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1 AS GERAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS E OS DESAFIOS DA EFETIVIDADE George Sarmento1 Resumo: O presente artigo analisa a evolução dos direitos humanos no cenário internacional e no sistema jurídico brasileiro. A partir da idéia de gerações é possível perceber o processo legislativo permanente e inesgotável de tais direitos na vida institucional das nações democráticas. Defende a idéia de que a sociedade deve avançar no plano da liberdade, igualdade e solidariedade. Por fim sustenta que a dignidade humana e a melhoria da qualidade de vida da população depende do nível de efetividade dos direitos e garantias fundamentais. 1. INTRODUÇÃO Os direitos humanos são faculdades de agir ou poderes de exigir atribuídos ao indivíduo para assegurar a dignidade humana nas dimensões da liberdade, igualdade e solidariedade. Nascem na ordem jurídica supraestatal e são recepcionados nos países que se comprometeram a assegurá-los e garanti-los em suas Constituições. No constitucionalismo contemporâneo, eles estão prescritos no direito internacional e nas Cartas Políticas. A pessoa humana é sempre o sujeito de direito: o titular da vantagem prevista na norma jurídica. A expressão direitos humanos refere-se aos direitos positivados no ordenamento supraestatal – tratados, convenções, pactos, declarações. Quando esses direitos são constitucionalizados passam a chamar-se direitos fundamentais. Os primeiros direitos humanos surgiram da luta contra a opressão e a tirania impostas ao povo pelos governos despóticos de orientação absolutista. A partir da Revolução Francesa passaram a integrar as Constituições republicanas e monarquistas, através de longos catálogos de prerrogativas individuais – As chamadas liberdades públicas e os direitos políticos. Com o fim da 1ª Guerra Mundial, o liberalismo clássico entra em colapso por causa do aprofundamento das desigualdades sociais 1 Doutor em Direito Público/UFPE, Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito/UFAL, Coordenador do Laboratório de Direitos Humanos da Universidade Federal de Alagoas. Promotor de Justiça. 2 decorrentes do capitalismo selvagem, que só beneficiava os detentores do capital e dos meios de produção em detrimento da classe trabalhadora. Na esteira doutrinária do Welfare State, os direitos sociais econômicos e culturais também foram constitucionalizados. Os anos 60 foram marcados pela luta contra a degradação ambiental, o preconceito e à intolerância. Também inspiraram movimentos sociais organizados que reivindicavam o reconhecimento de interesses específicos, como fizeram os ambientalistas, consumidores, mulheres, minorias étnicas, religiosas e sexuais. Como se pode ver, o processo de construção dos direitos fundamentais avança com o fluxo das necessidades humanas básicas na dimensão espaço-tempo. A sua evolução nos remete à idéia de “gerações de direitos”, metáfora desprovida de pretensão científica, mas que busca situar as categorias de direitos humanos no contexto histórico em que nasceram. 2. TEORIA DAS GERAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS A teoria das gerações tem como paradigma a evolução histórica dos direitos humanos na ordem jurídica supraestatal e nas Constituições dos Estados contemporâneos. Preconiza que o processo de criação de direitos humanos é contínuo e inesgotável. Os defensores dessa teoria vinculam cada etapa civilizatória a valores relevantes para a vida social. Sob a inspiração de determinado elemento axiológico, surgem direitos com o mesmo perfil. Os direitos humanos não são estanques ou incomunicáveis, mas complementares e conexos: integram-se uns aos outros para realizar o ideal de dignidade humana. O vocábulo “geração” nos remete à ideia de direitos sob a mesma inspiração axiológica, que surgem em dado espaço temporal e continuam a se reproduzir de acordo com as etapas evolutivas da civilização. Podemos esquematizar as gerações de direitos humanos da seguinte forma: 3 a) 1ª Geração – liberdades públicas e direitos políticos; b) 2ª geração – direitos sociais, econômicos e culturais; c) 3ª geração – direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos; d) 4ª geração – direitos da bioética e direito da informática; 2.1. Direitos Humanos de 1ª Geração A 1ª geração dos direitos humanos tem na liberdade o elemento axiológico preponderante. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 1789, é o seu marco histórico. Nessa categoria, encontram-se as liberdades públicas e os direitos políticos. As liberdades públicas, também denominadas direitos civis ou direitos individuais, são prerrogativas que protegem a integridade física, psíquica e moral das ingerências ilegítimas, do abuso de poder ou qualquer outra forma de arbitrariedade estatal. Atuam na dimensão individual e protegem a autonomia da pessoa humana. São, portanto, faculdades de agir que implicam o dever de abstenção, sobretudo do Estado. Entre os direitos dessa categoria estão a liberdade de expressão, a presunção de inocência, a inviolabilidade de domicílio, a proteção à vida privada, a liberdade de locomoção, os direitos da pessoa privada de liberdade, o devido processo legal etc. Todos possuem um ponto de confluência: a tutela da pessoa humana em sua dimensão individual. Os direitos políticos, por sua vez, asseguram a participação popular na administração do Estado. O núcleo dos direitos políticos é composto pelo direito de votar (jus suffragi), pelo direito de ser votado (jus honorum), pelo direito de ocupar cargos, empregos ou funções públicas (jus ad officium) e pelo direito de neles permanecer (jus in officio). Consiste ainda no controle dos atos administrativos através de propositura de ação popular e do direito de filiação a partidos políticos. Qual a diferença entre direitos humanos e direitos políticos? Os direitos humanos tutelam todas as pessoas físicas independentemente de nacionalidade, etnia, idade, religião ou condição financeira. Os direitos 4 políticos restringem-se ao exercício da cidadania: São direitos de participação. Enquanto os primeiros asseguram a dignidade ao homem, os segundos restringem-se aos eleitores, garantindo-lhes a prerrogativa de participar da vida político-institucional de seu país. As liberdades públicas, por exemplo, protegem o indivíduo do arbítrio. Caracterizam-se por exigir conduta não interventiva do Estado. Valorizam o ser humano em sua individualidade. Quando falamos em liberdade de expressão, referimo-nos à faculdade individual de emissão do pensamento sem censura ou proibição do Estado. Assim, toda pessoa humana tem a prerrogativa de manifestar publicamente suas idéias políticas, filosóficas, artísticas, científicas e comunicativas sem submeter-se à censura. Outro exemplo. Ao reconhecer a liberdade de consciência, a Constituição assegurou a todos não só a faculdade de escolher livremente sua religião, mas também de optar por ser ateu ou agnóstico, sem ser molestado ou discriminado por suas convicções. As liberdades públicas podem conter comandos direcionados ao legislador ordinário para proteger o indivíduo da intervenção de terceiros e, até mesmo, do Estado. A Constituição de 1988 veda determinadas práticas como a tortura, os tratamentos desumanos e degradantes infligidos às pessoas privadas de liberdade. Proíbe as penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento ou cruéis. Também determina a criação de leis que criminalizem o racismo e a ação de grupos armados, civis e militares. Por fim, estabelece que o tráfico ilícito deentorpecentes, o terrorismo e os crimes hediondos são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia. As liberdades públicas foram positivadas nos textos constitucionais com a missão precípua de proteger o homem do despotismo estatal. Na contemporaneidade, porém, assumem uma nova função: a proteção contra terceiros. Significa dizer que elas podem ser invocadas contra os particulares, pessoas físicas ou jurídicas. É o que acontece quando ingressamos com um pedido de direito de resposta ou ação de indenização contra o órgão de imprensa que atentou contra nossa honra ou vida privada. Portanto, possuem eficácia vertical quando o destinatário for o 5 Estado; ou eficácia horizontal, quando forem os particulares (Ongs, empresas, órgãos de imprensa, pessoas físicas etc.). Já os direitos políticos disciplinam o processo eleitoral, a filiação partidária, o exercício do voto, o alistamento eleitoral, os casos de inelegibilidade e a alternância de poder. São direitos da cidadania, uma vez que seus titulares devem ser eleitores ou terem capacidade eleitoral. As crianças, por exemplo, são titulares de direitos humanos, mas não de direitos políticos. Não exercem cidadania plena, embora sejam sujeitos de direitos individuais, sociais, econômicos e culturais. Estão impossibilitados de participar das eleições ou serem autores em ação popular. Sua cidadania, portanto, é parcial já que a fruição de direitos está limitada à sua faixa etária. 