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Textos Complementares
Unidade 2
Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/025/25ctrindade.htm
Ciência e Senso Comum (Uma reflexão ilustrada por comentários sobre o filme “O Carteiro e o Poeta”) 
  
Apresentação 
Este trabalho está dividido em duas partes. Na primeira, pretendemos refletir um pouco sobre senso comum. A partir de alguns textos pretendemos falar da importância do conhecimento não-científico tanto para as pessoas que não têm acesso ao conhecimento científico como para toda a sociedade. Estará incluída aqui a discussão sobre a importância das construções intelectuais da ciência ou, mais precisamente, sobre a capacidade do conhecimento científico de se difundir e cumprir a função de dotar o conjunto dos homens de elementos que os possibilitem superar suas dificuldades e satisfazer suas necessidades materiais e sociais. 
Na segunda parte comentaremos alguns trechos do filme O Carteiro e o Poeta[1] que, a nosso ver, ilustra um pouco o que é e o que poderia ser a relação entre ciência e senso comum. No filme a relação que se desenrola entre os dois personagens principais - o carteiro Mario e o poeta Pablo Neruda - e entre este e outros personagens - nos remete à reflexão sobre as tantas relações entre pessoas que ocorrem na vida real e nas quais constantemente estamos envolvidos: um advogado e um seu cliente; um professor e um pai de aluno; um profissional de recursos humanos e um operário; um representante político e um eleitor etc. No âmbito das relações sociais é freqüente o contato entre homens de pouca formação escolar e homens que atingiram níveis mais elevados de formação. Este fato confere à história do filme um certo grau de realidade; o autor usa de sua sensibilidade para mostrar momentos de relações sociais e humanas perfeitamente compatíveis com as que vivemos no dia-a-dia.
Conhecimento científico e senso comum 
- I - 
Max Weber, em seu texto sobre a ciência como vocação pede que nos lembremos do livro VII da República de Platão no qual este escreve: “aqueles homens da caverna, acorrentados, cujas faces estão voltadas para uma parede de pedra à sua frente. Atrás deles está uma fonte de luz que não podem ver. Ocupam-se apenas das imagens em sombras que essa luz lança sobre a parede e buscam estabelecer-lhes inter-relações. Finalmente, um deles consegue libertar-se dos grilhões, volta-se, vê o sol. Cego, tateia e gagueja uma descrição do que viu. Os outros dizem que ele delira. Gradualmente, porém, ele aprende a ver a luz, e então sua tarefa é descer até os homens da caverna e levá-los para a luz. Ele é o filósofo; o sol, porém, é a verdade da ciência, a única que reflete não ilusões e sombras, mas o verdadeiro ser”[2]. 
Estas palavras de Platão descrevem bem - a nosso ver - o espírito que, desde meados do século XIX, predomina no pensamento ocidental no qual a ciência adquiriu total hegemonia e passou a ser socialmente reconhecida pelas virtualidades instrumentais da sua racionalidade, ou seja, pelo desenvolvimento tecnológico que tornou possível e pelas possibilidades que criou para uma melhor compreensão da dinâmica e dos fenômenos sociais. O texto de Platão distingue os homens e a qualidade de suas compreensões do mundo. Os homens da caverna representam o homem comum e seu “conhecimento” é considerado como produto das inter-relações que este estabelece com um mundo que não conhece verdadeiramente e do qual - por isso mesmo - se serve apenas de impressões que não lhe permite adquirir senão uma idéia equivocada do que ele realmente significa. O filósofo, por outro lado, representa o cientista ou o homem que se serve do conhecimento científico. Este é considerado como o detentor da verdade da ciência que por sua vez é considerada - no texto - como a única válida. Se, por um lado, Platão procura demonstrar que o conhecimento científico é superior a outras formas de “conhecimento”, também procura firmar a idéia de que, cabe aos “filósofos” o papel de difundir a verdade da ciência para que a humanidade possa elevar-se do “mundo das sombras” para o “mundo da verdade”. 
No texto de Platão podemos identificar uma das questões mais importantes do nosso tempo; trata-se da relação entre ciência e sociedade. Nesta questão, nossa preocupação central consiste em analisar de que maneira e em que grau o conhecimento científico tem servido à totalidade dos homens ou, de outra forma, de que maneira os instrumentos científicos têm possibilitado ao conjunto dos homens melhor decidir frente aos problemas e necessidades que se lhes apresentam. 
Se o conhecimento científico é o conhecimento de todos os homens e representa o grau máximo ao qual a humanidade chegou na interpretação de seu mundo e na criação de mecanismos e procedimentos para interferir neste, interessa-nos discutir se, da mesma maneira, podemos dizer que este conhecimento de “todos os homens” serve realmente a todos os homens. Neste sentido, julgamos conveniente explorar um pouco a maneira como a ciência vem se desenvolvendo e a maneira como ela chega ao conjunto dos homens enquanto conhecimento. Em outras palavras, julgamos conveniente fazer uma crítica da relação entre ciência e sociedade com o intuito de identificar até que ponto a ciência nos serve a todos e até que ponto existem problemas que impedem que isso aconteça. 
- II - 
A ciência desenvolveu - em todas as áreas - uma linguagem própria cuja compreensão passou a exigir níveis de formação escolar cada vez mais elevados. Como os sistemas escolares não garantiram o acesso ao conhecimento para toda a sociedade, grande parte dos indivíduos foram pouco a pouco marginalizados do saber científico que, por fim, passou a ser propriedade de alguns poucos grupos sociais, notadamente daqueles que dispõem de condições econômicas para adquiri-lo. Hoje, o complexo discurso científico, vale dizer, atinge inclusive a própria comunidade científica na medida em que “ o avanço da especialização torna impossível ao cientista, e já não apenas ao cidadão comum, compreender o que se passa (e porque se passa) à volta do habitáculo (cada vez mais estreito) ”[3] em que a ciência se desenvolve. 
Podemos dizer que “dadas as condições sociais de produção e apropriação do conhecimento científico, a criação de objetos teóricos está cada vez mais vinculada à criação ou potenciação de sujeitos sociais e, conseqüentemente, à destruição ou degradação dos sujeitos sociais que não podem investir no conhecimento científico ou apropriar-se dele”[4]. Ou seja, muito do que se procurou e do que se procura desenvolver no campo científico, reflete interesses particulares ou de determinados grupos sociais para os quais o conhecimento científico representa uma maneira de garantir ou conquistar interesses frente a grupos sociais de interesses diferentes . Podemos citar como exemplo o fato de um estudo econômico poder ser utilizado por uma empresa para melhorar a sua atuação, ou seja, para afirmá-la e fortalecê-la enquanto sujeito social [5]. 
Aos que não detêm o conhecimento científico, resta buscar resolver seus problemas cotidianos sem a ajuda das construções racionais e metódicas da ciência, sem os instrumentos que a ciência desenvolveu para que se atinja uma melhor compreensão do mundo. Dotados de informações e interpretações que adquirem com a experiência de vida, os “homens comuns” procuram dar respostas às questões e necessidades de seu mundo baseados num “conhecimento” cujo conjunto de formulações a ciência denomina “senso comum”[6]. Para a ciência, contudo, trata-se de um “conhecimento vulgar”, de uma “sociologia espontânea”, com a qual é preciso romper para que se torne possível o conhecimento científico, racional e válido.[7] 
Podemos dizer que há uma oposição entre o conhecimento científico e o “conhecimento” não-científico ou senso comum. O primeiro coloca-se como “verdadeiro” baseado na sua qualidade teórica sem se questionar a cerca do quanto esta qualidade consegue se fazer útil para o conjunto dos homens. Desqualifica e afasta-se de todas e quaisquer outras formas de “conhecimento”sem relevar o quanto estas efetivamente representam para aqueles que delas fazem uso. O segundo, embora não se oponha da mesma forma e aceite-se como diferente - e talvez, como de menor qualidade - firma-se numa auto-valorização determinada pelos êxitos que julga acumular na medida em que enfrenta as dificuldades cotidianas. Os detentores dos “conhecimentos” não-científicos apostam na validade de suas interpretações do mundo e é a partir delas que definem as maneiras de enfrentar os problemas. Confiam que estão, a partir da experiência de vida, construindo um conhecimento que talvez se defina como “sabedoria” . “Alunos” do que consideram ser a “escola da vida”, confiam no tempo de vida como um “equivalente” do “banco escolar”. 
Interessa-nos aqui, a partir dessas colocações, refletir um pouco sobre estes dois “tipos” de conhecimento. Nossa atenção, como está ficando claro, está centrada na avaliação do grau de validade que cada “tipo” de conhecimento tem para aqueles que deles fazem uso. Nosso objetivo é o de avaliar até que ponto essa oposição entre ciência e senso comum se justifica e até que ponto ela é um produto das diferenças sociais e econômicas que contrapõem os grupos sociais no campo dos interesses. A defesa da superioridade qualitativa da ciência é dispensável neste trabalho mas, em relação ao senso comum, devemos nos aprofundar para buscar nele algo mais que os aspectos negativos que facilmente podemos detectar quando o comparamos com o conhecimento científico. Referências ao senso comum ou ao conhecimento não-científico aparecem desde há muito em obras de importantes autores. Vale lembrar o que Max Weber sugere a esse respeito em seu texto sobre a ciência como vocação: 
“Significará que nós, hoje, por exemplo, sentados neste auditório, temos maior conhecimento das condições de vida em que existimos do que um índio americano ou um hotentote? Dificilmente. A menos que seja um físico, quem anda num bonde não tem idéia de como o carro se movimenta. E não precisa saber. Basta-lhe poder ‘contar’ com o comportamento do bonde e orientar a sua conduta de acordo com essa expectativa; mas nada sabe sobre o que é necessário para produzir o bonde ou para movimentá-lo. O selvagem tem um conhecimento incomparavelmente maior sobre as suas ferramentas. O selvagem sabe o que faz para conseguir sua alimentação diária e que instituições lhe servem nessa empresa. A crescente intelectualização e racionalização não[8] indicam, portanto, um conhecimento maior e geral das condições sob as quais vivemos”[9]. 
