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TEORIA DA LITERATURA III AULA 08

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TEORIA DA LITERATURA III 
 
 
AULA 08 
DO ANTI-ÉDIPO À LITERATURA MENOR 
 
OBJETIVOS DA AULA: 
Ao final desta aula, você será capaz de: 
1. Abordar a relação entre o capitalismo e o inconsciente sob a perspectiva da esquizoanálise. 
2. verificar o conceito de literatura menor de Gilles Deleuze. 
 
O Anti-Édipo: A Esquizoanálise e o Inconsciente Produtivo 
 
"A ideia fundamental talvez seja a seguinte: o inconsciente “produz”. Dizer que ele produz 
significa que é preciso parar de tratá-lo, como se o fez até então, como uma espécie de teatro 
onde se representaria um drama privilegiado, o drama de Édipo. Nós pensamos que o 
inconsciente não é um teatro, mas antes uma usina." 
 
 (Gilles Deleuze) 
 
O impacto provocado pelo Maio de 68 abalou as certezas e garantias de uma sociedade 
ordenada segundo a cultura massiva do capitalismo industrial, além de ter revelado a crise das 
instituições sociais e posto em xeque seus modelos, suas promessas de organização e 
estabilidade da vida gerida pela lógica capitalista. 
 
 
Após aquele momento era fundamental refletir sobre a crise social e a falência das instituições 
ao considerar, sobretudo, a eclosão de um desejo coletivo e revolucionário que veio à tona e 
demoliu todo e qualquer racionalismo científico ou teoria social, inclusive, a própria 
psicanálise, enquanto ciência responsável pelos estudos do inconsciente. Deste modo, houve 
um claro desgaste das teorias estruturalistas diante daquele acontecimento visceral - quando 
o povo saiu às ruas derrubando os modelos instituídos por uma sociedade industrial 
consumista. 
 
Entretanto, foi a partir daquela linguagem (e ação) revolucionária gerada nas ruas que alguns 
pensadores perceberam tratar-se de um novo modo de saber - diante da falência da ciência e 
seus métodos – que não era mais oriundo das teorias. 
 
Este novo saber nasceu fora das instituições e situava-se ao nível do corpo, da vida cotidiana, 
do encontro com o outro, através da invenção de uma nova linguagem manifestada e 
apreendida pelo domínio da arte - seja através da literatura, do cinema, da pintura, do grafite, 
da música. Logo, este novo saber só poderia ser apreendido por uma nova lógica que tentasse 
compreender as sensações desencadeadas a partir das linguagens que transcendiam os 
lugares tradicionalmente instituídos pela sociedade. 
 
“O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a 
filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos. (...) A 
arte quer criar um finito que restitua o infinito: traça um plano de composição que carrega por 
sua vez monumentos ou sensações compostas, sob a ação de figuras estéticas. (...) Isso não 
implica, contudo, que a arte seja como uma síntese da ciência e da filosofia, da vida finita e da 
vida infinita. As três vias são específicas, tão diretas umas com as outras, e se distinguem pela 
natureza do plano e daquilo que ocupa. Pensar é pensar por conceitos, ou então por funções, 
ou ainda por sensações, e um desses pensamentos não é melhor que um outro, ou mais 
plenamente, mais completamente, mais sinteticamente ‘pensado’. As molduras da arte não 
são coordenadas científicas, como as sensações não são conceitos ou o inverso.” (DELEUZE-
GUATTARI, 2000, p. 253-4) 
 
Ao invés de uma lógica racional científica, ou de uma lógica consumista e alienada promovida 
pelo capitalismo industrial, a arte instaura uma nova lógica: das sensações, dos afetos, dos 
perceptos, dos desejos, sonhos, utopias e da sensorialidade. E é segundo essa lógica que 
podemos nos aproximar do pensamento do filósofo Gilles Deleuze, no qual, segundo ele, a 
arte deve ser vivenciada como um campo do saber e um modo de vida, como um domínio que 
está para além dos limites teóricos e formais. 
 
