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CRIANÇA E INFÂNCIA: CONTEXTO HISTÓRICO SOCIAL Andréa Lemes Lustig UNEMAT/Cáceres-MT lustig@top.com.br Rinalda Bezerra Carlos UNEMAT/Cáceres-MT rinaldabc@terra.com.br Rosane Penha Mendes Secretaria Municipal de Educação de Cáceres-MT rosane.pmendes@gmail.com Maria Izete de Oliveira UNEMAT/Cáceres-MT mariaizete@gmail.com Grupo de Pesquisa: Contextos Educativos da Infância Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Constituído desde 2003, o Grupo de Pesquisa “Contextos Educativos da Infância” compõe o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação da Infância – NEPE, vinculado ao Programa de Mestrado em Educação, da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT e está inserido na Linha de Pesquisa: Ensino, Avaliação e Formação de professor. Contando com o apoio de instituições como Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (2005-2007) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso – FAPEMAT (2008-2010), ao longo desses onze anos, nossas preocupações relacionam-se com a prática dos professores que atuam com a infância - preferencialmente nas instituições públicas -, com a organização do trabalho pedagógico nas escolas, com o processo de aprendizagem vinculado ao conhecimento de mundo, dentre outros temas que abarcam a educação formal da criança. Este grupo de pesquisa objetiva refletir sobre temáticas acerca da educação na infância, em suas diversas abordagens, cujo foco centra-se na questão da qualidade do ensino oferecido na Educação Infantil e nas séries inicias do Ensino Fundamental. Para o presente trabalho, direcionamos os estudos para compreender os conceitos de criança e infância, o que nos possibilitou organizar o texto em três eixos: o primeiro explicita a trajetória do nosso grupo de pesquisa, permeada pelos estudos de distintas temáticas, cujo foco ora se volta para um aprofundamento sobre o tratamento dado em nível nacional às crianças nos primeiros anos de escolarização, ora preocupa-se com as representações dos professores da Educação Infantil acerca das suas práticas pedagógicas, ora atenta para um entendimento dessas mesmas práticas a partir das histórias de vida de professoras da Educação Infantil, culminando com a preocupação de aprofundar nos estudos sobre criança e infância; o segundo discorre sobre a evolução do conceito de infância e 2 criança, a partir de uma abordagem histórico-social; e o terceiro eixo destaca as características próprias da criança localizadas nos discursos oficiais elaborados pelo Ministério da Educação – MEC. Importa ressaltar que para compreender a concepção de infância e criança, nos ancoramos nos ensinamentos de Rousseau (1999), Ariès (1981), Kohan (2003), Heywood (2004), Kramer (1999 e 2006), Stearns (2006), Kuhlmann (2010), Sarmento (2007) e Postman (2011) que trazem valiosas contribuições sobre o desvendamento da história da infância. Além de trazer contribuições acerca da diferença entre as concepções de infância e criança, a primeira compreendida, em síntese, como uma etapa da vida da pessoa e, a segunda, como sujeito histórico, social e cultural, observamos que os documentos oficiais vão ao encontro dessas proposições, ao conceber que a criança possui características e especificidades inerentes a esta fase de desenvolvimento. Assim as reflexões hora apresentadas, nos convidam a pensar numa educação de qualidade, que faça sentido para a criança, para que ela conceba a escola como lugar de realizações. Palavras-chave: Concepção. Criança. Infância. 1.1. Histórico do grupo de pesquisa O grupo de pesquisa “Contextos educativos da infância” foi constituído no ano de 2003 com o nome Estudos em Educação Infantil, porém, no ano de 2010 passou a se chamar Contextos educativos da Infância por entender que esta denominação possibilitaria uma maior ampliação nos estudos acerca da infância e criança. Localizado na cidade de Cáceres, a oeste de Mato Grosso e fronteira com a Bolívia, este grupo de pesquisa atende também cidades da região. Nosso grupo compõe o Núcleo de Estudo e Pesquisa em Educação da Infância – NEPE, vinculado ao Programa de Mestrado em Educação da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT e está inserido na Linha de Pesquisa: Ensino, Avaliação e Formação de professor. Nossos estudos buscam refletir sobre temáticas acerca da educação na infância, em suas diversas abordagens, tendo como preocupação central a questão da qualidade do ensino oferecido na Educação Infantil e nos anos inicias do Ensino Fundamental. Dentre nossas preocupações estão: a prática dos