Também Lévi-Straus, observa que “há (...) um pensamento selvagem” (...) que é “homólogo ao pensamento lógico” cujas “classificações ramificadas” e as “finas nomenclaturas são o próprio pensamento classificatório, mas operando (...) em outro nível estratégico, o do sensível”. Observa ainda que “o pensamento selvagem é o pensamento da ordem , mas é um pensamento que não se pensa”[10]. 
Max Weber e Lévi-Straus, falam de um “conhecimento” - ou pensamento - que orienta as atitudes do homem comum. Lévi-Straus procura mostrar que tal pensamento se estrutura no nível do sensível e o qualifica como “libertador, pelo protesto que eleva contra o não-sentido”[11]. Max Weber fala da eficácia desse conhecimento. Deixa claro que trata-se de um “conhecimento” das condições sob as quais vivemos e deixa implícito que, tal “conhecimento” deve ser encarado pela ciência como diferente e não como menor ou inferior. 
- III - 
Mas, o que caracteriza efetivamente o senso comum? Para nos aprofundarmos neste ponto, apresentaremos algumas caracterizações do senso comum desenvolvidas pelos autores Adolfo Sánchez Vásquez, Boaventura de Souza Santos e Antonio Gramsci. 
Para Adolfo Sánchez Vásquez, senso comum é “o ponto-de-vista do (...) praticismo; prática sem teoria, ou com o mínimo dela [12]”. Na consciência de senso comum “o prático - entendido num sentido estritamente utilitário - contrapõe-se à teoria. Esta se faz desnecessária ou nociva para a prática”; “o ponto-de-vista do senso comum docilmente de desdobra aos ditames ou exigências de uma prática esvaziada de ingredientes teóricos”. Em lugar destes tem-se “uma rede de preconceitos, verdades esteriotipadas e, em alguns casos, superstições de uma concepção irracional ( mágica ou religiosa ) do mundo”. Para o senso comum “a prática se basta a si mesma [13]”. 
Para Boaventura de Souza Santos o senso comum é “o menor denominador comum daquilo em que um grupo ou um povo coletivamente acredita” tendo, por isso, “uma vocação solidarista e transclassista”. “O senso comum é o modo como os grupos ou classes subordinados vivem a sua subordinação” mas “essa vivência (...) longe de ser meramente acomodatícia, contém sentidos de resistência que, dadas as condições, podem desenvolver-se e transformar-se em armas de luta”[14]. “ O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão do mundo assente na ação e no princípio da criatividade e das responsabilidades individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajetórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma de confiança e dá segurança. O senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objetos tecnológicos e do exoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência lingüística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano da vida. Por último, o senso comum é retórico e metafórico; não ensina, persuade [15]”. 
Para Antonio Gramsci “não existe um único senso comum, pois ele é um produto e um devenir histórico “. O senso comum e também a religião “não podem constituir uma ordem intelectual porque não podem reduzir-se à unidade e à coerência nem mesmo na consciência individual”. [16] O senso comum, ainda que implicitamente, “emprega o princípio da causalidade”; “em uma série de juízos, identifica a causa exata, simples e imediata, não se deixando desviar por fantasmagorias e obscuridades metafísicas, pseudo-profundas, pseudo-científicas etc.” Nisto reside o valor do que se costuma chamar (...) bom senso” [17] 
Nas caracterizações acima podemos encontrar tanto os elementos que servem de alvo às críticas da ciência ao senso comum como outros que poderíamos considerar positivos. Atentos aos aspectos positivos podemos dizer que, o senso comum se manifesta como atitude do homem comum. Seu caráter supersticioso, preconceituoso e irracional, reflete apenas as possibilidades que uma consciência comum tem de reagir contra o “não-sentido” das coisas. Tal atitude é positiva e não é menos digna que a atitude científica de buscar compreender as mesmas situações e problemas visando dominá-los para melhor agir sobre eles. 
Impulsionado pelas necessidades, o homem comum age sem formulações metódicas e teóricas. Por ser sensível e por ser dotado da capacidade de reagir, desenvolve interpretações e cria soluções. No lugar dos instrumentos científicos - que lhe são inacessíveis - o homem comum procura contar com seu “bom senso”[18]. O homem comum, e não apenas a ciência, também acerta. 
O senso comum ou o conjunto dos “conhecimentos” não-científicos pode ser classificado como parte constitutiva do que chamamos de cultura popular. O modo de ver e de fazer do senso comum, mesmo não contando com uma estrutura de difusão organizada e institucionalizada, penetra na consciência do homem comum de maneira profunda e, além de servir a cada homem individualmente, assume funções sociais importantes. 
Tal modo de ver e de fazer difunde-se nas brincadeiras, nas expressões da linguagem, nos ditados etc. “As adivinhas e os passatempos” por exemplo “funcionam, emnumerosas ocasiões, como um meio ajustador entre pessoas que se conhecem pouco”; “os ditados, frases de sabedoria, são necessários à medida que reduzem situações difíceis ao contexto do já conhecido, da tradição”; os provérbios são “sistemas de referência que organizam a percepção do mundo no plano emocional e racional, significando para os que os vivenciam, uma verdade sintética, sabedoria e apoio”[19]. 
Gramsci reforça esses argumentos dizendo que “nas expressões da linguagem comum pode-se inclusive detectar a idéia que o povo faz da filosofia. A expressão “tomar as coisas com filosofia”, por exemplo, para Gramsci, contém “o convite à reflexão, à tomada de consciência de que aquilo que acontece é, no fundo, racional e que assim deve ser enfrentado, concentrando as próprias forças e não se deixando levar pelos impulsos instintivos e violentos[20]. Gramsci observa que “tais expressões têm um significado muito preciso, a saber, o de superação das paixões bestiais e elementares por uma concepção da necessidade que fornece à própria ação uma direção consciente” sendo este “ o núcleo sadio do senso comum, o que poderia ser chamado de bom senso, merecendo ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente”. 
- IV - 
Boaventura de Souza Santos em seu livro Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna, desenvolve - dentre outras coisas - uma critica importante sobre as relações entre ciência e senso comum e faz proposições interessantes no sentido de superar problemas nesta relação. 
Para Santos “a oposição ciência / senso comum não pode equivaler a uma oposição luz / trevas” porque, “se os preconceitos são as trevas[21], mesmo a ciência nunca se livra totalmente deles” e, por isso, é “simplista avaliá-los negativamente”.[22] Citando Gadamer, Santos observa que “os preconceitos são constitutivos do nosso ser e da nossa historicidade e, por isso, não podem ser levianamente considerados cegos, infundados ou negativos” pois, “são eles que nos capacitam a agir e nos abrem à experiência e, por isso, a compreensão do nosso estar no mundo não pode de modo algum dispensá-los”.[23] 
Santos, citando Elster, observa que “a investigação sobre a inferência humana ou a escolha racional revelam que uma ilusão pode conduzir à verdade, quer porque corrige ( e neutraliza ) uma outra ilusão, quer porque substitui uma interferência correta”.[24] Observa que “caminhamos para uma nova relação entre a ciência e o senso comum, uma relação em que “qualquer deles é feito do outro e ambos fazem algo de novo”[25] 
Para Santos, a época em que vivemos hoje deve ser considerada “uma época de transição entre o paradigma da ciência moderna e um novo paradigma” que ele designa “ciência pós-moderna”. Santos observa que, a ciência, para se constituir nesta nova etapa, deve romper com o “conhecimento” evidente do senso comum para depois romper com esse rompimento.[26] Essa dupla ruptura não significa que a segunda neutraliza a primeira ou que, após esta segunda ruptura, se retorne ao senso comum. Pelo contrário, enquanto a primeira ruptura é imprescindível para constituir a ciência, a segunda transforma o senso comum com base na ciência. Com essa dupla transformação, pretende-se um senso comum esclarecido e uma ciência prudente; um saber prático que dá sentido e orientação à existência e cria o hábito de decidir bem. Trata-se de combinar o caráter prático e prudente do senso comum com o caráter segregado e elitista da ciência. A dupla ruptura procede a um trabalho de transformação tanto do senso comum como da ciência. Para Santos, “o senso comum só poderá desenvolver em pleno a sua positividade no interior de uma configuração cognitiva em que tanto ele como a ciência moderna se superem a si mesmos para dar lugar a uma outra forma de conhecimento”[27]. 