Ao observarmos a produção de Gilles Deleuze, percebemos que a trajetória do seu 
pensamento assinalava a predileção pelos encontros transdisciplinares, ao traçar uma 
linguagem que abdicava de um sistema filosófico abstracionista ou puramente teórico e 
conceitual, para tocar a vida através dos afetos, dos desejos, do inconsciente e do corpo. Em 
outras palavras, sua produção transdisciplinar era dinamizada pela ciência, pela filosofia e pela 
arte, já que seu pensamento ultrapassava a relação interdisciplinar, ao investir a dimensão 
contingencial da vida. 
 
 
 
Enquanto a filosofia tradicionalmente sempre buscou criar um sistema de pensamento que 
ordenasse o caos segundo uma rede de conceitos, a ciência sempre necessitou de limites 
demonstráveis para reduzir o caos em algo mensurável e explicável. Para além destes limites, a 
arte proporciona um saber diferencial, deflagrado pela inconsciência das sensações e 
percepções, através da livre experimentação das formas e signos que compõem sua 
linguagem. 
 
Segundo Deleuze, a arte desliza seu saber para o nível das sensações e percepções de maneira 
ainda informe e inconsciente, sem qualquer interpretação prévia ou conscientização do 
sujeito, o que ele chamou de perceptos e afectos. 
 
“A arte é a linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas 
pedras. A arte não tem opinião. A arte desfaz a tríplice organização das percepções, afecções e 
opiniões, que substitui por um monumento composto de perceptos, e afectos e de blocos de 
sensações que fazem as vezes de linguagem. (...) Precisamente, é a tarefa de toda arte: e a 
pintura, a música não arrancam menos das cores e dos sons acordes novos, paisagens plásticas 
ou melódicas, personagens rítmicos, que os elevam até o canto da terra e o grito dos homens 
– o que constitui o tom, a saúde, o devir, um bloco visual e sonoro.” (Ibidem, p. 228-9) 
 
Entretanto, embora a trajetória de Deleuze tenha percorrido os filósofos e artistas, em sua 
maioria, é a partir do encontro transdisciplinar com o psicanalista Félix Guattari que ele 
tornou-se conhecido do público em geral, ao lançar em 1972 o livro O Anti-Édipo – capitalismo 
e esquizofrenia que, segundo eles, seria uma continuação dos embates do Maio de 68, e uma 
crítica ao capitalismo industrial e seu molde maquínico sobre a vida e as sensações. 
 
Obviamente que o título provocador ‘O Anti-Édipo’ foi um golpe direto na psicanálise de 
Freud, quando este utilizou o mito de Édipo para explicar o funcionamento do inconsciente 
sob o eixo da repressão. Em seguida, o curioso epíteto ‘capitalismo e esquizofrenia’ evidencia a 
óbvia relação entre o capitalismo e a alienação produzida na sociedade industrial pelo 
consumo. Mais ainda, resta saber em que nível o capitalismo e sua lógica penetram em nosso 
psiquismo. 
 
Em primeiro lugar, Deleuze critica a psicanálise de Freud por esta reduzir o inconsciente a um 
teatro dramático, ou seja, a uma forma de idealização - como se o inconsciente coubesse em 
uma moldura representativa ou conceitual de um complexo familiar repressivo, sob uma 
invariante universal e absoluta. 
 
Segundo ele, o inconsciente não poderia ser reduzido a uma invariante estrutural de um 
sujeito reprimido pelo complexo familiar social (Freud), ou consumido por algo que lhe falta 
(Lacan), uma vez que sua intensidade transborda para além dos limites da consciência, da 
moral, da ciência, da lei, do contrato e da instituição, além do desejo de criar sua própria 
dimensão e manifestar sua própria linguagem, haja vista o Maio de 68. 
 