2.2. Direitos humanos de 2ª Geração Os direitos de 2ª geração emanam da concepção teórica de Estado do Bem-Estar Social, que começou a ganhar corpo após o término da 1ª Guerra Mundial. Caracterizam-se por serem poderes de exigir prestações estatais positivas que assegurem a todos igualdade de oportunidades. Nas Constituições contemporâneas, eles se subdividem nas seguintes categorias: direitos sociais, direitos econômicos e direitos culturais (DESC). A 2ª geração produziu direitos que obrigam a intervenção do poder público para assegurar condições básicas de saúde, educação, habitação, transporte, trabalho, lazer etc., através de políticas públicas e ações afirmativas eficientes e inclusivas. Do ponto de vista semântico as liberdades se inserem na categoria “direitos de...”, representada por prerrogativas individuais, enquanto a segunda geração é composta por “direitos à...”, pois implicam o poder de exigir do Estado o cumprimento de prestações positivas que garantam a todos o acesso aos bens da vida imprescindíveis a uma vida digna. Muitos foram os textos precursores dos direitos sociais, econômicos e culturais. Entre eles, a Constituição Francesa de 1848, a Constituição Mexicana de 1917, a Declaração Russa dos Direitos do Povo 6 Trabalhador e Explorado (1918) e o Tratado de Versailles, de 1919. Mas foi a Constituição alemã de 1919, mais conhecida como Constituição de Weimar, que primeiro os sistematizou, criando um catálogo de direitos que exerceu forte influência sobre os países democráticos. A 2ª geração caracteriza-se pela existência de um conjunto de direitos fundamentais que conferem aos seus titulares o poder de exigir do Estado prestações positivas relativas ao bem-estar do indivíduo e da sociedade. Impõem ao Estado verdadeiras obrigações de fazer, como a criação de vagas nas escolas públicas de ensino fundamental, a construção de creches para abrigar os filhos de mulheres trabalhadoras, o aumento do número de leitos nos hospitais públicos, distribuição de medicamentos especiais etc. São, portanto, direitos a ações positivas, pois obrigam o Estado a promover um conjunto de medidas administrativas e legislativas que assegurem as condições básicas para uma vida digna (mínimo existencial), a partir das quais cada indivíduo possa se desenvolver de acordo com seus talentos e aspirações. Além disso, caracterizam-se por serem direitos fundamentais prestacionais, pois se dirigem ao Estado, impondo-lhe um conjunto de obrigações que se materializam na produção de leis, execução de políticas públicas, programas sociais e ações afirmativas. Dessa forma, os direitos de 2ª geração só se concretizam mediante a intervenção do Estado para garantir a todos o acesso às prestações civilizatórias básicas, aos bens da vida essenciais à sobrevivência e a serviços públicos de boa qualidade. Estão expressos em normas constitucionais cogentes; obrigam o poder público a cumprir determinadas obrigações sob pena de sanções – mandamentos, obrigações de fazer, indenizações etc. Além disso, os direitos sociais, econômicos e culturais são justiciáveis: podem ser exigidos em juízo através de ações individuais ou coletivas. Num esquema não exaustivo dos DESC contemplados na Constituição Federal, podemos configurá-los assim: 7 a) Direitos Sociais: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer segurança, previdência social, assistência aos desamparados, proteção à maternidade e à infância (CF, art. 6º). b) Direitos Econômicos: valorização do trabalho, livre iniciativa, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, redução das desigualdades regionais e sociais etc (CF, art. 170). c) Direitos Culturais: acesso às fontes da cultura nacional, valorização e difusão das manifestações culturais, proteção às culturas populares, indígenas e afro-brasileiras; proteção ao patrimônio cultural brasileiro, que são os bens de natureza material e imaterial portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (CF, arts. 215 e 216). Uma das discussões mais recorrentes no âmbito do Constitucionalismo brasileiro refere-se à efetivação dos direitos sociais. O cumprimento das prestações estatais está condicionado ao uso racional dos recursos públicos em todos os níveis federativos. Os governos são obrigados a lidar com a escassez de verbas para atender às demandas setoriais, cada vez mais complexas e onerosas. Muitas vezes são obrigados a fazer escolhas trágicas diante das necessidades concretas. Optar entre construir uma escola ou um hospital num contexto de extrema pobreza é um exemplo dos dilemas enfrentados todos os dias pelos gestores públicos. O Judiciário é frequentemente provocado para solucionar litígios dessa natureza. Geralmente Estados e Municípios se defendem alegando a inexistência de recursos financeiros para arcar com tantas prestações reivindicadas pela sociedade civil. Constroem um discurso bem articulado baseado em argumentos como a reserva do possível (ausência de dotação orçamentária), impossibilidade de controle judicial sobre a discricionariedade do Chefe do Executivo e violação do princípio da separação dos poderes. 