Comentários sobre o filme “O Carteiro e o Poeta”. 
a) No início do filme o personagem Mario deixa transparecer que uma de suas grandes preocupações é a de conseguir uma companheira. Na vida simples de Mario, ter trabalho e uma companheira parece ser o fundamental. Já em seu primeiro contato com a imagem do poeta - no cine-jornal - Mario demonstra-se especialmente interessado pelo fato de o poeta ser considerado “aquele que escreve poemas de amor, o tema favorito da sensível alma feminina”. Não tendo Mario qualquer noção a cerca do que significava a situação de exílio do poeta, de imediato associa as supostas virtuosidades deste à uma de suas necessidades mais imediatas, a de conquistar uma mulher. Mario pensa no poeta como alguém que tem algo do que lhe interessa fazer uso. Essa coisa é a poesia. E a poesia para Mario significava um infalível instrumento para conquistar mulheres; nada mais pensava sobre ela e dela nada mais lhe interessava entender além disso. 
b) Mario é contratado como carteiro para entregar as correspondências do poeta. Logo nos primeiros contatos com o poeta, busca identificar elementos que possam ajudá-lo a resolver suas necessidades afetivas. Procura analisar o poeta, observa seus gestos, a maneira como fala e como trata sua companheira; tenta descobrir ou identificar algo que possa aprender[28]. Mario busca um “conhecimento” no poeta e em sua poesia. Poeta e poesia significam para ele a possibilidade de conquistar alguém. Num dos contatos com o poeta, numa tentativa de aproximação, Mario “brinca com palavras[29]”, algo que sabe fazer mas sobre o que não pensa. O poeta reage e caracteriza as palavras de Mario: “Não devia me submeter a comparações e metáforas” . Mario sente que conseguiu estabelecer o diálogo; aprofunda-se querendo saber o que significa metáfora e o poeta explica: “quando falamos algo, mas comparamos com outra coisa”. Mario compreende e descobre algo mais sobre o que fazia no nível do sensível. 
c) Mario continua sua busca; diz quer ser poeta e pergunta ao poeta como se faz[30]. Este reage com naturalidade e respeito. Àquela pergunta aparentemente ingênua responde argumentando que os poetas engordam sendo este um bom motivo para que Mario continuasse a ser carteiro. Mario insiste e o poeta - com sensibilidade - responde num discurso acessível: “vá caminhando ao longo da baía e observe tudo”. Mário entende. Percebeu, a seu modo, que era necessário observar as coisas e as pessoas, a forma como vivem e como se relacionam; como trabalham e como se divertem; como amam e como se odeiam; como se ajudam e como se enfrentam etc. Ele entendeu que ser poeta é falar do mundo e para o mundo a partir do que ele nos sugere e do que nos sugere nossa relação com ele. Entendeu que daí viriam as inspirações ou sensações. 
d) Mario se apaixona por Beatrice. Afobado, procura o poeta para que este faça uma poesia para a moça. O poeta se recusa a fazer a poesia e argumenta: “um poeta precisa conhecer o objeto de sua inspiração; não posso criar algo do nada”. Mario não entende. Angustia-se por um momento mas acha logo uma solução. Retira do bolso da calça uma bolinha de pebolim e a apresenta ao poeta dizendo: “eu tenho essa bolinha que Beatrice colocou na boca; foi tocada por ela; isso pode ajudá-lo a conhecê-la”. Uma bola de pebolim, um objeto que esteve envolvido num momento real do qual Mario e Beatrice participaram; um objeto que continha, para Mario, algo mais que a forma circular; um objeto cheio de lembranças do momento do encontro: os olhares, a postura estática de Mario durante todo o tempo do contato com Beatrice; a imagem dos seios e dos olhos da moça; de seu sorriso e de sua forma provocante de ser. Imerso no plano das sensações, não era possível a Mario compreender que todo esse conteúdo era invisível aos olhos dos outros. Mario não podia entender o processo de criação do poeta. 
e) O poeta, sem comentar a atitude de Mario, insiste na recusa. Mario fica decepcionado. Poeta e poesia pareciam não lhe valer para resolver aquela necessidade imediata. Mario reage: “escute poeta, se está criando caso por causa de uma poesia, nunca vai ganhar o Prêmio Nobel”[31] - premio que, para Mario, significava dinheiro, algo que ele sabia ser útil, importante. 
f) Sozinho,em casa, Mario “escreve” sua primeira poesia. Desenha a forma circular da bolinha de pebolim numa folha. 
g) O poeta presenteia Mario com um bloco de papel com capa e propõe a ele dirigirem-se juntos até a estalagem em que a moça trabalhava para que pudesse conhecê-la. Mario aceita. Diante da moça, o poeta a observa por um curto tempo. Em seguida, autografa o mesmo bloco de papel aprovando a poesia de Mario[32], aquela que ele havia tão profundamente “escrito” em gestos, comportamentos e palavras no encontro anterior. Mergulhado na sensibilidade de Mario, o poeta participou como pôde daquela sua investida; não colocou sua maneira de fazer poesia como a verdadeira, como maneira única de expressar poeticamente o real e de dialogar com ele 
h) Mario conquistou a atenção da Beatrice após ter sido visto com o poeta. Conhecia seu meio e sabia dos benefícios que poderiam gerar o fato de ser reconhecido como amigo de alguma pessoa que, em seu meio, fosse considerada importante[33]. Mario sabia quais armas lhe eram necessárias naquela sua investida e conquistou seu objetivo. 
i) Mario compõe sua primeira metáfora, frase ou poesia com objetivo prático. Diz à Beatrice que “seu sorriso se abre como as asas de uma borboleta” e esta capta, por sensibilidade, o significado daquelas palavras. A poesia faz a moça sonhar[34]. Outra poesia vem, desta vez copiada de um dos livros do poeta, e fala de seios e de corpo[35]. A tia da moça descobre a poesia. Temerosa e confusa, soubera captar da sua maneira o significado daquelas palavras em sua síntese: a poesia dizia beleza e sensualidade. Tais qualidades ela própria identificava na sobrinha, pessoa cujo corpo conhecia nu[36]. Furiosa, dirige-se até a casa do poeta para que este transmita sua advertência a Mario à quem ordena que se afaste de Beatrice. A tia da moça protege-se contra a poesia que, por sensibilidade, entende que ameaça a normalidade da vida em seu meio[37]. 
j) Após o ocorrido, o poeta reclama com Mario por este ter-lhe usado a poesia. Mario responde dizendo que, “a poesia não pertence àqueles que a escrevem mas sim àqueles que precisam dela”. O poeta concorda. Para Mario a poesia estava servindo como todo e qualquer outro instrumento capaz de facilitar a satisfação de uma necessidade. 
l) Beatrice, envolvida e decidida, escapa ao cerco da tia e vai ao encontro de Mario. A bola de pebolim com ela. O objeto dialoga com os dois; medeia e simboliza sensações e intenções com a obviedade que Mario pensava ser transparente quando o mostrou ao poeta. Faltou a Mario, naquela ocasião, o poder de descrever minuciosamente todo o momento de seu primeiro contato com Beatrice no qual aquele objeto cumprira posição central. Faltou a Mario método para poder atingir a compreensão do outro. Se tivesse podido fazer isso, certamente tudo se lhe teria sido mais fácil. 
m) Mario é convidado pelo poeta para gravar mensagem a seus amigos chilenos. Sugestionado a descrever o que de mais belo havia em sua terra, Mario nada mais pode dizer que o nome de Beatrice. Posteriormente, em gravação que ele próprio preparava com o amigo dos correios para enviar ao poeta já regresso ao seu país de origem, Mario grava os sons que lhe traduzem seu lugar[38]. Os sons já existiam antes de Beatrice mas, por ocasião do convite à gravação, a necessidade imediata de Mario ordenou e hierarquizou a importância dos elementos de sua vida em sua mente. Naquela ocasião, Mario estava tomado pela necessidade de conquistar Beatrice. Depois de tê-la conquistado, a mente de Mario deu espaço a outras respostas para a sugestão que lhe fora feita de dizer o que havia de mais belo em sua terra. Mesmo assim, ainda uma vez, Mario responde gravando sons, uma forma de dizer mais exata e fiel do que ele conseguiria desenvolver em palavras. 
Unidade 3
Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/gestao-escolar/diretor/agir-autonomia-483505.shtml
Agir com autonomia
Muitos se queixam da "falta de liberdade" sem levar em consideração que a liberdade é sempre relativa
Ética na escola 
Terezinha Azerêdo Rios é graduada em Filosofia e doutora em Educação. 
Em encontros com diretores de escolas, supervisores e coordenadores pedagógicos, ouvem-se com muita frequência queixas como "a gente não tem autonomia!" e "os gestores não têm liberdade porque precisam dar satisfação de suas ações à Secretaria da Educação, à comunidade etc." Ora, autonomia e liberdade são palavras-chave do trabalho educativo. Na verdade, são também da ação humana. Como, então, encarar essas reclamações? Será que os educadores têm razão nas colocações? Ou não estão sabendo aproveitar a autonomia que têm? Vamos analisar juntos.
A liberdade é o aspecto que distingue os seres humanos dos outros animais. Enquanto estes estão submetidos a um determinismo, nós conseguimos interferir na natureza e criar a cultura e a história. Ser livre, no entanto, não significa não ter limites. Somos livres juntamente com os outros e, portanto, somos responsáveis - temos de responder por nossas ações e ter consciência de suas implicações. O exercício da liberdade se dá sempre em situações de convívio e de relacionamento. Por isso, ninguém é livre sozinho.
Há um caminho que vai da heteronomia - quando alguém obedece às regras impostas passivamente - à autonomia - em que os valores considerados significativos se internalizam ou, num exercício crítico, são criados outros. 
É importante destacar que autonomia não é independência. Ela é sempre relativa - e isso não quer dizer que seja pouca. Significa, sim, que se configura pela relação e pode ser ampliada quando descobrimos - ou inventamos - possibilidades de atuação que fortaleçam a afirmação da cidadania, de uma articulação estreita de direitos e deveres e de um trabalho efetivamente coletivo. 
Qual é o espaço que a escola tem para exercer sua autonomia? Vejo no projeto pedagógico a expressão mais privilegiada para essa prática. É em sua elaboração que se criam condições de contemplar as necessidades e os desejos do conjunto dos educadores envolvidos e da comunidade. Num processo participativo e de articulação orgânica com os outros, cada um realiza sua tarefa. 