“Guattari e eu partimos da ideia de que o desejo só poderia ser compreendido a partir da 
categoria de ‘produção’. Isto é, era preciso introduzir a produção no próprio desejo. O desejo 
não depende de uma falta, desejar não é ter falta de alguma coisa, o desejo não remeteà Lei 
alguma, ele produz. É, portanto, contrário de um teatro. Uma ideia como a de Édipo, da 
representação teatral de Édipo, desfigura o inconsciente, nada exprime do desejo. Édipo é o 
efeito da repressão social sobre a produção desejante. Mesmo no nível da criança, o desejo 
não é edipiano, ele funciona como um mecanismo, produz pequenas máquinas, estabelece 
ligações entre as coisas. Tudo isso, em outros termos, significa talvez que o desejo seja 
revolucionário. O que não significa que ele queira a revolução.” 
 
“Melhor que isso, ele é revolucionário por natureza porque constrói máquinas que, inserindo-
se no campo social, são capazes de fazer saltar algo, de deslocar o tecido social. A psicanálise 
tradicional, ao contrário, transformou tudo numa espécie de teatro. Exatamente como 
traduziríamos numa representação tipo Comédia Francesa algo que pertence ao homem, à 
usina, à produção. O ponto de partida de nosso trabalho, por outro lado, foi o inconsciente 
como produtor de pequenas máquinas de desejo, máquinas desejantes.” (DELEUZE, 2006, p. 
295-6) 
 
Segundo Deleuze e Guattari, a esfera inconsciente é intensa, ininterrupta e produtiva, e jamais 
reativa e reprimida, tal como Freud a reduziu sob um complexo que ele ironiza, ao chamá-lo de 
papai-mamãe. Para eles o inconsciente é uma força que ultrapassa a forma familiar e 
institucional para atingir um nível social, histórico e mundial, o que ficou provado com o Maio 
de 68 e todas as rebeliões históricas, e não apenas como um modelo estético e teatral, ou seja, 
ao delegar ao inconsciente a imagem de uma representação, farsa ou mascaramento. 
 
Em relação à Freud, o grande problema apontado por Deleuze e Guattari é que sua psicanálise 
observou contraditoriamente o inconsciente sob o ângulo da consciência científica, ao 
determinar um conceito e um modelo de representação para aquela dimensão infinita e 
imensurável, afirmando que analisar a inconsciência pela consciência seria um erro. 
 
Em contrapartida, eles propuseram uma nova abordagem do inconsciente, a esquizoanálise, a 
partir da perspectiva do esquizo (ou esquizofrênico), ou seja, do inconsciente inserido 
socialmente, ainda que fosse à margem, opondo-se ao inconsciente reprimido e 
descredibilizado socialmente como ‘improdutivo’. 
 
Segundo Deleuze em o Anti-Édipo, o esquizo é aquele que foi relegado à margem da margem, 
por não encaixar-se nos padrões, modelos e valores estabelecidos pela sociedade industrial 
moderna, e por não produzir socialmente, situando-se, portanto, no limite do capitalismo, na 
fronteira entre a produção desejante e a produção social mercadológica. Em síntese, o esquizo 
é aquele que cruzou indistintamente a linha divisória entre a realidade social - produzida 
segundo a lógica utilitária e científica do capitalismo industrial moderno – e a realidade 
governada pelas sensações, pelos desejos, utopias e pela libido. 
 
“Quando se diz que a esquizofrenia é a nossa doença, a doença do nosso tempo, não se está 
dizendo apenas que a vida moderna enlouquece. Não se trata de modo de vida, mas de 
processo de produção. (...) De fato, queremos dizer que o capitalismo, no seu processo de 
produção, produz uma formidável carga esquizofrênica sobre a qual ele faz incidir todo o peso 
de sua repressão, mas que não deixa de se reproduzir como limite do processo. “ 
(DELEUZE-GUATTARI, 2010, p. 52-3) 
 
Portanto, a esquizoanálise é uma anticiência e pretende em primeiro lugar rechaçar e 
desconstruir a psicanálise freudiana como a ciência que reduz o inconsciente sob o signo da 
repressão da libido. Em segundo, a esquizoanálise pretende saber como funciona o 
inconsciente, ou de que modo esta máquina desejante produz. Em terceiro, por recusar a 
cientificidade, ela utiliza a arte como campo experimental de sua análise. 
 