professores que atuam com a infância nas diferentes instituições, a organização do trabalho pedagógico nas escolas, o processo de aprendizagem vinculado ao conhecimento de mundo, dentre outros temas que abarcam a educação formal da criança. Nos dois primeiros anos do grupo dedicamo-nos intensamente aos estudos e reflexões sobre a temática e em 2005 iniciamos o trabalho com a pesquisa intitulada: Educação infantil: representação e ação de professores que atuam nas escolas públicas de Cáceres e região. Este projeto foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e estendeu-se até 2007. Em julho de 2008 iniciamos o segundo projeto: A prática 3 pedagógica dos professores de educação infantil: reflexão e mediação, sendo este financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso – FAPEMAT, encerrando-se em julho de 2010. O terceiro projeto: Um Estudo com professoras da pré-escola: compreendendo suas práticas pedagógicas por meio de histórias de vida, iniciou-se em agosto de 2011 encerrando-se em agosto de 2012. Atualmente o grupo está iniciando o quarto projeto intitulado: Primeiro ano do ensino fundamental: o olhar da criança de seis anos de idade, que se iniciou em março de 2013 com previsão de conclusão para agosto de 2014. Considerando que o nosso foco centra-se nos estudos sobre a educação e a infância, sentimos a necessidade de um maior aprofundamento teórico sobre a concepção de infância e criança, para tanto recorremos à literatura da área para que pudéssemos melhor compreender a construção histórica destas concepções. Ao discutir sobre a concepção de infância e criança utilizaremos as teorias de Rousseau (1999), Ariès (1981), Kohan (2003), Heywood (2004), Kramer (1999 e 2006), Stearns (2006), Kuhlmann (2010), Sarmento (2007) e Postman (2011) que trazem valiosas contribuições sobre o desvendamento da história da infância. No item onde abordaremos as características das crianças pequenas além de utilizar esses mesmos teóricos, daremos um destaque maior para as características encontradas nos documentos oficiais do Ministério da Educação – MEC. 1.2. Concepção de infância e criança Consideramos necessário enfatizar que ao se tratar da evolução histórica dos conceitos de infância e criança alguns autores utilizam estas expressões como sinônimos, entretanto, gostaríamos de ressaltar que temos ciência da diferença entre as concepções de infância e criança, sendo a primeira compreendida, em síntese, como uma etapa da vida da pessoa e, a segunda, como sujeito histórico, social e cultural. As palavras de Heywood (2004) esclarecem o que queremos dizer ao estabelecer diferença entre os termos em discussão, o autor define infância como uma “abstração que se refere à determinada etapa da vida, diferentemente do grupo de pessoas sugerido pela palavra crianças” (p.22). Iniciaremos nossa discussão enfatizando as concepções de infância, relatando de forma sucinta a Antiguidade Clássica no quese refere à concepção Platônica até chegar à atualidade. Posteriormente, abordaremos a evolução nas concepções de criança a fim de destacar as características que prevalecem hoje na literatura ao se tratar da criança. De acordo com Kohan (2003) na primeira concepção platônica, para a sociedade da época, a infância não tinha características próprias, centrava-se numa visão futurista, onde se 4 via apenas possibilidades, ou seja, a criança era vista como um ser em potencial, entretanto, essa potencialidade não permite que ela seja em ato o que é. Em defesa de um devir, a criança não é nada no presente. Sua educação é vista como projeção política, por isso é preciso moldar e imprimir-lhe tudo o que é necessário a um bom cidadão. Para Kohan (2003), o segundo conceito platônico consiste em conceber a criança como um ser inferior sendo, então, a infância uma fase da vida inferior à vida adulta. [...] entre todas as criaturas selvagens, a criança é a mais intratável; pelo próprio fato dessa fonte de razão que nela existe ainda ser indisciplinada, a criança é uma criatura traiçoeira, astuciosa e sumamente insolente, diante do que tem que ser atada, por assim dizer, por múltiplas rédeas [...] (PLATÃO, 2010, p. 302. Grifos nossos). Nesse relato de Platão tem-se a dimensão de como a criança era vista como ser inferior, fato esse demonstrado através dos adjetivos selvagem, intratável, indisciplinada, traiçoeira, astuciosa e insolente, que lhes são atribuídos. Nesse contexto, a natureza infantil deve ser trabalhada para que se volte para a potencialidade e para a harmonia. Kohan (2003) defende que o terceiro conceito platônico concebe a infância como