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ESTEVES, JOÃO PISSARRA (ORG.), COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE, 2.ª ED., LISBOA, LIVROS HORIZONTE, 2009 A OPINIÃO PÚBLICA NIKLAS LUHMANN Muitos conceitos clássicos da teoria política encontram-se hoje numa situação contraditória: não os podemos, simplesmente, abandonar, nem levá-los a sério no seu sentido primitivo. Eles parecem caracterizar importantes avanços da sociedade moderna e dos seus sistemas políticos, mas fazem-no de uma maneira que já não satisfaz, sendo, por assim dizer, demasiado directa, demasiado compacta e simplificada. As mais recentes correntes científicas da teoria dos sistemas, da teoria da decisão e da teoria da organização, que procuram ampliar a capacidade científica de tratamento de factos complexos, abandonam o património dos conceitos tradicionais. As disciplinas que pretendem conservá-lo correm, por isso mesmo, o risco de se deixarem atrasar ou de se limitarem à hermenêutica e à história das ideias. Nestas circunstâncias, a reconstrução dos conceitos políticos clássicos através de novos instrumentos de pensamento apresenta-se como uma tarefa interessante. Aqueles conceitos eram mesmo, não só criações científicas, mas, sobretudo, respostas a uma consciência aguda de problemas reais. Conceitos como política, democracia, domínio, legitimidade, poder, representação, estado de direito, controvérsia, opinião pública não visavam, sobretudo, explicar os acontecimentos e os desenvolvimentos efectivos; antes serviam para a fixação de soluções de problemas enquanto conquistas institucionais, e a sua problemática própria consistia, em boa parte, no facto de a precedente problemática do sistema permanecer obscura e muitas vezes desconhecida e de a “solução” poder consistir apenas numa combinação de exigências de comportamento e problemas consequentes, e não na eliminação do problema. A ser exacta esta suposição, deveria ser possível, mediante a clarificação e a fundamentação teórica dos problemas em causa, reconduzir estas respostas conceptuais às suas premissas, reconstruir o seu sentido, reconhecer a função das estruturas e dos processos em questão, e por esta via proceder à sua comparação com outras possibilidadesi. Semelhante tentativa deve ser aqui empreendida com base no conceito de opinião públicaii. O presente trabalho expõe-se conscientemente à objecção de que tudo o que será de seguida tratado sob o rótulo de opinião pública já nada tem a ver com o respectivo conceito clássico ou, então, falha, pelo menos, o núcleo essencial e a moralidade característica daquela. Para irmos ao encontro dessa objecção, enunciem-se as premissas que possam ser objecto de ataque: baseamos o nosso direito a prolongar a utilização do conceito na continuidade existente entre o problema e o seu âmbito de solução e encaramos o problema a que o conceito se refere na contingência do que é jurídica e politicamente possível, e o âmbito de solução do problema no processo de comunicação política. Da referência ao problema da contingência deriva a necessidade de uma reinterpretação da relação entre opinião pública e processo de comunicação: a opinião pública não pode mais ser considerada, simplesmente, como um resultado politicamente relevante, antes deve ser vista como estrutura temática da comunicação pública. Por outras palavras: não mais deve ser concebida, apenas, causalmente, como efeito produzido e continuamente operante, mas funcionalmente, como meio auxiliar de selecção. 1. “Opinião pública” é hoje um conceito cujo objecto se tornou discutível, ou até mesmo inexistente. Para a dissolução do objecto contribuiu, o que é significativo, precisamente a intenção de investigar empiricamente a opinião pública. A investigação empírica teve de introduzir substitutos dos dois elementos característicos do conceito. A opinião foi substituída por respostas, fornecidas a inquéritosiii, enquanto o elemento da publicidade foi substituído pelo interesse selectivo dos políticos por tais “opiniões”iv, ou pela influência que determinados grupos exercem sobre a formação da opinião. Se se combinar os substitutos dos dois elementos do conceito, torna-se evidente a problemática subjacente àquelas pesquisasv. Em todo o caso, os êxitos indiscutíveis de tais pesquisas não se podem atribuir às premissas teóricas que as fundamentam. Embora esta problemática científica seja conhecida há muito tempo, permanece contudo viva a recordação do conceito clássico, e da sua função política. O tema da opinião pública torna sensível a insuficiência de uma teoria política que se regule exclusivamente pelos aspectos institucionais. O poder político e o exercício de cargos políticos parecem ser insuficientes para uma compreensão plena dos acontecimentos políticos e para impedir que estes se desviem do seu curso normal. Com perplexa ironia, define V.O. Keyvi a opinião pública como “ o espírito santo do sistema político”. Importa, por conseguinte, descobrir um conceito mais apropriado, que não precise de ser acomodado nem na psicologia social nem na teologia, mas antes possa ser integrado numa teoria do sistema político. Se recuarmos até à concepção liberal da opinião pública, a sua pré-história torna antes de mais evidente que ela estava destinada a libertar a política da sua ligação com a verdade, típica do direito natural da velha Europa. O desenvolvimento da sociedade na Idade Média tardia e no início dos tempos modernos conduzira a uma diferenciação mais acentuada entre religião, política, economia e ciência, o que teve como consequência o surgimento, nestes domínios parcelares do sistema social, de novas autonomias e representações de objectivos mais abstractas. Os tradicionais fundamentos de verdade em que assentava a política perderam, por essa razão, a sua credibilidade e o seu carácter de ideias directrizes. Ainda dentro do direito natural interpretado como direito da razão, o pensamento jurídico do século XVIII converteu- sevii à positividade (fixação do direito mediante decisões) dos fundamentos do direito, necessitando para tanto de um quadro de orientação moderno, que estivesse à altura da tão elevada contingência do que é juridicamente possível. Apesar de todas as tentativas no sentido de estabelecer fórmulas teleológicas invariáveis e princípios racionais enquanto limites da política, surgiu a necessidade de uma bitola directriz mais dúctil que a verdade, capaz de poder alterar os seus pontos de vista e os seus temas. Tal bitola já não podia ser concebida como verdade, mas apenas como opinião – como maneira provisoriamente retida de conceber o justo, a qual passara por determinados controlos da razão subjectiva e da discussão pública. A opinião pública é, por assim dizer, contingência política substantivada – um substantivo ao qual se confia a solução do problema da redução da discricionariedade do que é jurídica e politicamente possível. Se quisermos examinar mais pormenorizadamente, teremos, portanto, de perguntar pelos fundamentos desta confiança, pelas premissas estruturais do sistema em que ela assenta, para se poder então verificar se estas suposições são também, ainda, válidas para o sistema social da sociedade industrial avançada. Se as análises de Habermasviii se confirmam na realidade, podemos reconhecer que subjaz ao conceito clássico de opinião pública uma situação geral da diferenciação social que apresenta as seguintes características: os sistemas de formação da opinião são pequenos círculos onde se debatem ideias, nos quais os seres humanos se podem encontrar e aceitar como seres humanosix. Para a ordem interna daqueles círculos, é essencial que não ocorra separação entre conflito e cooperação, ou seja, procura-seganhar o consenso daqueles contra quem se argumenta. O que é possível no interior de pequenos sistemas. A orientação, facilitada pela diferenciação amigo/inimigo, é substituída pela institucionalização do tacto, isto é, pela aceitação da liberdade de autorepresentação do outro como fundamento do comportamento próprio, e isso com uma certeza capaz de assegurar a confiança recíproca. A esta ordem interna corresponde, enquanto condições sociais de tais sistemas, uma combinação característica de diferenciação e segmentação. Os círculos acham-se diferenciados, na medida em que os seus membros não se orientam em conformidade com os outros papéis que lhes são próprios: sexo, idade, posição social, profissão, recursos económicos, etc.; como exprime a fórmula “seres humanos como seres humanos” ou o conceito abstracto de “sujeito”. Por outro lado, os círculos estão segmentados na relação uns com os outros, uma vez que são constituídos de modo idêntico e uniforme, e não com base numa função particular que lhes seja atribuída. Este conjunto singular de circunstâncias permitia, mantendo-se ele próprio latente, que o “geral” se convertesse em tema de discussão e, por essa via, em problema; simultaneamente, tornava compreensível a possibilidade de generalizar a razão. A igualdade dos círculos de discussão e a neutralização das influências políticas, económicas e derivadas da posição social sobre a discussão permitiam admitir como geral a opinião que neles se formava; que as experiências neles desenvolvidas aparecessem como universalmente válidas; que as expectativas que se aprendia a acalentar como ressonância do comportamento próprio pudessem ser admitidas como expectativas de todos e, enquanto tais, pudessem substituir as velhas instituições; e que fosse possível chegar a um acordo baseado numa compreensão de si moralmente