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Não mudou nada Entrevista Marcelo Gomes Ed. Abril.17

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CAROS AMIGOS – ED. ABRIL/2017
Não mudou nada 
entrevista Marcelo Gomes
Cineasta Marcelo Gomes traça paralelo com o Brasil de Tiradentes e afirma que País ainda vive misérias da época colonial e mazelas da casa-grande e senzala
por Aray Nabuco e Marina Saran
Nem mito nem herói. Assim é o Tiradentes que os brasileiros poderão assistir nas telas de cinema. O filme Joaquim, do cineasta pernambucano Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus), teve a estreia no dia 20 de abril, véspera dos 225 anos da morte do inconfidente. Misturando história e ficção, a produção volta ao Brasil do século 18 para trazer à cena não a figura idealizada do mártir da Independência dos livros escolares, mas uma crônica de um brasileiro comum, Joaquim José da Silva Xavier, em um cenário de misérias e “uma sociedade colonial extremamente cruel e desumana”. Ao mergulhar em leituras sobre a época, o cineasta decidiu centrar o filme no período da corrida do ouro brasileira, em uma “terra sem lei” e com profundas desigualdades sociais, dividida entre uma elite mais interessada em explorar as riquezas do País do que no seu desenvolvimento e os “desclassificados”, índios, negros escravos, mestiços, pobres, excluídos. Um passado que, para Marcelo Gomes, “continua vivo dentro do nosso presente”. A estreia internacional do filme foi em 16 de fevereiro, na mostra competitiva do 67º Festival de Berlim, com um manifesto de Marcelo Gomes e outros cineastas brasileiros que participavam do evento contra o governo de Michel Temer, “de novo, essa elite política, que tem a ver com a elite econômica, fazendo a mesma coisa do período colonial”. 
Marina Saran – Como surgiu a ideia de filmar tiradentes com essa abordagem realista? Marcelo Gomes – É uma longa resposta, talvez até englobe outras perguntas. Existe um produtor espanhol que estava fazendo uma série de filmes para comemorar os duzentos anos de guerras libertárias na América Latina. Então, ele convidou um diretor de cada país que ele admirava. Ele tinha visto Cinema, Aspirinas e Urubus, que é um filme de época, e me convidou para ser o brasileiro para narrar a história do nosso herói. Então, o César Charlone fez o Artigas no Uruguai; o Fernando Pérez fez, em Cuba, o Libertador; no México, fizeram o Hidalgo. Então, eles começaram a fazer os filmes e uma das ideias era o Joaquim, era o Tiradentes
Aray Nabuco – mas o tiradentes foi uma proposta dele também? 
Sim. Porque, na verdade, o Brasil tem uma história completamente diferente dos outros países da América Latina. Não se derramou uma gota de sangue aqui e a independência do País foi feita pelo colonizador, não pelo colonizado. Então são dois elementos que fazem com que o Brasil se diferencie completamente dos outros países da América Latina e de outras guerras libertárias. Quando aconteceu a Inconfidência Mineira, o nosso Tiradentes é morto em 1792. De 1792 a 1822, o Brasil era um império português e, além disso, em 1808, chegou a família real portuguesa e a colônia virou Império.
A quem interessava construir a figura do herói Tiradentes nesse período? A ninguém, porque estávamos governados pelo colonizador, os portugueses. Depois, veio a declaração de independência feita pelo D. Pedro I, que o pai dele disse: “Meu filho, antes que venha algum aventureiro aqui, vamos declarar a independência”. No período de 1822 a 1889, a quem interessava ressaltar o personagem Tiradentes? A ninguém. Tiradentes não era um herói nesse período de D. Pedro I, D. Pedro II. Quando chega a República, os republicanos falam: “Precisamos de um herói”. Quem é o último cara que morreu pela pátria? Joaquim José da Silva Xavier, Tiradentes. Então, ele foi resgatado 97 anos depois da morte dele pelos republicanos porque interessava para eles ter um herói. Imagine, naquela época, depois de 97 anos, você querer resgatar a vida de uma pessoa que foi um bandido, considerado um traidor da pátria. Então, existe uma dificuldade de documentação muito grande sobre a vida dele.
Aray Nabuco – inclusive se ele tinha ou não barba.