o outro desprezado As crianças são a figura do não desejado, de quem não aceita a própria verdade, da desqualificação do rival, de quem não compartilha uma forma de entender a filosofia, a política, a educação e, por isso, dever-se-á vencê-la. As crianças são [...] para Platão, uma figura do desprezo, do excluído [...] (p. 24). No pensamento platônico sobre educação, o último conceito concebe a infância como material da política. Essa educação na infância está sempre direcionada a uma nova pólis que os filósofos querem constituir, por isso, as crianças, do sexo masculino, filhos de homens superiores, deveriam ser preparadas, moldadas para serem reis que governassem a pólis no futuro. Portanto, neste período da filosofia clássica a infância é concebida como possibilidade e inferioridade. Enquanto “possibilidade” significa ser objeto de intencionalidade política numa visão futura, já que a criança não é vista em si como ela é, mas como possibilidade daquilo que será, “inferioridade” significa a criança ser o outro desprezado. Frente aos relatos anteriores se observa que a pedagogia da época é definida pela visão de potencialidade do devir da criança, ela deve ser preparada para exercer função política e para politizar os povos. Platão vê a educação como meio para alcançar a pólis 1desejada. 1 Platão não estava satisfeito com a forma de governo da pólis (Cidade Estado) e via na educação a melhor ferramenta para alcançar a pólis sonhada, uma pólis mais justa, mais bela e melhor. 5 Entretanto, para que isso se efetivasse, a criança deveria ser moldada para este fim desde a sua infância, por isso a visão da infância enquanto possibilidade. Ao tratarmos da infância na Idade Média, vimos que ela tem sido compreendida pela vertente histórica constituída a partir de estudos de Ariès (original de 1962) que busca documentar o surgimento de um sentimento de infância. Serviremo-nos do aporte teórico de Ariès (1981), historiador francês, por ser considerado pioneiro nesta área, embora seus escritos tenham sido constantemente analisados e criticados por outros pesquisadores no que se refere ao surgimento da concepção de infância. Ariès (1981) afirma que o sentimento de infância não existia na Idade Média, a ela não se dispensava um tratamento específico correspondente à consciência infantil e as suas particularidades que a diferenciasse dos adultos. Tão logo a criança não necessitasse mais da mãe ou da ama ela já era inserida na sociedade dos adultos e assim participava de jogos, de afazeres domésticos ou trabalhava como aprendizes. Suas roupas eram incômodas e similares à do adulto. Essas vestimentas impossibilitavam a criança à liberdade de movimento, tirando- lhe o prazer em correr, sujar-se, subir em árvores, podando-lhe de tudo aquilo que faz parte do mundo infantil descaracterizando-a daquilo que realmente é. Ainda em relação à ausência de um tratamento específico Postman (2011) enfatiza que nesse período não havia uma literatura infantil, nem mesmo livros de pediatria, a linguagem também era a mesma tanto para adulto quanto para a criança. Segundo o referido autor, “[...] no mundo medieval não havia nenhuma concepção de desenvolvimento infantil, nenhuma concepção de pré-requisitos de aprendizagem sequencial, nenhuma concepção de escolarização como preparação para o mundo adulto” (p. 29). A infância na Idade Média terminava aos sete anos, quando a criança já dominava as palavras. Até então ela era considerada como alguém incapaz de falar, significado este oriundo da palavra latina infans. Vale ressaltar que essa incapacidade de falar não se limitava apenas à primeira infância, estendia-se a um período maior, até aos sete anos e após esta idade uma vida adulta começava imediatamente. Outro cenário que denuncia a forma como os medievais ignoravam as crianças diz respeito ao alto índice de mortalidade infantil e a aceitabilidade passível em relação a esse fato. A morte da criança nesse período, decorrente da falta de cuidados básicos e de higiene era considerada um acontecimento comum. A premissa da época era de ter muitos filhos para que talvez sobrevivessem dois ou três. Nesse cenário, “a infância era apenas uma fase sem importância, que não fazia sentido fixar na lembrança”, no caso “da criança morta, não se 6 considerava, que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança” (ARIÈS, 1981, p. 21). Por conseguinte, a arte medieval, uma das únicas formas de expressão do real naquela época, não retratava a criança como de fato ela era. As obras retratam crianças com características do homem adulto, porém, em tamanho