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INSTITUTO PEDAGÓGICO DE MINAS GERAIS Fundamentos Teóricos da Alfabetização e Letramento Coordenação Pedagógica – IPEMIG Belo Horizonte SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 03 1 A EVOLUÇÃO DA ESCRITA NA HUMANIDADE ............................................. 05 1.1 Um pouco de história da alfabetização ........................................................... 08 2 A APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA ............................................................... 14 2.1 Atividades, mediação e socialização - o enfoque de Vygotsky ....................... 15 2.2 Momentos que antecedem a alfabetização ..................................................... 16 2.2.1 Fase logográfica ........................................................................................... 17 2.2.2 Fase alfabética ............................................................................................. 18 2.2.3 Fase ortográfica ........................................................................................... 18 3 EPOSTEMOLOGIA E PSICOGÊNESE NA ALFABETIZAÇÃO ........................ 20 3.1 A epistemologia na alfabetização .................................................................... 22 3.2 Concepções e métodos de alfabetização ........................................................ 25 3.2.1 Método sintético ........................................................................................... 25 3.2.2 Método analítico ........................................................................................... 26 3.3 Piaget e a construção da alfabetização ........................................................... 26 3.4 A prática educacional e a psicogênese da língua escrita ................................ 35 4 O PROCESSO DE LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO ................................. 42 4.1 O letramento .................................................................................................... 42 4.2 A alfabetização ................................................................................................ 44 5 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS .......................................................................... 53 5.1 Nível pré-silábico I ............................................................................................ 54 5.2 Nível pré-silábico II .......................................................................................... 55 5.3 Nível silábico ................................................................................................... 56 5.4 Nível silábico-alfabético ................................................................................... 57 5.5 Nível alfabético ................................................................................................ 59 REFERÊNCIAS UTILIZADAS E CONSULTADAS ............................................... 62 ANEXOS ............................................................................................................... 67 AVALIAÇÃO ......................................................................................................... 92 3 INTRODUÇÃO O processo de alfabetização representa um desafio para nós, educadores, tanto em relação aos fundamentos teóricos, quanto em relação aos encaminhamentos metodológicos. Isto ocorre pela complexidade do ato de alfabetizar, compreendido, somente, mediante a oportunidade de realizá-lo. Para alfabetizar, faz-se necessário que tenhamos conhecimentos específicos sobre a linguagem e sobre os processos pelos quais os sujeitos pensam e compreendem a língua, a partir de uma determinada realidade sociocultural. Desprovido desses suportes, o alfabetizador pode encontrar grandes dificuldades no desempenho de sua função. A simples aplicação de cartilhas, de livros didáticos ou de métodos pré-definidos não garante a aprendizagem dos alunos. É o caso dos chamados métodos sintéticos (alfabético, fônico e silábico) que centram o ensino nas partes que compõem as palavras (letras, sons e sílabas), privilegiando o processo de codificação e decodificação, assim como a redundância sem sentido de palavras e frases descontextualizadas. Nessa perspectiva, a aprendizagem é considerada como resultado do acúmulo de informações e não como reorganização e reestruturação dos conhecimentos disponíveis. Da mesma forma, os interesses e a realidade cognitiva, emocional e social dos alunos são desconsiderados, como se eles não tivessem noções e hipóteses acerca do funcionamento da língua. Pensando nisso, elaboramos esta disciplina, objetivando oferecer uma visão mais ampla do alfabetizando, dentro do processo de ensino e aprendizagem da alfabetização, bem como, do significado de ler e escrever. Para tanto, analisaremos os métodos de alfabetização e letramento, bem como, a sua aplicabilidade no dia a dia da sala de aula. Nesse sentido, daremos inicio à nossa análise, demonstrando a origem da escrita na humanidade e todas as suas características e possibilidades. Em seguida, analisaremos os métodos de alfabetização, bem como, a sua significância, para a formação da cidadania. Tudo isso, embasando-nos em diversos pressupostos teóricos da alfabetização e do letramento. 4 Ao final, oferecemos um material, em anexo, acerca da alfabetização matemática. Nós, do Instituto IPEMIG, esperamos que você faça uma leitura agradável e que obtenha bons resultados a partir da realização desse curso. Outras informações e aprofundamentos devem ser buscados através da leitura da bibliografia utilizada e relacionada ao final desta. Coordenação pedagógica do Instituto IPEMIG. 5 1 A EVOLUÇÃO DA ESCRITA NA HUMANIDADE A necessidade do homem em transmitir seus pensamentos e sentimentos, fez com que a prática da escrita e da leitura surgisse, gradativamente. Percorrendo a pré-história da linguagem escrita, que passa pelo gesto, desenho e jogo de faz de conta, bem como, destacando as relações entre pensamento e linguagem, visualizamos a construção de um dos instrumentos culturais mais complexos, constituído a partir das relações sociais: a escrita. As implicações práticas decorrentes dessa visão enfatizam a necessidade do ensino da linguagem escrita e não apenas da escrita das letras. Vygotsky (1984, p. 120) já alertava para o fato de se considerarem a escrita como uma “complicada habilidade motora”, ao invés de a perceberem como “um sistema particular de símbolos e signos cuja dominação prenuncia um ponto crítico em todo o desenvolvimento cultural da criança”. Desenvolver tal sistema particular de símbolos e signos pressupõe certas condições que não existem na criança, por ocasião de seu nascimento e que vão desenvolver-se ao longo de seu crescimento, a partir de experiências, vivências e apropriações. Assim, a linguagem escrita apresenta-se como um produto, mas é, ao mesmo tempo, um elemento importante para o próprio desenvolvimento do homem. Para que seja possível apreender sua importância, no desenvolvimento humano, faz-se necessário um olhar para todo o processo de sua apropriação e para os fatores que estão presentes nesse processo. O primeiro desses fatores é a linguagem verbal, naquilo que ela tem, que possibilita ao homem simbolizar e representar. Em seguida, temos as primeiras manifestações da escrita, a partir do desenvolvimento humano, diante das necessidades de se comunicar. Assim, com a pintura nas cavernas do período paleolítico; transformou-se na pictografia (registro de ideias por desenhos copiados da natureza comrelativo realismo); aperfeiçoou-se com a simplificação desses desenhos, transformando-os em ideogramas (sinais simplificados de desenhos, já sem a preocupação de fazê-los cópias fiéis da natureza) e resultou na criação dos fonogramas (sinais que representam os sons da língua falada), invenção essa atribuída ao povo semita, que habitava a Ásia Menor. (RIZZO, 2005, p.13) 6 Até chegar ao que conhecemos hoje, o alfabeto passou por uma série de transformações. “de longos anos de história da escrita e decorrente de sua necessidade de registrar fatos, ideias e pensamentos” (RIZZO, 2005, p.13). O processo de evolução da escrita ocorreu por influência das mudanças na política, na cultura, na economia, nas práticas sociais e até pelas transformações dos fatores geográficos. Tais transformações trouxeram, consigo a necessidade de práticas de registros a fim de garantir, às gerações futuras, o direito de conhecer a sua história. A linguagem surgiu, segundo Luria (1986), a partir da necessidade de uma relação mais complexa do homem com os objetos e com os outros homens. A necessidade de uma divisão do trabalho para garantir a sobrevivência tornou necessária a comunicação, que no início era realizada só com um som gutural, que dependia de um gesto para ter algum significado. A partir daí foi surgindo um sistema de códigos para objetos e ações, evoluindo para um sistema que diferenciava características dos objetos, das ações e relações, até chegar a códigos sintáticos complexos, de frases inteiras. O resultado dessa história social é a linguagem, um instrumento decisivo para o conhecimento humano, que supera os limites sensoriais. A linguagem, ao designar objetos e suas relações em um sistema de códigos, acaba por incluí-los em categorias, o que leva à formação da consciência