É isso que faz com que esse projeto se configure como uma intervenção livre - e autônoma! - de todos, considerando as diretrizes existentes e fazendo um exercício de criação e de formação contínua, compromissado com o aprimoramento da qualidade da Educação. Cabe ao gestor, como articulador do projeto, empenhar-se no sentido de que a ação livre (o empreendimento autônomo) se dê num movimento de construção coletiva do bem comum, que é o objetivo principal do trabalho educativo. 
TEREZINHA AZERÊDO RIOS é professora do programa de pós-graduação em Educação da Universidade 9 de Julho.
Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/gestao-escolar/diretor/identidade-escola-autonomia-etica-valores-gestao-participativa-democratica-trabalho-equipe-escolar-515765.shtml
Identidade da escola
O perfil da instituição está em construção constante e em articulação com toda a sociedade
Terezinha Azerêdo Rios (novaescola@atleitor.com.br) 
Ética na escola 
Terezinha Azerêdo Rios é graduada em Filosofia e doutora em Educação. 
Há quase dez anos, participei de um simpósio em que se discutiu o tema "Identidade da escola frente ao terceiro milênio". Naquele cenário, pairava a pergunta: que transformações se dariam no contexto escolar? Durante a discussão, fiz referência a um livro do escritor uruguaio Eduardo Galeano que acabara de ser publicado, De Pernas Pro Ar - A Escola do Mundo ao Avesso (Editora L&PM), em que ele afirma: "Há 130 anos, depois de visitar o país das maravilhas, Alice entrou num espelho para descobrir o mundo ao avesso. Se Alice renascesse em nossos dias, não precisaria atravessar espelho algum: bastaria que chegasse à janela". Na escola do "mundo ao avesso", Galeano encontra "cátedras do medo", "aulas magistrais de impunidade" e uma "pedagogia da solidão". Isso levou à indagação: terá a escola perdido sua identidade, neste mundo ao avesso,de mudanças rápidas? Essa pergunta ecoa ainda hoje entre os educadores e desafia os gestores escolares. 
Quando falamos em identidade, nos referimos a características que especificam algo ou alguém. A identidade, no entanto, não é estática. Ao contrário, ela está em permanente elaboração, num contexto social de interação de indivíduos e grupos, implicando reconhecimento recíproco. 
E isso se dá com a escola. A identidade dela vai sendo arquitetada no meio de que ela faz parte, com todos os segmentos que a compõem, levando-se em conta necessidades, crenças e valores. É uma identidade que se afirma na articulação com as outras instituições sociais - a família, a comunidade, a Igreja, as associações, as empresas - e que se configura no cumprimento da tarefa de socializar de modo sistemático a cultura e de colaborar na construção da cidadania democrática. A maneira de cumprir essa missão muda - e isso significa que a escola leva em consideração as transformações da sociedade de que faz parte e as várias contradições que desafiam os educadores que nela trabalham, especialmente os gestores. 
O que se requer da escola é que, na mudança, permaneça nela um espaço para a criação de um mundo sem cátedras, sem privilégios e sem medo. E que, sobretudo, ela seja o lugar em que se realize uma pedagogia baseada na solidariedade. Para isso, é necessária uma atitude verdadeiramente crítica de seus gestores, um olhar profundo e abrangente, para ver o que deve permanecer e o que precisa ser modificado. Sem esquecer a coragem para realizar as transformações necessárias. As experiências bem sucedidas - e elas têm sido muitas! - mostram a possibilidade de empenho coletivo na construção da escola que queremos e à qual temos pleno direito.
Unidade 4
Fonte:http://www.cobra.pages.nom.br/fcp-comte.html
COMTE
Época, vida e obras de Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte - Parte I
	Página de Filosofia Contemporânea 
escrita por Rubem Queiroz Cobra
(Site original: www.cobra.pages.nom.br)
Parte I - Parte 2
	Vida. 
Comte, cujo nome completo era Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte, nasceu em 19 de janeiro de 1798, em Montpellier, e faleceu em 5 de setembro de 1857, em Paris. Filósofo e auto-proclamado líder religioso, deu à ciência da Sociologia esta denominação e estabeleceu a nova disciplina em uma forma sistemática.
Foi aluno da célebre École Polytechnique, uma escola em Paris fundada em 1794 onde se ensinava a ciência e o pensamento mais avançados da época. De família pobre, sustentou seus estudos com o ensino ocasional da matemática e oportunidades no jornalismo.
Um de seus primeiros empregos foi o de secretário do Conde Henri de Saint-Simon, o primeiro filósofo a ver claramente a importância da organização econômica na sociedade moderna, e cujas idéias Comte absorveu, sistematizou com um estilo pessoal e difundiu. 
Comte foi apresentado ao filósofo, então diretor do periódico Industrie, no verão de 1817. Saint-Simon, um homem de fértil, mas tumultuada e desordenada criatividade, então quase sessenta anos mais velho que Comte, foi atraído pelo jovem brilhante que possuiu a capacidade treinada e metódica para o trabalho que lhe faltava. Comte tornou-se seu secretário e colaborador próximo, na preparação de seus últimos trabalhos. Quando Saint-Simon experimentou problemas financeiros, Comte permaneceu sem pagamento, ao que parece por razões intelectuais e talvez também a esperança de recuperação pecuniária do patrão. 
Os esboços e os ensaios que Comte escreveu durante os anos da associação próxima com Saint-Simon, especialmente entre 1819 e 1824, mostram inequivocamente a influência do mestre. Esses primeiros trabalhos já contêm o núcleo de todas suas idéias principais, mesmo as mais tardias. 
Em 1824 Comte desentendeu-se com Saint-Simon por questões de autoria legítima de ensaios que Comte devia publicar. A solução, que Comte considerou injusta, foi que cem cópias do trabalho saíram sob o nome de Comte, enquanto mil cópias, intituladas Catechisme des industriels indicavam a autoria de Henri de Saint-Simon. Outra causa do rompimento foi, ironicamente, Comte desdenhar a idéia de um paradigma religioso no projeto de Saint Simon, ele, Comte, que depois haveria de adotar essa idéia de modo ainda mais radical, proclamando a si mesmo como sumo sacerdote da Humanidade.
Em fevereiro 1825 Comte se casou com Caroline Massin, proprietária de uma pequena livraria, uma moça que ele já conhecia a alguns anos. Comte a achava forte e inteligente, mas depois taxou-a de ambiciosa e desprovida de afetividade. O casamento foi sempre tumultuado por motivos financeiros, uma vez que Comte não conseguia uma posição com salário fixo e contava apenas com os rendimentos das aulas particulares e alguma renda adicional por colaborações a jornais, mais freqüentemente para o Producteur, um jornal fundado pelos filhos espirituais de Saint-Simon após a morte do mestre.
Depois de se afastar de Saint Simon, a principal preocupação de Comte tornou-se a elaboração de sua filosofia positiva. Não tendo nenhuma cadeira oficial da qual expor suas teorias, decidiu oferecer um curso particular que os interessados subscreveriam adiantado, e onde divulgaria sua Summa do conhecimento positivo. O curso abriu em abril, 1826, com a presença de alguns curiosos ilustres como Alexander von Humboldt, diversos membros da academia das ciências, o economista Charles Dunoyer, o duque Napoleon de Montebello, e Hippolyte Carnot, filho do organizador dos exércitos revolucionários e irmão do cientista Sadi Carnot, e vários estudantes da Ecole Polytechnique. 
Comte deu apenas três aulas e foi obrigado a interromper o curso devido a um colapso nervoso. Seu mal foi diagnosticado como "mania", no hospital do famoso Dr. Esquirol, o autor de um tratado sobre essa doença e um ex-aluno do não menos famoso Dr. Pinel, na Salpetrière. Ele próprio submeteu Comte a um tratamento com banhos de água fria e sangrias. Apesar de não receber alta, Comte foi levado para casa por Caroline
Em casa, Comte caiu em um estado melancólico profundo, e tentou mesmo o suicídio jogando-se no rio Sena. Somente em agosto 1828 logrou sair de sua letargia. O curso das conferências foi recomeçado em 1829, e Comte ficou satisfeito outra vez por encontrar na audiência diversos nomes de grandes das ciências e das letras. 
Durante os anos 1830-1842, quando escreveu sua obra prima, Cours de philosophie positive, Comte continuou a viver miseravelmente na margem do mundo acadêmico. Todas as tentativas de ser apontado para uma cadeira na Ecole Polytechnique ou para uma posição na Academia das Ciências ou na Faculdade da França foram infrutíferas. Conseguiu somente em 1832 ser apontado assistente de "analyse et de mecanique" na Ecole; cinco anos mais tarde obteve também a posição de examinador externo para a mesma escola. Com as duas posições recebia pouco mais de dois mil francos, o que era pouco para as despesas que tinha com a esposa, e obrigou-o a continuar com as aulas particulares para o sustento da casa. 
Durante os anos da concentração intensa quando escreveu o Cours, Comte foi incomodado não somente por dificuldades financeiras e as frustradas tentativas de emprego acadêmico. Também sofreu críticas do mundo científico por parte de importantes figuras que o ridicularizavam pela sua pretensão de submeter ao seu sistema todas as ciências. A mágoa agravou seu estado psicológico. Por razões "de higiene cerebral", decidiu-se, em 1838, a não ler mais uma linha de qualquer trabalho científico, limitando-se à leitura de ficção e poesia. Em seus últimos anos, o único livro que haveria de ler repetidamente seria o "Imitação de Cristo". Sua vida matrimonial, que sempre fora tempestuosa, também se desfez.. Comte teve várias separações de Caroline, que não suportava os seus fracassos e terminou por deixá-lo definitivamente em 1842.