reduzido. E por isso as pinturas coerentemente retratavam as crianças como adultos em miniatura, pois logo que as crianças deixavam de usar cueiros, vestiam-se exatamente como outros homens e mulheres de sua classe social (POSTMAN, 2011, p.32). Como na Idade Média a criança estava ausente na arte, compreende-se que neste período ela não tinha lugar e esta indiferença tornava-a invisível. Para Postman (2011) “De todas as características que diferenciam a Idade Média da Moderna, nenhuma é tão contundente quanto a falta de interesse pelas crianças” (p. 33). O autor defende que as ausências dos conceitos de educação e de vergonha atrelado à ausência de alfabetização são razões pelas quais o conceito de infância não tenha existido no mundo medieval. Conforme Ariès (1981) o sentimento de infância pode ser percebido em dois momentos distintos. Um que surge no seio familiar entre os séculos XVI e XVII denominado de paparicação, onde a criança é vista como um mero objeto de diversão, reduzindo-a a fonte de distração aos olhos dos adultos. O outro sentimento nasce em oposição ao primeiro no final do século XVII no contexto eclesiástico chamado de moralização. A igreja, contrária a conceber a criança como brinquedo encantador, preocupou-se em discipliná-la dentro dos princípiosmorais associados aos cuidados de saúde e higiene. Esse novo sentimento transcendeu às famílias que já imbuídas dos sentimentos anteriores, associou um novo elemento, a preocupação com a saúde física e higiênica de suas crianças. Contrapondo à visão de Ariès e Postman, Stearns (2006) afirma que “Todas as sociedades ao longo da história, e a maior parte das famílias, lidaram amplamente com a infância e a criança” (p.11) no sentido de que toda criança pequena requer alguns cuidados necessários que advém de um adulto mais próximo. O autor relata que é preciso que alguém providencie seu alimento, cuide de sua saúde física e emocional, proteja-a do frio e do calor, constituindo-se assim em características peculiares à infância em todas as sociedades, independente de tempos e espaços, podendo ser considerado também como uma preparação para a vida adulta. Entretanto, Stearns (2006) esclarece que “a infância pode apresentar variações impressionantes, de uma sociedade ou de um tempo a outro” (p.12), como, por exemplo, o tempo de duração da infância, o trabalho infantil, as punições e formas de disciplinar as 7 crianças, a idade que adentra ao ambiente escolar são algumas das variações inerentes que atravessam as fronteiras do mundo infantil. Heywood (2004), crítico norte americano, tece algumas críticas ao estudo de Ariès. Ele considera ser muito simplista afirmar que em uma determinada época e espaço não se tinha um sentimento de infância. Expressão essa que segundo Heywood se configura ambígua por transmitir-nos “tanto a ideia de uma consciência da infância quanto de um sentimento em relação a ela” (p.33). Para Heywood (2004), a concepção de infância existe em diferentes contextos, sendo caracterizada por um processo dialético de idas e vindas, avanços e retrocessos, não é uma construção linear, mas sinuosa. Corroborando com Stearns, Heywood enfatiza que fatores políticos, econômicos e sociais que já aconteceram e continuam a acontecer na sociedade acarretam transformações no modo de conceber a infância, levando ao entendimento de diferentes tipos de infância. Considerando que dentro de uma sociedade as crianças vivem em diferentes contextos, é mais eficaz que busquemos diferentes concepções sobre a infância em tempos e lugares distintos. Kuhlmann (2010) compartilha da concepção de infância abordado por Heywood, contrapondo-se também à teoria de Ariès, ele afirma que “O Sentimento de infância não seria inexistente em tempos antigos ou na Idade Média [...]” (p.22). É perceptível que o autor sinaliza a relevância do estudo sobre a história da infância de forma não linear, porém, evolutiva. É preciso considerar a infância como uma condição da criança. O conjunto das experiências vividas por elas em diferentes lugares históricos, geográficos e sociais é muito mais do que uma representação dos adultos sobre essa fase da vida. É preciso conhecer as representações de infância e considerar as crianças concretas, localizá-las como produtoras da história (p.30). Nesse sentido, Kramer argumenta que A inserção concreta das crianças e seus papéis variam com as formas de organização da sociedade. Assim, a ideia de infância não existiu sempre da mesma maneira. Ao contrário, a noção de infância surgiu com a sociedade capitalista, urbano-industrial, na medida em que mudavam a inserção e