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CNÍTICA FEMINISTA Lícia Os ana Zolin Os esruoos on cÊNBno E A LTTERATURA Desde a décadade 1960, com o desenvolvimento do pensamento feminista, a mulher vem se tornando objeto de estudo em diversas áreas de conhecimento, como a Sociologia, a Psicanálise, a História e a Antropologia. Também no âmbito da Literatura e da Crítica Litetâria, a mulher vem Íìgurando entre os temâs abordados em encontros, simpósios e congressos, bem como se constituindo em motivo de inúmeros cursos' teses e trabalhos de pesquisa' No entanto, tal presença não deve ser analisada como um fato que passa a despertar curiosidade por estar ligado a esse momento de afirmação. Na verdade, é qry.3 p-t.t.tt9"-q,,9 9]1ry1n"S-3'!9t19"1 '. " ."r.i." pa. ^çgjiqgar 4*!_o-do-gg_plocgsso históricõ-liiìa:i". M3t:_LryLorlarlqciq-qt" ë-*C-t.úttd"-";;t-t-ds-mqvlgr""to-fga!{qta são qs efeitos prqvo-çados p-ol-g!e em sius aCryf5--n41g4.,t U-gt-{.ïgl .{91L9:, e é o que nos interessa neste capítulo' está ligado a um dos diversos instrument* d. ilè diipòúos hoje para ler e interpretar o te"1o literário: a,c-rítica ,: feminista. Desde a_qu4 olrge!q-e!c-1920, com a publicação, nos Estados lJnidos, da tese de doutorado ":, de Kate Mifi.t, i"ut*"f"a, Seprd,pçliürs, ess-a.ly'ertçn-tq da ctíticahterâtiatem4.srqlnido g*p,1P-e-!de : leitora e escritora é dúè;;;à J" Àrià"lr"a implicou ttgat!.rti"as mudança1 n-o,!-lmPo intelectual, ', " ffi{"r:p.E'11bIry1q;;á1S-rt e pela descoberta de novòs horizontes -de expectatì1as Nas últimas décadas, muitas facções críticas defendem a necessidade de se considerar o objeto de estudo em relação ao contexto em que está inserido; de alguma forma, tudo parece estar interligado' NoqueserefereàposiçãosocialdamulhereSuapreSençanouniverso1iterário,essavisãodevemuito ao feminismo, que pôs a nu as circunstâncias sócio-históricas entendidas como determinantes na produção literária. Dt -.r-o modo que {ezpe1qçb-q{,qgç-e-estçÍçórrpo-Íbru.ufr:r-o-!,.99glt"olU$i:l:lf' difundido na literatura e no cinema, .onrtitui-re num considerável obstáculo na luta pelos direitos da -il;*ìrtudo, ^cerca de rextos literários canônicos mostram inqu911i-gn-1v-e51-o*r19spo-l,dÊneras e-,]!f-e sgxp-e--p,oder: 3^s.Iqlaçõçs de poder ettre casais e-spelham "!,tfl;çõ-..t-éê- podãt .ttt.e ho.r4ep ' - e.mulher n4 gq-.-i"d"ã.ç-ry-g.trl;"a lsfera privada acaba sendo un-r1e{enl,?o da.esfera púb!iC-a'.i Ambas são construia,t *ui" "s aliceicei di p-o-ti1iç"'b-aseados ttas-telaçÕqs de-poder' . m ãI il t OLIN Se as relações entre os sexos se desenvolvem segundo uma orientação política e de poder, também a crítica lìterária feminista é profundamente política na medida em que trabalha no sentido de interferir ï:::*:::t{,Tia|a-se,9. |m -'9: d: ler.a literatura confessadamente empenhado, volrado paÍa a fï:::'ï::"-'1:::u:.r discriminatório das ideologias de gônero, construídas, ," r""g"'a"";;;.; iill'|'", lttfoftallto, um texto literário tomando como instrumento, o, .o,r..itor;.;ró".;il;il;pela crítica feminista (veja quadro a seguir) implica investigar o modo pelo qual tal texto esrá marcado -- R9]a.{iferença de género, num processo de desnudam.rrro q.r. irisa desp_e,-4ar ; ,"";; :;; -rdi,'ç,,d;;.;;;il"des,ou,po'"o,,,,ohd;;ilË";"úïi;llìï.ïïï;fu;.ï::õt:ï::*ffff:iescntores(as) em relação às convençóes sociais que, historicamenre, têm aprision"do " -jh... .1riaì ,.;*'oJil;; Consideonsiderando as circunstâncias sócio-históricas como fatores determinantes na produção daliteratura, uma serie de críticos(as) feministas. principalmenre na França c Estados lJnidos, tem/' rLrrrulrL4ò' PrlrLrParrlrcrÌ[e Iìa ffança e nOS EStadOS UntdOS, tempromovido, desde a década de 1970, debates acerca do espaço relegado à mulher na sociedade, bem como das. consequências, ou dos refleros daí advindor, pri" o âmbiiq li1erârio. ^.