 
Em suma, o esquizo não é um paciente sob transferência freudiana, narrando sua interioridade 
reprimida, mas é aquele que só pode ser localizado e situado no limiar entre a linguagem e a 
vida - seja o artista ou o personagem na medida em que se igualam em um nível impessoal, 
humano e anárquico -, ao diluir as fronteiras entre a arte e a vida, ao mesmo tempo em que 
funde tais exterioridades. 
 
Para saber um pouco mais sobre o assunto e ver alguns exemplos sobre os esquizoanalisados 
de Deleuze e Guattari, clique no ícone e baixe o arquivo em PDF. 
http://estacio.webaula.com.br/cursos/gon235/pdf/a08_t12.pdf 
 
 
A LITERATURA MENOR 
“O escritor se serve de palavras, mas criando uma sintaxe que as introduz na sensação, e que 
faz gaguejar a língua corrente, ou tremer, ou gritar, ou mesmo cantar: é o estilo, o ‘tom’, a 
linguagem das sensações ou a língua estrangeira na língua, a que solicita um povo por vir. “ 
(GILLES DELEUZE) 
 
 
Segundo Deleuze, a individualidade do escritor constitui-se tal qual uma arborescência feita de 
múltiplos desdobramentos, encontros e intensidades, o que ele chamou de rizoma, mas jamais 
por uma consciência centralizada e interiorizada pela razão, ou por uma personalidade 
determinada. 
 
Assim, Deleuze define o estilo de um escritor como sendo um agenciamento de enunciações, 
de lugares, encontros, experiências, intensidades, fluxos, movimentos e desejos que se 
conjugam em meio à contingência da vida, independente da interioridade do sujeito e sua 
prévia consciência histórica e social. 
 
“O escritor se serve de palavras, mas criando uma sintaxe que as introduz na sensação, e que 
faz gaguejar a língua corrente, ou tremer, ou gritar, ou mesmo cantar: é o estilo, o ‘tom’, a 
linguagem das sensações ou a língua estrangeira na língua, a que solicita um povo por vir, (...) 
O escritor torce a linguagem, fá-la vibrar, abraça-a, fende-a, para arrancar o percepto das 
percepções, o afecto das afecções, a sensação da opinião – visando, esperamos, esse povo que 
ainda não existe.” (DELEUZE-GUATTARI, 2000, p. 228) 
 
Para Deleuze, a escritura literária não é a projeção de uma interioridade narcísica ou 
confessional do sujeito autor, mas uma voz que traça uma linha exterior à pessoalidade e 
escapa aos domínios instituídos, ao traçar uma fuga para a extensão afetiva, sensitiva, não 
consciente e impessoal. 
 
Escrever, segundo ele, é desterritorializar-se do próprio sujeito agente, ou seja, do ser 
consciente, para experimentar o impermanente vir a ser dos devires, dos encontros, 
intensidades, sensações e acontecimentos que nos abalam e nos transformam, independente 
de qualquer planejamento ou reflexão determinada por uma lógica social ou uma consciência 
individual. 
 
Deleuze, ao apropriar-se de uma frase de Marcel Proust, afirmava que ‘o escritor é aquele que 
deve reinventar a própria linguagem ao escrever em uma espécie de língua estrangeira dentro 
da sua própria língua’, subvertendo-a, escavando-a, desterritorializando-a da de suas leis 
sintáticas e gramaticais, enfim, de sua lógica científica e seu lugar nativo. 
 