fundamentada, sem ter de atender às condições económicas, de classe ou derivadas da estrutura do sistema que influenciam um tal pensamento. Puderam, assim, ser activadas experiências que permitiram uma fácil transição da razão individual para a geral, e depois, também, da vontade supra-individual para a vontade geral. Os novos meios de difusão destas opiniões fizeram mais do que o necessário para convencer no que toca a essa possibilidade. Surpreendentemente, foi a diferenciação de uma sociedade ela própria já funcionalmente diferenciada que tornou possível aos que se envolviam nos debates compreenderem-se a si mesmos como “a sociedade” – uma chance, em boa verdade, provisória. Um rápido olhar à história do pensamento revela que aquela crença na razão e, também, a crença na capacidade da opinião pública para exercerem um controlo crítico e alterarem a estrutura do poder não podiam manter-se por muito tempo. É natural que a sociologia não interprete essa desintegração como um desenvolvimento dialéctico, auto-evidente e imanente do espírito, mas antes encontre a sua razão de ser na improbabilidade e na impossibilidade de estabilização das complexas estruturas sistémicas que suportavam aquelas crenças e a estas reconduziam as necessárias experiências. Faltam-nos, na verdade, análises suficientemente formais no campo da teoria social que possam fundamentar a hipótese segundo a qual a diferenciação progressiva de subsistemas segmentares sem função específica seria, em geral, instávelx. O desenvolvimento subsequente da sociedade moderna em direcção à era industrial encaminhou-se decisivamente, contudo, no sentido de uma sempre maior diferenciação funcional e de uma maior especificação de subsistemas, pelo que se torna impossível aos grupos que se subtraem a esta diferenciação afirmar serem eles a sociedade. A diferenciação funcional conduz à abstracção de perspectivas específicas do sistema, à sobreprodução de correspondentes representações de desejos e de exigências normativas e, por conseguinte, a uma pressão selectiva que se exerce sobre todos os participantes. A especificação em sub-sistemas e os modos de selecção são consolidados de forma organizada; são, portanto, executados por sistemas que se ajustam a processos de tomada de decisão e que, ao criarem as estruturas para tanto necessárias, já não podem representar qualquer interesse geral. A própria sociedade nem por isso regista uma simplificação do ponto de vista organizativo, nem passa a estar tecnicamente determinada; bem pelo contrário, ela torna-se num “campo turbulento”xi, no qual todos os sistemas são fortemente pressionados pela complexidade, tendo de se adaptar não só aos acontecimentos, mas sobretudo às adaptações dos outros sistemas. Estas transformações exigem um reexame mais radical do conceito de opinião pública do que tinha previsto a célebre conceptualização de Habermasxii. O conceito de opinião pública não é susceptível de ser facilmente repetido no interior da organização, pois as organizações assentam, precisamente, na fragmentação da consciência e nelas, por conseguinte, não se podem realizar nem aquelas premissas estruturais nem as correspondentes experiências, sobre as quais se fundara a hipótese da existência de uma opinião pública crítica. A “produção de publicidade” no interior da organização conduz, no melhor dos casos, à criação de situações penosas, não raro, até, a consideráveis perturbações funcionais que permitem aos seus causadores a emancipação pela tomada de consciência do próprio papel, mas não a sua emancipação como seres humanos através do meio, criador de solidariedades, que é o espaço público. Deste modo, as representações humanitárias da época do Iluminismo associadas ao conceito de espaço público são recebidas de uma forma demasiado directa, demasiado à letra. Importa encontrar traduções mais abstractas. 2. Encontramos um termo de comparação suficientemente abstracto, quando nos interrogamos sobre a função daquilo que é abrangido pelo conceito de opinião pública. Em última análise, trata-se do problema da contingência política e jurídica de decisões vinculativas: a elevada discricionariedade do que é política e juridicamente possível deve ser reduzida, se não através da verdade, pelo menos através de opiniões fortalecidas pelo debate. Com o conceito de “opinião pública”, o que é, antes de tudo, oferecido, enquanto solução do problema, é um substantivo cujo substrato permanece obscuro. Mas com a substantivação, nem por isso os problemas se resolvem; fica pendente tudo o que se oculta em termos de factos e critérios por detrás do conceito de opinião. Igualmente insuficientes se revelam a conversão do problema em paradoxo, a sua dissolução romântica no infinito, ou a sua formulação dialéctica ou utópica, pois nenhuma destas soluções proporciona à teoria ou à prática contornos unívocos. Como problema referente às análises funcionais é possível, em compensação, especificar a contingência do que é jurídica e politicamente possível, e utilizar este critério como termo de comparação com outras propostas de solução do problema. A contingência, no sentido de “também-ser-possível-de-modo-diferente”, converte-se em problema quando é confrontada com a necessidade de estrutura da experiência vivida e do comportamento humano. O problema de ter de colocar as estruturas num horizonte de outras possibilidades adquire uma importância crucial para a formação da consciência na era moderna, em relação com as transformações evidentes das estruturas sociais. A nossa tese é a de que o conceito de opinião pública relaciona este problema com um sector particular da experiência e do comportamento humanos, nomeadamente com a comunicação interpessoal, sobretudo a de tipo político. Se se considerar que a comunicação se deveproduzir com um potencial mínimo de atenção consciente – e este é o ponto em que nos diferenciamos da autocompreensão e do conceito de razão do tempo do Iluminismoxiii –, torna-se evidente que tal comunicação tem de estabelecer pressupostos, tem de estar já na posse de temas possíveis. Aquilo que se designa por opinião pública parece residir no domínio desses temas da comunicação que, enquanto pressupostos, limitam a discricionariedade do que é politicamente possível. Por “temas” é nossa intenção designar certos complexos de sentido mais ou menos indeterminados e susceptíveis de desenvolvimento, sobre os quais se pode conversar e ter opiniões iguais, mas também diferentes: o tempo, o novo automóvel do vizinho, a reunificação da Alemanha, o ruído do motor da máquina de cortar relva, a subida dos preços, o ministro Straussxiv. Semelhantes temas constituem a base estrutural de qualquer comunicação, sendo esta conduzida como interacção entre vários parceiros. Eles tornam possível a referência comum a um significado idêntico e impedem que as pessoas falem sem se entenderem. Uma comunicação não pode ter início sem a existência de possíveis objectos comuns de comunicação, e estes acordos prévios consolidam-se no curso da comunicação, tornando-se limites mais ou menos estáveis do sistema, num mundo da vida aceite em comum e que de antemão se admite como desarticuladoxv. A comunicação pressupõe, por conseguinte, além da linguagem comum, dois outros planos de fixação do significado: a escolha de um tema e a articulação das opiniões relativas a esse tema. Somente no interior desta diferença se pode constituir a diferença entre opiniões concordantes e discordantes. De modo análogo, também a história do desenvolvimento de um sistema de comunicação pode comportar modificações de sentido nesses dois planos – mudanças de temática e mudanças no que respeita às opiniões estabelecidas. Ambas as variações dependerão, pela sua típica natureza própria, uma da outra, ou seja, a escolha dos temas não se fará independentemente das previsíveis ou evidentes possibilidades de consenso ou de dissensão. Esta dupla estrutura de temas e de opiniões é, na verdade, apenas necessária se a comunicação for conduzida de forma interactiva. Uma diferenciação dos temas sobre os quais se discute só tem sentido se se pressupor que o receptor da comunicação é alguém que pode responder, que não se pode furtar ao tema, mas que pode exprimir outras opiniões sobre o tema, introduzindo dessa forma, no domínio do que deva ser ordenado, a elevada complexidade de outras possibilidades. Uma comunicação unilateral a que se não possa responder (manipulação) poderia dispensar aquela estrutura e sugerir de imediato a opinião a reterxvi. O facto da opinião pública se constituir através daquela dupla estrutura significa que, nos canais de comunicação em causa, não se comunica de forma manipulativa, mas interactiva – por exemplo, debatendo ou participando de forma cooperativa na tomada de decisões. Depois destas reflexões, torna-se já possível identificar alguns perigos característicos que ameaçam a função da opinião pública. Estes apresentam-se como formas de amálgama de tema e opinião, que excluem a possibilidade de resposta à comunicação, tornando-se esta, por conseguinte, manipuladora. O que pode ocorrer no caso de unilateralidade, tecnicamente provocada, da comunicação através dos mass media, no caso de exposições psicotecnicamente trabalhadas, mas, sobretudo, no caso de recurso à moralização da comunicação (e, naturalmente, com o mais alto grau de certeza, no caso em que todas estas circunstâncias se encontram presentes). Até agora, pelas mais variadas razões, a moralização manipuladora tem despertado pouco interessexvii. A situação é, na verdade, complexa. A