Só e isolado, continuou a atacar os cientistas que se recusavam a reconhecê-lo. Queixou-se de seus inimigos aos ministros do Rei, escreveu cartas delirantesà imprensa e atormentou a paciência dos poucos amigos que lhe restavam. Criando um número grande de inimigos na Ecole Polytechnique, sua nomeação como examinador não foi renovada em 1844. Perdeu com isto a metade de sua renda. Iria perder também a posição de assistente na Ecole em 1851. 
Contudo apesar de todas estas adversidades, Comte começou lentamente a adquirir discípulos. E mais importante para ele foi que, além de encontrar alguns discípulos franceses notáveis tais como o eminente intelectual Emile Littré, também a sua doutrina positiva havia atravessado o Canal e recebera considerável atenção na Inglaterra. David Brewster, um físico eminente, saudou-o nas páginas do Edinburgh Review em 1838 e, o mais gratificante de tudo, John Stuart Mill transformou-se em seu admirador, citando-o em seu System of Logic (1843) como um dos principais pensadores europeus. Comte e Mill se corresponderam regularmente, e esse intercâmbio serviu a Comte não somente para refinar seus pensamentos como também para desabafar com o filósofo inglês as tribulações de sua vida conjugal e as dificuldades de sua existência material. Mill arrecadou entre admiradores britânicos de Comte uma soma considerável em dinheiro e lhe enviou como socorro para suas dificuldades financeiras.
No mesmo ano de 1844, Comte conheceu Clotilde de Vaux, por quem se apaixonou. Ela era uma mulher de trinta anos abandonada pelo marido, um funcionário público do baixo escalão, que havia fugido do país depois de se apropriar de fundos do governo. Um irmão de Clotilde que havia sido aluno de Comte na Escola Politécnica, e o convidou a ir à casa de seus pais, onde lhe apresentou a irmã. Comte ficou inteiramente seduzido por ela. Sua paixão tem, porém, um desdobramento inusitado. Clotilde está impedida pela lei de casar-se achando-se o seu marido foragido. 
Auguste Comte tinha então quarenta e sete anos, e havia se separado três anos antes de sua mulher. Acabara de concluir seu monumental Cours de philosophie positive, e se preparava para escrever o que pretendia que seria sua principal obra, o Système de politique positive, do qual ele considerava o Cours de philosophie como apenas uma introdução. Entusiasmado com a própria paixão, Comte afirma que nada pode ser mais eficaz para o bem pensar que o bem querer. Afirma que a mulher encarna o sentimento e portanto, em última análise, a própria Humanidade, e se torna um abrasado feminista. Busca seriamente associar o sexo feminino, na pessoa de Clotilde, à obra de renovação social e moral que se impôs completar. Clotilde tenta colaborar, através de um romance filosófico, Wilhelmine, que ela se põe diligentemente a escrever. Mas adoece de tuberculose e vem a falecer em 1846. 
Comte irá devotar o resto de sua vida à memória do "seu anjo". O Système de politique positive, que tinha começado a esboçar em 1844 e no qual completou sua formulação da sociologia., iria transformar-se em um memorial a sua amada. Cinco anos mais tarde, em 1851, ao publicar essa obra, dedicou-a a Clotilde, dizendo esperar que a humanidade, reconhecida, haveria de lembrar sempre seu nome junto ao dela.
No Système de politique positive, Comte, voltando-se contra a doutrina do mestre Saint-Simon, defendeu a primazia da emoção sobre o intelecto, do sentimento sobre a racionalidade; e proclamou repetidamente o poder curativo do calor feminino para a humanidade dominada por tempo demasiado pela aspereza do intelecto masculino. Por outro lado, distorceu a proposta de disciplina eclesiástica de Saint-Simon e criou a "Religião da Humanidade".
Quando o Système apareceu entre 1851 e 1854, Comte escandalizou e perdeu a maioria dos seguidores racionalistas que ele havia conquistado com tanta dificuldade nos últimos quinze anos. John Stuart Mill e Emile Littre não aceitaram que o amor universal fosse a solução para todas as dificuldades da época. Tão pouco aceitariam a "Religião da Humanidade" da qual Comte se proclamou o sumo sacerdote. A observação dos rituais múltiplos segundo o calendário anual, os detalhes da elaborada liturgia indicavam que o antigo profeta do estágio positivo havia regressado às trevas do estágio teológico. Comte passou a assinar suas circulares - aos novos discípulos que conseguiu reunir - como "fundador da religião universal e sumo sacerdote da humanidade". Tentou converter o Superior Geral dos Jesuítas à nova fé e comparou suas circulares aos discípulos com as epístolas de São Paulo. Fundou a Societé Positiviste, que se transformou no centro principal de seu ensino. Os membros se cotizaram para assegurar a subsistência do mestre e fizeram os votos de espalhar sua mensagem. As missões se instalaram, na Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, e na Holanda. 
Cada noite, das sete às nove, exceto nas quartas-feiras quando a Societé Positiviste tinha sua reunião regular, Comte recebia seus discípulos em sua casa em Paris: políticos, intelectuais e operários, que lhe votavam grande respeito e veneração. Comte estava longe do entusiasmo republicano e libertário de sua juventude. O moto da Igreja Positiva era "amor, ordem e progresso". O jovem estudante de passeata agora pregava as virtudes do amor, da submissão e a necessidade da ordem para o progresso social.
Em 1857, Comte, após alguns meses de enfermidade, faleceu a cinco de setembro. Um grupo pequeno de discípulos, de amigos, e de vizinhos seguiu seu esquife ao cemitério de Pere Lachaise. Seu túmulo transformou-se no centro de um pequeno cemitério positivista onde estão sepultados, perto do mestre, seus discípulos mais fiéis. 
Rubem Queiroz Cobra            
Doutor em Geologia e bacharel em Filosofia
Fonte: http://www.cobra.pages.nom.br/fmp-saint-simon.html
SAINT-SIMON
Vida, pensamento e obra de Saint-Simon
	Página de Filosofia Moderna 
escrita por Rubem Queiroz Cobra
(Site original:cobra.pages.nom.br)
 
	Claude-Henri De Rouvroy, Conde de Saint-Simon (nascido a 17 de outubro de 1760 e falecido a 19 de maio 1825, em Paris), teórico social francês e um dos fundadores do chamado "socialismo cristão". Em seu trabalho principal, Nouveau Christianisme, proclamou uma fraternidade do homem que deve acompanhar a organização científica da indústria e da sociedade. A palavra "socialismo", no entanto, somente foi usada primeiramente por volta de 1830, na Inglaterra, para descrever sua doutrina e de outros que o antecederam como Thomas More (1516; "Utopia") e Campanella (1623; "Cidade do sol") e inclusive Platão ("A república"). 
Vida. Saint-Simon pertenceu a uma família aristocrática empobrecida, porém já conhecida na literatura através de um primo do seu avô, duque de Saint-Simon, que havia escrito suas memórias da corte de Luís que XIV. A família descendia de Carlos Magno, segundo afirmava o próprio Claude-Henri. 
Como acontecia a muitos dos jovens aristocratas da época, após uma instrução irregular por tutores particulares, Saint-Simon, aos 17 anos, entrou para o serviço militar. Estava nos regimentos enviados pela França para ajudar às colônias americanas na guerra da independência contra a Inglaterra e serviu como um capitão da artilharia em Yorktown em 1781. 
Durante a Revolução Francesa (1789), permaneceu na França. Valendo-se então, de recursos emprestados por um amigo, comprou por baixo preço terras recentemente nacionalizadas pelo governo revolucionário. Esteve preso no Palais de Luxembourg mas, tendo sobrevivido ao Reinado do Terror, achou-se enormemente rico com a grande valorização de seus bens. Passou a viver uma vida de esplendor e prazeres, recebendo pessoas proeminentes de todas as áreas de atividade, em seus luxuosos salões. Os gastos desordenados o levaram, dentro de alguns anos, à beira da falência. Voltou-se para o estudo da ciência, freqüentando cursos na École Polytechnique e recebendo distinguidos cientistas. 
Saint-Simon vive o início de um clima intelectual que vai predominar por toda a primeira metade do século XIX e para o qual ele próprio contribui de modo importante. É um movimento de renovação do interesse na religião, comexemplos de religiosidade sentimental como é o caso do visconde de Chateaubriand (1768-1848) autor e diplomata, um dos primeiros escritores do romantismo francês, ou de retorno à teologia tradicionalista, como fazem Louis-Gabriel-Ambroise, visconde de Bonald (1754-1840) estadista e filósofo político, e o polêmico moralista, diplomata e pensador católico Joseph de Maistre (1753-1821), ambos apologistas do Legitimismo contrário aos princípios da Revolução francesa e a favor da monarquia e da autoridade eclesiástica.
Saint-Simon, continuado depois por seus seguidores, tentou desenvolver uma síntese entre o pensamento científico socialista, particularmente a análise da economia, e as crenças cristãs. Em seu primeiro trabalho publicado, Lettres d'un habitant de Genève à ses contemporains (1803) ("Cartas de um habitante de Genebra a seus contemporâneos"), Saint-Simon propôs que os cientistas tomassem o lugar dos padres na ordem social. Argumentou que os proprietários de terras que tivessem o poder político poderiam esperar se manterem de encontro aos não-proprietários somente subsidiando o avanço do conhecimento. 
Por volta de 1808 Saint-Simon estava pobre, e os últimos 17 anos de sua vida foram vividos principalmente da generosidade dos amigos. Entre suas muitas publicações mais tardias estava De la réorganisation de la société européenne (1814); e o L'industrie (1816-18), escrito em colaboração com Auguste Comte. 