“(...) o escritor, como diz Proust, inventa na língua uma nova língua, uma língua de algum 
modo estrangeira. Ele traz à luz novas potências gramaticais ou sintáticas. Arrasta a língua para 
fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar. Mas o problema de escrever é também um 
problema de ver e de ouvir: com efeito, quando se cria uma outra língua no interior da língua, 
a linguagem inteira tende para um limite ‘assintático’, ‘agramatical’, ou que se comunica com 
seu próprio fora. “(DELEUZE, 2008, p. 9) 
 
Deleuze reconhece a língua como um código e uma sujeição, uma vez que se deve sempre 
obedecer às suas leis sintáticas e gramaticais. No entanto, é preciso escapar a esta sujeição de 
modo que o ato literário seja o investimento em ummodo de vida que interrogue e escape aos 
domínios e modelos institucionalizados. 
 
Pois, segundo Deleuze, o escritor cria uma língua menor dentro da língua dominante, ou seja, 
uma linguagem que arrasta a língua ao seu limite sintático, social, até sua exterioridade, 
levando-a ao desequilíbrio de seu código formal, familiar, regulador e institucional. Ele cria 
outra língua modulada fora das formas gramaticais e dos sistemas sociais. 
 
Logo, o escritor cria ‘outra sintaxe’, uma espécie de sintaxe desviante para além das normas 
sintáticas, ao elevar a língua a uma forma de música, pintura ou embriaguez, fazendo-a 
tremer, gaguejar ou delirar, durando fora do tempo, do espaço e da razão. E esta é a marca e 
a evidência que faz do escritor um estrangeiro e um empreendedor de uma saúde, ao libertar 
a vida aprisionada e asfixiada pela consciência social irrespirável. 
 
" Embora remeta sempre a agentes singulares, a literatura é agenciamento coletivo de 
enunciação. A literatura é delírio, mas o delírio não diz respeito a pai-mãe: não há delírio que 
não passe pelos povos, pelas raças e tribos, e que não ocupe a história universal. Todo delírio é 
histórico mundial, ‘deslocamento de raças e continentes’. A literatura é delírio e, a esse título, 
seu destino se decide entre dois polos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por 
excelência a cada vez que erige uma raça pretensamente pura e dominante. Mas ele é a 
medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida que não para de agitar-se sob as 
dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona e de, como processo,abrir um sulco 
para si na literatura. (...). fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de 
uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por esse 
povo que falta... (‘por’ significa ‘em intenção de’ e não ‘em lugar de’)." (Ibidem, p. 15) 
 
Segundo Deleuze, é possível verificar o modo pelo qual a literatura é tomada como um 
empreendimento de saúde e resistência a partir do momento em que ela opera uma 
desconstrução dos lugares instituídos pelo poder - a começar pela língua dominante – e dá 
passagem às intensidades e afetos, segundo uma lógica das sensações, e não a lógica 
arbitrária, racional e utilitarista da vida social. 
 
Deleuze afirma que a escritura literária potencializa o reinvestimento de saúde onde a própria 
existência se viu reduzida a uma maquinaria de repressão e servilismo, na medida em que a 
literatura dá passagem à vida e suas intensidades através da linguagem, por ser livremente 
inventiva. Seja através do riso anárquico, da ironia crítica, da emoção afirmativa, enfim, dos 
afetos e perceptos que são gerados pela escritura, a literatura opera tal e qual um estado 
vivido que eclode da página e salta do livro - ou que salta dos cartazes do Maio de 1968, sendo 
críticos, revolucionários, assertivos, mas sem perder a alegria e a ternura -, ao romper com a 
asfixia dos moldes sociais que aprisionam, controlam e tentam domesticar a vida, a 
consciência e o corpo. 
 
O filósofo afirma ainda que a literatura eleva-nos a uma saúde exterior, ao provocar uma 
transmutação das formas convencionais em forças revolucionárias, ao exigir-nos a 
reconfiguração de um novo corpo afetivo e consciência coletiva para além dos modelos 
instituídos, das individualidades, culpabilidades e angústias engendradas socialmente. Enfim, é 
deste modo que ele enxerga a literatura, ao sintetizar que “A saúde como literatura, como 
escrita, consiste em inventar um povo que falta”. 
 