Nem isso sabem. Falam que ele tem uma filha, aí falam que, na verdade, não cortaram a cabeça dele, cortaram a cabeça de um mendigo e ele foi morar em Paris. Existem milhões de histórias e é bom para mim, um ser de ficção, ter um personagem desses nas mãos porque eu posso imaginar muitas coisas. Eu adoro história e eu queria entender mais o nosso Brasil colonial, que é a origem do nosso País. Entender melhor como é esse cara.
Aray Nabuco – e como você lidou com essa falta de documentação?
Eu li várias biografias. Existem biografias de vários historiadores, cada um com seu ponto de vista. Um diz que ele não teve protagonismo nenhum, outro diz que ele foi o grande protagonista da Inconfidência, outro diz que ele era uma pessoa que não tinha nada, outros dizem que ele veio de uma classe mais abastada. São várias teorias, mas não me interessava a polêmica. Li dois livros que foram fundamentais. Um deles é História da Vida Privada, aquela coleção (História da Vida Privada no Brasil, em quatro volumes). O meu cinema é muito mais crônica do que um cinema de causa e efeito. Aspirinas é assim.
Meus filmes estão muito mais próximos de uma corrente documental. Então, quando eu li aqueles livros que falavam dos hábitos, como as pessoas bebiam, como elas conversavam, como elas matavam piolho, como elas faziam sexo, como dialogavam os diferentes grupos sociais, os autóctones daqui, os africanos, os portugueses, os outros estrangeiros, isso me interessou. O outro livro, Os Desclassificados do Ouro, da Laura de Melo e Souza, que depois veio a ser consultora histórica do filme, fala exatamente desse lúmpen do proletariado que estava surgindo aí, os mestiços se relacionando com os índios, com os escravos vindos da África. Eu falei: “Opa, isso me interessa”. Na verdade, o Brasil era Recife, existiam as cidades no interior de Pernambuco, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo e algumas cidades do interior paulista. Então surge o ouro, que, para mim, ficcionista, é algo maravilhoso, é a grande marcha para o Oeste. Foi como aconteceu na Califórnia. Só que aqui no Brasil foi mais gente para as Minas do que para a Califórnia; calcula-se 200 mil pessoas. Foi a primeira vez que a gente teve uma migração espontânea. Vieram espanhóis e eles trouxeram muitos escravos.E o que eles faziam com os índios? “Sai para lá, que isso aqui, essa terra é nossa”, matavam os índios. Um personagem do filme diz: “O ouro primeiro acaba com as terras e depois com o homem”. Então, você tem uma sociedade colonial de uma ética extremamente cruel e desumana. Minha questão, depois de ler tudo isso é: como é que um cara que era soldado da Corte portuguesa, funcionário da Corte, muda de paradigma e vira rebelde contra a Coroa portuguesa? Como é que um cara de uma terra sem lei tem uma mudança de paradigma e constrói uma consciência política?
Marina Saran – Nas cenas iniciais e finais, o filme mostra que ele foi massa de manobra da elite.
Essa é a posição de alguns historiadores. Porque, na verdade, existia uma elite que estava surgindo e queria ser portuguesa. Essa elite nunca se assumiu brasileira e não fazia parte da classe social dele. Ele era, vamos dizer, um esboço de um classe média do século 18. Então, como é que esse cara tem essa mudança de paradigma? Se ele tem essa mudança de paradigma, as únicas pessoas às quais ele vai se unir para construir alguma coisa diferente são aquelas que estavam fazendo alguma coisa. Quando eu li isso, falei: “Não quero fazer um filme sobre a Inconfidência Mineira”. Existem vários filmes sobre isso, tem um filme do Joaquim Pedro de Andrade que é maravilhoso. Eu quero fazer um filme sobre esse momento pequeno, específico da vida desse personagem, em que ele mudou de paradigma, e aí eu vou ter oportunidade na minha ficção de investigar mais esse Brasil colonial. Eu decidi, nesse momento, fazer uma crônica e não um relato da Inconfidência oficial, um filme que trata mais da poética do cotidiano. Esse foi meu caminho, de pegar um período muito curto da vidadele, e eu ia ter tempo para construir essas relações sociais, como elas aconteciam no microcosmo da sociedade e não no macro.
Aray Nabuco – Qual o paralelo que você traça daquela época para agora? 