categorial. Para Luria (1986), sem o trabalho e a linguagem não teria sido formado, no homem, esse pensamento abstrato categorial. A consequência disso é que as origens do pensamento abstrato e do comportamento “categorial”, que provocam o salto do sensorial ao racional, devem ser buscados não dentro da consciência nem dentro do cérebro, mas sim fora, nas formas sociais da existência histórica do homem (LURIA, 1986, p. 22). Num estudo com homens primitivos, Vygotsky e Luria (1996) enfocaram a evolução da linguagem. Eles indicam que a linguagem, em sociedades primitivas, mostra-se de forma mais “fotográfica”, apegada a grande número de detalhes concretos. Por exemplo, o termo ilha é, na língua botakud, representado como: terra água meio é aqui. 7 A frase - um homem matou um coelho, seria dita pelos índios ponka, literalmente, assim: o homem, aquele vivo em pé, matou intencionalmente arremessar uma flecha um coelho aquele vivo sentado. Outra observação dos autores é que faltavam, aos sujeitos pesquisados, termos genéricos como árvore, peixe, pássaro. Em seu lugar apareciam termos específicos para cada uma das variedades, o que dava à linguagem um número imenso de palavras. Vygotsky e Luria (1996) apontam uma vantagem para uma linguagem assim: um signo para cada um dos objetos permitiria réplicas exatas do que se quer comunicar. O inconveniente é justamente a sobrecarga do pensamento com muitos detalhes, não se processando os dados da experiência. Continua-se intimamente ligado às percepções sensoriais imediatas. Como exemplo, os autores relatam que foi pedido para um sujeito contar, e o homem, pelo fato de só poder contar coisas definidas, contou porcos. Mas só contou até sessenta, porque afirmava que ninguém pode ter mais do que sessenta porcos. Continua-se, então, preso ao concreto, e a língua era usada como um reflexo da realidade, e não como uma função independente. Mas Vygotsky e Luria (1996) alertam para não se fazer julgamentos a respeito da maneira concreta do pensamento primitivo [...] com base na estrutura e caráter externos da linguagem. Deve-se analisar não só o instrumento [...] mas também o modo como ele é possível ou realmente utilizado.[...] Assim, as necessidades técnicas e as necessidades de vida, e não as características do pensamento, é que são a fonte verdadeira desses traços da linguagem (VYGOTSKY e LURIA, 1996, p. 132). A língua do homem primitivo está muito ligada às atividades específicas daquele grupo, voltadas para sua sobrevivência. Aquele grupo que depende da terra tem, por exemplo, um número enorme de palavras para o coco, nos diferentes estágios de florescimento e amadurecimento, existindo também a mesma variedade para diferentes espécies de milho. Daí a conclusão dos autores de que “todas as características dessa linguagem e pensamento não podem ser consideradas primárias em sentido absoluto.” (p. 132). Aqui novamente Vygotsky e Luria (1996) apontam que as necessidades técnicas e de vida, e não as características do 8 pensamento, é que propiciam o desenvolvimento para uma linguagem mais complexa. Como o pensamento e a linguagem estão intrinsecamente ligados para esses autores, o desenvolvimento cultural do pensamento possui a mesma conexão íntima com a história do desenvolvimento da linguagem humana. O progresso principal do desenvolvimento do pensamento assume a forma de uma passagem do primeiro modo de utilizar uma palavra com nome próprio, para o segundo modo, em que uma palavra é signo de um complexo e, finalmente, para o terceiro modo, em que uma palavra é instrumento ou recurso para desenvolver o conceito. (p. 133). Falando tanto em termos de desenvolvimento da espécie humana quanto de desenvolvimento da criança, fala e pensamento estão, intrinsecamente ligados. Vygotsky (1993) afirma terem elas raízes genéticas diferentes, ou seja, uma não é resultado da outra e vice-versa. Mas existe uma unidade, que caracteriza o cruzamento entre as duas. A unidade do pensamento verbal é o significado das palavras. Uma palavra sem significado é um som vazio, e o significado (conceito) é um pensamento que ganha corpo pela fala (VYGOTSKY, 1993). 1.1 Um Pouco de História da Alfabetização O termo ALFABETIZAR deriva do termo ALFABETO e “ao primeiro método de ensino, que conhecemos pelo nome de alfabético” (RIZZO, 2005, p.15). A prática de ensinar a ler e a escrever, segundo Rizzo (2005, p.14) era desenvolvida a partir de atividades que trabalhavam combinações diversas entre as letras e o som. Quando os alunos já estavam “manobrando bem penas e tintas na caligrafia das letras, estes eram, então, levados a formarem palavras, que, depois, reunidas, formavam frases e, finalmente, textos”. Os jesuítas implantaram no Brasil a primeira escola, a qual tinha uma finalidade catequética. No entanto, D. Pedro II manteve seus interesses na produção agrícola, desconsiderando o alto índice de analfabetismo. 9 Em 1970, através das ações do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), trinta milhões de jovens e adultos foram alfabetizados, em 3.953 municípios brasileiros. Posteriormente a este movimento, surgiu em 1985, a Fundação Educar o MOBRAL, como um movimento popular na luta pela educação popular e, assim como: nos países dependentes, pode ser analisada sob dois ângulos: a) política externa, b) política interna. No Brasil o primeiro nos conduz ao MOBRAL que tem como objetivo a adaptação, a preparação da mão de obra para o mercado de trabalho. Para isso o indivíduo deve ser alfabetizado a fim de receber duma forma mais fácil as informações e o treinamento que lhe permitirão desenvolver o trabalho que lhe está reservado no desenvolvimento do país, ou seja: o indivíduo é condicionado e instrumentalizado.(BORBA, 1984, p.22). Ainda nos anos 80, programas como: Programa Nacional de Ações Sócio - Educativos para o Meio Rural (PRONASEC) e o Programa de Ações Sócio- Educativos e Culturais (PRODASEC), foram implantados a fim de contribuir para a expansão da alfabetização. No entanto, ainda hoje, a expansão e o acesso da população à alfabetização, é um desafio a ser superado, a fim de afastar o analfabetismo em todos os níveis da sociedade brasileira. Nesse sentido, muitos autores empenham-se em pesquisar o processo de aquisição da lectoescrita baseando-se nas ideias de Emília Ferreiro, a qual relaciona, a origem e a evolução das funções, à psicogênese da escrita dentro do processo de alfabetização. Para Ferreiro (1989): O desenvolvimento da alfabetização ocorre, sem dúvida, em um ambiente social. Mas as práticas sociais, assim como as informações sociais, não são recebidas passivamente pelas crianças. Quando tentam compreender, elas necessariamente transformam o conteúdo recebido. Além do mais, a fim de registrarem a informação, elas a transformam. Este é o significado profundo da noção de assimilação que Piaget coloca no âmago de sua teoria. (1989, p.24) Diante dos estudos de Ferreiro, podemos concluir que se faz necessária uma nova estruturação dos conceitos, práticas, metodologias e didáticas, utilizadas pelos educadores de hoje, repensando também sua função dentro do processo de 10 alfabetização. O professor deve antes, ter consciência de que a criança, enquanto cidadã, deve reconhecer-se dentro do processo de construção do conhecimento, concernente à escrita e a leitura. A criança alfabetiza-se na medida em que interage com o meio e com o outro. Através do processo de aprendizagem a criança se apropria, de forma ativa, do conhecimento humano, construído a partir das experiências sociais A interação com outras pessoas é indispensável para que o processo de aprendizagem ocorra. A criança precisa do relacionamento com o adulto para possa desfrutar de experiências e adquirir conhecimentos. A partir desta interação com o meio, a criança vai criando diversas maneiras de lidar com o meio e começa a atribuir significado à suas experiências e para o seu modo de agir. Com o desenvolvimento da linguagem, os significados ganham maior abrangência, pois passam a ser compartilhados por grande parte da sociedade, da qual o indivíduo faz parte. Diante das questões explicitadas acima, podemos concluir que aprendemos desde cedo, por meio de ações compartilhadas e mediadas pela linguagem e pela instrução do outro. Isto porque, a fala e a escrita refletem as tradições culturais e sociais de um povo. A maneira como um povo se comunica, deixa em evidência instâncias comunicativas e, instaura expressões, através de diversos gêneros. A representação cognitiva e social da língua, através da fala e da escrita, estabelece a comunicação e permitem a socialização de povo, posto que, a fala permite que conheçamos as pessoas, através do exercício de ouvi-las. Cagliari (1999) reconta a história da escrita como objeto simbólico, que serviria para representar algo, mas, que não representa a forma fonética da fala. No entanto, a escrita estabelece uma relação essencialmente fonêmica, ou seja, procura representar aquilo que é funcionalmente significativo, estabelecendo um sistema de regras próprias (KATO, 1996; FERREIRO e TEBEROSKY, 1991). Segundo Sampson (1996), a invenção da escrita aparece tardiamente com relação ao aparecimento da linguagem; ela apareceu depois da chamada “revolução neolítica”, e sua história pode ser dividida em três fases: pictórica, ideográfica e alfabética. No entanto, não se pode seguir uma linha cronológica nesta divisão. 