o papel social da criança na comunidade (KRAMER, 2006, p.14). Para Kramer (2006) “a infância é entendida como período da história de cada um, que se estende na nossa sociedade, do nascimento até aproximadamente dez anos de idade” (p.13). Em outra obra (KRAMER,1999) a autora tem defendido uma concepção que reconhece o que é específico da infância, que é o poder de imaginação, fantasia e criação. Contudo entende “[...] as crianças como cidadãs, pessoas que produzem cultura e são nela produzidas, que 8 possuem um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas subvertendo essa ordem” (p. 272). Postman (2011) defende que o surgimento da imprensa, no século XVI, ao culminar com a alfabetização socializada possibilitou a criação de uma nova definição para a idade adulta que, consequentemente, provocou uma ruptura entre o mundo adulto e infantil. Esta nova definição, baseada na competência de leitura, provoca o surgimento de uma nova concepção de infância baseada na incompetência de leitura. A tipografia criou um novo mundo do qual as crianças foram expulsas ao ser habitado pelos adultos, portanto, essa ruptura exigiu que um novo mundo fosse criado para as crianças: “Este outro mundo veio a ser conhecido como infância” (p.34). Várias atitudes sinalizam a mudança de paradigmas entre a Idade Média e a Moderna. Segundo Ariès (1981) o século XVII configura-se como um período de grande importância para a evolução dos temas relacionados à infância. Segundo o mesmo autor a partir do Século XVII a criança começa a ser retratada sozinha e sua expressão é menos desfigurada que na Idade Média. Conforme Áries (1981) iniciam-se também neste período os primeiros estudos sobre a psicologia infantil. Estes estudos buscavam compreender melhor a mente da criança para melhor adaptar os métodos utilizados na educação. Uma grande revolução acontece no final do século XVIII, o modo de vestir as crianças se diferencia das vestimentas dos adultos. Nesse sentido Ariès (1981) salienta que “[...] foi preciso esperar o fim do século XVIII para que o traje das crianças se tornasse mais leve, mais folgado, e a deixasse mais à vontade” (p. 33). Esse novo modo de vestir dava às crianças, principalmente aos meninos, maior liberdade de movimento, permitindo-lhe que o correr, o pular e as estripulias fizessem parte do seu mundo e assim seguissem seu ritmo. Com essas mudanças, aos poucos a sociedade foi deixando de ver a crianças como um adulto em miniatura. A própria história se encarregou de trilhar novos caminhos e quebrar paradigmas. Os fatos e a vida cotidiana foram se delineando e mostrando a possibilidade de novos olhares que foram se humanizando e indicando ao adulto que as crianças têm características que lhes são peculiares. Dessa forma os diversos fatores sociais e históricos contribuíram para a constituição de uma nova conotação para a infância. No Século XVIII a infância encontra seu ápice. Ariès (1981) enfatiza que os artistas expressam através da arte os sentimentos do adulto em relação à criança, que até então estavam ocultos. A essas expressões atribui-se o nome de cenas de infância literárias revelando, assim, as descobertas da primeira infância, o corpo e a oralidade da criança. Dessa forma, a criança conquista um lugar privilegiado na arte. 9 Postman (2011) destaca que No século dezoito a ideia de que o Estado tinha o direito de agir como protetor das crianças era igualmente inusitada e radical. Não obstante, pouco a pouco a autoridade absoluta dos pais se modificou, adotando padrões mais humanitários, de modo que todas as classes sociais se viram forçadas assumir em parceria com o governo a responsabilidade pela educação das crianças (p.70). O fato de o governo ter assumido uma responsabilidade com a criança fez com essa conquista tivesse conexão com as demais esferas sociais, como a família, a escola e a sociedade, incluindo de forma significativa alguns intelectuais que voltaram seus olhares ao mundo infantil. Isto possibilitou um olhar diferente em relação aos séculos anteriores. Conforme Postman (2011) “[...] o clima intelectual do século XVIII – o Iluminismo [...] ajudou a nutrir e divulgar a ideia de infância” (p.71). Nesta direção Sarmento (2007) afirma que Os séculos XVII e XVIII,que assistem a essas mudanças profundas na sociedade, constituem o período histórico em que a moderna ideia da infância se cristaliza definitivamente, assumindo um carácter distintivo e constituindo-se como referenciadora de um grupo humano que não se caracteriza pela imperfeição, incompletude ou miniaturização do adulto, mas por uma fase própria do