-, ,9 ofjeyo desses debates' se os contemplarmos de modo amplo, é a rransformaçãg Qa çgndição de uals aYudrè amulher ocupa, à sua revelia, um lugar secundário em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcado pela :ïïl:l|i1tlp,:1" submissão e pela resignação. Tàis discursos na"o só i,ri.rf...- ", -,iiì"'Jil;ï;,ersrlv r! rrurlttu. ::"t.:::::::i-!i.T o"rSndamenhr os cânones críricos e reóricos tradicionais. _r;;fi;.r;;,._._ ::1,'rt^:t:::u_,i]ll:..r"*..Assim' acr.íticafeminista trabalha no sentido de desconstr"i. " ";-r;ç;ï;k/mulher e as demais oposições associadas a esta, numa espécie de versão do pós-estruturalismo. Feminino Termo empregado em dois senticios distintos; a determinação de cada um depende docontexto em que está ihserid^o: na maior parie das vezes, o term ofeminino apârece em oposição a masculin-o e faz referência às cónvenções sociais, ou seja, â um conjunto cle características (atribuídas à mulher) definidas culturalmen,., pJ.r"rrro em constanteprocesso de mudança. Pode referir-se, todavia, simpres e despo-ladamente ao sexofeminino. ao dado puramenre biológico. r.,n n.nhu-r."rrr.ï"áìaç;s - ì': ":'; Feminista Trata-se de um termo que não é utilizado no senticio panfletário que costuma terentre nós, mas tal como é utilizado em lí'gua inglesa: como câtegoria política, enão pejorativa. relativa ao íeminismo.nr.niido.Ào moui'-,'.,.nro [r. pr..onir, ^ampliação dos direitos civis e políticos da mulher, não apenas em termos legais, mastambém em termos da prátiòa social. categoriatomadapela crítica.fe^miyt1.{e empqfsllmo à_ g:lmítica originariamenre, gênero consiste no emprego de desinências difereniiiàa, q.r"írr- a.rigrrrii.ra-iduos de sexosdiferentes ou coisas sexuadas. A crítica feminista, tádania, f." .oã que o termo assumisse outras tintas: toma-o como uúa relação-entre os atributos cuÌturais r.f.ièrrt.í ããít"-dos sexos e à dimensão biológica do, s.re, humanos. +r;; ;. ;;;;^"-, Oì "ì^;;;;que implica diferença sexual e curru_ral. o suleito-e constituíjo no gênero.-.rràã do sexo â que pertence e, principalmente, em nzão de códigos linguístiãos e representaçoes culturais que o matizam, estabelecidos de acordo com as È.r..qii", sociais. Termo utilizado no sentido empregado por Jacques D,gLIida, seu cliadçr, para designaro pensamento canôni_co. num contexro marcado pèió "mpenho em desmonrí, .desqualificar " -iiiinirçeo implícita no discurso firosáfico ociientar. Termo tomadoporalgumas escritoras e críticas francesas paradesafiara lógicapredominante no pensamento ocidental, bem como a predominância da ordem -rrÀlirrr. 218 - r E o R r A LrrERÁRra I L. Patriarcalismo Termo utilizado para designar uma espécie de organização familiar originária dos povos antigos, na qual toda instituiçao iócial concentrava-se na figura de um chefe. o patriarca, ïújâ autoridade era preponderante e incontestável. Esse conceito tem permeado a maioria das discussões, trâvadas no conterto do pensamento feminista, que envolvem a questão da opressão da mulher ao longo de sua história. Desconstrução Termo que provém da obra de Jacques Derrida, utilizado pelos teóricos da literatura em uma espécie de crítica das oposições hierárquicas que estruturam o pensamento _ocidental, tais como: modelo x imitação; dominador x dominado; forte x fraco; presença x ausência; corpo x mente; homem x mulher. Tiata-se de se apoiar na convicção de que oposições como essas não são absolutamente naturais, nem inevitáveis, mas construções rde-qlggicas que podem ser desconstruídas, isto é, submetidas a estruturâ e funcionamerito diferentes. Alteridade A dialética da identidade/alteridade foi originalmente elaborada pela filosofia (de Descartes a Saitre). sendo que a "identidade foi concèbida como um nú.I.o e a alteridade como ümãGterioridade', um'estranho', uma'negativa' do si-mesmo, orbitando ao seu redor" (waooiNcroN, 