11 A fase pictórica corresponde aos desenhos ou pictogramas, os quais não estão associados a um som, mas à imagem daquilo que se quer representar. Consistem em representações bem simplificadas dos objetos da realidade. Aparecem em inscrições antigas, mas podem ser vistos de maneira mais elaborada na escrita asteca e, mais recentemente, nas histórias em quadrinhos. Exemplo de Pictogramas: A fase ideográfica é representada pelos ideogramas, que são símbolos gráficos que representam diretamente uma ideia, como, hoje em dia, certos sinais de trânsito. As escritas ideográficas mais importantes são a egípcia (também chamada de hieroglífica), a mesopotâmica (suméria), as escritas da região do mar Egeu (a cretense, por exemplo) e a chinesa (de onde provém a escrita japonesa). Os ideogramas também podem ser definidos como desenhos que com o tempo perdem alguns traços de sua representatividade, transformando-se em uma convenção da escrita. Veja os exemplos a seguir: 12 A fase alfabética se caracteriza pelo uso de letras, as quais, embora tenham se originado nos ideogramas, perderam o valor ideográfico e assumiram uma nova função de escrita: a representação puramente fonográfica. O ideograma, por sua vez, perdeu seu valor pictórico e passou a ser simplesmente uma representação fonética. Segundo Sven Ohman (apud KATO, 1990, p. 16), a invenção da escrita alfabética é uma “descoberta”, pois, quando o homem começou a usar um símbolo para cada som, ele apenas operou conscientemente com o seu conhecimento da organização fonológica de sua língua. Também com relação a isso é importante ressaltar o que afirma Vygotsky, a partir dos trabalhos que realizou com crianças: para aprender a escrever, a criança precisa fazer uma descoberta básica – a saber, que ela pode desenhar não apenas coisas, mas também a própria fala. (VYGOTSKY, 1991). Hoje em dia praticamente todas as línguas possuem um alfabeto, e o modo mais comum de se escrever é da esquerda para a direita e de cima para baixo. Contudo, os chineses e os japoneses escrevem da direita para a esquerda e em Exemplo 1 Exemplo 2 13 colunas verticais. Os árabes escrevem da direita para a esquerda, mas não em colunas, e sim em linhas de cima para baixo. Todavia, durante muito tempo, a escrita esteve dissociada das práticas sociais e, por isso, nos dias de hoje, muitos educadores não entendem a diferença entre letramento e alfabetização. Os processos de alfabetização e letramento se diferem pelas seguintes características: o ato de alfabetizar significa ensinar ou aprender a ler e a escrever; já o letramento, sugere que o indivíduo utiliza a leitura e a escrita em suas práticas sociais, ou seja, responde às demandas sociais e se envolve em atividades de escrita e leitura. Mais à frente, veremos com maiores detalhadamente estes dois processos. 14 2 A APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA Para David Ausubel (1978), existem dois tipos de aprendizagem e, a diferença entre eles é percebida através da recepção e do descobrimento. Vejamos como isso ocorre: ■ Recepção: o conteúdo é ministrado de forma acabada e o aluno, simplesmente o recebe. Desta forma, o descobrimento é descartado, assim como a compreensão e a assimilação do currículo; Este tipo de aprendizagem foi chamado por Ausubel, também de Aprendizagem Memorística. ■ Descobrimento: ao contrário da recepção, o conteúdo não chega para o aluno em sua forma fina, pronto e acabado. O conhecimento acontece a partir do descobrimento e, então, é incorporado à estrutura cognitiva do sujeito. Aqui, o aluno tem o papel principal e sua função é decisiva. Ausubel também chamou este tipo de aprendizagem de Aprendizagem Significativa. Para que a Aprendizagemsignificativa realmente ocorra, é necessário que o educador pesquise, selecione, elabore e estruture sua prática, adequando os conteúdos curriculares, no intuito de indicar, ao educando, o caminho mais adequado a se percorrer, no processo de aquisição do conhecimento. Desta forma, o professor estará contribuindo para que seu aluno aprenda e construa seus significados, de forma autônoma, mas nunca sozinho, visto que, o educador deve sempre acompanhar o processo. Uma educação correta deve estar centrada em algo mais que o pensamento do aprendiz; os sentimentos e as ações também são importantes e devem ser levadas em consideração as três formas de aprendizagem a seguir: a aquisição de conhecimentos (aprendizagem cognitiva), a modificação das emoções e sentimento (aprendizagem afetiva) e a melhoria da adequação ou as ações físicas ou motoras (aprendizagem psicomotora), que incrementa a capacidade das pessoas para entender as suas experiências. (...) Os seres humanos pensam, sentem e agem, e as três coisas se combinam para formar o significado da experiência. (NOVAK, 1998, p. 28-29). Em sua obra “Conhecimento e Aprendizagem”, NOVAK (1998) apresenta seu ponto de vista a cerca da Aprendizagem Significativa, mencionada anteriormente por David Ausubel. 15 Diante de tais considerações, podemos notar a valorização da ideia de que, para que seja possível construir significados é necessário que o indivíduo pense, sinta e passe a agir sobre o conhecimento adquirido. 2.1 Atividades, Mediação e Socialização – O enfoque de Vygotsky Vygotsky (1978) fundamentou seus estudos no conceito de atividade e para ele, o ser humano não se limita a, somente, responder aos estímulos advindos do meio, mas, na medida em que atua sobre estes estímulos, transforma-os. Isto acontece, segundo Vygotsky (1978), por meio da mediação de instrumentos que se intercalam entre o estímulo e a resposta. Entre as chamadas cadeias de estímulos e respostas, Vygotsky cita um ciclo de atividade que viabiliza o uso de instrumentos mediadores permitindo que o indivíduo modifique o estímulo, ou seja, o sujeito não responde ao estímulo de uma maneira mecânica, passivamente, mas atua sobre ele. Concluindo, a atividade é um processo pelo qual o indivíduo transforma o meio através do uso de instrumentos. A concepção Vygotskyana, os instrumentos são os mediadores que possibilitam que o indivíduo modifique ativamente a realidade ao invés de apenas imitá-la. Através da cultura social o indivíduo tem acesso a primeira de duas classes definidas por Vygotsky as quais se adéquam ao tipo de atividade do indivíduo. As ferramentas (instrumento), necessárias para a transformação de seu entorno, o qual se adapta ativamente a ele ao indivíduo, atuam materialmente sobre o estímulo, modificando-o. O segundo tipo de instrumentos mediadores citado por Vygotsky, advêm de natureza diferente das ferramentas e produzem uma atividade de adaptação diferente. O Sistema de Signos ou símbolos (instrumentos) usado com mais frequência é a linguagem falada. No entanto, existem outros signos usados para que o indivíduo atue sobre a realidade, por exemplo: os sistemas de medidas, a cronologia, a aritmética e o sistema de leitura e escrita, o qual particularmente nos interessa nesse momento. Em uma ação diferente da ferramenta, o signo não modifica o estímulo, mas o indivíduo que o utiliza como instrumento mediador em 16 suas relações sócias. A diferenciação entre os dois tipos de instrumento citados se manifesta na fala de Vygotsky (1978): A função da ferramenta não é outra senão servir de condutor da influência no objeto da atividade, acha-se externamente orientada e deve conduzir mudanças nos objetos. É um meio através do qual a atividade humana externa aspira a dominar e triunfar sobre a natureza. Por outro lado o signo não muda absolutamente nada no objeto de uma operação psicológica. Assim trata-se de um meio de atividade interna que aspira a dominar a si mesmo; o signo, por conseguinte, está interiormente orientado. Para Vygotsky, aprendizagem tem um caráter social e através do processo de aquisição de conhecimento, no qual a criança se desenvolve intelectualmente, esta passa a compor um determinado grupo social. A aquisição e a compreensão da linguagem e dos conceitos sociais, por parte da criança, acontece através do encontro com o mundo físico, e, sobretudo nas relações estabelecidas com o outro. A cultura passa então, a ter um significado e um sentido, determinando uma forma de socialização. A mediação, responsabilidade da família e dos educadores envolvidos no processo de desenvolvimento da criança, é fundamental na tomada de consciência sobre a cultura social e seus usos linguísticos e cognitivos. 