8 O Judiciário tem exercido importante função concretizadora dos direitos sociais na medida em que compele os gestores públicos a cumprir as obrigações prescritas na Constituição de 1988. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reforçado a natureza cogente e vinculante dos direitos de 2ª geração, afastando de vez a velha concepção de que seriam meras normas programáticas cuja observância dependia da “boa vontade” do governante. É evidente que sua eficácia é gradual, pois os direitos sociais estão prescritos em normas-princípios – mandados de otimização –, aplicáveis da melhor forma possível diante das situações fáticas e jurídicas existentes. Porém, há parâmetros mínimos a serem observados pelo magistrado como o “mínimo existencial”, que é a satisfação das necessidades básicas de cada ser humano. O magistrado abandonou a antiga neutralidade para assumir uma postura de total comprometimentocom a concretização dos direitos fundamentais e das opções políticas contidas na Constituição. A concepção de controle judicial das políticas públicas é consensual na jurisprudência brasileira. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que a dimensão política da jurisdição constitucional legitima os juízes a combater a inércia dos gestores públicos no cumprimento dos direitos sociais, econômicos e culturais através da aplicação de sanções previstas em lei2. Tal prática não constitui violação à separação dos poderes, mas prerrogativa confiada ao Judiciário de tornar efetivas as opções políticas eleitas pelo constituinte brasileiro, entre elas a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. 2.3. Direitos Humanos de 3ª Geração Os direitos de 3ª geração, também conhecidos como direitos de fraternidade, como foram batizados por Karel Vasak, ou direitos de solidariedade, como prefere Etiene-R. Mbaya, passaram a ser adotados nos textos constitucionais a partir da década de 60. Eles têm como pressuposto 2 STF – 2ª Turma – Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 410.715-5/SP – Rel. Min. Celso de Mello – voto proferido em 22 de novembro de 2005. 9 a proteção de grupos sociais vulneráveis e também a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado. A defesa desses direitos depende sempre da atuação pro populo do Ministério Público ou de representantes da sociedade civil, sobretudo as organizações não-governamentais. Também pode ser exercida pelo cidadão nas ações populares. Preferimos a expressão direitos de solidariedade a direitos de fraternidade. A solidariedade implica a aliança com o “nós” sem o rompimento do “eu”. Significa a superação dos interesses egoísticos por uma postura altruística, comprometida com o bem comum. Traduz a responsabilidade de cada indivíduo pelos destinos da sociedade. É a mais profunda manifestação do sentimento de pertença. Um dever imposto a todos pela ordem constitucional. Já a fraternidade tem conotação mais religiosa que jurídica, pois a caridade se manifesta como uma virtude que eleva moralmente o indivíduo através da ajuda aos menos favorecidos, mas não constitui uma obrigação imposta pela lei. Os direitos difusos e coletivos são a principal manifestação do princípio da solidariedade. Sua concretização é responsabilidade do Estado e da sociedade. Possuem dois pontos em comum: a transindividualidade e a indivisibilidade. São transindividuais porque só podem ser exigidos em ações coletivas e não individuais, pois o seu exercício está condicionado à existência de um grupo determinado ou indeterminado de pessoas; são indivisíveis porque não podem ser fracionados entre os titulares. Não há como apartar a fatia de cada um. A satisfação de seus mandamentos beneficia indistintamente a todos. A violação é igualmente prejudicial à totalidade do agrupamento humano. No plano internacional, a terceira geração abrange o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade, o direito de comunicação, o direito de autodeterminação dos povos3, o direito à defesa de ameaça de purificação racial e genocídio, o direito à proteção contra as manifestações de discriminação racial, o direito à proteção em tempos de guerra ou qualquer 3 FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, p. 58. 