condição da sua possibilidade é uma sociedade altamente complexa, cuja integração através de uma moral colectiva já não é possível, ou, em todo o caso, já não é evidente. Nestas condições, a atribuição à comunicação de uma valência moral funciona como meio para a tornar irrespondível. O destinatário de semelhante comunicação vê-se confrontado por um papel, que lhe é implicitamente distribuído e que vincula o seu valor pessoal a determinadas opiniões. E, o que é mais desagradável ainda: ele surpreende nessa exigência um empenho moral do seu interlocutor, que a delicadeza, o tacto ou a necessidade de tranquilidade o inibem de desacreditar. Deve, então, acolher aquele que se lhe dirige como alguém que dele espera o que ele não pode ser – e sai depois de cena, com o melhor dos modos, mediante a suspensão ou a banalização da comunicação. Como acontece com qualquer manipulação, também esta exclui, à partida, qualquer diferenciação entre tema e opinião: a institucionalização do tema é de tal maneira fundida com as implicações morais das opiniões que a afirmação de uma moral ocorre juntamente com a pressão para que seja aceite. Difundida pelos mass media, por espectáculos e cartazes publicitários, nasce assim aquela moral pública sem ressonância que a todos deixa indiferentes. Se, pelo contrário, ocorrer no processo de comunicação uma diferenciação entre temas a opiniões e, por esta via, também uma diferenciação entre o motivo da comunicação e a afirmação de valores pessoais, a opinião pública pode constituir-se como estrutura de um processo de comunicação limitadamente aberto. Em tais processos de comunicação, chegar-se-á, com a ajuda de temas que impliquem um envolvimento, ao confronto de opiniões; enquanto com base em morais engajadas não se chegará à controvérsia sobre o direito à divergência de opiniões. Podemos exprimir o resultado desta análise sob a forma de uma regra geral: relações sociais sempre mais complexas só podem ser tratadas mediante processos de comunicação sempre mais complexos. A diferenciação entre temas e opiniões favorece o aumento deste potencial de complexidade. Sem ela, a comunicação já não pode ser, hoje, conduzida de forma interactiva, nem pode ser dominada a complexidade daquilo que para muitos sujeitos é razoavelmente possível. No contexto político também não é possível comunicar de outra maneira. Daí que os temas das possíveis comunicações adquiram uma importância prioritária. Eles actuam como regras para a actualização contínua de expectativas na interacção concreta e guiam, desse modo, a formação das opiniões. O mecanismo de redução da comunicação política, que o conceito de opinião pública abrangia, não consiste, portanto, nas próprias opiniões, mas nos temas da comunicação política. Deste modo, ao que me parece, pode encontrar solução o velho problema da unidade dos efeitos apesar do carácter contraditório da opinião públicaxviii. A função da opinião pública não deve ser inferida da forma das opiniões – da sua generalidade e possibilidade de discussão crítica, da sua racionalidade, capacidade consensual e representatividade pública –, mas da forma dos temas das comunicações políticas, da sua aptidão enquanto estrutura do processo de comunicação. E esta função não consiste na justeza das opiniões, mas na capacidade dos temas para absorver a incerteza e para criar estruturas. Por conseguinte, o problema não consiste na generalização do conteúdo das opiniões individuais sob a forma de fórmulas gerais, aceitáveis por todos os seres racionais, mas na adaptação da estrutura dos temas do processo de comunicação política à necessidade de tomada de decisões por parte da sociedade e do seu sistema político. Uma tal deslocação da atenção das opiniões para os temas que regulam as opiniões é pertinente não apenas por permitir uma melhor fundamentação no âmbito de uma teoria dos sistemasde comunicação, mas também pelas interessantes questões que levanta. Ela permite associar as pesquisas de opinião pública a uma teoria do sistema político (e até a uma teoria do sistema social), que identifica na complexidade deste sistema a variável independente primáriaxix. A complexidade do sistema político, ou seja, o número e variedade das possibilidades de experiência e de acção nele realizáveis, está efectivamente relacionada com a sua “capacidade temática”, isto é, com a estruturação temática dos seus processos de comunicação. A complexidade condiciona a capacidade temática, e vice-versa. Esta relação torna-se evidente não só na exigência de abstracção dos conteúdos de temas e opiniões, o que permite a estes cobrir um número maior e mais variado de factos e circunstâncias. Ela apresenta muitos outros aspectos que não podiam ser compreendidos com o conceito clássico de opinião pública, mas que podem ser reunidos sob o conceito funcional de opinião pública aqui defendido. Também a dimensão da diferenciação objectiva e táctica entre temas e opiniões (3), a mobilidade temporal dos temas (4) e as formas da sua institucionalização social (5) mudam com a complexidade do sistema político e com o peso da selecção dos seus processos de decisão. 3. A teoria geral da organização ensina-nos que, em todos os sistemas sociais complexos que se ocupam de processos de decisão está presente uma diferenciação entre “attention rules” e “decision rules”, uma vez que a capacidade de operar confrontos conscientes não é suficiente para esgotar as possibilidades lógicas de racionalizaçãoxx. Porque a atenção é escassa, desenvolvem-se necessariamente regras sobre a captação da atenção, que se diferenciam das regras segundo as quais as decisões são tomadas e julgadas correctasxxi. Somente dentro dos limites daquilo que é geralmente considerado com atenção __ de algum modo, portanto, após a selecção preliminar efectuada pelas regras da atenção __, se pode chegar a decisões racionalizáveis. O objecto que desperta atenção não é necessariamente idêntico ao objecto sobre o qual, depois, efectivamente se decidexxii. Os processos de distribuição da atenção no sistema diferenciam-se, assim, significativamente, dos processos de tomada de decisão e, caso esta mesma diferenciação cumpra efectivamente a sua função, estes processos têm de ser julgados segundo critérios diferentes. Este ponto de vista, proveniente de uma área de pesquisa completamente diferente, pode ser aplicado à nossa distinção entre temas e opiniões, e ilustra uma das suas funções. As regras da atenção guiam a construção de temas políticos; as regras da decisão guiam a formação da opinião, nomeadamente, nas instâncias competentes em matéria de decisão. Os temas não servem directamente para determinar o conteúdo das opiniões, mas, em primeiro lugar, e sobretudo, para captar a atenção. Eles indicam aquilo que no processo político de comunicação se supõe possa ter ressonância e possa exigir capacidade de resposta, mas deixam em aberto quais opiniões sobre o tema serão sustentadas, quais as acertadas, quais as que serão capazes de se impor. O facto de dar atenção não significa ainda, portanto, ligação a determinadas opiniões e conteúdos de decisão, mas, quando muito, um estádio preparatório. E, inversamente, aspirações “em si mesmas” razoáveis e opiniões correctas não podem, por si, converter-se em temas dos processos de comunicação política, sem primeiro passarem pelo filtro das regras da atenção, construído de acordo com outros pontos de vista. A activação desta função de filtro precede o processo de comunicação. O que permite supor que o sistema político, tanto quanto assenta na opinião pública, não deve ser de modo algum integrado nas regras da decisão, mas nas da atenção. Em todo o caso, as regras da atenção oferecem, do ponto de vista social, um acesso mais amplo e a maior força integradora: elas podem, devem até, ser as mesmas, inclusivamente para participantes que agem de acordo com outras regras de decisão, enquanto a relação contrária não é possível. Nestas circunstâncias, poderia ser de grande importância, tanto do ponto de vista teórico como prático, conhecer as regras de atenção de um sistema político. Todavia, sem uma investigação empírica especialmente dirigida a esse objectivo, não será possível produzir, no momento presente, quaisquer afirmações seguras sobre essa questão. A observação ocasional da nossa cena política permite, no entanto, supor que, na distribuição da atenção e na formação dos temas, sejam observadas, entre outras, as seguintes regras: (1) Nítida prioridade de determinados valores, cuja ameaça ou violação origina, só por si, um tema político. Pense-se, por exemplo, na ameaça à paz, em interferências na independência da justiça, nos aspectos morais dos escândalos políticosxxiii.Os valores, por conseguinte, não só actuam como regras de decisão no interior de programas, mas também, ao mesmo tempo, noutro contexto, como regras de activação da atenção, sem que para o exercício desta função seja necessário ponderar a relação com outros valores. Um indicador operacionalizável de tais prioridades consistiria no facto de os temas correspondentes se poderem impor em face dos prazos fixados pelos políticosxxiv. (2) Crises ou sintomas de crisesxxv. As crises são ameaças inesperadas (tematicamente não preparadas) não só no que respeita a valores isolados, mas também, às exigências, intrínsecas ao sistema, impostas pela sua estabilidade. As crises, ao estimularem e concentrarem a atenção, e na medida em que colocam em perigo de forma difusa, indeterminada, o nível de desempenho de numerosos valores, colocam estes sob a pressão do tempoxxvi. É