Caramba, não mudou nada. É engraçado porque esse filme tem sete anos, foi antes da crise de 2013, mas, mesmo antes da crise, eu fazia um paralelo muito interessante, que é o seguinte: o País está em crise e imagine um ser humano estar em crise, há uma crise política e que gera uma crise existencial. Quando pensamos, “que país é esse”, a gente está pensando, “quem somos nós”. Então, a crise política e a existencial estão juntas. Se você está em crise, vai a um psicanalista, ele não vai perguntar por que a crise, ele vai perguntar como foi a sua infância. Então, eu fiquei imaginando que, se o Brasil está em crise e a gente põe o Brasil no divã, a gente tem que perguntar como foi o nascimento dessa Nação Brasil. Ou seja, quando eu li sobre o período colonial brasileiro, eu disse: “Está aqui”. O passado está vivo dentro do nosso presente. As pessoas tentam negar, os filmes de época tentam negar. Principalmente as telenovelas de época ou os filmes clássicos, você vê aquela direção de arte exuberante, parece que o passado era riquíssimo. O passado era miserável, pessoas morriam por falta de condições de saúde, não tinham roupa para vestir. Meus personagens só têm uma roupa o filme inteiro. Você vê esses filmes de época; primeiro, a câmera clássica. Eu falei para o Pierre (Pierre de Kerchove), meu fotógrafo: “Se a gente quer construir um Brasil vivo, um passado vivo, essa câ-mera tem que ser transpirante, tem que ser porosa e tem que invadir os espaços dos personagens. Para a gente sentir que esse passado está vivo e que ele está dentro do presente”.
O que eu queria era isso, que as pessoas assistissem a aquele filme e fossem ler livros sobre o Brasil, tentar uma reflexão mais profunda. A gente vive um momento em que, talvez, nunca se falou tanto em política, mas as discussões políticas são de uma superficialidade e de uma leviandade...
Aray Nabuco – em termos de personagem, tiradentes, que paralelo você pode fazer com algum personagem hoje?
Aí, é engraçado, porque as pessoas chegam para mim e perguntam quais os links, as relações entre as coisas que estão no filme e a realidade do Brasil de hoje. Eu falo que o bacana de um filme é que, quando o filme acaba, o filme não é mais do diretor, o filme é do espectador, que faz dele o que ele quiser. A primeira pergunta, numa entrevista coletiva de imprensa, um jornalista de Portugal falou: “Nossa, mas aquele Joaquim, ele parece fisicamente com o Lula”. Eu falei: “Você acha? Ele é completamente diferente do Lula”. Agora, o que eu acho, o meu personagem Joaquim é uma pessoa de ação. Ele não era um intelectual de livros, era uma pessoa impetuosa. Ele era uma pessoa um pouco diferente do normal, porque ele namorava e era apaixonado por uma escrava. Naturalmente, tinha uma visão diferente. Outra coisa era que tinha esse elemento de ingenuidade, que acreditava que, por ele ser um bom soldado, ele ia se transformar num tenente. E isso é um dado histórico, porque, nos “Autos da Devassa”, que é o processo, ele fica falando de todas as pessoas que viraram tenente e ele não virou tenente. Um dado maravilhoso. É uma pessoa que acredita no mérito e que convive com todo tipo de gente. Como classe média, ele transitava entre os índios, os africanos, os mestiços e a elite, porque ele trabalhava para a elite. Então, era a única pessoa, nesse caldo cultural do século 18, que tinha uma possível mobilidade. Ele tinha trânsito e, nesse trânsito, e isso é um pensamento meu de ser ficcional, se ele mudou de paradigma, foi porque se identificou com as pessoas que realmente estavam fazendo uma revolta. Ele se identificou com os quilombolas porque se sentiu traído por aquele governo e porque estava apaixonado. Uma mescla de identifica-ção política, porque descobriu que também era um desclassificado, e uma identificação afetiva. E, a partir disso, eu construí essa ficção e essa mudança de paradigma. Agora, qual os links do meu filme com o Brasil de hoje? Todos e nenhum. Eu vejo em tudo, mas você espectador pode dizer que aquele Brasil não tem nada a ver com o Brasil de hoje. O processo de colonização foi terrível e deixou fraturas sociais até hoje. O Brasil é um País de diferenças sociais gritantes e isso vem da colonização, não deram nada para os africanos quando eles ficaram livres. A gente tem uma dívida social que começou em 1500. O processo de colonização está tão entranhado na gente que nem se nota. A gente tem que construir essa descolonização que nunca foi feita completamente. Os prédios, até hoje, têm um elevador social e entrada de serviço. O que quer dizer isso? Uma reprodução sintomática da casa-grande e senzala. E tem milhares de microelementos. A questão do nepotismo, porque essa elite não quer soltar o osso; a meritocracia, o racismo, e esse pensamento de exploração. Os portugueses vieram para cá, sem família, chupa o ouro, leva para lá, vende o ouro, constrói uma casa, tem um soldo bacana e vai viver a vida. Era isso que faziam. O que é que a elite fez? Ela só não mudou para Lisboa; se pudesse, mudava. Mas fez latifúndios, casas coloniais lindas, gigantescas, eamiséria ao redor. Essa é a grande crueldade do capitalismo.