2.2 Momentos que antecedem a Alfabetização A criança desvenda um mundo novo ao aprender a ler e a escrever e se encanta ao acessá-lo. Através da escrita, o indivíduo é capaz de transmitir sentimentos, emoções, ideias... é capaz de se comunicar com o mundo. Ao ser lido para uma criança de dois ou três anos, o livro fala, ganha vida, através da interpretação das imagens, letras, desenhos. Nesta fase a criança já capaz de compreender este fenômeno e costumam pedir a um adulto que conte para ela a mesma história, da mesma forma várias vezes, tamanho é o prazer de fazer parte da fantasia da história. Ao aprender a ler este prazer aumenta. Aprender a ler e a escrever, trará liberdade de comunicação a criança. Para que uma pessoa aprenda a ler e a escrever, ela precisa sentir necessidade de se comunicar. Até este momento a criança se comunicava através de seus desenhos e 17 expressões verbais e corporais, mas agora ela poderá se comunicar também através da escrita. Para que a escrita se torne uma realidade é necessário que suas bases neurofuncionais alcancem a maturidade. Tais bases são o alicerce das modalidades perceptivas, em especial a visual e a auditiva, pois estas definem a forma como se dará este processo. Além de várias associações de neurônios, é necessária a relação de várias destrezas, por parte do cérebro, no intuito de processar a informação captada pela visão e a audição no processo de alfabetização. É necessário que o indivíduo, no processo de alfabetização, faça uso da linguagem oral e para isto é necessário que ele saiba reconhecer, receber, elaborar e interpretar símbolos. Durante o processo são estabelecidas diversas associações viso auditivas, viso espaciais, audiovisuais e viso motoras complexas, sucessivas e simultâneas. O processo de alfabetização é complexo, pois os processos psicolinguísticos estão profundamente envolvidos. Na aquisição da lectoescrita, o indivíduo passa por três processos, os quais, veremos a seguir: 2.2.1 Fase Logográfica Nesta fase a criança associa a escrita com algum objeto. Ela ainda não lê a palavra, no entanto os símbolos foram internalizados. Isto é comum quando as crianças veem o rótulo de produtos muito utilizados por ela ou que circulam na mídia. Ex.: A criança reconhece o rótulo, pois já associa o símbolo ao produto. Alfabética Lectoescrita Logográfica Ortográfica 18 2.2.2 Fase Alfabética Nesta fase a criança relaciona a escrita com os sons, é a chamada consciência fonológica. Trata-se da consciência de que as letras, as sílabas, as partes das palavras, correspondem a um som. 2.2.3 Fase Ortográfica Agora, a criança já é capaz de reconhecer uma palavra sem que necessariamente, faça antes uma análise fonológica.As palavras podem ser lidas, ao perceber partes dela ou ainda, somente pelo contexto. Desenvolve-se a fluidez e a velocidade na leitura. Ex.: A Odrem das leatrs não aeltra a plaavra! A Odrem das leatrs não aeltra a plaavra! Fonte: CANAL KIDS http://blogheydog.blogspot.com/2008/11/ordem-das-letras-no-altera-palavra.html “De aorcdo com uma pqsieusa de uma uinrvesriddae ignlsea, não ipomtra em qaul odrem as lrteas de uma plravaa etãso, a úncia csioa iprotmatne é que a piremria e útmlia lrteas etejasm no lgaur crteo. O rseto pdoe ser uma ttaol bçguana que vcoê pdoe aidna ler sem porelbma.” E não é que a salada de letras faz sentido? Isso acontece porque a gente não lê letra por letra, mas, a palavra inteira de uma vez. O nosso cérebro é muito esperto, e consegue corrigir rapidinho o que está errado na palavra, antes que a gente perceba. 19 O trechinho bagunçado está circulando pela internet. E faz sentido: nosso cérebro tem uns tais de pontos nodais, que prestam atenção só na primeira e na última letra. Eles dão uma olhadinha no resto e tentam adivinhar, pensando nas palavras que você já conhece. Se a primeira e a última letra estiverem no lugar certinho, o cérebro aperta um botãozinho de “auto arrumar” e pronto. 20 3 EPISTEMOLOGIA E PSICOGÊNESE NA ALFABETIZAÇÃO A psicogênese da língua escrita refere-se ao seguimento progressivo dos níveis de desenvolvimento da criança, no processo de aquisição das habilidades de leitura e escrita. Este processo é gradativo e leva vários anos, até ser dominado pela criança. Segundo mostrou a psicogênese da língua escrita, em uma sociedade letrada as crianças constroem conhecimentos sobre a escrita desde muito cedo, a partir do que podem observar e das reflexões que fazem a esse respeito. Em busca de uma lógica que explique o que não compreendem quando ainda não se alfabetizaram, as crianças elaboram hipóteses muito interessantes sobre o funcionamento da escrita (WEISZ, 2002, p. 20). A teoria elaborada por Emília Ferreiro e outros educadores, sobre a psicogênese, consiste em uma amostra explicativamente, concreta e busca apresentar todas as etapas vivenciadas pela criança, durante a alfabetização. Smolka (1996) salienta que Emilia Ferreiro, pesquisadora Argentina, formada em psicologia e psicopedagogia, radicada na cidade do México, que fez seu doutorado na Universidade de Genebra, sendo orientada por Jean Piaget, iniciou suas pesquisas a partir de 1974, como docente da Universidade de Buenos Aires. Em suas pesquisas experimentais, originaram-se os pressupostos teóricos sobre a Psicogênese da língua escrita, sendo este, o marco transformador do conceito de aprendizagem da escrita, compreendendo como se dá a aquisição da linguagem escrita, para a criança. Os principais teóricos que influenciaram os estudos sobre a psicogênese foram: Piaget, Vygotsky e Wallon. No decorrer da pesquisa, para descobrir como a criança consegue interpretar e produzir escritas, muito antes de chegar a escrever ou ler, convencionalmente, foram criadas situações experimentais, bem como, utilizou-se o método clínico ou de exploração crítica, própria dos estudos piagetianos. Através dos dados colhidos com populações de diferentes meios sociais, pode-se estabelecer uma progressão regular dos problemas que as crianças enfrentam e nas soluções que elas ensaiam, para descobrir a natureza da escrita. A ordem de progressão de condutas não impõe o ritmo determinado na evolução. Podem ser encontradas grandes diferenças individuais do desenvolvimento cognitivo, onde se concluiu que algumas crianças 21 chegam a descobrir, os princípios fundamentais do sistema, antes de iniciarem a escola, ao passo que outras estão longe de conseguir fazê-lo. O objetivo maior do trabalho foi apresentar a interpretação do processo de aquisição da escrita do ponto de vista de quem aprende, embasada nas pesquisas realizadas por um período de dois anos, com crianças de diferentes nacionalidades, com idade entre quatro e seis anos (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999). Na mesma obra as autoras esclarecem que a pesquisa realizou-se no que Piaget denominava de “ideias inesperadas”, “respostas inesperadas”. A metodologia desenvolveu-se a partir da apresentação, às crianças que iniciavam seu primeiro ano na escola, de algumas palavras utilizadas pelos professores da escola, para saber o que elas conheciam sobre essas palavras. Eram feitas variações na ordem das letras dessas palavras, mantendo constantes elementos e levantando questionamentos pela interpretação dos resultados, ou seja, pela interpretação da totalidade frente a um processo de modificação da ordem e da frequência de surgimento dos elementos, sem que fosse inserido nenhum elemento novo que pudesse pertencer à outra totalidade. Essa postura investigativa oferecia às crianças, inquietação sobre os resultados obtidos. No momento em que as crianças forneciam respostas que fugiam ao padrão de normalidade do que se esperava, a equipe buscava novas informações que pudessem fornecer subsídios de compreensão de como as crianças pensavam “antes de pensar convencionalmente” e, como ocorre o processo de construção desse conhecimento até chegar a esse “pensar convencionalmente”. Em nenhum momento em suas pesquisas, Emilia Ferreiro destaca a psicogênese da língua escrita como método de ensino. Na realidade, procurou observar e explicar como ocorre a construção da linguagem escrita pela criança, tendo como um dos objetivos principais, direcionar o olhar dos educadores para os caminhos, pelos quais, as crianças passam em seu processo de construção do conhecimento, a fim de que a escola respeite esse processo e, proporcione grandes possibilidades de estímulo para essas construções, sendo esta ação confundida com método de ensino, por alguns educadores. Ferreiro e Teberosky (1999) ressaltam que, entre as propostas metodológicas e as concepções infantis, existe uma distância que pode medir-se em termos do que 22 a escola ensina e do que a criança aprende. O que a escola pretende ensinar, nem sempre coincide com o que a criança consegue aprender. Nas tentativas de desvendar os mistérios do código alfabético, o docente procede passo a passo, do que ele considera do simples ao complexo, fragmentando todo o processo de aquisição da língua escrita. Essa forma que a escola vem “ensinando” a escrever desconsidera todo o processo de construção da criança, que na verdade, para adquirir o código alfabético, reinventam a escrita, à sua maneira. Isso porque a escrita é um processo de construção pessoal e não, uma mera cópia de um modelo externo. Na teoria da psicogênese, Emília Ferreiro mostra que o processo de ensino não dirige o processo de aprendizagem e questiona, como o aluno se alfabetiza, deixando de lado a preocupação em relação à maneira como o professor deve alfabetizar seu aluno. Vygostsky aprecia os primeiros registros gráficos como precursores da escrita. Para ele, os rabiscos (garatuja), desenhos e outras brincadeiras da criança, fazem parte do processo de aquisição da escrita e “devem ser vistos como momentos diferentes de um processo essencialmente unificado de desenvolvimento da linguagem escrita.” (apud SILVA 1994, P. 18). Ainda de acordo com Silva (1994, p. 18), Ferreiro e Teberosky estudaram a atitude da criança quando vê uma gravura com legenda e constataram que, a escrita é previsível (a partir do desenho) para a criança e que, num primeiro momento, o texto escrito e a ilustração formam uma unidade única. Todas as fases do desenvolvimento da criança acerca da escrita,do contato com o desenho (símbolos/desenhos) até a escrita ortográfica, são elaboradas a partir da constatação citada no parágrafo anterior. “esse processo de construção cognitiva se caracteriza por estruturações e sucessivas reestruturações, geradas pelos desequilíbrios originários nas contradições entre esquemas diferentes” (FERREIRO, 1986, p. 27). 