nisso que se baseia o seu efeito de integração, que deve ser diferenciado dos efeitos de inovação das crises, os quais se devem à mudança das regras de decisão sob pressão de situações de excepçãoxxvii. Em todos os sistemas sociais, as crises poderiam incluir-se entre as regras de distribuição da atenção; as respectivas diferenças têm a ver com o tipo de acontecimentos (por exemplo, demissão de um ministro, carestias, subidas excepcionais de preços, motins e actos de violência) que tornam uma crise perceptível e imputável, e com o tempo que ainda resta para uma tomada de decisãoxxviii. (3) Posição social do emissor de uma comunicação. As comunicações de chefes políticos, personalidades conhecidas e celebridades sociais recebem mais atenção e despertam um eco maior do que as de pessoas sem uma posição social eminente. A posição social influencia, por assim dizer, a comunicação. Este efeito é, além disso, independente do facto do detentor da posição social ser ou não capaz de afirmar a sua vontade em situações concretas. (4) Sintomas de sucesso político. Uma vez que no mundo complexo da política as condições reais do sucesso são muitas vezes imprevisíveis e não estão disponíveis informações em número suficiente, o seu lugar é ocupado por sintomas dotados de um melhor valor de orientação, por exemplo, um número crescente de votos, ou a menção de um nome ou de um facto na imprensa, ou o acesso imediato aos detentores dos mais altos cargos públicos. As circunstâncias que podem estar associadas a estes sintomas de sucesso recebem mais atenção, sobretudo por parte dos que se acham envolvidos na política activa, do que outros dados que, porventura, também possam ser importantes para a formação da opinião. (5) A novidade dos acontecimentos. Circunstâncias que permaneçam inalteráveis escapam à consciência, enquanto as mudanças dão nas vistas e chamam sobre si a atenção. O “novo” surge envolto numa presunção de importância.Em todo o caso, nas sociedades complexas, a percepção das inovações também se converte num problemaxxix, ao ponto de se constituírem subsistemas específicos que visam propriamente esse objectivo, em especial a imprensa diária, e que correm assim o risco de se especializarem demasiado nas novidades, em detrimento das questões importantes. (6) Dores ou seus equivalentes provocados pela civilização. Ameaça de danos físicos ou orgânicos, “stress”, ameaça à intimidade das relações pessoais, prejuízos financeiros, restrições orçamentais, perdas de posição social, especialmente as que se puderem medir e comparar – todos estes factos apresentam um elevado grau de alarme, se já não se puderem enquadrar em evidências institucionais, nem puderem ser compensadas pela ideia de um sacrifício que tenha sentido. Todas estas regras da atenção, e porventura ainda outras, derivam da estrutura do sistema político, ajustam-se a ela; não são, portanto, estabelecidas arbitrariamente, nem podem ser mudadas de qualquer maneira. Desta forma, a estrutura do sistema político regula a opinião pública, sem que a determine de uma maneira estável. A própria pluralidade das regras da atenção é determinante para a permanente abertura da opinião pública; ela impede que apenas valores estabelecidos, apenas crises, apenas comunicações dos detentores de posições sociais elevadas, apenas a própria lógica interna de sucesso do sistema político, apenas novidades ou apenas dores ou os seus sucedâneos determinem a temática do processo político de comunicação. A unilateralidade dos pontos de vista, indispensável para captar a atenção, pode ser, assim, reequilibrada no interior do sistema. 4. Que a opinião pública, sob a forma de uma diferenciação de temas e de opiniões, se torna relevante em termos de direcção de um sistema político, demonstra-o a elevada complexidade deste último. Esta complexidade é uma consequência da diferenciação social do sistema político, da sua constituição como subsistema da sociedade, separado de outros âmbitos de funçõesxxx. Com semelhante diferenciação e aumento da complexidade subsistémica, surge, ao mesmo tempo, uma necessidade de variação estrutural no subsistema, pois o número de possíveis condições do sistema, necessário aliás para a adaptação à sociedade (a “requisite variety”xxxi do sistema político), só pode ser alcançado mediante mudanças estruturais muito frequentes e muito rápidas. No caso do processo de comunicação política, isso traduz-se na mobilidade da estrutura dos seus temas: os temas da comunicação política não só devem manter-se abertos às diversas opiniões e decisões, mas devem também poder ser alterados de acordo com as necessidades. Esta mudança parece observar uma certa ordem. Embora, também neste caso, não exista investigação empírica suficientexxxii, pode observar-se que os temas políticos não podem ser produzidos e desenvolvidos de qualquer maneira, no quadro estrutural do sistema político; pelo contrário, possuem como que uma biografia que, tal como a própria vida, pode percorrer diversos caminhos e ser prematuramente interrompida, mas pode também ser ordenada segundo fases típicas. Em cada uma das fases da carreira de um tema, mantêm-se por vezes em aberto determinadas possibilidades, surgem determinados problemas para resolver, haverá que satisfazer determinados pressupostos de participação; daí resultam oportunidades de acção estruturada para aqueles que põem o tema em movimento, que o promovem, travam, bloqueiam, ou que gostariam de encaminhá-lo por determinadas viasxxxiii. Os temas políticos passam, em geral, primeiro, por uma fase latente, durante a qual eles aparecem já como possíveis, especialmente aos iniciados e aos interessados, e em que são já postas em marcha actividades que precedem o seu nascimento; durante esta fase, porém, não se pode supor que os políticos, ou mesmo os não políticos, conheçam o tema e estejam dispostos a ocupar-se dele. O objecto em questão já surge, com maior ou menor nitidez, diante dos olhos de alguns, mas falta ainda, muitas vezes, a palavra que o designe – reservas naturais, esquerda extraparlamentar, revalorização da moeda, reforma das universidades, planos de educação, lei do estado de emergência, co-gestão das empresas, vacinação contra a poliomielite, prevenção dos acidentes rodoviários, escolas secundárias, etc. –, sob a qual o tema iniciará a sua carreira e poderá começar a ser debatido. Não há ainda qualquer urgência de decisão. Nada tem de acontecer. Frequentemente, os temas vegetam por muito tempo nesta forma preliminar, até reunirem a força necessária para uma carreira política e ter chegado o momento exacto de isso acontecer. Para muitos temas, esse momento nunca chegará. Alguns temas, no entanto, conseguem abrir caminho. Quando são pessoas corajosas que se saem bem na criação de um tema político, que apostam nele, que o divulgam, dedicando-lhe tempo, recursos e contactos. Muitas vezes, são outsiders que só se interessam por um determinado tema e que não têm nada a perder em termos políticos. Com frequência, trata-se de principiantes que, cavalgando o tema, iniciam uma carreira. Esses, com sorte e habilidade, conseguem que o tema não mais ocupe apenas aqueles que por ele se interessam, mas passe para as mãos dos que fazem política com temas variados. Neste estádio inicial, os temas ainda podem ser censurados, bloqueados ou desviados para caminhos secundários onde circulam os assuntos alheios à política; os poderosos têm ainda a possibilidade de dizer sim ou não ao tema. Se, todavia, o tema ganhar entretanto popularidade e se converter em moda, assume então a função de uma estrutura do processo de comunicação. Torna- se parte integrante da opinião pública, no sentido que lhe dá o nosso conceito; aparece num artigo da imprensa diária, o que pressupõe que todos conhecem os antecedentes do tema. O facto de ele aparecer como uma coisa evidente impede que seja rejeitado. O tema, em si mesmo, já não está disponível para recusa, mas apenas as opiniões e decisões sobre ele. São outros agora os seus promotores. Referir e aprovar o tema já não representa qualquer risco, pois ele já andou na boca de ministros, presidentes, chanceleres e generais. Ele atinge, então, o ponto culminante da sua carreira. Os seus opositores têm de recuar, recorrendo a manobras dilatórias, para ganhar tempo, e a um reconhecimento limitado, com reservas; ao passo que os seus promotores devem, agora, tentar incluí-lo nos orçamentos ou nos programas de decisão da administração. O tempo para o fazerem é escasso, pois os primeiros sinais de cansaçoxxxiv, as primeiras dúvidas e experiências negativas não tardam a aparecer. Podem manifestar- se opiniões próprias, de forma destacada, também no espaço público, incluindo na exposição os problemas que a questão levanta. Se nada acontece em relação ao tema, isso é sintoma de dificuldades, que acabarão sempre por surgir. Pouco depois, o tema deixa de suscitar interesse. Os peritos voltam-lhe as costas. O tema fossiliza-se num significado puramente cerimonial, torna-se num símbolo de boa vontade, diante do qual todos se curvam em determinadas ocasiões solenes. Faz a sua aparição nos discursos oficiais, em relatórios sobre produção das empresas, em ofícios de agradecimento. Ou, então, reveste a forma de um velho sonho irrealizado, que precisa de escândalos para, de tempos a tempos, voltar a despertar a atenção – por exemplo, o combate à especulação urbana. Quem ainda se pronuncia com entusiasmo sobre o tema mostra apenas que não está actualizado. Enquanto impulso para mudanças, o tema está morto; será mais difícil