desenvolvimento humano (p.28). Dentre os estudiosos da infância do século XVIII encontramos em Rousseau uma grande contribuição. Rousseau através da obra Emílio, ou, Da Educação ressalta que a criança deve ser vista em seu próprio mundo e não como uma mera projeção do adulto. Ao afirmar essa visão, Rousseau (1999) conquista o mérito da construção de um conceito moderno de infância, embora ainda não como compreendido hoje, mas como o início do despir-se de velhos conceitos e a possibilidade de um novo olhar sobre a criança. Rousseau não compreende a criança como um adulto em miniatura, concebe a criança em si mesma, considerando suas manifestações próprias e a capacidade imaginativa e criativa. Para ele cada idade, cada estado da vida tem sua perfeição conveniente, o tipo de maturidade que lhe é própria. Rousseau refere-se à infância como um tempo agradável em que a criança tem atitudes espontâneas, é feliz e inocente. Para ele a infância é uma fase com características próprias às quais devem ser cultivadas de forma a contribuir para o desenvolvimento da inteligência da criança. O autor, de uma maneira intuitiva, antecipou teorias sobre o desenvolvimento cognitivo e moral da criança, quebrou paradigmas e desencadeou novas concepções sobre a criança e a infância, reconhecendo que a criança tem seu próprio mundo e que é preciso compreendê-la a partir dela mesma. 10 Frente ao exposto percebemos que não é mais possível concebermos um conceito estático para infância. Se temos culturas, religiões, estratos sociais, capital cultural diferentes em cada família, se as crianças estão em contextos diferentes e as variáveis de classe social, econômica, política e religiosa que envolve cada criança é diferente, então como é que podemos falar e aceitar a ideia de que existe uma única infância? Diante dos fatores de diversidades, que envolvem as crianças, compactuamos com a ideia de alguns autores, entre eles Sarmento (2007) que comenta: “[...] no interior do mesmo espaço cultural, a variação das concepções da infância é fundada em variáveis como a classe social, o grupo de pertença étnica ou nacional, a religião predominante, o nível de instrução da população [...]” (p. 29). Por isso acreditamos que ao nos referirmos à infância seja mais coerente falarmos em infâncias, no sentido de pluralidade, demonstrando assim a nossa visão de que a infância está relacionada ao contexto ao qual a criança está inserida, pois como vivemos em contextos diferentes, não nos é possível restringirmos a infância a um universo singular. Mesmo cientes de que existiram e existem diferentes infâncias em nossa sociedade, não podemos deixar de mencionar que ao falar de criança temos que reconhecer que esta etapa da vida é marcada por características que lhe são peculiares, que independente de como é o contexto da infância de uma criança ela tem necessidades e características próprias, e é isso que abordaremos no próximo subitem. Vale acrescentar que em considerando a evolução histórica do conceito de infância até então retratados, nos reportaremos ao contexto brasileiro, sobretudo ao cenário das políticas públicas frente ao trato com criança pequena. 1.3. Características próprias das crianças Constatamos em nossos estudos que a forma de compreender a criança e a infância tem passado por grandes evoluções, que são perceptíveis na literatura da área produzida nas últimas décadas, bem como nos diversos documentos oficiais elaborados pelo Ministério da Educação e Cultura – MEC. Vale ressaltar que nos documentos oficiais podem-se perceber concepções já sinalizadas por Rousseau em sintonia com as concepções de teóricos mais atuais como Postman, Kramer, Sarmento, Kuhlmann, Stearns, dentre outros. Essas novas concepções propiciaram um olhar mais humano para a criança garantindo assim a valorização e o respeito por seus direitos e necessidades. 11 O Parecer 022/1998, que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil – DCNEI, ao referir-se à concepção de criança descortina um novo olhar e nos mostra as especificidades do ser criança ao afirmar que elas “são seres humanos portadores de todas as melhores potencialidades da espécie”: *inteligentes, curiosas, animadas, brincalhonas em busca de relacionamentos gratificantes, pois descobertos entendimento, afeto, amor, brincadeira, bom humor e segurança trazem bem estar e felicidade; *Tagarelas, desvendando todos os sentidos e significados das múltiplas linguagens de comunicação, por onde a vida se explica; *inquietas, pois tudo deve ser descoberto e compreendido, num mundo que é sempre novo a cada