Deleuze defende a escritura como a radicalização da linguagem até o seu limite, ao atingir o 
fora da linguagem, das formas e lugares instituídos pelo poder. Deleuze defende uma escritura 
anárquica capaz de despertar o fluxo pulsional, delirante, afetivamente crítico, e intensificado 
desde a libido ao riso instintivo, elevando-a para além da representação, ao libertar a vida que 
pulsa por baixo do claustro das leis, dos códigos e das instituições, até a exterioridade do ar 
livre. 
 
Portanto, é através de Kafka ou Artaud, entre outros, que Deleuze afirma que o escritor é um 
“agenciamento coletivo de enunciação”, e a literatura é “a enunciação coletiva de um povo 
que falta”, uma vez que não se trata de individualidades ou pessoalidade, ou de expressões ou 
representações, mas sim de nomes, personagens e impessoalidades que transubstanciam a 
espessura humana através da linguagem. 
 
O que mostra nossa decadência, nossa degenerescência, é a maneira pela qual 
experimentamos a necessidade de situar a angústia, a solidão, a culpabilidade, o drama da 
comunicação, todo o trágico da interioridade.(...) O riso-esquizo ou a alegria revolucionária é o 
que sobressai dos grandes livros, em vez de angústias de nosso pequeno narcisismo ou 
terrores de nossa culpabilidade.(...) Todo grande livro opera já a transmutação e faz a saúde do 
amanhã. Não se pode deixar de rir quando se embaralham os códigos. Se você colocar o 
pensamento em relação com o fora, nascem os momentos de riso dionisíaco, é o pensamento 
ao ar livre. (DELEUZE, 2006, p. 325) 
 
Ao revelar um saber e uma lógica das sensações e do domínio da arte, Deleuze demonstrou 
que tais linguagens e seus personagens com seus afetos revelam muito mais que uma 
dimensão humana, evidenciando que a identidade do sujeito é a de um ser em permanente 
transformação e devir. Isto porque todos eles carregam o signo de uma estrangeiridade social, 
ao serem relegados à margem da margem por um modelo econômico e uma sociedade em 
crise, onde suas instituições sociais não os reconhecem e tampouco querem enxergá-los como 
parte integrante. 
 
Deleuze explorou a experiência literária pelo seu ato de ultrapassar a linguagem enquanto 
instituição social até o seu fora, ao deslizar da página ao desejo, ao instinto ao sonho, ou seja, 
à inconsciência que produz um novo corpo e um novo modo de vida, uma vez que ler e 
escrever são atos de um permanente devir do sujeito, ao desejar resistir e reinventar a própria 
existência. Porque segundo ele, o inconsciente é uma máquina que só funciona quando 
‘lubrificada’ pelo desejo de gerir e criar a própria vida, segundo outra ética e outra lógica 
fundada pelas sensações, ao elevar a existência a uma potência impessoal e estética: ao 
transformar a vida em uma permanente e inacabada obra de arte. 
 
" O estilo, num grande escritor, é sempre também um estilo de vida, de nenhum modo algo 
pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência. " (DELEUZE, 
1992, P.126) 
 
Nesta aula, você: 
 Verificou, ao investigar as relações entre o capitalismo e o inconsciente através da 
esquizoanálise de Gilles Deleuze e Félix Guattari, de que modo, através da escritura 
literária, produziu-se a experiência de um acontecimento passado na fronteira entre 
a linguagem e a vida; 
 evidenciou o tema da loucura na modernidade como uma consequência de uma lógica 
perversa e excludente, de um estudo do capitalismo e suas relações com a 
esquizofrenia; 
 evidenciou de que modo a literatura desperta uma resistência ao engendramento 
social moderno, por um investimento que se passa na exterioridade dos moldes e 
modelos, desde a sintaxe à lógica ordinária de produzir e consumir.

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