1996, p.337). Tiazendo-a para o mundo das relações de poder na sociedade patriarcal, o-nggleg_c_ogbe ao homem, "senhor darazão, da lei, da religião e proprietário das riquezas" (walowcroN, 1996,p.337); a periferia, à mulhçr, erpropriada desses atributos. Apanir desse conrexto da exterioridade. da estranheza e da negatividade. foi atribuída uma alteridade à mulher, mas alteridade entendida como sinônimo de condição objetal e de identidade em Falra. e não uma alteridade âutênticâ, intersubjeciva. Esta permaneceu por ser conquistada. Qdçsnudamento da aheridade da literatura de autoria feminina constitui-se na base da abordagem feminista na literatura. Isso implica dizer que a anáÌise das obras escritas por mulhères é reàlizada visando promover o desnudamento da alteridade do discurso feminino, de acordo com o princípio da diferença, ou seja, como um discurso "outro""em relação ao "mesmo". Mulher-sujeito e Mulher-objeto Categorias utilizadas para caracterizar âs tintas do comportamento feminino em face dos parâmetros estabelecidos pela sociedade patriarcal: amulhu-sujejtgé marcadlggllnsubgrdl15ãg lgtçf.ldqlparadigmas, por seu poder de decisão, dominação e impósição; er.qlranto ãmulhe!- .objeOâeftne-tepelasubmissão, pelaresignação e pelafaltadevoz.As oposições binárias subversão/ aceitação, inconfonnismo/resignação, atMdade/passividade, transcendênciúmanência, entre outras, referem-se, respectivamente, a essas designações e as complementam. Quadro 1. Conceitos operatórios da crítica feminista. "-*..@ cnÍrrcA FËMrNrsrA Fica mais claro entender o que vem a ser crítica literária feminista, e como ela funciona, quando se tem conhecimento de algumas noções prévias acerca do feminismo entendido como o movimento social e político que lhe deu origem. Emrazáodisso, passemos, de início, a uma espécie de mapeamento, ainda que rápido, do contexto em que se desenvolveu essa facção da crítica literária, como origens, precursores, reivindicações etc. para, posteriormente, de posse dessas informaçóes, determo-nos propriamente em sua essência. A qunsrÁo DA MULHER No sÉcur,o >(D( Alguns teóricos(as), apoiados(as) na premissa de que se podem localizar na história inúmeras formas de feminismo, entendidas como frentes de respostas para a "questão da mulher", deGndem a tese de que Tsov,q.s BoNNIct I Luctr Os,lNr ZortN (oRGANÌzÂDORES) 219 OLIN sua abrangência estende-se dos matriarcados neolíticos ao feminismo radical contemporâneo. Seja como for, mesmo que se entenda que o feminismo esteja restrito aos últimos dois ou três séculos, trata-se de um movimento político bastante.ampl_q qrç, alicerçado na crença de que, consciente e coletivamente, as mulheres podem mudar a posição de inferioridade que ocupam no meig toii^I, abalc4 {!sde,r-e_Qrryas culturais, legais e econômicas, referentes ao direito da mulher ao votol àeducação, à licença-maternidade, à prâticade esportes, à igualdade de remuneração parafunção igual etc., até um4 lggrìi-feminista acadêmica, voltada para reformas relacionadas ao modo de ler o terto literário. ' Algumas declarações públicas que descrevem "mulheres" como uma categoria social distinta, com status social inferior, remontam ao século XVIIL É o ."to do documento Some reflections upon marriage [Algumas reflexões sobre o casamento], de Mary Astell, datado de 1730, que ironiza a sabedoria masculina e despoetiza as relações existentes na sociedade familiar. Ela questiona o fato de o poder absoluto não ser aceito no estado político, por ser um método impróprio para governâr seres racionais e livres, mas existir nafatníIia. Do mesmo modo que questiona o fato de todos os homens nâscerem livres e todas as mulheres nascerem escravas. Até a construção social do sujeito feminino é discutida por Astell, quando ela aÍìrma que Deus distribuiu a inteligência a ambos os sexos com imparcialidade, mas