altemativas, ou desconsidere cornpletamente essa motiva~ao, ainda seria uma escolha? a que isso poderia ser? Bem, 0 fato e que ele de repente segue uma 0p9ilo. E isso ainda poderia ser feito em urn nivel de abstra9ilo. 0 que torna essa opr;ilo uma escolha? Talvez isso esteja relacionado a algo que 0 agente pense ser a causa de sua a9ilo. Mas 0 que isso pode ser? Quem sabe repetir obstinadamente para si mesmo "devo escolher uma delas", "devo escolher urna delas"? Certamente nilo e isso. Ele deve, antes, ponderar as alternativas, avali"; a desejabiJidade de cada urna, de modo que a escolha tenba alguma rela9ilo com isso. Talvez ele considere que A e mais desejavel em todos os aspectos, e ainda assim escolha B; ou talvez ele tenha percebido repentinamente sua preferencia por B. Em ambos os casos, sua escolha esta claramente ligada a sua preferencia, por mais que esta tenha surgido, repentinamente, de uma inversao de criterios. Mas uma escolha inteiramente desvinculada da desejabilidade das altemativas nao poderia ser compreendida como uma escolha. A teoria da escolha radical e, de fato, profundamente incoerente, pois ela almeja conciliar avalia9ilo forte e escolharadical. Ela deseja ter avalia90es fortes e ao mesmo temo negar a elas 0 status de resolu90es. 0 resultado e que ela sucumbe diante de urna investigar;ilo mais detida: para manter sua coereneia, a teoria da escolha radical torna-se, de fato, algo totalmente diferente. Ou bem levamos a serio aquelas considera90es que importam em nossa decisoes morais, 0 que nos obriga a reconhecer que elas, em sua maioria, nao surgem de escolhas radicais, ou enta~ tentamos a todo custo sustentar nossas escolhas radicais independentemente de qualquer avalia9ilo, de modo que elas deixem de ser escolhas entre avalia90es fortes para ser uma mera expressao de preferencias; e, se seguinnosadiante e te~tarmos desvincular nossas escolhas de nossas preferencias de [acto, catremos, ao fInal, em urn comportamento sem criterio que nunca poderiamos chamar de escolha. 28 Teoria erillea no seeulo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos - ORGANIZADORES 29 E verdade que a teoria mantem sua aparencia de plausibilidade ao admitir discretamente que avalia,aes fortes podem estar, de dois modos, alem do alcance de urna escolha radical. Em primeiro lugar, a grande obje,ao it nossa tentativa de mostrar que escolhas morais radicais nao passam de meras preferencias de urn simples medidor e que as escolhas consideradas pela teoria dizem respeito a questaes basicas e fundamentais, como a de nossojovem rapaz acima que tinha que decidirentre sua mae e aResistencia. Mas essas questaes nao sao basicas e fundamentais em virtude de escolhas radicais; sua importancia e dada au revelada em uma avaIia9ao que e constat",l., e nao escolhida. A verdadeira for,a da teoria da escolha radical vern do sentimento de que existem diferentes perspectivas morais, de que existe, como dissemos na se~ao anterior, uma pluralidade de visoes morais, entre as quais e muito dificil fazer urn julgamento. Podemos concluir que a wica fonna de decidir entre elas e atraves da escolha radical que 0 jovem rapaz precisou adotar. E esse raciocinio, pOT sua vez, nos leva a uma segunda avalia9ao forte, que esta alem da escolha. Se esta e a condi,ao humana, entao e claramente finito mais honesto, mais esclarecedor, menos confuso emenDS ilus6rio estar ciente desta condi,ao e assurnir a inteira responsabilidade pornossas escolhas radicais. Apostura de "boafe" e melhornao em virtude da escolha radical, mas sim porque nossa caracteriza,ao da condi,ao hurnana reserva it escolha radical esta importante fun,ao. E se assurninnos que