manhã; *encantadas, fascinadas, solidárias e cooperativas desde que o contexto ao seu redor, e principalmente, nós adultos/educadores, saibamos responder, provocar e apoiar o encantamento, a fascinação, que levam ao conhecimento, à generosidade e à participação (BRASIL, 1998). Nesta mesma vertente, o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil – RCNEI destaca que A criança, como todo ser humano, é um sujeito social e histórico e faz parte de uma organização familiar que está inserida em uma sociedade, com uma determinada cultura, em um determinado momento histórico. [...] As crianças possuem uma natureza singular, que as caracteriza como seres que sentem e pensam o mundo de um jeito muito próprio. Nas interações que estabelecem desde cedo com as pessoas que lhe são próximas e com o meio que as circunda, as crianças revelam seu esforço para compreender o mundo em que vivem as relações contraditórias que presenciam e, por meio das brincadeiras, explicitam as condições de vida a que estão submetidas e seus anseios e desejos (BRASIL, 1998, p. 21). Podemos observar que as formas de ver as crianças vêm se complementando a cada reflexão e a cada novo discurso oficial, nos quais verificamos que a visão se amplia em busca de melhor compreendê-las para melhor expressar ou, até mesmo, traduzir de forma mais peculiar possível o que de fato a criança é. Nessas metamorfoses conceituais o Parecer 020/2009, que trata da revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, ao referir-se à concepção de criança, enfatiza que ela [...] é sujeito histórico e de direitos que se desenvolve nas interações, relações e práticas cotidianas a ela disponibilizadas e por ela estabelecidas com adulto e crianças de diferentes idades nos grupos e contextos culturais nos quais se insere. Nessas condições ela faz amizades, brinca com água ou terra, faz-de-conta, deseja, aprende, conversa, experimenta, questiona, constrói sentidos sobre o mundo e suas identidades pessoal e coletiva, produzindo cultura (BRASIL, 2009, p.7). Desde o Parecer 022/98 o discurso oficial demonstra uma atenção especial para com a forma de concebermos a criança, a sua infância e as suas características. Esta atenção especial 12 às características da criança também é perceptível na Resolução nº 5 de 2009, que fixa as atuais DCNEI que considera a criança. Como Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentimentossobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, 2010, p. 14). As Orientações Gerais para o Ensino Fundamental de Nove Anos reconhece “as crianças como seres íntegros que aprendem a ser e a conviver consigo mesmas, com os demais e com o meio ambiente de maneira articulada e gradual” (BRASIL, 2004, p. 16). Essa concepção encontra-se articulada com o conceito de criança apresentado pelas DCNEI bem como com as características que o Parecer 22/1998 atribui às crianças. Observamos que os documentos oficiais estão em sintonia com o aporte teórico atual sobre essa nova concepção de criança e essa construção histórica tem possibilitado a saída da criança do anonimato. Tem inserido-a cada vez mais em um contexto social mais amplo, que reconhece nela um ser ativo, histórico, social que constrói e reconstrói cultura, que tem opinião, que manifesta seus interesses, curiosidades e desejos, demonstra autonomia em suas escolhas e quer ser ouvida e consultada sobre as situações que lhes são peculiares. 1.4. Para concluir As pesquisas até então realizadas tem contribuído com construção mais humanizada do conceito de infância e criança. Isto pode ser constatado nos artigos publicados, nos capítulos de livros, nas dissertações produzidas e na participação na formação continuada das escolas da rede pública de Cáceres. Além disso, acreditamos que o grupo de pesquisa: “Contextos educativos da infância”, têm proporcionado contribuições significativas junto aos professores da Educação Infantil e dos primeiros anos do Ensino Fundamental em nosso contexto. Haja vista que buscamos construir, à luz dos teóricos da área, uma visão sobre a criança e a infância, com o sonho de se ter uma educação de qualidade em que a escola possa propiciar à criança o acesso ao conhecimento respeitando sua infância, suas características e especificidades que lhe são inerentes, ou seja, a escola precisa fazer sentido para a criança, para que ela conceba esse espaço como lugar de plenas realizações. REFERÊNCIAS 13 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2 ed. Tradução: Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Afiliada, 1981. BRASIL. 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