Marina Saran – eu queria perguntar um pouco sobre Berlim, como foi participar do festival e sobre o ato.
O Festival de Berlim é um festival muito político e eu fiquei muito feliz de ser selecionado porque o filme é essencialmente político. O filme, quando ficou pronto, eu mandei para o festival. Eu não pensei nem em outro. Cannes pode ser até maior, mas as sessões são fechadas para os realizadores, para a crítica, os compradores de filmes. Em Berlim, você pode comprar ingresso. Berlim é o maior festival aberto do mundo e isso é maravilhoso. As conversas com as pessoas são muito bacanas porque são cinéfilos que querem entender a geopolítica dos países através da sua cinematografia. É um público muito curioso. Eles me convidaram para a seleção, eu nunca tinha participado da competição, nunca tinha vivido essa experiência do tapete vermelho, e eu fiquei muito impressionado com a visibilidade que a seleção deu. Passei quinze dias dando entrevistas. Essa foi a primeira coisa.E a segunda, foi chegar lá. Aí eu vi a dimensão do tapete vermelho. Aquela é a grande celebração e a gente achava, nós, realizadores, que tínhamos que fazer alguma coisa. Os ministérios tiram as bolsas para alunos de cinema, agora vai mudar a direção da Ancine (Agência Nacional do Cinema) e, então, a gente vive com uma série de amea-ças. Considerando o que está acontecendo na saúde, na educação. E, agora, esse plano novo da educação do governo Temer tira a História do currículo do nível médio. Ou seja, eles estão desmantelando conquistas na área social, educacional e cultural que demoraram vinte anos para serem construídas. De novo essa elite política, que tem a ver com a elite econômica, fazendo a mesma coisa do período colonial. Então nós, diretores, nos unimos e fizemos essa carta. E, como eu estava na competição e os outros filmes estavam em mostras paralelas, eu acabei lendo a carta na conferência de imprensa e a visibilidade, realmente, foi incrível. No outro dia eu vi, foram 70 mil visualizações da carta. Depois, o ato do Raduan Nassar, que foi maravilhoso (o escritor criticou o governo durante a entrega do Prêmio Camões, em fevereiro, em São Paulo). Aí depois veio o Carnaval Fora Temer. Que bom, as pessoas estão acordando.
Marina Saran – e, nesse momento, qual a sua perspectiva para o futuro do cinema nacional?
Minha perspectiva é que temos de lutar, lutar muito. A política do audiovisual não é uma conquista da classe, é uma conquista do povo brasileiro. Nesses quinze anos de política do audiovisual, mais de 100 milhões de brasileiros assistiram filmes brasileiros, séries de TV, videogames. A sociedade civil tem que se unir à classe e dizer que não pode desmantelar essa política.O Brasil é o terceiro ou quarto país do mundo que mais consome a sua cinematografia. Tem grandes bilheterias. Tem um cinema autoral que este ano levou doze filmes para o Festival de Berlim, tinha dezessete filmes no Festival de Roterdã, tinha filmes no Sundance, em Cannes. Nunca o cinema autoral brasileiro viveu um momento tão rico. Meu filme agora foi vendido para a China. Imagina. Essa é uma política que está favorecendo tanto o cinema autoral, que é um cinema que quer pensar o País, quanto o cinema comercial. Então, acho que a minha perspectiva é de luta. Se não lutarmos, nosso cinema acaba e um País sem cinema é uma casa sem espelho.
Aray Nabuco e Marina Saran são jornalistas. edição: Adriana Villar.

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