esta e nossa condi,ao moral, e mais honesto, corajoso, auto-esc1arecedor e, conseqiientemente, mais elevado como modo de vida, escolher com lucidez do que esconder nossas escolhas na suposta estrutura das coisas, fugindo da pr6pria responsabilidade e mentindo para si mesmo com urna profunda autoduplicidade. Quando percebemos aquilo que confere plausibilidade it teoria da escolha radical veffiOS como as avaliac;Oes fortes sfto inescapaveis em nossa concep,ao do agente e de sua experiencia; assim 0 e porque tais avalia,aes tambem estao vinculadas it nossa no,ao de self, de modo que elas reaparecem ate mesmo quando pareciam excluidas. 2. Isso pode ser observado de urn outro angulo, considerando urn outro modo de demonstrar 0 equivoco da teoria da escolha radical. Mencionei na ultima se,ao que as avalia,aes fortes podem ser consideradas profundas porque, a partir delas, avaliamos nao apenas as preferencias desejadas, mas tambem 0 tipo de vida e a qualidade do agente que estas preferencias definem para n6s. Isto esta profundamente vinculado com noSsa no,ao de identidade. Com 0 tenno "identidade" eu desejo ressaltar as situa,aes em que falamos de "encontrar apr6pria identidade" au em passar por uma "crise de identidade". Aqui nossa identidade e definida por nossas avalia,oes fundamentais. Encontrar a res posta para a questao "qual e minha identidade?" nao e possivel com uma lista de propriedades separadas dessas avali"l'aes, como minha descri,ao fisica, procedelicia, origem, habilidades e " assim por diante. Todas essas propriedade~ podem constituir minha identidade, mas somente de urn modo: se pertencer a urna certa linhagem for algo crucial para mim, se eu tiver orgulho disso e conceber esse pertencimento como algurna coisa que me inclui em urna classe de pessoas cujas qualidades eu valorizo em minha condi,ao de agente, qualidades estas que receho desse panG de fundo como atributos que passam a integrar minha identidade. E esta sera fortalecida se eu acreditar que nossas qualidades morais sao, em grande medida, nutridas por nosso panG de fundo, de modo que se voltar contra ele e uma grave auto-rejei,ao. Desse modo, minha linhagem e parte de minha identidade porque ela esta vinculada a certas qualidades que valorizo, ou porque acredito que devo valoriza-Ias como algo que e parte inlrinseca de mim, pois, do contrlirio, estaria me auto-rejeitando. Em todo caso, 0 conceito de identidade esta vinculado a certas avalia,aes fortes das quais nao posso me separar. Isto ocorre porque estou convictamente identificado com minhas avalia,aes fortes, porque considero que algumas de minhas propriedades admitem somente uma detenninada avalia,ao forte em rela,ilo mim,ja que tais propriedades sao de tal modo cruciais em relac;ao ao que sou enquanto agente, ou seja, enquanto urn avaliador forte, que realmente nao posso repudia-Ias. Com esse repudio eu teria minha interioridade violentamente desagregada e seria incapaz de avaliar com autenticidade. Portanto, nossa identidade e definida por certas avalia,aes que sao inseparaveis de nossa condi,ao de agentes. Sem elas deixariamos de ser n6s mesmos, e isso nao significa que seriamos apenas diferentes, no sentido de ter outras propriedades - 0 que, na verdade, ocorreria ap6s urna mudan,a, ainda que pequena-, e sim que anulariamos apossibilidade de seITI10S agentes que avaliam; significa que nossa existSncia como pessoas e, conseqUen- temente, nossa capacidade de aderir a certas avaliayoes seriam impossiveis fora de urn horizonte fonnado por essa avaliac;Oes essenciais; enfim, que nossa condi,ao de pessoa estaria integralmente corrompida. Dessa forma, se alguma tortura ou lavagem cerebral me