3.1 A Epistemologia da Alfabetização O conceito de alfabetização tem uma variação histórica, significando desde o domínio da grafia do nome próprio, passando pela leitura e escrita de palavras e 23 frases descontextualizadas e, atualmente, assumindo um sentido mais abrangente, que envolve a leitura (interpretação) e a escrita (produção) em suas diferentes formas e usos. Em outras palavras, para efetivar esse significado, o domínio da alfabetização está vinculado não apenas ao processo de codificação e decodificação, mas também de interpretação, compreensão e produção escrita. Nessa perspectiva, estar alfabetizado corresponde a estar inserido de forma interativa em um contexto letrado. Não basta, portanto, dominar o sistema de funcionamento do código linguístico, é necessário ter competência para ir além, já que o contrário caracteriza o analfabetismo funcional, isto é, a falta de capacidade de utilizar a linguagem, principalmente oral e escrita, em circunstâncias cotidianas. A capacidade de interagir com o mundo extrapolando o que é aprendido na escola está relacionada a um conceito mais amplo e recente de alfabetização. De acordo com esse princípio, ao ser alfabetizado o sujeito deve ser também letrado, ou seja, ser preparado para utilizar dos conhecimentos para resolver as diversas demandas da vida social, cultural e política, exercendo os deveres e direitos de cidadania, embasado na consciência crítica da realidade. Isto posto, pode-se afirmar que a atual tendência de alfabetização tem um sentido político explícito, vinculando educação e cidadania. Se antes, alfabetizar era considerada uma atividade neutra, politicamente, na atualidade, na perspectiva do letramento, ela assume uma relação com as questões sociais mais amplas. Na década de 60, as ideias de Paulo Freire já contemplavam essa relação. No contexto de sua pedagogia ativa e dialógica, alfabetização sempre correspondeu a algo além do domínio de técnicas de leitura e escrita, nada de “memorização mecânica das sentenças, das palavras, das sílabas, desvinculadas de um universo existencial” (FREIRE, 1979, p.72). Estar alfabetizado significa “entender o que se lê e escrever o que se entende” (Idem). Em sendo assim, é por meio do conhecimento que o sujeito supera a consciência ingênua e atinge a consciência crítica da realidade, que favorece a compreensão genuína da causalidade dos fenômenos sociais. Freire pensava a educação enquanto ato político, portanto extrapolando a sala de aula e projetando- se para os problemas enfrentados pela humanidade. Em suas palavras, 24 no processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isso mesmo, reinventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o aprendido- apreendido a situações existenciais concretas. (FREIRE, 1977, p.27-28). Na perspectiva progressista e transformadora de educação, a alfabetização nunca foi restrita aos mecanismos de codificação e decodificação, correspondendo, sim, ao processo de apropriação do conhecimento, por meio do qual o sujeito pode superar a alienação e construir sua condição de existência na relação dialética com o meio: constituindo e constituindo-se. Dessa forma, não cabe sobreposição de conceitos entre letramento e alfabetização, já que essa é desencadeada pelo acesso à cultura letrada, que, por sua vez, é legitimada, também, pelo domínio da alfabetização. Historicamente, desde que foram inventados os sistemas de escrita, fez-se necessário socializar suas regras de funcionamento para que as pessoas pudessem utilizá-los, adequadamente e, assim, interagir no contexto letrado. Insistir na sobreposição de conceitos significa negar a relação entre esses processos e, ainda, implica na possibilidade de transformar o letramento em mais um modismo educacional: o entendimento não ultrapassa os limites do discurso, portanto, não se configura enquanto prática pedagógica. Diante dessa tendência, o cotidiano do alfabetizador tem sido palco de grandes embates teóricos e práticos, acerca dos métodos e processos de alfabetização, contemplando não apenas os aspectos metodológicos, mas também, psicológicos, filosóficos, sociológicos e linguísticos. Por se tratar de um conhecimento interdisciplinar, a alfabetização precisa estar respaldada em princípios que sustente sua complexidade. Nessa perspectiva, a epistemologia genética de Jean Piaget pode oferecer importantes contribuições, pois mesmo não sendo um alfabetizador, ao aborda os processos de aquisição de conhecimentos, sua teoria tem implicações, repercussões e aplicações pedagógicas, apesar das dificuldades e equívocos acerca dessa transposição. É importante esclarecer que o referencial teórico piagetiano é um caminho importante para a compreensão do conhecimento, porém não é o único, já que seus pressupostos são explicativos e não normativos, estão em (re)construção constante, são, portanto, antidogmáticos, como ele mesmo 25 afirmou: “Se algum dia se falasse do „sistema de Piaget‟, essa seria a prova de meu fracasso” (apud FERREIRO, 2001, p.124). Isto posto, o presente estudo recorreu à epistemologia genética para fundamentar a discussão acerca do processo de alfabetização e letramento, na perspectiva interacionista de conhecimento, abordando, então, a interação entre o sujeito (alfabetizando) e o objeto de conhecimento (língua escrita), assim como o mediador desse processo (alfabetizador). 3.2 Concepções e Métodos de Alfabetização Muitos educadores se perguntam qual o melhor método ou “receita para se obter o sucesso no processo de alfabetização? Esse impasse causa insegurança e se faz presente, desde o inicio da história da alfabetização, nas escolas brasileiras. Dois “métodos” trouxeram polêmica no passado. Mas em que eles consistem? Vamos analisá-los: 3.2.1 Método Sintético Aqui, se faz a relação entre o som e a grafia, ou seja, entre o oral e a escrita. Inicia-se a alfabetização com subdivisões partindo daí para o todo. O educador orienta o educando para que, este, seja capaz de estabelecer as relações entre, o som das letras pronunciadas e a grafia das mesmas. O Método Sintético, ainda se subdivide em: Silábico-Sintético e Fônico- Sintético. Segundo Kato (1999, p 19), no silábico-sintético “a criança é capaz de perceber uma entidade mais abstrata que a palavra, a sílaba e a partir da representação grafêmica chegar a unidades significativas como a palavra, a frase.” Já no fônico-sintético, a criança entende unidades sonoras físicas. O educador, parte do som das letras, do fonema e posteriormente leva o educando a associá-lo a grafia e às unidades significativas (silaba, palavra, frase, texto....). Alguns educadores criticam este método e o julgam “mecânico”, onde a escrita e uma transcrição da fala. Ora, nós sabemos que não existe uma única letra que represente um fonema, desta forma, é correto afirmar que a escrita não é uma transcrição do fonema. 26 3.2.2 Método Analítico Aqui a leitura é tida como um ato global onde reconhecer as palavras ou das orações, é o primeiro passo. O Método Analítico é divido por Kato (1999), em: Global Puro,onde sugere que o estímulo visual se realiza de forma ideográfica, sem apreciação dos elementos que o compõe; o Global Analítico-Silábico, onde a criança entende que a escrita pode ser dividido em partes menores (sílaba); e o Global Analítico-Fonêmico, onde a criança entende que a mesma divisão pode ir além, chegando a um nível fonêmico. Mas existem também alguns pesquisadores que criticam o Método Analítico e se perguntam como é possível a criança aprender a ler e a escrever sem antes, entender o sistema que lhe permite codificar e decodificar. 3.3 Piaget e a Construção da Alfabetização O processo de alfabetização nunca foi objeto de estudo de Piaget, porém, a partir de sua teoria é possível introduzir a escrita enquanto objeto de conhecimento e o alfabetizando enquanto sujeito cognoscente. Abordar a alfabetização sobre as bases da teoria piagetiana é, no mínimo, um desafio; tanto para a teoria, que é colocada à prova, quanto para o alfabetizador, que tenta reinterpretá-la, utilizando-a como sistema assimilador. De acordo com Ferreiro e Teberosky (1986), trabalhar com as ideias do mestre de Genebra em um novo campo é uma “aventura intelectual apaixonante”, dadas suas possibilidades de respaldar novas aquisições. Segundo as autoras (1986, p.281): “foi graças a essa teoria que pudemos descobrir um sujeito que reinventa a escrita para fazê-la sua, um processo de construção efetivo e uma originalidade nas concepções que nós, adultos, ignorávamos”. A psicologia genética de Jean Piaget e a psicolinguística contemporânea contribuem para desbancar antigas premissas acerca da alfabetização, segundo as quais: a) o alfabetizador e o método de alfabetização são considerados aspectos centrais; b) a criança começa sua aprendizagem da leitura e da escrita somente quando ingressa na escola; c) a alfabetização é centrada no processo de codificação e decodificação. 