que o conhecimento foi arrebatado pelos homens a fim de que eles se mantivessem no poder. Na França, Marie Olympe Gouges, uma das ativistas da Revolução de 1789, apresenta à Assembléia Nacional, ernlTgl,,asuacorajosaDéclarationdesdroítsdelafemmeetdelacitoyenne(Declaraçãodosdireitos da mulher e da cídadã), em que defende a ideia de que as mulheres devem ter todos os direitos que o homem tem ou quer para si, inclusive o de propriedade e de liberdade de expressão; em contrapartida, devem assumir também toda sorte de responsabilidades que cabem aos cidadãos do sexo masculino, como o pagamento de impostos, a punição por crimes cometidos e o cumprimento de todos os deveres públicos cabíveis a um cidadão comum. Além disso, Gouges cobra das mulheres vigor nas reivindicações de mais liberdade democrática para seu sexo. Em 1792, a inglesa MaryV/ollstonecraft escreve um dos grandes clássicos da literatura feminista, AWndication of the Riglts o:f Woman (-ü reiuindicações dos direitos da mulher), retomando as reivindicações da extensão dos ideais da Revolução Francesa às mulheres. Baseada no argumento do dano econômico e psicológico sofrido pelas mulheres em decorrência de sua dependência forçada do homem e da exclusão da esfera pública, ela defende uma educação mais efetiva para elas, capaz de aproveitar-lhes o potencial humano e torná-las aptas para se libertarem da pecha da submissão e da opressão, tornando-se, de fato, cidadãs, como thes é de direito. No entanto, o feminismo organizado só entrou no cenário da política pública nos Estados Unidos e na Inglaterra por volta cla segunda metade do s&ulo"XDÇ por meio das petições que reivindicavam o súfrágio feminino e das campanhas pela igualdade legislativa. Em 1840, as americanas Elizabeth Cady Stanton, Susan B. Anthony e Lucy Stone passaraÍn à liderar um sólido movimento pelos direitos das mulheres. As duas primeiras criaram aNationalWoman Sffiage Association (Associação nacional para o uoto das mulheres), que, além de reivindicar o voto feminino, lutava pela igualdade legislativa, enquanto Stone criava aAmerícanWoman's Sufrage,Association (-Associação americana para o uoto das mulheres), que somava às reivindicações sufragistas outras ligadas à reforma das leis do divórcio. Essas duas organizaçóes foram fundidas em 1890 para formar a Nationat American Woman's Sffiage Asociation (Nawsa) (-Associação nacional americana para o vlto das mulheres), que, contando com o apoio de outras ativistas, conseguiu o direito de voto às mulheres americanas em 1.920. Nalnglaterra,acondiçãosocialdamulhernaEraVitoriana (1.832-1.901) foitenazmentemarcadapor diversos tipos de discriminações, justiÍìcadas com o argumento da suposta inferioridade intelectual das mulheres, cujo cérebro pesaria2libras e 11 onças, contra as 3 libras e meia do cérebro masculino. Resulta disso que a mulher que tentasse usar seu intelecto, ao invés de explorar sua delicadeza, compreensão, submissão, afe ição ao lar, inocência e ausência de ambição, estaria violando a ordem natural das coisas, bem como a tradição religiosa. Eram esses os valores apregoados pela rainha Vitória em suâs cartas e por suâs súditas em guias vitorianos como The;female instructor (A professora), de autor anônimo, ouThe women of Englarud (As mulheres da Inglaterra), de Sarah Stickney Ellis, publicado em 1839. O primeiro relembra insistentemente à esposa sua condição de dependente e submissa, recomendando-lhe o uso constânte da aliança de casamento, de modo que, quando se sentisse "perturbada", ela pudesse colocar 220-rEoRI Ì, ITERARÌA **@ cnÍrrcA FEMINISTA os olhos sobre ela e lembrar-se de quem a dera para si. O segundo reitera que a condição de subjugada da mulher deve ser tomada como sendo de vontade divina. S-e- no âmbito da lei, as mulheres eram destituídas de poder, no âmbito das práticas sociais e familiares a realidade era outra. A maioria delas, além de não ter interesse em se submeter a esse tèndênciósó moàelo de organização social, não tinham condições para tal. Pesquisas mostram que em meados do século XD( grande parte das mulheres inglesas trab_alhava fora como doméstióas, .