obrigasse a abandonar as convicyoes que defin em minha identidade, eu seria desagregado, nao seria mais urn sujeito capaz de saber minha posi,ao no mundo e de conhecer 0 sentido que as coisas possuem paramim; eu sofreria urna terrivel corrosao daquelas capacidades que definem urn agente hurnano. Se eu, por exemplo, fosse de alguma fonna induzido a repudiar minha linhagem, seria violado como pessoa, pois estaria repudiando urn componente fundamental da base sobre a qual detennino e avalio meu pr6prio sentido 30 Teoria critlca no seculo XXI Jesse Souza I Patricia Mattos ~ ORGANIZADDRES I das caisas. Esse repudio seria inaut6ntico e, com ele, eu me tomaria incapaz de fazer qualquer outra avalia9ao autentica. A n09ao de identidade nos traz como referencia certas avaJia90es que sao essenciais, pais sao elas que defmem 0 fundamento ou 0 horizonte indispensavel a partir do qual nos tomamos pessoas que refletem e avaliam. Nao ter ou nao encontrar esse horizonte e, de fata, uma terrivel experiencia de perda e desagrega9ao. Epor isso que podemos falar em urna "crise de identidade" quando perdemos nossa referencia existencial. Urn se((decide e age a partir de certas avalia90es fundamentais. Isto e impossivel na teoria da escolha radical. 0 agente da escolha radical, ex hypothesi, nao teria nenhurn horizonte de avalia9ao no momento de sua escolha. Ele seria inteiramente desprovido de urna identidade, urna especie de ponto sem dimensoes (extensionless point), urn mero movimento no vazio (a pure leap into the void). Mas ai estamos diante de uma impossibilidade OU, no maximo, de uma descrivao da mais assustadora aliena9ao mental. 0 sujeito da escolha radical e urna outra vers1io da recorrente figura que nossa civiliza9ao deseja realizar: 0 ego descorporificado (disembodied ego), 0 sujeito que pode objetivar tudo, inclusive a si mesmo, e escolher a partir de urna liberdade radical. Mas a promessa desse autodominio total seria, de fato, a mais plena autodestrui9ao. 3. Que sentidos podemos atribuir entao it responsabilidade do agente sem que ela seja entendida nos termos da escolha radical? Concluiremos que nao somos, em nenhum sentido, responsaveis por nossas avalia'Yoes? Creio que nao, pois ha urn outro sentido em que somos responsaveis. Nossas avalia90es nao sao escolhidas. Pelo contrario, elas sao articula90es do que sentimos como valoroso, mais elevado, mais pleno, mais realizador, e assim por diante. E como articula,oes elas nos oferecern urn outro ponto de apoio para 0 conceito de responsabilidade. Vamos entao examina-Io. Grande parte de nossas motiva'Yoes ~ nossos desejos, aspira'Yoes, avalia90es - nao sao simplesmente dados. N6s as formulamos em palavras ou em imagens. Na verdade, pelo fato de sermos animais lingiiisticos, a articula91io de nossos desejos e aspira90es nao pode se dar apenas dessa ou daquela forma, segundo modelos ja concebidos. Assim, nao somos simplesmente movidos por fOf9as psiquicas comparaveis itgravidade ou ao eletromagnetismo, que, de forma rasa, podem ser entendidas como for9as dadas, mas sim por "forc;:as"ll psiquicas articuladas ou interpretadas de urn certo modo.11. Coloquei a expressoo entre aspas par que as motivac.:oes subjacentes que chamamos de "forc.:as" ou "impulsos" somente silo acessiveis atraves da interpretac.:ilo dos comportamentos e dos sentimentos. Nesse caso, e muito dificil trac.:ar a diferenc.:a Nesse nivel, articula~ao nao esimplesmente descri~ao, no sentido de caracterizar urn objeto totalmente aut6nomo, ou seja, urn objeto que nao pade ser alterado nem no que ele ee nem no gran e no tipo de evidencia que ele pade ter com a descric;ao. Assim, caracterizar umotmesa como marrom ou