10 outro conflito armado4. No sistema jurídico brasileiro, a solidariedade se desdobra em direito ambiental, direitos do consumidor, da criança, adolescente, idosos e portadores de deficiência, bem como a proteção dos bens que integram o patrimônio artístico, histórico, cultural, paisagístico, estético e turístico. Os direitos de terceira geração têm a função de tutelar os interesses públicos primários, que nada mais são que as legítimas expectativas da coletividade em relação a determinado bem da vida. Esses interesses nem sempre coincidem com as pretensões da Administração Pública (interesses públicos secundários). Muitas vezes são divergentes e incompatíveis. Suponhamos que o poder público autorize o funcionamento de uma indústria química, mesmo sabendo que os dejetos descartados na atmosfera e nos cursos d’água serão extremamente nocivos à população. Nessa hipótese há um evidente desnivelamento entre o interesse estatal (secundário) e as expectativas da coletividade (primário). Por isso, a legislação brasileira legitima organizações não-governamentais e instituições estatais (Ministério Público, por exemplo), a propor ações judiciais destinadas a combater esse tipo de violação. O que distingue os direitos coletivos dos direitos difusos? Os direitos coletivos possuem um número determinado ou determinável de titulares – mutuários do Sistema Financeiro da Habitação, usuários do Sistema Único de Saúde, alunos da rede estadual de ensino, adquirentes de determinado produto ou serviço. Todos os titulares possuem algo em comum: estão ligados entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base, como o contrato de financiamento da casa própria ou a matrícula na rede estadual de ensino. Já os direitos difusos caracterizam-se pela indeterminação de seus titulares. É impossível estabelecer-se o número exato dos beneficiários. Além da indeterminação, os sujeitos de direito unem-se por circunstâncias de fato. Quando uma propaganda enganosa é veiculada 4 MBAYA, Etienne-Richard. “Direitos Humanos como Direitos de Liberação” in Nomos, XIII-XIV, p.63. Cf. também o Relatório do Parlamento Europeu de 1995, intitulado Os Direitos do Homem no Mundo. 11 numa rede de televisão, torna-se absolutamente impossível mensurar o número de pessoas que foram atingidas.; O mesmo acontece com a impossibilidade de estabelecer-se o número de pessoas que irão inalar o ar poluído de dado município. A tutela dos direitos de solidariedade é uma das dimensões mais importantes da cidadania contemporânea, na medida em que promove a melhoria da qualidade de vida da população, assegurando-lhe meio ambiente equilibrado, serviços públicos eficientes, respeito à diversidade e proteção aos hiposuficientes. Daí a importância crescente da intervenção do Ministério Público para impor ao poder público e à sociedade civil medidas concretas que assegurem sua efetividade. 2.4. Direitos Humanos de 4ª Geração A 4ª geração dos direitos humanos ainda não está plenamente configurada. As opiniões dos doutrinadores são divergentes em relação ao seu conteúdo. Muitos até discordam de sua existência. A polêmica foge aos propósitos dessa exposição. Apenas defendemos que ela se desenvolve em dois eixos: os direitos da bioética e os direitos da informática. Os litígios decorrentes do avanço da biotecnologia e da engenharia genética deram origem a uma nova categoria de direitos: os direitos da bioética. O discurso jurídico incorpora temas como o suicídio, a eutanásia, o aborto, o transexualismo, o comércio de órgãos humanos, a procriação artificial, a manipulação do código genético e a clonagem de seres humanos. A essa altura, podemos perguntar: a bioética integra a juridicidade? Os espaços de atuação da Ética e do Direito são distintos. Ética pressupõe a eleição de valores consensualmente aceitos pela coletividade e a expectativa de que sejam respeitados espontaneamente. O Direito introduz força coercitiva aos valores éticos, estabelecendonormas de conduta e impondo sanções estatais aos responsáveis pelas violações. O Estado, por sua vez, executa as condenações mesmo que seja necessário recorrer à força física, à expropriação de bens e à outras medidas repressivas. Portanto, a apropriação dos princípios bioéticos pelos direitos 12 fundamentais é uma forma legítima de impor aos governos, aos pesquisadores, às instituições científicas e às indústrias o respeito à vida e à dignidade da pessoa humana. A experiência tem mostrado que o controle social baseado exclusivamente em princípios morais é ineficaz em virtude da falta de coerção estatal. Apenas as normas jurídicas são capazes de movimentar o aparato repressivo do Estado para cumprir essa tarefa. Sem elas, não há como punir os crimes contra a humanidade provocados pela manipulação abusiva dos conhecimentos científicos. A necessidade de eleger um sistema de valores essenciais à sobrevivência da espécie humana justifica a inclusão dos postulados da bioética nos textos legais. No outro eixo dos direitos de 4ª geração está o direito da informática, produto da Sociedade da Informação e suas complexas formas de expressão comunicativa. As relações intersubjetivas nascem de atividades relacionadas à informática, telemática e telecomunicações, bem