animá-lo doque a temas ainda não nascidos, uma vez que a sua história bloqueia qualquer renovação. Caso o tema não tenha resolvido o seu problema, deve renascer como tema novo. Talvez a característica mais relevante deste processo seja a diminuição da distância entre tema e opinião ou entre tema e decisão. A biografia de um tema é, ao mesmo tempo, uma história de condensação e concretização do sentido. Nela se consuma a assunção do significado do tema pela sua própria história: não se pode, hoje, propagandear a “reforma da administração” sem conhecer, compreender e presumir como conhecimento generalizado tudo o que, até agora, foi empreendido, e fracassou, sob essa designação; há que se distanciar desta história, há que reclamar, portanto, a “autêntica”, a “estrutural” reforma administrativa “a médio prazo”, “que não deve mais ser apenas…”. A história do tema, que se mantém fiel ao sentido deste, concretiza o tema e anula a distância entre regras da atenção e regras da decisão, a que nos referimos na secção anterior. É próprio dos temas políticos da opinião pública, sem que os mesmos sejam opiniões ou decisões, uma tendência para a formação de opiniões e para a tomada de decisões. O sistema político não pode tratar demasiados temas em simultâneo; tem de pôr de lado alguns, para dar lugar a novos – e isto a um ritmo tal que não deixa tempo suficiente para um tratamento adequado dos temas. Ao mesmo tempo, é necessário que a história da comunicação política, enquanto parte integrante dos temas, se converta em estrutura e possa então ser, de vez em quando, posta de lado mediante a supressão de velhos temas e a invenção de novos. Impede- se, desta maneira, que os temas da prática política quotidiana permaneçam inactivos na irrealidade abstracta dos valores integrados: eles chegam, assim, pelo menos em parte, à decisão. Por outro lado, este tipo de mobilidade dos temas, pelo menos por agora, não garante suficientemente reformas estruturais duradouras. A teoria liberal reconheceu, na verdade, o instável flutuar da opinião pública, mas não podia aprovar a sua instabilidade, nem conseguiu explicar e integrar a sua função; teve, por essa razão, de se entregar à esperança no progresso. Continuou, assim, sempre à procura de um sentido invariante, como fundamento da prática de decisão política – se não verdades no sentido das ciências modernas, pelo menos opiniões racionalmente fundadas, universalmente válidas. Partindo desta premissa, a opinião pública, segundo a mais antiga teoria liberal, pôde anunciar, em nome de constantes racionais comuns a todos os homens, uma pretensão de domínio que foi, na prática, a da burguesia em ascensão. Dado o carácter ideológico dessa pretensão, a teoria em causa teve de limitar-se a uma função de crítica e de controlo, que confere ou nega relevância ao tema em apreço. Não se podia ainda pensar que o domínio se funda na variabilidade, e o poder na possibilidade de exercer influência. A opinião pública veio, assim, ocupar o seu lugar ao lado da dominação política, entendida esta como o verdadeiro centro do sistema político. Este último foi concebido, tal como anteriormente, como um sistema de cargos públicos, e não como um processo de comunicação estruturado. Estes pressupostos têm agora de ser reexaminados profundamente. A condução normal do sistema político de uma sociedade altamente complexa só pode ser exercida por mecanismos que apresentem uma variedade análoga, que sejam capazes de organizar um intercâmbio de matérias de comunicação e de estabelecer a sua ligação a exigências estruturais mais gerais (por exemplo, as de diferenciação do sistema). Na medida em que a estrutura dos temas do processo de comunicação política, que designamos por opinião pública, realiza efectivamente esse trabalho, ela assume a função de mecanismo orientador do sistema político que, não determina, é verdade, nem o exercício do domínio nem a formação das opiniões, estabelece, no entanto, as fronteiras daquilo que é, em dado momento, possível. No processo de comunicação política, qualquer papel, se não quiser renunciar à compreensão e à ressonância dos temas, tem de se ajustar à estrutura dos temas da opinião pública, ou seja, às regras da sua variação, mantendo-se assim dependente de uma compatibilidade com a opinião pública. Uma tal inserção de temas alternantes, e em si mesmos mutáveis, na estrutura da comunicação não pode deixar de ter repercussões sobre os elementos estruturais, relativamente constantes, do sistema político. Estes últimos têm de se tornar, em conformidade, suficientemente abstractos para poderem veicular temas mutáveis. Estas mudanças podem ser efectivamente observadas: por um lado, na organização processual dos procedimentos de decisão, e, por outro, na institucionalização de avaliações abstractas. Os procedimentos da escolha política, da legislação parlamentar, da jurisdição e da administração estão organizados de tal maneira que a sua forma e aceitabilidade dos resultados se conservam relativamente independentes dos temas tratadosxxxv, quaisquer que estes sejam; os procedimentos podem, assim, assegurar, uma vez por outra, a sustentação e a modificação dos temas da opinião pública em cada momento. Valores correntes, como, por exemplo, o dinheiro, a saúde, a justiça, a arte, a educação, a conservação da natureza, a paz, a repressão da criminalidade, a melhoria das comunicações, o divertimento, etc., são de tal maneira abstractos que, na discussão de numerosos temas, se pode confiadamente fazer referência a eles, sem ter de recear que alguém conteste esses valores em si mesmos. Para o seu reconhecimento, não é preciso aduzir razões ou motivos pessoais. Somente a relação hierárquica entre os valores e a necessidade de uma renúncia parcial aos mesmos estão abertas à discussão, de tempos a tempos, e mudam com os temas da opinião públicaxxxvi. Esta última deve ser capaz de organizar, no quadro da afirmação constante de pontos de vista avaliativos, a mudança das preferências actuais. 5. Uma atribuição de funções de tão grande alcance reclama, inclusivamente, uma reinterpretação do conceito de publicidade, conceito que foi quase por completo ignorado nas nossas reflexões precedentesxxxvii. Esse conceito deve ser definido partindo de um quadro de referência mais abstracto. Ele não pode ser mais considerado, unicamente, como qualidade (jurídica) de coisas, por referência a determinados lugares comuns, ou como uma espécie de atmosfera. Traduzido em termos sociológicos, publicidade quer dizer o mesmo que neutralização das exigências de papéis procedentes de subsistemas mais limitados da sociedade, e, por essa razão, um afrouxamento, se não mesmo a anulação, dos vínculos pessoais que o indivíduo contraiu, pelo seu comportamento, no interior de sistemas mais limitados. O conceito político de publicidade da Antiguidade tem muito claramente em mira a cidade, entendida esta como praças, coisas, temas e ocasiões comuns a todos, e exclui, dessa forma, tudo o que tenha a ver com casas particulares e famílias. Se considerarmos a história da evolução e do pensamento que operou a transição das sociedades arcaicas para as altamente civilizadas, torna-se evidente que o conceito de publicidade não se dirigia contra a personalidade humana singular, com a sua necessidade de uma esfera privada de intimidade – pelo contrário, o indivíduo só adquire a sua individualidade como ser humano no âmbito público de carácter político – mas, sim, contra as vinculações a papéis próprias das associações de família arcaicas. Estas, ao serem atingidas e restringidas, deixam de ser directamente relevantes para a constituiçãojurídica da sociedade. A retomada da ideia de publicidade na época do Iluminismo revestiu um significado idêntico. O conceito refere-se a uma sociedade mais ampla e mais fortemente diferenciada, exigindo, por isso, em termos mais abstractos, a anulação do particular no geral. Também, neste caso, se trata de um conceito de valor, cuja tónica não pode ser compreendida directamente a partir do significado atribuído a factos “públicos”, “abertos”, “claros”, “verdadeiros”, “legítimos”, “racionais”xxxviii, mas a partir do estádio de desenvolvimento da sociedade e dos seus problemas específicos, que o conceito simboliza. Este estádio revela a problemática consequente de uma sociedade fortemente diferenciada, nomeadamente, o facto de a integração da sociedade só ser possível mediante a neutralização das tradições particulares do sistema, das projecções das normas, das necessidades e dos interesses defensivos dos subsistemas da sociedade. Com isto, o conceito de publicidade volta-se, pela primeira vez, contra interesses políticos específicos, em especial os interesses de conservação do segredo. Desde então, o quadro geral da sociedade transformou-se mais uma vez. A diferenciação funcional da sociedade desenvolveu-se a tal ponto que se tornou altamente improvável uma integração da sociedade no seu todo mediante opiniões públicas sem qualquer ligação particular a um subsistema. Isto obriga a uma nova interpretação do conceito de publicidade com base na sua função, e a transferi-lo, assim, para os subsistemas; neste caso, para o sistema político da sociedade. Publicidade significaria, então, que o sistema político produz situações que possibilitam que a função de neutralização de situações públicas se concretize. Situações, portanto, em que as comunicações não são estruturadas por subsistemas não políticos da sociedade (por exemplo, famílias, grupos de pesquisa, bancos, clubes específicos de certos