urna cadeia de montanhas como pontiaguda e urna simples descri9ao. As articula90es, ao contrario, sao tentativas de formular 0 que esta inicialmente incompleto, confuso e malformulado. E esse tipo de formula9ao ou de reformula9ao nao isenta seu objeto de altera90es. Fomecer urna determinada articula9ao e, de certo modo, moldar 0 sentido do que n6s desejamos ou do que consideramos importante. Vejamos 0 exemplo acima do homem que enfrenta a obesidade e que percebe isso como urna questao meramente quantitativa de maximizar a satisfa9ao, e nao como urna disputa entre dignidade e degrada9ao. Vma mudan'Ya transfonnaria sua disputa interior em uma experiencia totalmente diferente. As motiva~oes em oposi9ao - a suplica por urn bolo de creme e a insatisfa9ao consigo pr6prio por causa desse deleite -, que aqui sao os "objetos" submetidos a uma nova descri'Yao, nao sao independentes no sentido esb09ado acima. Quando aquele homem consegue aceitar a nova interpreta9ao do desejo de se autocontrolar, 0 pr6prio desejo e alterado. A verdade e que, com relac;:ao a essa mesma aspirac;:ao, se ele deixa de comer 0 bolo de creme nao mais como urna busca por dignidade e auto-respeito, a motiva9ao toma-se completamente diferente. Eclaro que, ate mesmo nesse caso, n6s tentamos quase sempre manter a identidade do objeto que e submetido a urna nova avalia91io - tamanha e a vincula'Yao aos modelos ordinarios de descric;:fio. Podemos pensar, digamos, em termos de algum sentlmento imaturo de vergonha ede~ao que nao se faz presente em nosso desejo de resistir ao prazer em excesso, que assim teria como sua (mica meta racional 0 acrescimo de satisf~ao integral. Assim, podemos ter a impressao de que os elementos pennanecem os mesmos, de que sao apenas rearranjados. Mas, analisando mais de perto, vemos que as mudan9as trazidas pela nova descri9ao tambem alteram 0 sentimento de vergonha. Ele pode se <lissipar por completo ou se tomar algo tota1mente <liferente. Portanto, podemos dizer que nossas auto-interpreta90es constituem parcialmente nossa experiencia.lsto porque urna descri9ao alterada de nossas motiva90es pode ser inseparavel de urna mudan9a nessas motiva90es. Mas isto nao significa estabelecer urna rela9ao causal: nao estou dizendo que, alterando nossas descri'Yoes, teremos como resultado a altera'Yao de nossa entre a metafora e a teoria basica. Cf. Paul Ricoeur. De l'interpretation. Paris, 1965; e 0 meu "Force et sens", in G. Madison (ed.). Sens et existence. Paris, 1975. 32 leoria critica no seculo XXI Jesse Souza I Patrfcia Mattos - ORGANIZAOORES l, experiencia. Significa, ista siro, que certos tipos de experiencia slio impossiveis sem certas autodescric;oes. A qualidade especifica da experiencia mostrada no casa· d.a obesidade, em que considero as alternativas apenas por uma medic;iio de utilidade, ficando isento da ameac;a de degradac;iio e autodesprezo, niiO pode existir sem a caracterizaC;iio "redutora" que fac;o dos dois desejos em disputa, como se fossem somente dois tipos diferentes de vantagens. Essa descric;iio redutora e parte da forma calculista e objetificante com a qual eu vivencio esta escolha. Podemos dizer que a descric;iio e "constitutiva" da experiencia, e esse e0 termo que a partir de agora usarei nesse tipo de relac;iio. Mas 0 fato de as auto-interpretac;oes serem constitutivas da experiencia niio diznada sobre como ambas se modificam. De fato, parece que a mudanc;a poderia surgir de dois modos. Em algurnas circunstilncias somos, por n6s mesmos ou numa interlocu~ao, levados arefletir, e as vezes adquirimos uma nova forma de veT nossa condi<;llo com a qual alteramos nossa experiencia. Mas, fundarnentalmente, parece que