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O Classicismo Francês Beatriz Resende 1 O classicismo francês costuma aparecer nos estudos literários como um momento que inspira um certo movimento de resistência. Enfrentá-lo é correr o risco de se deparar com a possível desconfiança de se estar diante de uma passagem pelo conservadorismo. Esta possível resistência ao estudo do classicismo (proposta artística do iluminismo francês, do século XVII e início do século XVIII) não se dá inteiramente sem razão. Trata-se de um movimento que tem muito de pedante, de intencionalmente rígido. Para agravar a situação, segue-se a ele o momento fascinante que é o da grande revolução, a revolução das revoluções, a Revolução Francesa. No entanto, de uma forma aparentemente contraditória, é este o grande momento do teatro francês, um teatro de completo sucesso, que permaneceu em sua integridade e que terá influências definitivas na arte dramática em geral. O estudo do classicismo evidencia o problema da ideia de evolução em literatura, como se cada momento artístico não servisse senão de degrau para a ascensão do momento seguinte que irá superá-lo. O teatro, no entanto, é excelente exemplo do movimento de ideias, de contaminações, de buscas, de retomadas que formam o universo das artes. A incógnita maior, então, é que tipode de influência terá esse movimento que aparece como algo de rígido a inspirar revoltas contra si próprio no caminho sempre desejado da modernização. Assim, cabe reconsiderar qualquer eventual implicância inicial de reconhecer que se trata de um fenômeno que merece atenção, sobretudo pelo que determinou de fundador na história da literatura dramática e da encenação. Além disso, gostaria de dar a esta leitura do classicismo um tom menos preocupado com o texto, o que não é fácil pois este é o carro-chefe do movimento, mas atento com a relação que 1 Professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro - http://lattes.cnpq.br/6496587970042087 O Classicismo francês. In: Tânia Brandão. (Org.). O Teatro através da história. V. 1: O teatro ocidental. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil/Entourage, 1994, v. , p. 125-141. passa a se estabelecer com a sociedade, o público, a história do espetáculo e da encenação, procurando ver que há de inaugurador em relação à constituição do teatro como um todo. É no classicismo que uma companhia estabelece de forma definitiva na França em um espaço específico, como a de Alexandre Hardy, o primeiro playwriter, o primeiro dramaturgo profissional que escreve espetáculos para um grupo de atores. Esta primeira companhia tem o privilégio, até hoje indesejável, de ter seu próprio espaço e, ao mencioná-la, podemos chamar atenção para uma característica desse tipo de teatro: o fato de que o palco francês nunca foi só de homens, mas desde o início já recebia belas jovens, o que não acontecia em outros palcos. Esta companhia se estabelece no Hôtel de Bourgogne, espaço importante na história do classicismo francês, e cabe destacar uma característica de fisicalidade: Paris nunca teve teatros sem teto como os de Londres ou Madri. A partir daí as peças já eram exercícios de retórica, pois cada ator avança para a frente do palco para declamar suas falas, depois se retirava, deixando a vez ao sucessor. Estamos então diante de outra herança fundamental: é a partir do classicismo que se impõe o teatro de texto . É o império de textocentrismo, que permanecerá como dominante até o final do século XIX, quando, a partir de Antoine e Stanislavski se impõe o teatro do encenador. uma terceira característica fundadora é a que, ligada a esta valorização do texto, está a valorização do ator declamador. Os grandes textos trágicos de Corneille e Racine serão as provas de fogo de todos os grandes atores e atrizes, da grande Rachel a Sarah Bernhardt, até nossa Fernanda Montenegro e o desafio que se impôs com o papel de Fedra. Em quarto lugar, vemos que é com o classicismo que a comédia, com Molière, adquire status de grande obra. John Gassner diz que Molière é o segundo grande talento individual da