estratos sociais), nem tão-pouco pelas características de subsistemas mais restritos do sistema político (por exemplo, grupos de interesses particulares, partidos políticos, serviços públicos), mas, precisamente, pelos temas da opinião pública. Desta forma, o problema a ser resolvido pela “produção de publicidade” transfere-se para um terreno muito mais difícil. Já não pode ser resolvido, simplesmente, através de um determinado tipo de situações. Na verdade, aquela neutralização de exigências restritivas não pode ser alcançada, somente, pelo recurso a irrupções violentas, pelo recurso à mobilização e organização de massas, pela simples presença de muitos indivíduos, ou pela participação de delegados. As mudanças de situação deste tipo, contanto que não sejam institucionalmente preparadas, levam apenas a que a verdadeira comunicação se retire das situações publicamente acessíveis. O problema reside, antes, na estrutura dos temas do processo de comunicação política. A publicidade é um problema de institucionalização de temas da comunicação política, num sentido que deve ser elaborado de maneira bem mais precisa. Por isso mesmo, não se revela decisiva para a função da opinião pública a (inalcançável) “publicidade” de todas as comunicações políticas, mas sim a estruturação da totalidade da comunicação política, mesmo a não pública, mediante temas institucionalizados. Os temas podem ser considerados institucionalizados, se e na medida em que se possa supor a disponibilidade para deles se ocupar em processos de comunicação. A publicidade seria, portanto, a admissibilidade da aceitação de temas. A questão crítica é, então, a de saber por parte de quem e graças a que informação preliminar sobre o parceiro de comunicação. Pertence ao saber normal sobre a conduta da vida a capacidade de avaliar os interlocutores com base em temas possíveis, e os temas com base nos possíveis interlocutores. O tempo, o sexo, o futebol, as férias, os impostos, a exposição de quadros de um pintor na moda, os problemas da educação dos filhos, os acidentes rodoviários, os modelos de automóveis, o preço dos géneros e o poder de compra, etc., são temas mais ou menos públicos, na medida em que se pode escolhê-los sem saber muita coisa sobre o interlocutor, sobre a sua biografia, sobre as suas relações e a sua filiação política. Eles estruturam a comunicação quotidiana, sobretudo no que respeita a situações sociais em que já se dispõe de um interlocutor e importa encontrar um tema que se lhe adapte. Mediante a diferenciação de sistemas de comunicação com funções específicas, multiplicam-se, ao mesmo tempo, os casos em que já se dispõe de um tema e se procura para ele um interlocutor – por exemplo, pessoas que, tal como nós, investigam sobre a socialização, ou que gostariam, também, tal como nós, de pôr em discussão, encurtar ou, pura e simplesmente, abolir o estágio dos juristas. Descobrir interlocutores particularmente interessados é, naturalmente, mais difícil do que encontrar temas para interlocutores já existentes. O carácter público de um tema torna mais fácil, nestes casos, encontrar interlocutores. Não nos devemos dirigir apenas, por exemplo, a funcionários dos ministérios competentes, mas também a associações profissionais, partidos, personalidades políticas eminentes, ou mesmo ao público, através da imprensa. Pode, então, presumir-se que todos estes não rejeitarão uma comunicação sobre o tema em questão, por a considerarem inoportuna, e que, pelo contrário, a aceitarão. Os pontos de referência para a avaliação dessas disponibilidades sofrem uma redução considerável, e a necessária informação prévia torna-se, desse modo, simplificada – por exemplo, através de directivas organizativas, ou de imagens de papéis específicos do sistema. Não é preciso saber se o parceiro de comunicação é casado ou não, se tem ou não antepassados, se foi ou não oficial, se possui ou não acções. O conhecimento desses “outros papéis” do interlocutor conserva apenas um valor táctico. Enquanto os papéis não políticos na comunicação sobre temas políticos podem ser consideravelmente neutralizados pela opinião pública no interior do sistema político (pois pode admitir-se a sua irrelevância), o mesmo não se passa com a comunicação política fora do sistema político. Depende do tipo de institucionalização dos temas da opinião pública quem possa falar sobre eles, e como o fará, fora do sistema político. Este caso pode ser ilustrado através da diferença entre quadro (funcionário) e líder de opiniãoxxxix. Ambos são papéis que contribuem para o reforço e para a difusão de uma comunicação cujos temas são fixados fora do sistema político propriamente dito, ou seja, na vida quotidiana. A diferença reside no princípio constitutivo dos papéis – se o são por pertencerem ao sistema político e dele dependerem, ou se a sua consolidação assenta em estruturas não políticas (baseadas em estratos sociais, na instrução, na economia, na idade, na profissão, etc.). No último caso, a que Parsons fez referênciaxl, o sistema político permanece dependente do tipo e da distribuição da notoriedade social que se forma fora do sistema político. É evidente que esta diferença mantém uma relação com os temas do processo político de comunicação – portanto, com a opinião pública. A expectativa dos líderes de opinião de que um tema por eles “agarrado” possa ter ressonância e não deparar com uma rejeição vergonhosa apresenta um fundamento diferente, conforme os casos. Os líderes de opinião têm de ser capazes de pressupor um grau mais elevado de institucionalização dos temas políticos e acham-se limitados pelo seu papel na selecção dos temas possíveis, enquanto os quadros, sendo mais independentes da opinião pública, estão,no entanto, absolutamente dependentes de instruções políticas. Em caso algum é de esperar muita selectividade própria destes papéis formadores da opinião. Em suma, não se deverá sobrevalorizar a eficácia real da função da publicidade, enquanto grau de institucionalização dos temas, na mobilização de contactos comunicativos. O tempo e a atenção dos interlocutores relevantes, sobretudo dos muito influentes, são de tal maneira escassos que um possível tema, só pelo facto de ser público, nem por isso garante o êxito da comunicação. No nosso sistema político, este limiar é ultrapassado, na maioria dos casos, de uma maneira ainda muito primitiva – isto é, mediante o conhecimento recíproco anterior dos interlocutores, ou graças à notoriedade (importância) individual de quem inicia a comunicação. O início do contacto é, assim, facilitado pela circunstância de aquele que toma a iniciativa da comunicação sobre um certo tema saber que o seu interlocutor sabe quem o está a contactar e quais as consequências que pode ter a sua recusa em comunicarxli. Não será errado admitir que, na actualidade, a maioria das comunicações politicamente relevantes, desde que exijam uma interacção, pressupõem uma segurança mais ou menos forte no que respeita aos temas públicos e às relações pessoais; e que, na medida em que o próprio tema perde o seu carácter de publicidade, aumentarão as exigências de relações pessoais anteriormente estabelecidas. Na verdade, questões e pedidos de carácter muito melindroso só podem ser discutidos com amigos políticos da maior confiança. Finalmente, podemos utilizar a nossa definição de publicidade como admissibilidade da aceitação de temas para analisar os riscos específicos que a suposição de tal aceitação comporta. Dessa análise resultam elementos interessantes: parece ser difícil atacar essa suposição enquanto tal, pois isso significaria negar a comunicação sobre um tema e não apenas o consenso das opiniões. A rejeição da comunicação submeteria a dura prova a pertença comum ao sistema e, por esse motivo, dificilmente alguém se arrisca a assumi-la abertamentexlii. O carácter público da opinião serve como legitimação para forçar os próprios governantes à comunicação, se não mesmo para os manipular moralmente. O principal perigo que ameaça tal suposição provém de uma direcção inteiramente diferente, adequada ao sistema, ou seja, do próprio processo de decisão. Ele conduz a uma revisão dos temas da qual resulta, por fim, que nada há mais para dizer, ficando o tema arruinado como objecto de discussão. Pode-se, então, negar a disponibilidade para a comunicação, com o fundamento de que já se teria falado, ou, eventualmente, de que a questão já fora resolvida. Num sistema político dotado de um aparelho eficiente de tomada de decisões não devem, por conseguinte, ser indefinidamente formuladas hipóteses deste tipo. A publicidade permanece em movimento – aquele movimento que descrevemos como iteração de temas políticos. 