determinadas descric;oes daexperiencia sao inacessiveis ou incompreensiveis para algumas pessoas exatamente pOT causa da natureza especifica de snas experiencias. Para alguem com uma forte experiencia de enfrentar a obesidade como se ela fosse uma degradac;iio, a descri<;ao "redutora" seria uma caricatura desagradavel, uma evita<;ao desavergonbada da realidade moral- como quando reagimos a camutlagem de urn crime policial atraves de uma linguagem orwelliana, por exemplo, chamando urn genocidio de "soluC;iio defmitiva". o vinculo constitutivo entre descrif;.ao e experit3ncia admite influencia causal em ambas as direc;oes: algumas vezes ela pode nos permitir modificar a experiencia atraves de novas concep90es; mas, fundamentalmente, sao as formas profundarnente incorporadas de nossa experiencia que circunscrevem essas concepc;Oes. As descric;Oes que fazemos de nossas motivac;oes, assim como 0 esforc;o de formular 0 que consideramos importante, nao sao, em virtude dessarelac;ao constitutiva, simples relatos de objetos dotados de uma autonomia plena. E elas tambem niio siio simples descric;oes arbitrluias, onde vale qualquer coisa. Existem interpretac;oes mais ou menos adequadas, mais ou menos verdadeiras, mais ou menos perspicazes e mais ou menos auto-ilus6rias. Epela dupla face da articulac;iio, porque ela pode estar errada, ou mesmo porque pode formular urn equivoca, que algumas vezes encontramos articulac;oes que trazem uma distorC;iio da realidade em questiio. Niio falamos somente de erros, mas, com freqiiencia, tambem de ilusoes e enganos. Podemos colocar a questiio do seguinte modo. Nossa tentativa de fonnular 0 que consideramos importante deve, como lima descric;ao, se esforc;ar para ser fiel a algurna coisa. Mas aquilo que devemos ser fieis niio e urn objeto independente, com maneira e grau fixos de se tomar evidente, mas sim urn sentido amplarnente inarticulado de algo que e de importilncia decisiva Uma articulac;iio desse objeto tende a tornil-lo algo diferente do que ele era anteriormente. E, no mesma sentido, uma nova articu]ac;ao de l1rp "'objeto" DaD 0 deixa evidente ou obscuro para n6s da mesma forma ou no mesma grau que antes. A formulac;iio do "objeto" 0 faz acessivel de novas maneiras. Isto, de fato, e bem ilustrado pelo nosso exemplo do homem enfrentando a obesidade. Com isso, nossas articulac;oes, exatamente porque em parte modelam os objetos, chamam nossa responsabilidade de urn modo que niio acontece com meTas descric;oes. Isto acontece de duas formas interwrelacionadas, que correspondem as duas direc;oes da intluencia causal mencionadas acima. Primeiro porque, muitas vezes, as concepc;oes que podemos fazer de nossas pr6prias motivac;Oes e do que e importante e valoroso siio limitadas pela configurac;iio de nossa experiencia, como, por exemplo, quando urna falha em compreender uma certa concepc;iio ou em enxergar 0 prop6sito de uma assertiva moral e tomada como urn julgamento a respeito do carilter da pessoa em quest110. Vma pessoa insensivel, ou urn famitico, n110 consegue enxergar 0 que infringem aos outros, 0 tipo de sofrimento que causam a eles. Ela niio ve, por exemplo, que sua atitude afronta profundarnente 0 sentimento de honra de alguem, ou que talvez esteja arruinando a auto-estima de urna pessoa. Ela e a prova de todo nosso argumento. . Eta niio consegue nos ouvir porque estil, em si mesma, fechada a todo tipo de sensibilidade, ou, talvez possamos dizer, ao pr6prio sentido de valor pessoal; e isto, por sua vez, pode estar relacionado a experiencias que ela viveu anterionnente. Essas experiencias precedentes se fazem presentes na configura'Yao das experiencias atuais, nas
Compartilhar