Em 1823, em um acesso de desespero Saint-Simon tentou matar-se com uma pistola mas conseguiu somente perder um dos olhos. 
Teses. Considerado um notável socialista utópico, durante toda sua vida Saint-Simon devotou-se a uma série longa de projetos e publicações com que procurou ganhar apoio para suas idéias sociais. Como um pensador, se diz que faltava a Saint-Simon sistema, clareza e coerência, mas sua influência no pensamento contemporâneo, especialmente nas ciências sociais, é reconhecida como fundamental. Aparte os detalhes de seu ensinamento socialista, suas idéias principais são simples e representaram uma reação contrária ao derramamento de sangue da revolução francesa e do militarismo de Napoleão. Propôs também que os estados da Europa formassem uma associação para suprimir a guerra. Haveria uma Europa unida, com um parlamento europeu e um desenvolvimento comum da indústria e da comunicação. Previu corretamente o industrialização do mundo, e acreditou que a ciência e a tecnologia resolveriam a maioria dos problemas da humanidade.
A contribuição grande de Saint-Simon ao pensamento socialista foi sua insistência no dever do Estado de planejar e organizar o uso dos meios de produção de modo a se manter continuamente a par das descobertas científicas, e a sua insistência na função de governo dos peritos industriais e administrativos, e não dos políticos e dos meros "homens de negócio". Conforme à sua oposição ao feudalismo e ao militarismo, Saint-Simon advogou um esquema segundo o qual os homens de negócios e outros líderes industriais controlariam a sociedade; propunha uma ditadura benevolente dos industriais e dos cientistas para eliminar as iniqüidades do sistema liberal inteiramente livre. A direção espiritual da sociedade estaria nas mãos dos cientistas e engenheiros, os quais assim tomariam o lugar ocupado pela Igreja Católica Romana na idade média européia. 
O que Saint-Simon desejava, em outras palavras, era um estado industrializado dirigido pela ciência moderna, no qual a sociedade seria organizada para o trabalho produtivo pelos homens mais capazes. O alvo da sociedade seria produzir as coisas úteis à vida. Suas obras revolveram em torno da idéia de que sua época sofria de um individualismo doentio e selvagem resultante de uma quebra da ordem e da hierarquia. Mas afirmava que a época continha também as sementes de sua própria salvação, que deviam ser buscadas no nível de crescimento da ciência e da tecnologia e na colaboração dos industriais e dos técnicos que tinham começado já a construir uma ordem industrial nova. A união do conhecimento científico e tecnológico à industrialização inauguraria o governo dos peritos. A nova sociedade não poderia nunca ser igualitária, Saint-Simon sustentava, porque os homens não foram dotados igualmente pela natureza. Saint-Simon não era um "igualitário" estrito, um sentido em que parte de seus seguidores haveria de radicalizar suas idéias.
Contudo faz no seu projeto o uso máximo de habilidades potenciais, assegurando que todos teriam igual oportunidade de alcançar uma posição social proporcional com seus talentos. Erradicando as fontes da desordem pública, faria possível a eliminação virtual do estado como uma instituição coerciva. A sociedade futura funcionaria como uma oficina gigantesca, em que o governo sobre homens seria substituído pela administração das coisas.
Saint-Simon quis reorientar a Revolução Industrial para melhorar as condições da classe mais pobre. De acordo com seu projeto, isto seria conseguido não com uma revolução política, mas com um governo de banqueiros e de administradores técnicos, que substituiriam reis, aristocratas, e políticos. Ironizou dizendo que, se a França fosse privada de repente de três mil cientistas, coordenadores, banqueiros, pintores, poetas, e escritores principais, o resultado seria catastrófico; mas se todos os cortesãos e bispos e 10.000 latifundiários desaparecessem, a perda, embora deplorável, seria muito menos severa. 
Apesar de que o contraste entre as classes trabalhadora e proprietária não é enfatizado por Saint-Simon, a causa dos pobres é discutida e no seu trabalho mais conhecido, Nouveau Christianisme (1825), e assume o caráter de uma religião. Antes da publicação dessa obra, Saint-Simon não havia se preocupado com teologia, mas neste trabalho, começando com uma crença em Deus, ele tenta desdobrar o Cristianismo em seus elementos essenciais. Nele propõe o preceito de que a religião "deveria guiar a comunidade no sentido do grande propósito de melhorar tão rapidamente quanto possível as condições da classe mais pobre".
Este preceito transformou-se na palavra de ordem da escola de Saint-Simon. 
Associação com Comte. As idéias de Saint-Simon tiveram uma influência profunda sobre o matemático e filósofo Auguste Comte, que trabalhou com ele até que os dois homens, mais tarde, se desentenderam. Os dois colaboraram na publicação em 1822 do "Plano das Operações Científicas Necessárias para a Reorganização da Sociedade", que argumentava, entre outras coisas, que a política se transformaria em física social e que a finalidade da física social era descobrir leis imutáveis de progresso. A partir dessa colaboração emergiu a "lei dos três estágios" através de que o conhecimento tinha que passar -- o teológico, o metafísico, e o positivo -- que Comte viria a estabelecer como o tema da ciência da física social, um estudo que ele veio a chamar Sociologia.
No futuro o discípulo daria nova roupagem à doutrina do mestre, sistematizando-a e prosseguindo mais além. Em seu "Curso de Filosofia Positiva (1830-42) e Sistema Positivo" (1851-54) Comte haveria de elaborar uma "religião da humanidade," com ritual, calendário, e um sacerdócio de cientistas, e santos seculares, incluindo Julius Caesar, Dante, e Joana d'Arc, e uma deusa, Clotilde Devaux. A Sociedade seria governada por banqueiros e tecnocratas e a Europa unida em uma República Ocidental. Esta doutrina, amparada por uma sociologia pioneira, viria a alcançar muita influência entre os intelectuais. Fundamentalmente eram as mesmas questões que Saint-Simon tentara responder: como desdobrar a potência da tecnologia moderna para o benefício de toda a humanidade; como evitar guerras entre estados soberanos; e como encher o vácuo deixado pelo arrefecimento das crenças cristãs.
Influência de seu pensamento. As origens da ciência política contemporânea acham-se no entusiasmo para a criação da ciência social, muito difundido no início do século XIX, um entusiasmo estimulado pelo crescimento rápido das ciências naturais. Portanto, pode-se dizer sem receiode erro que o marco inicial para o desenvolvimento da ciência política moderna está no trabalho de Saint-Simon, onde este sugere que a moral e a política poderiam se transformar em ciências " positivas "; isto é, disciplinas cuja autoridade para comandar o pensamento político viria não de pressupostos subjetivos mas da evidência objetiva. 
Saint-Simon morreu em 1825, e, nos anos subseqüentes, seus discípulos levaram sua mensagem ao mundo e fizeram-no famoso. Por volta de 1826 um movimento apoiando suas idéias tinha começado a crescer, e para o fim de 1828 os Saint-Simonianos realizavam reuniões em Paris e em muitas cidades provinciais. 
Os seguidores de Saint-Simon voltaram a doutrina do fundador em um sentido mais definitivamente socialista. Passaram a ver a propriedade privada como incompatível com o sistema industrial novo. A transmissão hereditária do poder e da propriedade, sustentavam, era inimiga do ordenamento racional da sociedade. A tentativa um tanto bizarra dos seguidores de Saint-Simon de criar uma igreja Saint-Simoniana não deve obscurecer o fato que eles estavam entre os primeiros a proclamar que a propriedade burguês-capitalista não era mais sacrossanta. 
Em julho 1830 uma revolução trouxe oportunidades novas aos Saint-Simonianos em França. Emitiram um proclamação que exigia a posse dos bens em comum, a abolição do direito de herança, e a emancipação da mulher. A seita incluiu alguns dos jovens mais capazes e mais promissores da França. Nos anos seguintes, entretanto, os líderes do movimento discutiram entre se, e em conseqüência o movimento fragmentou e quebrou, seus líderes voltando se para questões práticas. 
As idéias dos Saint-Simonianos tiveram influência para além da França, na vida intelectual do século XIX em toda a Europa. 
Thomas Carlyle na Inglaterra estava entre aqueles influenciados pelas idéias de Saint-Simon ou de seus seguidores. Friedrich Engels encontrou em Saint-Simon "a largura de vista de um gênio" contendo no embrião a maior parte das idéias dos socialistas que viriam depois. As propostas de Saint-Simon do planejamento social e econômico estavam na verdade à frente de seu tempo, e os marxistas, os socialistas, e os reformadores do capitalismo que o sucederam ficaram de um modo ou de outro igualmente devedores a suas idéias. Felix Markham disse que as idéias de Saint-Simon têm uma relevância peculiar ao século XX, quando as ideologias socialistas tomaram o lugar da religião tradicional em muitos países. 
Rubem Queiroz Cobra            
Doutor em Geologia e bacharel em Filosofia
Fonte:http://www.faeso.edu.br/horus/artigos%20anteriores/2003/superti.htm
O POSITIVISMO DE AUGUSTO COMTE E SEU PROJETO POLÍTICO[1]
Prof. Ms.Eliane Superti[2].
Resumo
Este artigo analisa a construção teórica de Augusto Comte buscando o entendimento de sua compreensão sobre a sociedade moderna e as premissas sobre as quais essa interpretação se fundamenta. A análise se volta também para o projeto político de reorganização do Estado e da sociedade através da construção de uma nova moralidade elaborada pelo autor tomando por base a filosofia positiva.
Palavras – Chaves: Filosofia positiva; sociedade moderna; reforma moral.