dramaturgia de todos os tempo (nesse, ‘segundo’ fica uma referência ao conterrâneo do crítico, Shakespeare). Apesar de toda a importância das comédias de Shakespeare, é pelas tragédias que ele fica nume primeiro lugar. É curioso ver que é a comédia que dá organização ao teatro como atividade. Isto se deu pela necessidade maior de um trabalho coletivo existente mais na comédia do que na tragédia, onde brilhavam talentos individuais. Assim, a companhia oficial da França será chamada de Comédie Française, e a palavra do ator, em francês, é comédien. Isto é curioso, porque a institucionalização do ator se dá por um gênero visto, até então, como menos nobre. Uma última característica geral: é no classicismo que se constitui uma platéia como público. Isto é, como público pagante, opinativo, que ajuda a definir o destino do espetáculo. Vemos, então, que aquilo que poderia parecer algo velho é, na verdade, inaugurador, deixando marcas definitivas no teatro. Antes de passar para um estudo dos momentos principais do classicismo, através de autores de destaque, poderíamos examinar algumas referências, para compreendermos o sentido de se falar em ‘estilo clássico’. A primeira delas é a tragédia grega, com dois conceitos decisivos, os de imitação (mimese) e catarse. A imitação é de tal forma valorizada durante o classicismo que as grandes tragédias escritas neste período são, na verdade, reescrituras das tragédias gregas, frequentemente, porém, atenuadas, como fazia Racine com Eurípedes. A Andrómaca de Racine, por exemplo, eleva ao palco muito menos crueldade, dureza, do que mostrava Eurípedes, mas, por outro lado, também muito menos preocupação com a sociedade. Uma segunda referência é a influência, por todo o continente, da commedia dell'arte, de onde sai Molière, e cujos personagens continua usando, misturados aos do mundo do classicismo. Mas gostaria de destacar, ainda de forma especial, outras referências: a primeira funciona por oposição, é o teatro elisabetano, em especial o de Shakespeare. Um teatro visto como bárbaro, rebelde a Aristóteles grandiloquente, cru, capaz de dialogar com reis e lacaios. O teatro de Shakespeare, na verdade, é tudo aquilo que o teatro clássico não deve ser. A segunda é a do teatro dos corrales , o teatro espanhol, que estava no seu apogeu. É justamente com uma peça sobre o heróis nacional espanhol, O Cid, que o classicismo se instaura na França. Data de 1610 a fundação companhia permanente de Alexandre Hardy, Os Atores do Rei. A esta altura o conhecido cardeal Richelieu dos folhetins de capa e espada - um cardeal interessado em teatro - já era a eminência parda da França. Posteriormente, em 1629, é criada a companhia do Príncipede Orange, no Marais, em uma antiga quadra de tênis adaptada. Após uma experiência com quatro comédias, Pierre Corneille (nascido em 1606) escreve sua primeira tragédia, Medéia, uma imitação clássica. Dedica-se então, ao estudo do teatro espanhol que vivia momentos de grande prestígio, em especial As aventuras do jovem Cid, de Guillén Castro. O resultado foi a tragicomédia O Cid. O curioso aí é que o classicismo, como espírito da época, já se inaugura em sua plenitude e assim permanecerá até que o movimento filosófico da época devore suas próprias regras clássicas, em minha opinião O Cid é, juntamente com Fedra, de Racine, a grande obra clássica. O Cid foi encenado pela Companhia do Hôtel de Bourgogne no fim da temporada de 1636-37 e obteve retumbante sucesso. A corte e a população da cidade aclamam a peça, entusiasmadas com os difíceis moralistas amores de Ximena. Luís XIV e rainha cumprimentam o autor e dão uma patente de nobreza a seu pai. Sintomaticamente, não só o autor é festejado, mas também a sobrinha de Richelieu, a quem a peça fora dedicada. Fica já bastante evidente o sucesso de uma peça significa sucesso não só de público, mas também êxito junto à corte. Atores da Comédie Française. Os Olhos voltados para o céu e as atitudes ‘nobres’ dos atores nos quais podemos observar o luxo dos figurinos. Pintura de Watteau, Coleção Jules S. Bache (Metropolitan Museum of Art, New York). Luís