como a transmissão de dados através de meios eletrônicos e interativos. O grande desafio dessa geração é a solução de litígios que envolvam o comércio virtual, a pirataria, a invasão de privacidade, direitos autorais, propriedade industrial etc. 3. A FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Fundamentar os direitos humanos significa buscar a justificação racional para a sua existência5. É matéria que, embora se desenvolva no plano axiológico do direito, dá o substrato necessário para que eles sejam reconhecidos e protegidos nos sistemas jurídicos. Na Filosofia do Direito podemos encontrar muitas explicações para o fenômeno. Os jusnaturalistas sustentam que os direitos humanos são inatos, anteriores e superiores ao direito positivo. Os historicistas afirmam tratar-se de direitos variáveis e relativos a cada contexto histórico. 5 A fundamentação dos direitos humanos deve ser absolutamente racional. Portanto não pode impregnar-se de ideologia política, paixões, intuições, emoções, preconceitos, suposições. É um dos principais temas da filosofia do direito. 13 Os utilitaristas defendem que sua função é a de produzir felicidade crescente no seio da sociedade. A fundamentação axiológica mais coerente é a de que os direitos fundamentais emanam da dignidade humana, ou seja, das exigências consideradas imprescindíveis e inescusáveis a uma vida digna6. A noção de dignidade evoluiu com o tempo. Num primeiro momento tentou-se explicá-la a partir de argumentos religiosos que defendiam a origem divina do homem, criado à imagem e semelhança de Deus. Depois a tese de que ela era inata, que integrava a essência do ser humano. O imperativo kantiano sustenta que a pessoa humana não pode ser utilizada como um meio, mas como um fim. O homem nasce livre e não pode ser usado como coisa, objeto. O princípio da dignidade salvaguarda o homem de toda forma de escravidão, opressão ou degradação à sua integridade física, psíquica ou moral. Além disso, implica o dever estatal de satisfação das necessidades básicas de cada membro da coletividade, tanto no plano individual como no coletivo. Mais do que categoria axiológica, a dignidade da pessoa humana foi elevada à dimensão jurídico-constitucional. É um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, III). O Estado deve estar a serviço do homem, não o contrário. Nessa perspectiva, o princípio da dignidade ocupa a centralidade do sistema jurídico, devendo ser efetivado pelo Estado. Com o objetivo de promover a crescente adaptação social, através da valorização do homem em sua dimensão individual e coletiva, o Direito valorou a dignidade como princípio constitucional supremo, do qual emanam subprincípios norteadores de direitos fundamentais, como se pode ver do esquema abaixo: 6 FERNÁNDES, Eusebio. “El problema Del fundamento de los derechos humanos”, in Anuário de Derechos Humanos, n. 01. Madri: Instituto de Derechos Humanos, Universidad Complutense, 1982, p. 98. 14 O princípio da dignidade humana possui quatro dimensões axiológicas básicas: da liberdade brotam os direitos individuais e os direitos políticos; da igualdade, os direitos sociais, econômicos e culturais; da solidariedade, os direitos difusos e coletivos. A democracia surge com a ambiência institucional ideal para o florescimento de todos eles. Sob a inspiração da dignidade humana, os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas prerrogativas individuais ou coletivas. Eles também integram uma ordem de valores que orienta e justifica o Estado Democrático de Direito. Daí a afirmação de eles possuem duas dimensões: a subjetiva e a objetiva. Na dimensão subjetiva os direitos fundamentais se exteriorizam como faculdades de agir ou poderes de exigir com força normativa. Isso permite que os seus titulares possam buscar a tutela jurisdicional em caso de violação. Na dimensão objetiva eles possuem dupla função. De um lado, exteriorizam a vontade de integração material: o desejo de coesão da comunidade e a realização de objetivos comuns. De outro, são o fundamento de validade da ordem legal constituída7. Assim, os direitos fundamentais não se dirigem apenas à proteção de pessoas ou grupos sociais. Eles representam a decisão política de coesão do povo a partir de sua história, cultura e tradições, fortalecendo o sentimento do “rêve de l’avenir partagé” – sonho do futuro compartilhado, na expressão de Georges Burdeau. Também são parâmetros que permitem 7 SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1985, p. 232. LIBERDADE Fundo DEMOCRACIA dd Forma IGUALDADE Fundo SOLIDARIEDADE Fundo DIGNIDADE HUMANA 15 aferir a legitimidade do sistema jurídico a partir do juízo de adequação entre o direito objetivo e os valores universamente consagrados. 4. EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS A população tem cunhado expressões como “cadeia é para pobre” (= o rico nunca vai preso) e “no Brasil tudo acaba em pizza” (= os corruptos ficam sempre impunes) para criticar o sistema jurídico vigente. O senso comum costuma a confundir incidência da norma jurídica com sua efetividade. Daí a necessidade de distinguir os conceitos. A principal função das normas jurídicas, o que as diferencia das normas pertencentes aos demais processos de adaptação social, é a incidência. Uma vez vigente, a norma jurídica válida incidirá sempre que houver a constituição de seu suporte fáctico. A incidência (eficácia legal), que é infalível, ocorre no mundo psíquico. Mais do que isso: é fato do mundo dos pensamentos, que independe da adesão espontânea dos destinatários ou de sua aplicação pelo Estado. Não se deve confundir incidência com atendimento à norma jurídica. Cronologicamente, a incidência antecede o atendimento, constituindo-se até mesmo pressuposto deste. Não se pode investigar a eficácia social (efetividade) da norma jurídica que ainda não incidiu ou que não tem condições de incidir. O ideal de justiça consiste na perfeita simetria entre a norma jurídica e o meio social, na coincidênciaentre incidência e observância. Se a coincidência é difícil ou improvável, se não há simultaneidade entre elas, é porque não houve atendimento espontâneo, única variável desta relação. Incidência e atendimento pertencem a planos diferentes do fenômeno jurídico. A incidência deve ser investigada como aspecto da dimensão normativa do direito. Já o atendimento, que é elemento essencialmente aferível no cotidiano e que se relaciona com a repercussão social da norma jurídica que incidiu, há de ser estudado no plano sociológico. O sociólogo analisa a repercussão social de determinada norma jurídica para verificar o seu grau de efetividade nas relações intersubjetivas. 16 Neste aspecto, a investigação sociológica tem a missão de descobrir se existe ou não coincidência entre os comandos contidos no preceito legal e o que concretamente ocorre no mundo social. A norma jurídica será socialmente eficaz na medida em que a efetividade atingir níveis aceitáveis, o que significa dizer que, de maneira geral, os destinatários aderiram à conduta nela prescrita. Não basta que os direitos humanos estejam previstos em tratados internacionais ou nas Constituições. É preciso que eles sejam respeitados na realidade social, o que só é possível se os Estados se comprometerem a garanti-los e aplicá-los nas relações interpessoais. É aí que entra o conceito de efetividade como dimensão sociológica do fenômeno jurídico. A verificação da efetividade permite aferir os resultados concretos das normas jurídicas na vida cotidiana. Para que as normas jurídicas sejam instrumento de adaptação social, é necessário estarem em consonância com o seu tempo, refletirem os valores vigentes e serem reconhecidas como legítimas pela coletividade. Apenas assim elas serão verdadeiramente obedecidas, pacificando, integrando e adaptando o corpo social. A verificação da efetividade dos direitos fundamentais está condicionada a três elementos objetivos: observância, aplicação e existência de garantias processuais eficazes. Observância significa a adesão espontânea dos destinatários às normas de direitos fundamentais. Ocorre quando o mero conhecimento do texto normativo já é suficiente para pautar a conduta sem a necessidade de intervenção coercitiva do Estado. Já a aplicação pressupõe um ato de autoridade – um juiz, por exemplo – que determine o cumprimento do comando normativo violado. A observância tem como fundamento a espontaneidade da conduta; A aplicação pressupõe coerção estatal. As garantias processuais também são importantes vetores de efetividade. Enquanto os direitos fundamentais se exteriorizam como prerrogativas individuais e coletivas de proteção à dignidade humana, as garantias são os instrumentos através dos quais eles se concretizam na realidade social. São exemplos de direitos-garantia: habeas corpus, 17 mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, habeas data e mandado de injunção. Além das categorias acima descritas, o método constitucional desenvolveu algumas técnicas destinadas a promover a efetividade dos direitos fundamentais como a aplicabilidade imediata, a inclusão no cerne irrestringível, a força vinculante erga omnes e a cláusula da proibição do retrocesso, que serão brevemente abordadas a seguir. (1) Aplicabilidade imediata. As normas jurídicas de direitos fundamentais estão aptas para incidir e serem aplicadas pelas autoridades competentes a partir da promulgação do texto constitucional. Significa