27 Se para Piaget todo conhecimento é sempre assimilação de um dado exterior às estruturas do sujeito, a alfabetização, nessa perspectiva, consiste na aquisição de um esquema de assimilação de códigos gráficos, os quais representam um significante da realidade, uma vez que substituem o real por meio de uma convenção, no caso o código alfabético. Sendo assim, pode-se afirmar que a alfabetização compreende os processos de aprendizagem vinculados à objetos simbólicos, enquanto produtos sociais e culturais. Isto posto, como ocorre a aquisição desse esquema de assimilação, condicionada por um sistema social de significações? Essa questão remete à natureza complexa da alfabetização, a qual compreende dois aspectos distintos e relacionados: o aspecto figurativo da língua escrita (assimilação figurativa - formas e tipos de letras) e o aspecto operativo (mecanismos de codificação das letras para representar palavras, requer competência cognitiva e linguística). A criança aprende a ler e escrever analisando os dados que lhe chegam sobre esses conteúdos. Essa análise é caracterizada, a princípio, por uma “leitura” das formas gráficas, as quais ela sabe que significam alguma coisa, porém ainda não compreende seus aspectos convencionais. Somente as práticas sociais de interpretação possibilitam identificar essas formas como objetos simbólicos, carregados de determinados significados. Nesse sentido é importante esclarecer que, ao transpor a teoria piagetiana para a prática pedagógica, é necessário considerar que a presença do objeto de conhecimento per se não garante a assimilação, uma vez que são as situações sociais que colocam as significações. Sobre essa questão, Piaget e Garcia (1982, p.228) explicam: Na experiência da criança, as situações com as quais se depara são prontamente criadas por seu ambiente social, e as coisas aparecem em contextos que lhes dão significações especiais. Não se assimilam objetos „puros‟. Assimilam-se situações nas quais os objetos desempenham certos papéis e não outros. A atividade de assimilação envolve a compreensão analítica das formas gráficas e do mecanismo de codificação, não ocorrendo respaldada somente no discurso pedagógico do professor, embasado em premissas de um adulto alfabetizado. Para alcançar essa compreensão analítica faz-se necessário uma atividade estruturante da criança, referenciada na interação com o objeto de 28 conhecimento. Daí a importância de acesso à diferentes portadores de escrita, os quais favorecem os esforços de compreensão através de comparação, ordenação e reprodução das marcas que compõem o sistema de escrita. Dito de outra forma, a criança atribuirá significado ao mundo da escrita mediante suas tentativas de assimilá-lo, e é somente em função dessa interpretação que sua conduta deve ser compreendida. O processo de alfabetização, na perspectiva psicogenética, parte da utilização de significantes (índices, sinais, símbolos), seguida do texto e da apresentação de palavras, colocadas em um determinado contexto que amplia o seu significado. As palavras são retiradas do mundo real da criança. A atividade de leitura tem início com o processo operacional de análise-síntese, quando a criança “monta e desmonta” a palavra escrita. Sendo assim, o ponto de partida para a alfabetização não são as letras e sílabas. Uma proposta metodológica que enfatiza somente o aspecto figurativo é respaldada na memorização mecânica de letras, sons e sílabas; seus resultados são superficiais, uma vez que não criam uma situação favorável à compreensão do processo de codificação. O alfabetizando pode obter êxito em repetir os códigos linguísticos, porém enfrentará dificuldades em suas tentativas de leitura e escrita, visto não compreender o sistema de funcionamento do código alfabético: será um mero reprodutor de signos estranhos. Em decorrência, é possível observar um equívoco teórico vinculado à alfabetização: considerar que a aquisição da língua escrita em toda sua complexidade consiste em uma técnica de codificação e decodificação. A transposição das ideias de Piaget para o campo pedagógico e psicopedagógico não pode desconsiderar os pressupostos psicogenéticos. Pesquisas com crianças de diferentes partes do mundo (FERREIRO E TEBEROSKY, 1986) revelam que a aquisição da língua escrita segue uma trajetória de concepções sucessivas e construtivas, que, Ferreiro e Teberosky (1986) identificaram como os seguintes níveis de evolução da língua escrita: pré - silábico; silábico; silábico alfabético e alfabético. 29 As experiências cotidianas com o objeto de conhecimento, nesse caso a língua escrita, resultam em variações na idade de aparecimento das concepções, mas há uma regularidade que caracteriza, de forma não aleatória, essa trajetória. Isso não significa que a aquisição da língua escrita segue, mecanicamente, uma sequência de fases uma vez que as diferenças individuais não podem ser descartadas. As conceitualizações sobre a escrita evoluem, principalmente, a partir da diferenciação icônica, ou seja, a criança descobre que para ler e escrever são necessárias determinadas marcas, distintas do desenho (fase pré - silábica). É possível que, a princípio, mesmo tendo consciência dessa distinção, a criança não consiga realizar uma leitura desvinculada da imagem, mas ela já tem clareza de que aquelas marcas no papel representam algo. Em suas primeiras tentativas de escrita ou grafismos primitivos, utiliza garatujas ou pseudoletras. Na maioria dos casos, esse conhecimento antecede o ingresso à escola, uma vez que a criança em geral está inserida em um mundo letrado, vivenciando representações e signos diversos.Após diferenciar o desenho da escrita, a criança compreende que essa é representada por formas arbitrárias, dispostas linearmente (ordenadas em uma sequência no plano horizontal) e que há dois tipos de signos gráficos: as letras e os números. Seguindo a trajetória de aquisição desse objeto, ela começa a elaborar tentativas de interpretação. Para tanto utiliza de alguns critérios para decidir sobre a quantidade de letras necessárias á escrita. À princípio pode utilizar a quantidade de letras suficiente para preencher a largura do papel, ou usar uma grafia para cada palavra; ou ainda, considerar que o número ou tamanho das letras deve corresponder ao objeto que representam (realismo nominal). Assim, para escrever elefante são necessárias várias letras ou letras grandes; já para escrever formiga são necessárias poucas letras ou letras pequenas. As crianças seguem diferenciando seus critérios, o que pode levar à hipótese quantitativa e qualitativa (FERREIRO e TEBEROSKY, 1986). A primeira refere-se a quantidade mínima necessária para que algo seja escrito, geralmente em torno de três caracteres. A segunda refere-se à variação dos caracteres, ou seja, deve haver uma combinação de posição e formas de letras para que algo seja escrito. Dessa 30 forma, atendendo à natureza desses critérios, a escrita é produzida com no mínimo três letras (caracteres), as quais devem ser diferentes. No caso de outra produção com essas letras, faz-se necessário mudar a posição das mesmas. “Para significados diferentes devem corresponder sequências diferentes, porém as diferenças que se marcam são fundamentalmente semânticas e não diferenças sonoras” (FERREIRO, 1993, p. 85). Em suas tentativas de reconstrução da escrita, a criança utiliza de todas as informações disponíveis, inclusive do fato de ser falante da língua. Nessa fase, ela não compreende que não há uma correspondência perfeita entre a língua oral e a língua escrita, e levará algum tempo para descobrir que a escrita não significa uma transcrição da fala. Conforme afirma Hagége, “Uma língua escrita não é uma língua oral transcrita: é um novo fenômeno linguístico e cultural.” (apud, FERREIRO, 2001, p. 82). A fonetização da escrita tem início mediante a busca de relação entre a produção escrita e a produção oral (fase silábica: cada sílaba da palavra é representada por uma letra ou uma grafia). Essa fase é caracterizada pela hipótese de que para escrever algo que apresenta semelhança aos sons da fala, deve haver semelhança de letras na escrita, sendo que as diferenças sonoras devem ser marcadas por produções gráficas distintas. Assim é possível escrever qualquer palavra. É importante assinalar que essa hipótese não corresponde às tentativas de escrita ortográfica, mas sim alfabética. Não se trata de uma hipótese a ser ensinada, ela surge da necessidade interna de coordenar o valor do todo e das partes. É um salto qualitativo a superação da correspondência global entre a forma escrita e a expressão oral para a correspondência entre as partes do todo. Nessa trajetória, a criança reconstrói seus conhecimentos da língua oral, utilizando-os na produção escrita; em outras palavras, trata-se de reestruturar o que já se sabe para incorporar o novo. Por exemplo, a noção de palavra em nível oral não garante a produção escrita. Faz-se necessário, portanto, uma reelaboração em função das particularidades impostas pela língua escrita. Ou, ainda, nas palavras de Ferreiro (1993, p.101): “nem o conhecimento do recorte silábico em nível oral basta para desenvolver imediatamente uma hipótese silábica, nem a noção de palavra basta 31 para encontrar as segmentações na escrita, nem a competência dialógica oral basta para responder a uma carta”. Para progredir e superar essa fase, as mediações externas são fundamentais, uma vez que, devidamente adequadas, desencadeiam conflitos, cuja solução resulta em um nível qualitativamente distinto. É de acordo com seu ritmo e experiências no mundo letrado