XIII, Richelieu e Ana da Áustria assistindo à montagem inaugural do Palais-Cardinal (1641). O espaço do parterre encontra-se reservado aos espectadores reais enquanto os nobres ocupam seus lugares nas galerias laterais. Pintura de Abraham Bosse (Museu de Artes Decorativas, Paris). O Cid , porém, é um último tributo à individualidade e a época pede algo mais diverso. O tempo do herói individual es´ta terminando, como vai ser consagrado pelo teatro de Molière, um teatro que possui, sim, indivíduos, heróis e heroínas, mas onde se movem grupos de pessoas, conjuntos de elementos dos diversos segmentos sociais. Corneille, depois deste grande sucesso, por conta de intrigas da corte, enfrenta restrições e volta ‘domado’. A peça seguinte, Horácio, aceita uma definição mais rígida das regras das três unidades. A dramaturgia de Corneille se torna progressivamente mais rígida. A propósito cito John Gassner, crítico sempre delicioso quando fala dos franceses: A verdadeira deficiência de Corneille é a crescente rigidez técnica imposta a ele pela moda literária do classicismo francês, dando que o princípio da ‘ordem’ em todas as coisas já invadira por essa época o terreno da construção dramática … esse elisabetano de coração estava infelizmente engaiolado na era de Luís XIV. Em seguida Corneille escreve, Cina, Polyeucte, O mentiroso, todos grandes sucessos. Depois vai se retirando aos poucos. Em 1661 Luís XIV tem pleno controle da França, e a única arte com possibilidade de êxito era aquela que divertia a sociedade ’polida’ no mais polido dos estilos literários. É o momento dos palácios e salões, gerenciados por importantes amantes de nobres. A polidez do discurso literário, o aspecto do cuidado, capricho, ligado à artificialidade, evidente na moda rococó com suas perucas, aparecia na lapidação dos versos escritos em hexâmetros rimados, com acentuação fixa, seguindo regras cada vez mais rígidas de recusa do prosaísmo. É ainda Gassner quem bem define: O teatro e a dramaturgia deviam possuir a beleza formal de um camafeu cravejado de pedras. A peça devia mostrar o mínimo de ação possível; os acontecimentos deviam ser relatados mensageiros; as personagens deviam revelar suas emoções conversando com essas chaturas do teatro francês, os confidentes ou as confidentas; e o drama devia ser confinado a uma situação central. Se continuássemos de forma cronológica falariamos de Molière, mas antes vamos tratar Racine, que foi, antes de mais nada, uma grande poeta. Racine foi capaz de transformar as restrições clássicas em vantagens, conseguindo um dom de refinamento que resulta na música verbal de um poeta verdadeiro. Juntando este talento a uma compreensão do ‘coração feminino’, produziu uma obra que é o deleite de grandes atrizes, todas as que, para sê-lo deviam representar Racine com toda emoção. Nascido em 1639, Racine foi educado com muita rigidez pelos jansenistas de Port-Royal e cedo se ligou ao principal crítico da época, Nicolas Boileau. O início de sua carreira aconteceu com o amparo de Molière, que encenou sua segunda peça. A tabelada, em 1664, com sua companhia Comédiens du Roi. Neste período havia forte rivalidade entre esta companhia e ado Hôtel Bourgogne. Na encenação de sua terceira peça, Andrômaca, Racine, no entanto, não hesitou em cometer uma ‘traição’, opinando por levá-lo para o Hôtel de Bourgogne, que naquele momento estava com melhores atores. Andrômaca mostra bem que a principal diferença entre as peças de Racine e as de Eurípedes está de fato de as do grego serem mais vinculadas à vida e preocupadas com a humanidade, e as de Racine serem dramas psicológicos e, como tal, muito bem realizados. Em seguida faz Britânico, uma pintura forte de Nero e sua corte. Com esta peça já entra em competição com Corneille. É então eleito para a Academia Francesa, que o escolhe ai invés de Molière, que se recusa a abandonar a profissão de ator. O envolvimento com as artes cênicas de um autor, mas a postura em relação ao ator era outra. Duas maldições pesavam sobre Molière: a primeira era o gosto por ser ator; e a segunda, a irreverência para