dizer que não dependem de legislação regulamentadora para produzir efeitos. A eficácia legal tem como principal conseqüência o poder-dever de os juízes utilizá-las na solução de conflitos interpessoais e movimentar o aparato estatal para impor o respeito aos seus comandos. (2) Cerne irrestringível. Elas também integram o núcleo duro da Constituição, não podendo ser objeto de emendas constitucionais destinadas a abolir os direitos fundamentais. São verdadeiras cláusulas pétreas que impedem a apresentação de propostas de emendas constitucionais que os suprima ou descaracterize o seu conteúdo essencial. Essa técnica garante a perenidade e os protege das ingerências ditatoriais e arbitrárias de detentores do poder político. (3) Força vinculante. Os direitos fundamentais possuem força vinculante erga omnes, pois obrigam o Executivo, o Legislativo e o Judiciário a cumprirem suas determinações, seja o dever de abstenção ou a prestação positiva. Dessa forma, as leis, as decisões judiciais e os atos administrativos são submetidos a controle de constitucionalidade, podendo ser anulados quando violarem os direitos assegurados e garantidos nos textos constitucionais. (4) Cláusula da proibição do retrocesso. Constitui-se no mandamento dirigido ao legislador para que não revogue as normas infraconstitucionais que disponham sobre o cumprimento de prestações relativas a direitos sociais. Ela reforça a ideia de que tais direitos obedecem 18 a um processo evolutivo contínuo, imune a qualquer tipo de retrocesso. Uma vez positivados, incorporam-se ao patrimônio jurídico da pessoa humana não podendo ser suprimidos pelo Estado. Por exemplo, uma lei municipal que garante merenda escolar aos alunos de ensino fundamental não pode ser revogada para satisfazer o interesse do prefeito em cancelar a prestação positiva. A revogação só é possível se a municipalidade promover esquemas alternativos compensatórios como a implantação de “bolsa merenda”. Isto porque o acesso à merenda subjetivou-se, passando a integrar o patrimônio individual de cada criança matriculada. Como se pode ver, a efetividade dos direitos humanos é o grande desafio do constitucionalismo contemporâneo. Os países integrantes das Nações Unidas assumiram o compromisso solene de assegurar as condições necessárias para que os tratados internacionais sejam respeitados em seus territórios. Mas nem todos estão dispostos a cumpri-lo integralmente. A mera normatização não é suficiente. É preciso que os Estados garantam as condições necessárias para que eles possam concretizar-se plenamente. Isso implica a ambiência democrática, independência de poderes, rígido controle de constitucionalidade, mecanismos limitadores do poder político, garantias processuais específicas e liberdade de imprensa. A efetividade depende de mobilização popular, da democracia participativa. O papel fiscalizador dos cidadãos e das organizações não- governamentais é essencial para a concretização dos direitos humanos. A sociedade civil organizada tem o dever de protagonizar movimentos em defesa das liberdades públicas, dos direitos sociais, culturais e econômicos. Pode abraçar causas ambientais ou a defesa de grupos vulneráveis, forçando os governos a adotar medidas para solucionar os problemas. A comunidade internacional também pode pressionar os Estados a respeitar os direitos humanos, aplicando as sanções previstas em tratados internacionais, inclusive a intervenção humanitária. Por outro lado, entidades privadas como a Anistia Internacional, Médicos Sem Fronteira, Transparência Internacional e Jornalistas Sem Fronteiras assumem a importante missão de denunciar as violações aos direitos humanos perpetradas em todos os países do Planeta. A ação política dessas entidades 19 tem forçado os governos tomar providências eficazes para combater a violência, a pobreza, o genocídio e a intolerância racial ou religiosa. Enfim, a efetividade dos direitos humanos não é um problema essencialmente jurídico. É certo que a positivação nas Constituições e tratados internacionais foi um grande passo para a universalização deprincípios e compromissos de fortalecimento da dignidade humana sobre todos os povos do Planeta. Mas o principal desafio ainda é o de concretizá- los na realidade social, sobretudo com o fortalecimento da igualdade de oportunidades e a distribuição equitativa das prestações civilizatórias. Para que isso ocorra é preciso a conjunção de esforços das instituições democráticas e da sociedade civil no sentido exigi-los e incorporá-los em sua atuação cotidiana. Afinal a efetividade depende do incondicional exercício da cidadania e da democracia participativa.
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