6. Passando em revista os aspectos materiais, temporais e sociais da opinião pública até agora debatidos, esta aparece-nos como um produto altamente complexo, devido à sua ordem de grandezas (número dos temas, durabilidade do fenómeno, número de participantes), mas sobretudo pelo facto de observarmos uma elevada variabilidade, embora não arbitrária, isto é, não uma dispersão puramente ao acaso. Existem, manifestamente, limitações estruturais quanto à compatibilidade e à variabilidade, ou, dito de uma maneira mais formal, quanto às condições restritivas de possibilidade da opinião pública. E estas condições não residem, simplesmente, nos conteúdos das opiniões que se possa ou não ter e que podem ser certas ou erradas, mas resultam antes do facto de a opinião pública estruturar um sistema social, o que pode acontecer de diferentes maneiras, mas não ao acaso. A confirmar-se esta suposição, tais limitações estruturais devem poder ser transformadas em considerações estratégicas; e delas devem poder derivar as condições gerais de um comportamento eficaz, assim como as diferentes possibilidades de participação no sistema. A sua representação pode ser articulada em termos aproximativos, se distinguirmos entre a possibilidade de contornar a opinião pública e a utilização táctica desta mesma possibilidade. A opinião pública pode ser contornada no processo político unicamente quando é possível evitar uma comunicação intensa com desconhecidos. Uma eliminação completa da opinião pública em assuntos de alguma importância poderia ser, hoje, muito difícil, a menos que se pudesse legitimar o segredo pelos organismos oficiais. Mais importantes são as estratégias de contorno parcial: o tema é efectivamente posto à disposição da opinião pública, mas só mais tarde, ou dando dele apenas destaque a determinados aspectos. Acontece, assim, muitas vezes, que determinadas intenções só são levadas ao conhecimento da opinião pública num segundo momento, quando a sua execução já foi assegurada mediante um contacto directo com as instâncias de decisão – quando, por exemplo, o ministro das finanças já autorizou o adiantamento de quaisquer fundos, a coberto do orçamentoxliii. Deste modo, os promotores de uma determinada questão podem evitar o risco de uma recusa pública, pois é como se já tivessem o sucesso garantido quando se apresentam ao público, mas precisamente por isso subtraem à discussão pública as linhas fundamentais do seu projecto. Uma outra estratégia de contorno parcial da opinião pública é mais típica da imprensa do que da esfera burocrática. Ela assenta na diferença entre temas e premissas; ou, mais rigorosamente, no facto de serem possíveis transferências no âmbito dessa diferença. As frases usadas para apresentar um tema podem ser formuladas de maneira a que as questões preliminares pareçam já ter sido respondidas, ou de maneira a subtraí-las à discussão, admitindo-as como evidentes: fala-se dos monopólios como se fossem prejudiciais; um novo tema é apresentado, conforme as circunstâncias, como melhoria das estruturas ou como uma mera táctica eleitoral. Esta estratégia serve-se da manipulaçãoxliv, pois, relativamente às suas premissas, a comunicação em causa é unilateral (sem possibilidade de resposta). Estes mecanismos de contorno da opinião pública, dado o grau inevitavelmente elevado de desatenção do público, possuem consideráveis possibilidades de êxito. O alcance político da opinião pública pode ser medido, entre outras maneiras, pelo grau de importância a partir do qual os temas já não podem ser submetidos à atenção do público por um tempo tão breve. Importa distinguir destes procedimentos, para uma melhor compreensão da opinião pública, as tentativas que visam trabalhar com ela, isto é, sem a contornar. O procedimento táctico que visa estimular os temas da opinião pública é, desde logo, dificultado pelo grau de atenção fortemente limitado do público. O que implica, tanto a necessidade de recorrer a outros meios, mais drásticos, para obter um aumento da atenção e para encorajar determinadas opiniões sobre o tema em questão, como o surgimento de problemas emergentes na transição de uma fase para outra. Uma solução relativamente inábil seria, por exemplo, a de despertar a atenção do público começando com o lançamento de prospectos e aparecer, logo a seguir, com dossiers e documentos de trabalho; nesta maneira de agir, dever-se-ia, pelo menos, proceder à substituição das pessoas que actuam nos dois momentos, o que pressupõe organização. Possibilidades de combinações mais abstractas, mas mais exigentes na sua execução, são oferecidas pela produção de pseudocrises, pseudonovidades ou pseudosintomasda vontade do eleitorado, que depois podem ser utilizadas como base de uma argumentação fundada em factos reais; mas isto, por sua vez, só é possível no caso de um número muito limitado de temas. Uma terceira possibilidade, a de provocar a comunicação de um político altamente colocado, não está ao alcance de todos e é, além disso, dificultada pelo facto de o político em questão, normalmente, saber e controlar muito bem o que sai da sua boca. A estas dificuldades, que resultam da diferença material entre regras da atenção e regras da decisão, acrescentam-se outras, relacionadas com a mobilidade dos temas. Um contributo decisivo para a mobilidade de um tema pressupõe, minimamente, que se conheça a sua história e situação e que se esteja ao corrente (ou se seja informado) dos seus últimos desenvolvimentos. Um indivíduo isolado só pode conseguir isso em relação a poucos temas, ou apenas com a ajuda de um aparelho que lhe forneça a “documentação” em cada momento necessáriaxlv. Com a mobilização dos temas, as exigências de uma comunicação dotada de sentido aumentam a um ponto tal que só podem ser satisfeitas num contexto limitado ou graças a uma preparação especial. Finalmente, também na dimensão social, que mediante a institucionalização do tema deveria ser assegurada como possível objecto de comunicação, emergem exigências particulares em termos de saber diferenciado e de habilidade táctica. A institucionalização do tema não garante ainda qualquer cooperação efectiva, e muito menos animada de sentimentos idênticos, no que respeita ao tema. No caso de temas conhecidos, pode, na verdade, supor-se o seu conhecimento, ou então a impossibilidade de confessar o seu não conhecimento, como base para a comunicação: solicita-se uma assinatura contra as leis que regulam o estado de emergência, sem que haja necessidade de explicar o que seja um estado de emergência e porque motivos dele se pode abusar. Desta maneira, porém, não se vai longe, não se consegue, sobretudo, consolidar determinadas opiniões e decisões. Para isso, importa poder ter uma visão de conjunto dos canais sociais através dos quais se difundem e consolidam as opiniões, bem como avaliar as disposições para investir num tema com determinadas opiniões. O que pressupõe um conhecimento muito concreto da cena política. Todos estes elementos tomados em conjunto conduzem a um resultado à primeira vista paradoxal: nas condições descritas, haverá que contar, no domínio da política, com uma multiplicação de possibilidades de comportamento e, simultaneamente, com uma restrição das possibilidades de participação activa. A problemática e a respectiva colocação de temas públicos no sistema de comunicação da política autorizam, em cada momento, uma pluralidade de lances tácticos, mantendo em aberto muitas possibilidades de desenvolvimento e convidando, assim, à actividade; ao fazê-lo, porém, submetem a acção comum a exigências que somente poucos estão em condições de satisfazer. No essencial, a produção, o aproveitamento e a retomada de temas da opinião pública tornam-se uma prerrogativa de políticos profissionais, especialmente preparados para o efeito. O que fora planeado como management by participation converte-se em participation by management, isto é, em participação daqueles que sabem valorizar politicamente as informações, as conjunturas, as ligações, o número de votos e, last but not least, a si próprios. Pode, então, perguntar-se que grupos sociais, nestas circunstâncias, terão oportunidades de participação que sejam mais do que passivas. Os militares, por exemplo, estão demasiado habituados a um ambiente social tranquilo, pobre em variáveis, para poderem actuar com êxito no sistema de comunicação política da opinião pública. Aos professores falta, em geral, a capacidade para se deixarem influenciar politicamente. Os estudantes são considerados como pessoas imaturas e, por essa razão, não são tomados a sério como emissores de comunicações. O significado político de tais grupos parece, por conseguinte, ser sintomático de uma política subdesenvolvida, na medida em que a comunicação política não atingiu ainda aquele grau de complexidade que seria necessário para uma adaptação constante ao nível de desenvolvimento da sociedade dos nossos dias. Confirma-se, assim, a nossa hipótese acerca da existência de uma relação entre diferenciação e complexidade dos subsistemas sociais. O aumento de complexidade depende da formação do sistema, e, portanto, da diferenciação socialxlvi. Por outro lado, vemos agora mais claramente que a própria complexidade crescente de um subsistema contribui para a sua ulterior diferenciação e estabiliza as suas fronteiras. Um comportamento dotado de sentido da opinião pública no sistema de comunicação exige a redução da elevada complexidade; e exige, sobretudo, a superação das barreiras do poder-viver-e-poder-agir-de outro modo dos outros, e torna-se de tal maneira sobrecarregado de exigências e dificuldades que torna necessário um recrutamento no interior do próprio sistema; e isto significa também uma socialização mais ou menos imperceptível no sistema. As posições e os papéis estranhos ao sistema oferecem, na melhor das hipóteses, possibilidades de acesso, mas nenhuma base suficiente para uma participação activa e duradoura na vida política. O que poderia levar a concluir que a opinião pública se teria, entretanto, reduzido a meio de comunicação interno ao sistema político, à linguagem usada pelos políticos nas suas relações, a instrumento dos truques com que se iludem reciprocamente, perdendo, assim, qualquer função social global; que a opinião pública, juntamente com o sistema político, se teria diferenciado, por assim dizer, do mundo da vida quotidiano, não especificado, da sociedade no seu conjunto. Tal seria, no entanto, um juízo apressado. A questão conduz a problemas muito complexos, até hoje insuficientemente esclarecidos, no âmbito da teoria geral dos sistemas sociais. Deles nos iremos ocupar, para concluirmos este trabalho – não para apresentarmos de imediato respostas válidas, mas para mostrarmos como uma compreensão adequada da opinião pública se acha dependente do desenvolvimento ulterior de uma teoria dos sistemas sociais muito mais abstracta. 