com a Igreja. Em seguida Racine escreve Ifigénia e outro lance de dramaturgia euripidiana, Fedra . Este é o ponto áureo de sua carreira. Dentro dos limites do classicismo francês, com suas regras de contenção, esta peça se afirma como um tremendo tour de force de atuação, pois que é extraordinária por sua exploração das profundezas de uma mente obcecada pela paixão. Criar, dentro de tais regras de contenção, uma história de tal paixão proibida é um êxito da criação artística desenvolvida justamente a partir de princípios de oposição interna. A mente obcecada de Fedra, uma mulher capaz de tudo, de qualquer crime, pela paixão, fez a história desta peça que não é elaborada como um teatro de catarse, de transbordamento ou de dilaceramento romântico. Tudo isto tem que ser revelado de forma absolutamente contida, rígida, metrificada e rimada. Sem dúvida alguma o resultado só podia mesmo ser o grande desafio que uma atriz pode se impor . As intrigas da corte acabam com o seu sucesso e após Fedra volta ao jansenismo . Escreve ainda Berenice, Ester e Atalia. Molière um pupilo de Cyrano de Bergerac, é considerado o maior dramaturgo cômico da França e talvez, junto com Aristófanes,um dos maiores do teatro europeu. Sua grande estréia se dá em 1658, no Louvre, diante do jovem Luís XIV (e sua corte), que fica fascinado com a irreverência do autor. A companhia de Molière se exibiu com sucesso ininterrupto. O dramaturgo foi também responsável por suntuosos divertimentos em Versalhes, apresentando regularmente peças representadas para a corte. É Molière quem leva para a França a influência do desenho de cena italiano, com seus cenários pintados e a maquinaria elaborada. Na realidade, estabelece, na prática, uma ligação entre os dois grandes tragediógrafos, atuando em Nicomede de Corneille e encenando A tebaida de Racine. Fez sua última apresentação no palco do Palais-Royal: O doente Imaginário. A trajetória de Molière como homem de teatro se completa depois de sua morte, quando sua companhia sob a direção de mulher e de um segundo marido ator, uniu-se, por ordem de Luís XIV a duas outras para formar a Comédie Française - o Teatro Nacional da França -, a Casa de Molière. Antes de voltar a Molière a partir do estudo da relação entre a cidade e a corte e a formação do público, gostaria de citar alguns autores nem sempre enfocados no estudo da dramaturgia do classicismo. O primeiro é o importante nome do iluminismo francê, Voltaire, que criou tragédias como Oedipe, Brutus, Zaire e A morte de César, escritas entre 1718 e 1732, que não ombreiam em importância com o resto de sua obra. São obras cheias de versos filosóficos e anticlericais. Também chamo a atenção para dois autores que não são clássico da época. O primeiro é Marivaux (1688-1763), dramaturgo prolífico que lutava contra o formalismo, antecipando recursos do romantismo e do sentimentalismo. Marivaux só será mais aceito quando a obrigação de seguir as rígidas regras clássicas for atenuada, e terminará sendo um autor muitíssimo encenado, garantia de sucesso de público para diversas companhias até hoje. Outro que passa despercebido é Beaumarchais, que entrará na história do espetáculo por arte de ilustres compositores. Num momento em que as óperas de segunda categoria alcançavam grande popularidade, em que o vaudeville começava na França justamente com a ‘comédia sentimental’, que os franceses chamavam de comédie larmoyante, o espírito irreverente de Molière parece ter-se encarnado, às vésperas da Revolução Francesa, em Pierre Augustin Beaumarchais. É justamente às vésperas da Revolução que Beaumarchais garatuja às presas O barbeiro de Sevilha, comédia transformada em ópera-bufa por Giovanni Paisiello e mais tarde celebrizada por Rossini. Em seguida escreve O casamento de Fígaro, obra imortalizada ao dar origem a As bodas de Fígaro, ópera em quatro atos de Mozart. Nestas histórias em que nobres e lacaios se misturam em seus amores, Beaumarchais derrama todo o desprezo e irreverência pela arrogante nobreza dos agonizantes anos da monarquia do Bourbon. Gostaria agora de passar, também inevitavelmente