que a criança verifica que a escrita do tipo silábica não corresponde à escrita convencional ou à escrita utilizada pelo adulto. Essa constatação infantil marca um avanço conceitual, pois coloca a necessidade de rever as hipóteses, buscando uma solução para o problema. Trata-se do conflito cognitivo, tão necessário para o progresso conceitual, como afirma Piaget (1974). Mediante resultados de pesquisa, Curto (2000) aponta como problema da escrita silábica para a criança: a escrita de palavras monossílabas (como é possível escrever uma palavra com uma grafia quando se está convencido de que é necessário mais de uma letra para escrever uma palavras?); as palavras com letras iguais (se de acordo com a hipótese silábica é correto escrever BATATA, grafando AAA, como é possível ler se todas as letras são iguais?); as palavras diferentes escritas da mesma maneira (não é possível grafar UO tanto para suco como para tubo); os nomes próprios (por que os nomes próprios não se ajustam à hipótese silábica?). Sendo o sistema de escrita do tipo alfabético, o meio proporciona referências que não são interpretáveis pela hipótese silábica da criança. É na busca de solução para esses conflitos que a criança avança para hipótese silábica - alfabética, caracterizada pela progressiva compreensão do significado de sílaba: uma grafia composta por mais de uma letra. Durante essa fase, a criança combina o critério silábico com escritas parcialmente alfabéticas. A escrita alfabética, por sua vez, é efetivada quando as letras são grafadas de forma convencional. Escrever alfabeticamente não significa escrever ortograficamente; portanto, os conflitos de ordem ortográfica permanecem e serão resolvidos mediante a familiaridade com o sistema alfabético de representação da escrita. As experiências cotidianas possibilitam à criança explorar algumas propriedades da língua e formular hipóteses sobre o seu funcionamento. Contudo, para compreensão das reais propriedades que definem esse objeto simbólico e lhe proporcionam valor social é preciso a mediação de um parceiro alfabetizado, o qual 32 utiliza da escrita como significante em seu sentido pleno, ou seja, domina a escrita para resolver questões práticas, ter acesso à informação, interagir com o mundo utilizando formas superiores de pensamento. A língua é um objeto conceitual. A criança só adquire conceitos se os tiver anteriormente construído. Apropriação de conhecimento significa um processo ativo de reconstrução, uma compreensão do modo de produção. Assim, a natureza do conhecimento é assimiladora e não registradora (acúmulo de informações). Dessa forma, para conhecer faz-se necessário processar, operar com a informação. Se a compreensão carece de esquemas de assimilação originados na ação sobre o objeto de conhecimento, o mediador precisa planejar adequadamente as situações, entendendo que propor condições de aquisição não corresponde a ensinar formalmente, mesmo porque, do ponto de vista da psicogênese, as aquisições se realizam por caminhos que não são determinados pela escola. As pesquisas de Ferreiro e Teberosky (1986) evidenciam que, independente da metodologia de trabalho do alfabetizador, as crianças não avançam no mesmo ritmo, sempre há níveis distintos de conceitualização. Isso ocorre porque o método não cria aprendizagens, o conhecimento é resultado da própria atividade do sujeito: a ação desencadeia todo processo de conhecimento. No decorrer do processo de alfabetização, a intervenção do mediador deve ocorrer no sentido de favorecer a compreensão dos modos de representação da linguagem, uma vez quepara se ingressar no mundo letrado a criança precisa resolver os problemas conceituais vinculados à compreensão do sistema alfabético de escrita. Ela não se alfabetiza com base apenas em suas hipóteses sobre o processo de leitura e escrita, de modo que é fundamental a transmissão de conhecimentos. Isso significa que negar a mediação do professor no processo de ensino é um grande equívoco educacional. A própria postura do professor enquanto usuário da língua é um referencial importante, ele ensina também ao servir de modelo no uso da linguagem escrita, portanto seus encaminhamentos de leitura, sua forma de utilizar o código, independente de situações específicas de ensino, servem de referencial para o aluno, por exemplo: lê em sala algum comunicado da direção da escola ou um bilhete encaminhado por um pai de aluno, uma notícia de jornal, uma carta, etc. 33 Faz-se necessário, também, trabalhar a função social da escrita, cuja importância extrapola os limites da escola; a leitura compreensiva de diferentes registros e materiais portadores de escrita (jornais, livros, revistas, cartas, bilhetes, receitas, outros); a produção de textos coerentes e coesos, com diferentes propósitos. Essa trajetória é marcada por organizações, desestruturações e reestruturações constantes, haja vista que a criança sistematiza e põe à prova a organização obtida durante suas tentativas de compreensão do objeto. As tentativas de compreensão da linguagem ficam prejudicadas mediante o uso de materiais de alfabetização definidos a priori. Esses recursos são frequentemente contraproducentes, pois desconsideram uma capacidade vital da criança: a capacidade de pensar. E por que pensar é importante? Porque pensar significa criar, construir e reconstruir, problematizar incessantemente, buscar sem parar. Essas características são fundamentais para efetivação de uma aprendizagem significativa, contrária à conotação empirista que este termo pode adquirir. Por outro lado, o uso de materiais padronizados pode retirar a oportunidade de situações mais interessantes, como por exemplo: vivenciar atos de leitura e de escrita, explorar semelhanças e diferenças entre textos escritos, emitir opiniões sobre textos, fazer perguntas e oferecer respostas conforme as hipóteses disponíveis, tentar produzir um texto, explorar os diferentes portadores de texto existentes no ambiente. Em suma, a escrita, enquanto objeto de conhecimento, deve estar presente de forma plena e não ser dosada através de propostas metodológicas fixas e/ou padronizadas. Quando se adota esse procedimento de trabalho, incorre-se no equívoco de deixar o material conduzir o ensino e a aprendizagem em prejuízo da interação entre o aluno e o professor. Os alfabetizadores não podem delegar a responsabilidade da mediação na aprendizagem, o que implica revisar algumas ideias subjacentes à tarefa de ensinar. Segundo Curto (2000, p.68): “ensinar não é apenas transmitir informações a um ouvinte. É ajudá-lo a transformar suas ideias”. Para isso, é preciso conhecê-lo, escutá-lo atentamente, compreender seu ponto de vista e escolher a ajuda certa de que necessita para avançar: nem mais nem menos. 34 Para alfabetizar com base nos pressupostos piagetianos, o professor precisa dispor-se a entender o pensamento infantil sobre a língua escrita, analisar as produções como passos construtivos de um processo e não como resultado definitivo, precisa aceitar que as crianças têm hipóteses complexas e compreensivas sobre o sistema alfabético de representação, construídas em suas tentativas de compreensão da natureza da linguagem. Para tanto, deve oferecer oportunidades para que a criança pense, exponha sua lógica, revele suas dúvidas, faça seus questionamentos. Por fim, trata-se de considerar a alfabetização não apenas como aquisição de um código linguístico, mas enquanto uma estrutura sobre a qual outros conhecimentos serão construídos. Assim torna-se possível alcançar o objetivo principal da educação na perspectiva de Piaget: desenvolver a capacidade humana de criar e não simplesmente repetir o que a humanidade já sabe. A realidade do mundo globalizado impõe novas perspectivas ao processo de alfabetização: não basta dominar os mecanismos de codificação e decodificação, é necessário ir além desse saber para construir conhecimentos e engajar-se socialmente. Em outras palavras, aprender a ler e escrever não pressupõe somente compreender um conjunto de regras e normas, mas também adquirir competência comunicativa para utilização adequada da língua em qualquer circunstância. De acordo com essa tendência ampliam-se as funções dos professores alfabetizadores, que devem atribuir novos sentidos e significados aos usos funcionais da língua. Isso quer dizer (re) definir os conceitos teóricos e metodológicos que embasam os procedimentos didáticos - pedagógicos. Para tanto, precisa haver disposição para rever posturas e concepções acerca dos alunos, dos processos de ensino e de aprendizagem e, também, de alfabetização. Ao abolir a visão reducionista do ato de ler e escrever, o professor passa a valorizar o meio sociocultural em que as crianças estão inseridas, contextualizando o ensino da língua, uma vez que os conhecimentos são construídos ao serem trabalhados em contextos sociais e situações comunicativas diversas. Ao buscar referência nas práticas sociais de leitura e escrita, o ensino transforma a relação das pessoas com o conhecimento. Esse processo é gradativo, envolve erros e acertos, daí a necessidade de mediação teórica, de momentos de estudo e reflexão. 