7. De uma maneira geral, os sistemas sociais são representados de modo demasiado concreto, podemos mesmo dizer reificado. A sua identidade, no entanto, não assenta numa relação natural entre seres humanos ou entre acções, mas em regras que delimitam fronteiras e estabelecem correlações que orientam a elaboração da experiência humana dotada de sentido. A diferenciação subsequente dos subsistemas sociais deve, por conseguinte, ser concebida como dependendo dessas tais regras de delimitação e de correlação que funcionam no conjunto do sistema socialxlvii. Daí que a diferenciação nunca conduza a um desenraizamento em relação ao contexto da comunicação social; ela deverá ser vista, de preferência, como reguladora deste contexto de comunicação, como estrutura que, mediante diferenciação (e não pelo recurso a barreiras internas intransponíveis), permite alcançar e controlar uma complexidade mais elevada. A diferenciação dos subsistemas (ou a crescente diferenciação interna do sistema social) não deve significar, portanto, que as relações causais ou comunicativas destes subsistemas com o respectivo ambiente social devam ser suprimidas ou mantidas dentro de limites relativamente estreitosxlviii. A identidade e a autonomia dos subsistemas não dependem do facto de estes comunicarem exclusiva ou predominantemente no seu interior; baseiam-se, antes, no carácter reconhecível e naobservância de regras segundo as quais as comunicações produzem operações selectivas e se enquadram em determinados sistemas, consoante o tipo e a direcção da selecção realizadaxlix. Por essa razão, a quantidade de comunicação e de dependência ou independência recíprocas entre os sistemas deve ser considerada uma questão aberta, a ser resolvida de maneiras diferentes, consoante as circunstâncias. Partindo de uma tal formulação da teoria dos sistemas, que não pode ser aqui suficientemente fundamentada, é impensável remeter exclusivamente a opinião pública para o sistema político. Existe, todavia, uma relação particular entre ambos, que deve ser esclarecida mais pormenorizadamente. Os temas, incluindo os temas políticos, da opinião pública são constituídos de uma forma relativamente independente do contexto (e, nessa medida, “abstracta”). Pode falar-se sobre eles não apenas no contexto de relações internas do sistema político, mas também no seio da família, em reuniões de conselhos de administração, nas mesas de tertúlia, nas prelecções universitárias, etc. É sabido, além disso, que um tema político pode ser tratado num contexto apolítico – por exemplo, pode saber-se da impossibilidade de abordar aqui e agora um determinado tema e pode admitir-se que sobre isso impere um certo consenso. A escolha de ocasiões e de temas, a direcção da sua articulação, o tempo que se gasta na discussão de temas políticos num sentido diferente daquele que lhe daria o sistema político são governados por uma consciência dos limites do sistema, que acompanha a comunicação. Graças à abstracção dos temas da opinião pública, é possível estabelecer a sua identidade e transmissibilidade, e abordar o tema de forma diferente, de acordo com o contexto do sistema. A estrutura dos temas da opinião pública comporta, por conseguinte, funções tanto diferenciadoras como integradoras e, consoante a complexidade social, deve apresentar o necessário grau de abstracção e especificação de temas relativamente independentes do contexto. Ao concluirmos este trabalho, esta função de mediação deve ser apresentada sob duas perspectivas diferentes, uma de natureza mais processual, a outra mais estrutural. A existência de temas políticos correntes, presentes na discussão, torna possível falar sobre o mesmo assunto em contextos políticos e apolíticos, e transferir opiniões de um contexto para o outro. A identidade do tema, na sua indeterminação aberta, abre amplo espaço a fáceis deslocamentos de sentido, que muitas vezes passam despercebidos. Assim, no caso do tema dos estudos sobre a paz, os políticos parecem pensar num determinado tipo de pesquisa, e os cientistas num determinado tipo de financiamento da investigação. O próprio processo de transmissão não reveste necessariamente a forma de uma comunicação que ultrapasse as fronteiras do sistema: o arcebispo telefona ao secretário regional da Educação e da Cultura, o presidente do sindicato ao presidente do grupo parlamentar de um partido. Esta forma de intercâmbio pressupõe uma correspondência complementar de papéis nos vários sistemas (e, na prática, a sua estruturação hierárquica). Ao lado desta forma de intercâmbio, existe uma outra forma de activação dos diversos papéis que uma mesma pessoa pode desempenhar: à volta da mesa de tertúlia formam-se as opiniões na base das quais os frequentadores definem as suas opções eleitorais; o desenrolar de um colóquio científico fornece ao professor informações, motivos e razões para oferecer ostensivamente os seus serviços à comissão consultiva de um ministério; durante a sessão de um conselho de administração, um dos seus membros oferece-se para pôr as suas relações de amizade com determinados políticos ao serviço de uma determinada causal. Nestes casos, as comunicações políticas e não políticas sobre temas políticos são mediatizadas por combinações de papéis. Para este tipo de mediação – e não apenas para a comunicação directa entre sistemas – é essencial proceder a uma pré-estruturação mediante temas da opinião pública. Igualmente, fora do sistema político, deve ser possível avaliar, embora com exigências muito mais reduzidas, que temas se podem tornar políticos, e talvez, também, qual o seu destino político, em determinadas condições. Considerando esta função de mediação, pode presumir-se que a estrutura dos temas da opinião pública é também, em última análise, o fundamento da diferenciação e da autonomia funcional do sistema político. Por outras palavras, a opinião pública deve estar em condições de poder tolerar a distinção entre política e não política, bem como uma relativa abstracção e incompreensibilidade dos pormenores dos processos de decisão política. Ela deve ser capaz de produzir temas que, apesar da elevada complexidade das interacções concretas presentes no contexto do sistema, possam desempenhar as funções de regra no que respeita à articulação permanente de expectativas significativas e possam traduzir as necessidades sociais em problemas susceptíveis de uma decisão política. O problema reside na relação entre a selectividade dos temas emergentes e a riqueza de possibilidades resultante do aumento progressivo da complexidade social. A concepção predominante, que remonta, em última análise, à antiga tradição europeia da filosofia social e política, apresenta um conceito de estrutura diferente e uma outra visão do problema. Segundo ela, a identidade e a autonomia do sistema político (considerado como sociedade ou como subsistema social) são constituídas através do domínio. O problema é, deste modo, definido no plano dos papéis, os quais, de direito ou de facto, estão em condições de dar e fazer cumprir ordens. Graças à importância atribuída ao conceito de papel na sociologia mais recente, esta opção conceptual, longe de ser reduzida, vê-se ainda mais reforçadali. A opinião pública pode então, tudo bem ponderado, assumir a função que o liberalismo lhe atribuiu, uma função de crítica e de controlo do domínio; entendida desta maneira, ela continua a ser um contrapoder que se não pode traduzir em papéis, ocupando uma posição desde o princípio subordinada. Nesta óptica, a selecção apresenta-se como repressão, sem ter em conta, de qualquer modo, que esta terá de se produzirlii. A questão que se levanta é a de saber se, dessa forma, não será fragilizado o plano estrutural que preside ao desenvolvimento dos nossos sistemas políticos e, consequentemente, da nossa sociedade. Ninguém contestará que existem papéis relacionados com o exercício do poder sob a forma de competências de comando ou de oportunidades que a prática consolidou. Este poder, no entanto, não pode ser concebido de forma adequada como causa, como vontade ou como interesseliii. No que respeita ao grau da sua liberdade, ele acha-se dependente das estruturas do sistema de comunicação onde exerce a sua actividade. A opinião pública não pode dominar nem substituir o detentor do poder. Não lhe pode prescrever o modo como ele deve exercer o poder. A sua relação com o exercício do poder não é uma relação de causa a efeito, mas entre estrutura e processo. A sua função não consiste na imposição da vontade – da vontade popular, essa ficção ingénua do pensamento causal – mas na ordenação de operações selectivas. Se considerarmos as sociedades e as suas esferas políticas funcionais como sistemas, a percepção do problema modifica-se. Concentra-se, então, na relação dos sistemas com o seu ambiente extremamente complexo e procurará explicar através de que estruturas e processos se torna possível uma compreensão dotada de sentido e uma redução daquela complexidade. As estruturas traduzem a complexidade das
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