de forma rápida, pelo pensamento crítico da dramaturgia da época, pela Arte poética que resuma a proposta estética desse princípio de articulação harmonioso que é a obra de Nicolas Boileau (1639-1711). Boileau é o teórico desta época literária de grandes vultos sob a proteção do Rei Sol. Quando sua Arte poética é publicada, em 1674, Molière já morrera, o que não o poupa de críticas, e Racine já escrevera suas principais obras. Boileau é, portanto um definidor da chamada doutrina clássica , que dá letras às regras de bem escrever, que bom gosto e bom senso que pautaram a produção artística da época. Vale a pena conhecê-la como uma forma de melhor compreender - a posteriori - o espírito da época. Boileau reitera, em especial, os princípios da Arte poética de Aristóteles, especialmente o conceito de verossimilhança. Na verdade, ele estreita o conceito aristotélico de mimese, o que deixou aos que seguiram uma longa discussão. Diz Boileau: “Nunca ofereça algo de inacreditável ao espectador: a verdade pode, às vezes, não ser verossímil. Uma maravilha absurda é para mim sem atrativos, o espírito não se emociona com aquilo em que não crê.” Isto restringe a afirmativa de Aristóteles de que é preferível o impossível crível ao possível incrível. Ao longo de sua Arte poética, Boileau irá fazendo a defesa da razão e do bom senso, mas é sobretudo o belo a condição indispensável à existência da obra de arte. Na verdade, esta estética do belo só será rompida pelo Romantismo, quando Victor Hugo, no prefácio à peça Cromwell, coloca o grotesco ao lado do sublime, princípio que não apenas expressa teoricamente, mas realiza, em obras como O corcunda de Notre-Dame. De acordo com Boileau:”Não existe serpente nem monstro odioso que, imitados pela arte, não possam agradar ao olhos: a habilidade agradável de um pincel delicado transforma o mais horrendo objeto num objeto fascinante.” Importante ainda é ver de que forma o teórico reafirma regra as três unidades desqualificando o teatro que não as cumpra. A inauguração do Teatro Real de Turim (1740). Foi retirado o espaço do parierre. Pintura de Pietro Domenico Olivero (Museu Cívico, Turim) Assim, afirma no terceiro canto que um versificador para além dos Pireneus encerra, no teatro, muitos ano em um dia: lá, com frequência, o herói de um espetáculo grosseiro é criança no primeiro ato e velho no último (está aludindo a Lope de Vega e seus seguidores). Nós que a razão engaja às suas regras, queremos que a ação se desenvolva com arte: em um lugar, em um dia, um único fato, acabado, mantenha até o fim do teatro repleto (grifos meus). E a verdade é que conseguiam tal intento. Mas o que pare mais importante em Boileau, como algo definidor de sua proposta de teatro, é justamente a reflexão final sobre o público, onde se refere a Molière. Diz o crítico, ainda uma vez numa referência a esta realidade dupla que é a corte e a cidade: Estudem a corte e conheçam a cidade: uma e outra são sempre fecundas em modelos. Com elas é que Molière, dando brilho a seus escritos, teria talvez ganho o prêmio por sua arte (refere-se aqui à entrada para a Academia de Letras, onde o comediólogo foi preterido) se, menos amigo do povo, em suas doutas pinturas muitas vezes não tivesse feito caretear suas personagens, abandonando o tom agradável e fino para adotar o bufo. Trata aqui, segundo a ideia tradicional, de dividir os franceses entre homens da corte e burgueses, ignorando o povo, que não merece atenção dos artista da época. Cabe lembrar que 1672 a Corte tinha sido transferida para Versalhes, aumentando ainda mais a distância entre ela e a cidade. Este cuidado extremo em afastar dos nobres o cheiro do povo terminará por lhes custar as cabeças. E, finalmente, agrava-se o desprezo pela arte que se aproxime do popularquando declara que: No teatro, gosto de ver um autor que, sem rebaixar-se aos olhos do espectador, satisfaz somente pela razão e nunca contraria. Mas quando um falso cômico, amante de equívocos grosseiros, não utiliza senão a sujeira para divertir-me, que ele se v, se quiser, sobre dois tablados (refere-se aos