1. A Interpretação Comtiana da Crise Social
Augusto Comte, como a maior parte dos teóricos sociais que procuraram interpretar a sociedade moderna, tomou como ponto de partida de suas reflexões a realidade histórica de sua época. Nessa, ele percebia uma situação de crise emergente, resultado do confronto entre duas formas de organização social. Uma que lentamente desaparecia e baseava-se em ordenações feudais de fundo teológico e militar. A outra, nascente, era marcada pelo advento da indústria e da ciência (COMTE, 1983a).
A existência concomitante e o conseqüente confronto entre essas duas formas organizativas provocavam a desagregação moral e intelectual da sociedade do século XIX. Tal desagregação era, para Comte, a fonte da qual jorrava a crise que envolvia seu tempo. Pois, segundo ele, a base fundamental sobre a qual se assentava a sociabilidade humana e, portanto, a unidade social, era formada por um conjunto de princípios fundamentais admitido em consenso pelos diferentes membros da coletividade, que a partir dele formavam uma maneira de pensar, de construir as representações do mundo social e suas crenças. Assim sendo, só existia sociedade na medida em que seus membros partilhavam de um corpo de pensamento e sentimentos coerentemente construído e que refletia a etapa de desenvolvimento da humanidade.
Na interpretação comtiana, era esse conjunto consensual, fundamental para a sociedade, que estava se desagregando frente ao movimento conflituoso de desaparecimento e nascimento de uma nova ordem social. Esse era o cerne da crise que precisava ser superada através da constituição de uma nova unidade de pensamento capaz de recompor a ordem, acelerando sua marcha natural no sentido da modernização industrial e científica.
De acordo com nosso autor, não eram as instituições, as relações materiais e estrutura hierárquica que constituíam o núcleo da sociedade humana, mas sim o conjunto de idéias, representações e crenças que formavam a maneira de pensar unanimemente partilhada por todos no grupo, ou seja, que engendrava o consenso, unindo os homens em uma dada ordem. E por ser assim, tanto a superação da crise como a reorganização da sociedade não podiam ocorrer com a limitação das ações sobre as instituições, era preciso uma reforma intelectual que atingisse o modo de pensar, de representar a vida social (COMTE, 1983b). 
Sendo este modo de pensar construído a partir do conhecimento existente sobre o mundo, Comte separava, em um primeiro momento, a teoria da prática, pois entendia que a reforma necessária para sanar os males sociais da crise e diminuir os custos do desenvolvimento devia começar pela teoria capaz de estabelecer a unidade consensual da nova ordem, para que depois essa pudesse instruir a prática. E, portanto, para Augusto Comte, não se tratava apenas de compreender a sociedade, mas de fazê-lo interferindo diretamente na ordem social para seu melhor desenvolvimento.    
 2. A Construção da Sociologia e a Formação do Novo Consenso.
Voltando-se para as disciplinas científicas, nosso autor percebia que estas haviam sucessivamente passado por três estágios de desenvolvimento, assim como a própria sociedade das quais elas constituíam o corpo de pensamento. O teológico, no qual as explicações sobre os fenômenos eram dadas com base nas vontades arbitrárias de divindades, o metafísico, que compreendia a realidade por meio de entidades abstratas, ambos procurando apreender as causas primeiras e finais e ainda a essência dos fenômenos. E por último, o estado positivo, no qual a observação dos fenômenos era submetida às leis invariáveis e gerais da natureza.
Este último estágio correspondia à organização científica da sociedade nascente. Era, portanto, somente nesse estado que as ciências poderiam compor os princípios fundamentais de tal ordem. Contudo, as disciplinas não o alcançaram todas ao mesmo tempo, elas foram se tornando positivas gradualmente, seguindo a ordem de hierarquização natural dos fenômenos de acordo com o grau de generalidade, simplicidade e independência decrescentes. Segundo esta ordem, os fenômenos naturais se classificavam em: Matemáticos; Astronômicos; Físicos; Químicos; Biológicos; e finalmente Sociais[3].
A marca distintiva da positividade desses saberes, que os diferenciava de seu passado teológico-metafísico, estava contida no método de investigação que submetia todos os fenômenos por eles observados à atuação constante de leis naturais, mas esse método não lhes era imposto; pelo contrário, era fruto do desenvolvimento das próprias ciências.
O caráter fundamental da filosofia é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente inacessível e vazia desentido para nós a investigação das chamadas causas, sejam as primeiras sejam as finais (COMTE, 1983b, p.7).
Dessa forma entendia-se um saber como fazendo parte do estado positivo quando seu método de investigação e construção das hipóteses subordinava os fatos observáveis a leis, sendo estas as relações invariáveis entre a circunstância de produção dos fenômenos naturais.
Ao se tornar positiva, cada ciência servia de base teórica à subseqüente na classificação, em razão da dependência que os fenômenos trazem entre si. Apenas o domínio dos fatos sociais resistia ainda a esse tipo de apreciação, impedindo que o método positivista coordenasse universalmente todos os domínios teóricos do saber humano.
Tratava-se então, para Comte, de fundar a ciência dos fatos sociais, ou como ele próprio denominou, a física social, bastando para tanto reter as máximas fundamentais do método positivo, através do qual os fenômenos sociais observáveis seriam submetidos às leis naturais que regem a sociabilidade humana, reconhecendo-as dessa forma, uma vez que, “há leis tão determinadas para o desenvolvimento da espécie humana como para a queda de uma pedra” (COMTE apud MORAES FILHO, 1989, p.12).
Tendo-se reconhecido as condições invariáveis próprias da sociedade, a reforma social se viabilizaria, pois isso significaria o descobrimento da ordem essencial do desenvolvimento humano.
Além disso, a fundação da física social permitia à ciência como um todo se constituir sob uma unidade metodológica que homogeneizava, nesse aspecto, todas as disciplinas, dotando-as de unidade lógica e realizando o caráter universal do espírito positivo sobre a ciência que, com isto, ganhava ascensão definitiva sobre a unidade metódica teológico-metafísica. 
No entanto, embora a unidade lógica implicasse a obediência a um mesmo método orientador das investigações, ela não desconsiderava a diversidade das disciplinas, reconhecendo a especificidade dos objetos de pesquisa e sendo mesmo composta pela variedade de estratégias cognitivas. Isto quer dizer que a fundação da física social não significou apenas uma extensão do método positivo a um novo ramo do saber. Antes da física social, o método estava incompleto, pois lhe faltava adquirir o último de seus recursos procedimentais, a comparação histórica, recurso próprio da análise da sociedade humana. Dessa forma, com a física social, o espírito positivo alcançava sua maturidade, podendo agora, com referência a sua unidade, oferecer os princípios fundamentais para a formação do espírito da nova ordem.
Como acreditava Comte, cada fase de desenvolvimento social era caracterizada e comandada por uma maneira de pensar que dava unidade ao conjunto. Quando essa unidade do espírito era rompida, convivendo no conjunto social modos de pensar contraditórios, ela se tornava caótica, entrando em crises que a levavam a se movimentar no sentido de seu devir inevitável (COMTE, 1972), pois, para o nosso autor, a história tinha um sentido a seguir, determinado por leis naturais e proveniente da natureza humana. 
Segundo a análise comtiana, a fisiologia cerebral do homem revelava que este possuía uma natureza de irresistível tendência social. Sendo assim, a história do homem seria a história do desenvolvimento, do progresso, da natureza humana. E, portanto, o homem era um ser histórico na medida em que era na história que ele realizava sua natureza invariável.
A história não alterava a natureza humana, uma vez que esta última não era criada e recriada continuamente em relação consigo mesma, com a natureza e com as condições sociais de existência, mas tinha inclinações essenciais que estavam presentes desde a origem. E, para o seu completo desenvolvimento, a sociedade humana precisaria passar por três fases, pois é preciso tempo para que o homem aprenda a utilizar plenamente sua inteligência como guia de suas ações.  Essas três fases seriam aquelas pelas quais teriam passado as disciplinas, uma vez que estas formavam os princípios essenciais de suas correspondentes unidades consensuais. Esta seria a primeira lei da sociedade humana reconhecida pela física social, a lei dos três estados (COMTE, 1983b).
De acordo com essa lei o primeiro estado da sociedade humana foi o teológico, no qual as explicações sobre o mundo eram fundadas na vontade de uma pluralidade de divindades, num primeiro momento, e depois, com seu amadurecimento, na de um só Deus. Pois, não tendo como basear suas explicações na razão, o espírito teológico alicerçavam-nas na fé irracional. Tais explicações advinham da Igreja e de seus sacerdotes, formando um poder espiritual que correspondia intelectualmente à ordem feudal e militar, base do poder temporal dos senhores da guerra que aí ocupavam as primeiras posições sociais e políticas. O espírito teológico oferecia, assim, tanto às investigações humanas quanto à organização social uma primeira idéia de Ordem, de Sistema de concepções que correspondia, explicava e justificava a ordenação do mundo social. 
Com o progresso da natureza humana, os homens começaram a lançar dúvidas sobre esse sistema, compreendendo novas formas de interpretação e, portanto, de organização, que acabaram por dar vida aos germes de destruição contidos dentro da Ordem. Pois, o novo, que é o devir histórico determinado por leis naturais, estava inscrito no velho e se realizava com o desenvolvimento da sociedade humana. Era a dúvida que provocava o desmonte do antigo poder espiritual, questionando seus dogmas essenciais e estabelecendo a crise na sociedade. 
O dogmatismo é o estado normal da inteligência humana, aquele para o qual tende, por sua natureza, continuamente e em todos os gêneros, mesmo quando mais parece afastar-se dele. O ceticismo nada mais é do que um estado de crise, resultado inevitável do interregno intelectual que sobrevém, necessariamente, todas as vezes que o espírito humano é chamado a mudar de doutrinas, ao mesmo tempo em que é o indispensável empregado, quer pelo indivíduo, quer pela espécie para permitir a transição de um dogmatismo para outro, o que constitui a única utilidade fundamental da dúvida. (COMTE apud MORES FILHO, 1989, p.15).