35 Nesse sentido alguns princípios piagetianos podem ser pertinentes para uma intervenção na alfabetização. Com base nessa matriz explicativa a compreensão de determinado objeto de conhecimento, neste caso a língua escrita, está estreitamente relacionada às possibilidades do sujeito reconstruir esse objeto, a partir da compreensão de suas leis de funcionamento, o que equivale a reconstrução da língua pelo entendimento de seus elementos constitutivos. Para tanto é preciso criar situações de intervenção, por meio das quais ocorre a mediação pertinente ao processo de aprendizagem. Essa dinâmica interativa é contrária ao planejamento massificante, isto é, o plano único de atividades para todos os alunos. A partir da consideração das diferentes concepções que os alfabetizandos podem apresentar em relação a língua escrita, torna-se inviável propor o mesmo trabalho a todos. O alfabetizador que desconsidera essa realidade e massifica seus alunos com uma proposta única, atende a uma parcela da turma, geralmente aqueles que já construíram vários dos conceitos sobre a linguagem, enquanto os demais ficam à margem do processo e são os candidatos ao fracasso escolar. Para estes a escola deixa muitas lacunas no cumprimento de sua função social de produção e socialização do conhecimento, e ainda, discrimina e classifica os que podem e os que não podem aprender. Por meio de seus “mecanismos legais” de avaliação, faz com os alunos assumam a responsabilidade de seu “fracasso”, com todas as implicações sociais decorrentes desse fato. Não é essa a educação que a maioria dos brasileiros almeja e necessita. Se o acesso aos patamares mais elevados do conhecimento é direito inalienável de todos os cidadãos, cabe a escola assegurar as condições favoráveis ao desenvolvimento pleno das potencialidades de seus educandos. Isto significa educar na perspectiva da diversidade, construindo uma cultura de integração em detrimento da reprodução de modelos pedagógicos predefinidos e alienantes. 3.4 A prática educacionale a psicogênese da língua escrita A psicogênese da língua escrita não surgiu para ser mais um modismo, mais um manual de como alfabetizar, até porque em momento algum houve a preocupação dos pesquisadores em estabelecer regras ou atividades a serem desenvolvidas com os alunos de forma sequenciada ou não. Os educadores que 36 desenvolvem um trabalho baseado nos estudos da psicogênese, valorizam o saber das crianças quando entram no sistema educacional, pois esse sujeito cognoscente, ou seja, o sujeito que busca adquirir conhecimento, é colocado em primeiro plano, onde são considerados os progressos em função dos esquemas conceituais que são testemunhas em uma atividade construtiva e que respondem a uma linha evolutiva de caráter geral. Sendo assim, o professor deixa de ser considerado como o único depositário do saber relativo à língua escrita, pois passam a serem consideradas e solicitadas às contribuições de todos os participantes do grupo, em lugar de seguir uma progressão de exercícios pré-determinados por um manual, passam a realizar, preferencialmente, atividades onde a língua escrita cumpre apenas algumas de suas funções sociais específicas (escrever para recordar, conservar, comunicar-se). Há respeito pelo ritmo de aprendizagem do aluno, pois a alfabetização requer um tempo de assimilação dos conhecimentos, e esse tempo é de importância fundamental tanto para as crianças como para os professores, pois precisa mudar seus esquemas assimiladores reativos a escrita, que é o objeto do conhecimento. (FERREIRO, 2001c). No livro Psicogênese da Língua Escrita, as autoras destacam que uma das grandes necessidades de mudança está, principalmente, a prática educativa predominante, ainda nos dias atuais, pela maioria dos alfabetizadores, a pedagogia tradicional. Nessa pedagogia, a escola ignora a progressão natural do desenvolvimento da criança em relação à aquisição da língua escrita, priorizando o ingresso imediato ao código escrito, na busca por tentar compreender o código alfabético. Parte-se do pressuposto, que todas as crianças já conseguem compreender o código alfabético assim que iniciam sua vida escolar, desde que o professor ensine passo a passo as partes que integram a escrita, partindo do que ele considera o mais simples (letras e sílabas) até chegar ao mais complexo (frases e textos), transmitindo-lhe o equivalente sonoro das letras e exercitando-as na realização gráfica da cópia. Com isso, constata-se que há uma distância muito grande entre o que a escola ensina e o que a criança aprende. Nessa prática, possibilita-se que a criança aprenda a função da escrita de modo descontextualizado a partir da apropriação desse objeto, seguindo uma lenta construção de critérios que lhe permitem compreendê-lo, critérios esses estabelecidos pelo educador e não nos 37 momentos de descoberta da criança a partir de suas próprias construções na interação com o objeto de conhecimento. As autoras destacam ainda que as principais dificuldades iniciais observadas nos profissionais de ensino no decorrer da pesquisa foram: em primeiro lugar, a visão que o adulto, já alfabetizado, tem do sistema de escrita; em segundo lugar, a confusão entre escrever e desenhar letras e; em terceiro lugar, a redução do conhecimento do leitor ao conhecimento das letras e seu valor sonoro convencional. Essas dificuldades originam-se em sua própria alfabetização, ou seja, na forma como foi alfabetizado. Somente o conhecimento da evolução psicogenética pode obrigá-los abandonar a visão errônea do processo. Surge então, o desafio da capacitação, para resgatar o professor adormecido frente às mudanças educacionais necessárias, para resgatar os seres pensantes, reflexivos e construtores. O professor, assim como as crianças, elaboram hipóteses, sendo assim, a capacitação precisa partir dessas hipóteses construídas pelos professores, essas fornecidas pelas próprias dúvidas e anseios que eles externam quando solicitam “receitas” para a prática educacional. A exteriorização do que eles estão pedindo indica a hipótese em que estão e, portanto, passa a ser o ponto de partida para o que precisa ser trabalhado na formação. A importância de iniciar pelo que ele pensa se dá na valorização e respeito das hipóteses individuais, prática que eles precisam ter com os alunos, no entanto, isso não significa que capacitação será limitada no que ele pensa, mas a partir daí proporcionar-se-á oportunidades para refletir e construir, ampliando assim os conhecimentos. A conscientização, por parte desse professor de que a prática não está separada da teoria, e que essa se reflete em sua prática, sendo, muitas vezes inconsciente, passa a ser desafio no momento de capacitação, que precisa esclarecer essa teoria, possibilitar o estudo, os momentos de questionamento, para que o professor possa elaborar algo novo a partir do saber que tem, pois não há construção no vazio, todo o novo é construído ou reelaborado a partir dos conhecimentos já existentes. Por essa razão, o instrumento chave desse professor é sua reflexão, pois se o educando é um sujeito que se alfabetiza ao interagir com seu próprio processo de alfabetização, o professor deve ser aquele a quem devem ser oferecidos instrumentos que resgatam sua reflexão teórica sobre sua prática, para que a construção de sua trajetória se dê em 38 processo paralelo ao de seus educandos, dessa forma descobrirá como e por quê modificar a sua prática.(FREIRE apud FERREIRO, 1990). De acordo com Palácio apud Ferreiro (1990) o problema da capacitação dos professores não se resolve apenas através da modificação dos currículos de formação dos mesmos, porque a prática docente se apoia em modelos anteriores, nas experiências que os professores tiveram quando eles aprenderam a ler e a escrever. Portanto, não se pode propor ao professor que mude seu modo de atuar sem fornecer-lhes material teórico forte e sólido, para servir de subsídio em sua prática. Sendo necessárias correções quando ocorrem falsas interpretações, e proporcionar momentos de experimentação, fazendo com que o estudo seja mais bem compreendido e aprofundado. A teoria psicogenética da alfabetização é um enfoque novo para um problema velho. Sua inserção no sistema educacional está ocorrendo através de sua institucionalização como conhecimento, particularmente a nível universitário, e está procurando as formas de penetrar no aparelho estatal que é a escola pública. Para isso, faz-se necessário um processo natural de desenvolvimento de uma mudança, que deve ocorrer “de baixo pra cima”, a partir das experiências concretas de grupos que demonstrem importância, os sucessos dos mesmos, possibilitará uma nova visão. Essas experiências concretas devem funcionar como áreas de investigação e desenvolvimento para o aparelho do Estado (KISIL apud FERREIRO, 1990). Deve-se lembrar que a capacitação não é um momento apenas para transmissão de uma teoria ou experiência, precisa está organizada para propiciar momentos de reflexão para a reconstrução da prática educacional de todos os envolvidos. É necessário saber mais sobre quais são as informações, quais são os dados que o professor extrai do que vê, porque é evidente que só é possível ver quando a atenção está voltada para os aspectos adequados, e quando se possui esquemas que permitem ver. Quando se ressalta que o professor constrói o conhecimento, pensa-se que trata-se de uma pessoa que tem muita informação e muitos esquemas interpretativos, mas que, provavelmente, tem uma grande insegurança de mudar. O lugar onde os professores aprendem seu ofício é a escola
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