saltimbancos) divertir o Pont-Neuf e os lacaios lá reunidos. O século XVII introduz duas novas expressões no vocabulário que trata da produção artística. São expressões ligadas à organização de uma sociedade que se encontra à beira da grande crise que culmina com a Revolução Francesa, em 1789. Trata-se da palavra ‘público’, que entra em cena neste século, e da expressão la cour et la ville (a corte e a cidade, magnificamente estudada por Erich Auerbach em ensaio com este título). Em Horácio , de Corneille, público aparece significando ‘corpo político’, Estado. A palavra aparece, em seguida, em documentos e correspondência, como ‘platéia de teatro’. A palavra ‘povo’, que já existia, designa parte deste público: as pessoas sem nobreza da platéia. Boileau, em sua Arte poética, como já vimos, designa a corte e a cidade como o público literário. A corte é a entourage do rei, a população palaciana que assiste aos espetáculos que lhe são oferecidos. Este fenômeno do autor teatral, que surge a partir dos espetáculos palacianos, aparece em manifestação mais próxima de nossa cultura com Gil Vicente. O autor português celebriza-se pelos espetáculos apresentados com sucesso à corte de Portugal em festejos da casa real. Já ville é a cidade ocupada pelos burgueses. Gostaria de chamar atenção para o fato de que a história do teatro é a história da cidade. É impossível considerarmos a evolução de um sem acompanhar o movimento da outra, do teatro da Grécia antiga - espaço de surgimento da pólis - aos espetáculos medievais nos burgos que se organizam dando origem às cidades da Europa moderna. Com Molière de todos os dramaturgos do classicismo o mais preocupado com a organização da sociedade como um todo, a palavra cidade deixa de se referir, como acontecia ainda com Corneille, nos membros de uma elite urbana que se reunia nos salões para discutir arte e toma o significado de ‘a sociedade de Paris’. Molière é o caso, extremamente interessante, de um autor que teve, de saída corte e o ‘público’ a seu lado. Opunham-se a ele, no entanto, forças poderosas das quais se vingava através de suas obras. Dentre estes estão os próprios membros dos salões, satirizados, por exemplo, pelos personagens de As preciosas ridículas, com especial destaque para a personagem do marquês. A figura deste marquês aparece como recorrente do personagem Dorante que, consistentemente, expressa em suas falas desprezo pelos ocupantes do parierre. O parierre era a parte mais barata do teatro do classicismo, onde as pessoas ficavam de pé, pagando por seus lugares não mais de 15 sous. Sem dúvida um ótimo lugar para os que estavam interessados em ver um espetáculo do que serem vistos, preocupação do elegantes aristocratas, mas espaço onde agiam os ladrões e ocorriam brigas constantes. Os ‘preciosos’ eram sempre nobres que os burgueses enriquecidos imitavam. A peça e o filme Cyrano de Bergerac mostram bem como esta crítica se dá dentro do próprio teatro, com a sátira ao famoso ator Montfleury, do Hôtel de Bourgogne, cuja atuação apresentava um phatos pedante e exagerado, mas admirado pelos marqueses e pela sociedade dos salões das preciosas. A dramaturgia de Molière vai descrever uma sensação que demonstra bom senso e bom gosto se encontram-se tanto no parierre como na corte, cabendo ao artista agradar a ambos. Os mais duros inimigos de Molière aparecem em Tartufo. São os carolas. A crítica a estes empostados religiosos resultou na proibição da peça e foram necessários cinco anos para que o rei, a quem a obra agradava, conseguisse a liberação da peça, satisfazendo, com este ato, a si mesmo e aos parisienses. O desprezo pelo parierre , expresso por personagens como o marquês e Dorante, baseava-se no entendimento de que ali poucas pessoas poderiam compreender as regras que determinavam a qualidade de uma obra teatral. O que importa, porém, é ver que o espírito de época do classicismo não foi determinado simplesmente pela corte e pela aristocracia, mas também pelo gosto popular. A platéia de lacaios, soldados, pajens e pequenos funcionários foi sendo completada - e em parte substituída - pela