Esse novo espírito, portador do Progresso da natureza humana nesse estágio de seu desenvolvimento, era o metafísico, segundo estado de desenvolvimento. Nele, os dogmas da fé eram questionados e, sendo estes o fundamento da ordem teológica, toda ela é posta em questão, dissolvendo-se a organicidade de seu saber. No entanto, por ser necessariamente constituído pela negação da Ordem, o espírito metafísico não consegue uma outra sistematização, servindo apenas de transição para o estado positivo.
Embora o estado teológico tenha sido capaz de oferecer aos homens uma primeira idéia de Ordem social, ele, por sua própria natureza de saber irracional, não conseguiu sobreviver ao Progresso do espírito humano em direção à razão, desagregando-se frente aos assaltos do pensamento crítico-metafísico. Todavia, este último, limitado à instância crítica do progresso, gerou na sociedade uma crise de transição, somente superável pela conciliação entre a Ordem e o Progresso. Segundo Giacóia, “Ordem e Progresso caracteriza de modo exclusivo, um face ao outro, o método teológico e o metafísico” (GIACÓIA JR., 1983, p.23).
A conciliação destas duas idéias, Ordem e Progresso, só era possível no último estado da sociedade, aquele para o qual tendia naturalmente o espírito humano, o positivismo. Este se afirmou plenamente quando seu método, depois de fundada a física social, passou a coordenar universalmente todas as ciências, dando-lhes uma unidade lógica fundamental para a explicação racional dos fenômenos naturais como resultado de um conjunto estável e solidário de relações entre circunstâncias de produção, ou seja, de leis invariáveis, que uma vez reconhecidas deveriam ser aceitas como dogmas. Nesse momento, o espírito positivo podia oferecer os princípios essenciais para a constituição da unidade consensual de uma nova Ordem, agora assentada na razão. Ordem essa que era capazde engendrar o próprio Progresso, na medida em que esse é fruto do desenvolvimento da natureza humana, que se determina por leis que, só no estado positivo, são passíveis de compreensão. E, portanto, só no positivismo a história era compreendida em sua verdadeira base, ou seja, como a história determinada pelas leis invariáveis do desenvolvimento intelectual e material da humanidade.
Assim, nas palavras de Giacóia;
(...) combinando adequadamente observação e raciocínio, o espírito positivo substitui a imaginação pela observação racional e pode empreender uma descrição da ordem como passível de contínuo progresso e do progresso se processando a partir da ordem. A ordem em progresso, ou o progresso da ordem, parte de uma primitiva fundamentação teológica para atingir uma fundamentação positiva, passando por um interregno de agitação metafísica (GIACÓIA JR., 1983, p.25).
O sentido do devir social, a direção de seu caminho era o de levar o pensamento humano à coerência racional à qual ele estava destinado. E essa coerência só pode ser realizada no positivismo, que renuncia a qualquer explicação das causas dos fenômenos, limitando-se a estabelecer as leis invariáveis que os determinam.
Com o espírito positivo, a humanidade completava a realização de sua natureza visualizando a possibilidade de liberdade do homem. Tal liberdade era, contudo, limitada à história, pois sendo esta última inevitável e determinada, os homens eram incapazes de interferir no rumo dos acontecimentos, consistindo sua liberdade na compreensão e no emprego das leis naturais a seu serviço. Em outras palavras, os homens não podiam criar ou alterar as leis naturais, mas podiam interferir, determinado-lhes a intensidade. 
De acordo com Comte;
(...) as alterações da ordem natural sempre se limitam, (...), à intensidade dos fenômenos, sem atingirem nunca as suas leis, isto é, o arranjo segundo o qual eles se nos apresentam. Trata-se, assim, de observar a ordem natural a fim de convenientemente aperfeiçoá-la, e, de nenhum modo, criá-la, o que seria impossível (COMTE, 1983a, p. 68).
Mas, isso só podia acontecer com a fundação da física social, que se propunha ao estudo das leis que regem a sociedade. Assim, também nesse aspecto o estado positivo do desenvolvimento humano só ganhava plena maturidade com a sociologia.
Esta ciência, para compreender toda a história da humanidade – que era entendida como una, vista como o desenvolvimento da mesma natureza humana –, se subdividia em estática e dinâmica. A estática tomava por objeto a ordem social. Ela analisava as condições existenciais, o todo estrutural da sociedade e seus laços de solidariedade, pois só era possível compreender os elementos sociais considerando o conjunto do qual eram partes constituintes. Contudo, a noção central, sobre a qual se detinha à estática, era a do consenso que tornava a pluralidade de indivíduos e instituições uma unidade social. E, dessa forma, ela apreendia os princípios formativos de toda sociedade. Com a dinâmica, o estudo se voltava para o progresso evolutivo da sociedade, procurando determinar as leis deste e seu percurso sucessivo e inalterável.
Em concordância com Raymond Aron, “A estática social trouxe à luz a ordem essencial de toda sociedade humana; a dinâmica social retraça as vicissitudes pelas quais passou essa ordem fundamental, antes de alcançar o termo final do positivismo” (ARON, 1993, p.95).
Uma vez tendo alcançado sua maturidade, oferecendo a ordem industrial-científica os princípios fundamentais de sua unidade consensual e determinado as leis do desenvolvimento social, o positivismo tornar-se-ia o poder espiritual da sociedade moderna. Este tinha, agora, por função, governar e manter os princípios que deviam presidir as diferentes relações sociais. Além disso, a ordem espiritual regulava e transfigurava a hierarquia temporal do poder e da riqueza, devendo ser exercido pelos filósofos e cientistas, substituindo os sacerdotes que o detinham no estado teológico (COMTE, 1972).
Com o desdobramento da teoria comtiana, esse poder espiritual foi remetido à religião positivista, que o representaria de fato, transformando-se na base da ordem social. 
Segundo Raymond Aron, para Comte.
(...) o homem tem necessidade de religião porque precisa amar algo que seja maior que ele. As sociedades têm necessidade da religião porque precisam de um poder espiritual, que consagre e modere o poder temporal e lembre aos homens que a hierarquia das capacidades não é nada ao lado da hierarquia dos méritos. Só uma religião pode pôr no seu verdadeiro lugar a hierarquia técnica das capacidades e lhe sobrepor uma hierarquia, eventualmente contrária, a hierarquia dos méritos (ARON, 1993, p.110-111).
3. A Organização Positiva da Ordem Social: O Projeto Político Positivista.
A formação da nova unidade consensual através da ciência positiva que permitia aos filósofos e cientistas exercer o poder espiritual sobre a sociedade conduziria a superação da crise e a organização definitiva do estado positivo. Neste estado, o poder temporal, equivalente material da ordem espiritual positivista, seria exercido pelos industriais. Porque, para Comte, era natural que os ricos detivessem a autoridade econômica e social indispensável para o conjunto da coletividade, uma vez que constituíam o topo na hierarquia das capacidades. 
Entretanto, a propriedade privada, fonte da qual lhes advinha sua autoridade temporal, devia ter uma função social. Segundo a perspectiva comtiana, a propriedade, que tinha raízes na constituição biológica do homem, era inevitável, e, além disso, socialmente indispensável. Pois, foi devido à sua virtude de concentração de capitais que a civilização material se desenvolveu. Ou seja, foi porque os homens foram e são capazes de gerar e acumular riquezas maiores do que as consumidas pela coletividade e de as legarem à geração posterior, que a civilização progrediu materialmente. Contudo, como bem observa nosso autor, essa riqueza concentrada sob a forma de propriedade privada de alguns foi construída por todos em conjunto, tendo origem social e devendo, portanto, ser esta a sua destinação (COMTE, 1983a).
Assim, não se tratava de eliminar a propriedade privada, mas de transformar o seu sentido. Ou seja, de mantê-la nas mãos de particulares, mas tornando-a comum por meio do uso que dela se fizesse, o que consiste em imprimir à gestão do capital “o caráter relativo e social que lhe impõe a sua origem” (LINS, 1965, p.147).
O imposto cobrado pela coletividade seria uma das formas de participação desta sobre a fortuna particular, além de um meio legítimo de intervenção da organização política do corpo social para subordiná-la às suas finalidades sociais.
A autoridade e a concentração de riqueza por parte dos industriais na ordem temporal tornavam-se ainda mais aceitáveis quando se compreende que, na sociedade moderna positivista, existia uma outra ordem de realidade mundana, que era a dos méritos morais. Esta contrabalançava o poder temporal, regulando-o e moderando-o, fazendo com que a existência dos indivíduos não fosse definida apenas pela posição econômica e social, mas, sobretudo, como queria Comte, pela sua posição na ordem espiritual. 
De acordo com Aron, para Comte: “O objetivo supremo de todos deve ser alcançar o primeiro lugar, não na ordem do poder, mas na ordem dos méritos”(ARON, 1993, p.83).
Na concepção comtiana, o desenvolvimento da ordem industrial, com base no movimento de expropriação e organização científica do trabalho, com sua conseqüente concentração de capitais e meios de produção nas mãos de um determinado segmento social, relacionava-se positivamente com o progresso material e espiritual da natureza humana. A crise e a oposição de interesses entre operários e empresários eram, a seus olhos, resultado da má organização da sociedade e poderiam ser superados com reformas.
A questão social, levantada pelo embate entre as classes advinha do desordenado movimento progressivo da sociedade industrial, que precisava agora, uma vez estabelecido

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