média burguesia formada pelos comerciantes parisienses, além de artistas e jovens escritores, a quem, como costuma acontecer com a maioria dos intelectuais, agrada estar próximo ao povo. Deste modo, ao falar de ‘público’, no correr do século XVII, terminaremos englobando corte e cidade. Com o sucesso que obtém, o teatro de Molière torna-se o mais forte expoente desta expressão de um gosto homogêneo, de um ideal cultural comum. Para concluir, gostaria de mostrar como o classicismo conteve, em si próprio, sua crítica e como o caminho que leva do iluminismo até a Revolução Francesa é pavimentado por intelectuais clássicos que passam, para usar uma expressão contemporânea, a se preocupar com a democratização do saber. É a intelectualidade bem formada do iluminismo que vai produzir a reação à era clássica e, mais do que isso, o ideários de Liberdade-Igualdade-Fraternidade. Dentre estes pensadores iluministas já no século XVII, um se ocupará de formar toda especial com as questões teatrais: Denis Diderot. Em 1758, Diderot já é célebre na Europa, dirige a Encyclopédie, signo máximo do iluminismo, e O discurso sobre a poesia dramática, espécie de Arte poética. Mas não é nem esta peça, nem a anterior, O filho natural , que irão modificar o panorama teatral, mas justamente o que irá de revolucionário em seu texto teórico. A ideia centro própri Diderot: “A submissão às regras é a morte do gênio.” Esta ideia se juntaria a outra que se ocupa do aspecto necessariamente de ‘utilidade’ da filosofia. Segundo Diredot, o filósofo é um homem que quer agradar e se tornar útil. E é assim que o filósofo , naquele momento, ganha os salões, os cafés, as salas de espetáculo, tentando mostrar a conexão entre a filosofia e a sociedade é a mais estreita possível. E justamente a esta finalidade deveria servir a Encyclopédie : tornar o saber mais acessível. Para além da alternativa de propostas teóricas que giram sempre em torno das ideias de verossimilhança e da importância ou não das regras das três unidades, o mais decisivo na proposta de Diderot é sua vontade de resgatar o espetáculo no teatro. É de sua importância como manifestação espetacular que o pensador se ocupa, e para isso irá combater o textocentrismo que se impusera com o classicismo francês.Combate assim um teatro de grandes poetas, seduzidos por achados poéticos e grandes feitos declaratórios. Desta forma, é preciso romper a servilidade do teatro à teoria clássica dos gêneros. Este processo sem razão que, a propósito da ‘comédia séria’, afirma: “A platéia da comédia é o único lugar onde se confundem as lágrimas do homem virtuoso e do perverso.” Desejando libertar o teatro das regras arbitrárias que o ‘engaiolavam’, devolvendo no dramaturgo a liberdade de criação e introduzindo um conceito mais amplo de verossimilhança, que contém em si a noção de ‘ilusão’, Diderot formula uma teoria antecessora de um grande momento renovador das artes cênicas, o naturalismo (entendido o termo em sua acepção propriamente teatral) quando afirma que: “Quer compondo, quer representando, fazei de conta que espectador não existe e não penseis nele me nenhum dos casos. Imaginai no proscênio uma grande parede que vos separa da plateia e representai como se a cortina não estivesse aberta” Este é o conceito de quarta parede, que dará ao ator, por exemplo, a liberdade de virar-se de costas para a platéia. O fundamental é que tais formulações pressupõem nova ideia de público, conceito que foi forjado no decorrer do classicismo, e deverá expressar um ideário que não deve ser mais controlador do gosto, mas sim a expressão de visão de muitos dos recém-chegados no circuito da cultura bem-pensante. Bibliografia Auerbach, Erich. “La cour et la ville”, em: Lima, Luiz Cosia. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeirom Francisco Alves, vol. II, 1983 Boileau-Despréaux, Nicolas. A arte poética. São Paulo, Perspectiva, 1979. Diderot, Denis. Discurso sobre a poesia dramática. São Paulo, Brasiliense, 1986. Gassner, John. Mestre do teatro I. São Paulo, Perspectiva, 1974.
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