ôítütáii"r, operárias em {ábricas o., à- fazendas. De modo que o tédio que supostamente ntarcarií a qxislênc14 {a mulher idealizadapela ideologia vitoriana não consistia, absolutamente, no seu princifial problema: era prerrogativa de uma minória. Nesse sentido. a oposição erigida contra tal ideologia era impelida por. pelo menos. duas razoes: uma referente a valores ideológicos. outra à necessidade de sobrevivência. Esse estado de coisas acabou por desencadear uma série de ações que caminharam no sentido de iÈstituir o Feminismo como um movimento político organizado na Inglaterra. A partir de 1850, começaram a ser encaminhadas às autoridades petições advogando o'statús 1egál da mulher, como o direito âo voto, obtido em 1918; demandas solicitando permissão para âs mulheres casadas gerirem seus bens, as quais culminaram na votação da Lei de propriedade da mulher casada (Married women's propefiy acts,1870-1908); campanhas contra a Lei das doenças contagiosas (Contagious diseases acts, 1864), que exigia exames médicos de mulheres suspeitas de serem prostitutas; além de obras feministas que deram continuidade ao primeiro argumento pelos direitos da mulher, escrito no final do século XVIII por V/ollstonecraft. É o .rro, por exempl o, de The subjection oJwomen (1869), deJohn Stuart Mill, e de The Enfranchisement ofWomen, de Harriet Tâylor, que, partindo de argumentos utilitaristas e liberais por uma sociedade que considerasse os interesses de todos e, ao mesmo tempo, os protegesse, põem em cheque crenças estabelecidas há muito tempo acercâ do papel da mulher na sociedade, como aquelas relacionadas a desigualdades na esfera política, na vida econômica, na educação etc. O direito ao voto é tomado como uma daq p{nçip-als baqdeirag, já que consiste_no mecanismo por meiõã-õÇüãfõúias reformas poderiam vir a ser _conseguidas (ABRAMS, 1979). õ-dr"Ã;"-gr^rr.*.entista*por sua,vez, dese-nvolveu-çe- ao. !4{o- do,.s r-nov-lmgq-tos em-p;rol da {9-f!ção!9:"SXI"y*q*-_da" pr9-çlau4çãq_dagepúb,lica. A republicana e abolicionista \íri:L-_Fl_olqlggJAlfbALÁugusÍâ-{+seudô+itp.o dç--D:q{Ìísia Gonçalves Pinto) .foi, tamb.ém, a primeira teórica do fe-mlnismo no Brasil. Seu primeiro livro,Direitos das mulhe:res e injustiças dos homens (1832),inspirado no Wndications of the rights of woman, de'V/ollstonecraft, põe em discussão, a pârtir de conceitos e doutrinas do Iluminismo europeu, os ideais da mulher de igualdade e independência, configurados pelo direito à educação e à vida profissional, bem como o de serem consideradas como de fato são: seres inteligentes e capazes, portanto dignos de respeito. fteJ?:!e,no entanto, de uma manifestação isolada, já que não s9.9::o!tl?-T*193:11ro9 de 9i1!191 _t9',t9s d; âãõ p;ËïiC"ï;ií"-ép;;, ."éeturndo-se algúns artigos elpa{oj qrfr peJ!_odiqõs _qgqe-denunciiqúe Nfsia Floresta consistiu em uma exceção em meió às rsl liïï.b:T 1l.l:T::ar9 _" I :*::y j. Tp o C*o,m-gcgnp_eqgência dessa primeira onda do feminismo, muitas mulheres tornaram-se escritoras, p*{9!-s_s_?q.-?t_é,,g1-q,ã,9_r,eg_r-i.gq!tqme!te_-mascullna; mesmo que para isso tenham tido que se valer de pseudônimos.mas-cul.inqs pâr4 escapar às prováveis retal!4çoes 4 seus romances, motiva-das por esse ..@.Éoca,o,porexemplo,deGeorgeEliot,p'euaó"iúodaingIeiaMary Ann Evans, autora de The mill on thefloss e de Middlemarch; de George Sand, pseudônimo da francesa Amandine Aurore Lucile Dupin, autora deValentine. Outras escritoras conseguiram impor seus nomes, não sem muito esforço, no sério mundo dos homens letrados. Caso da inglesa Charlote Brontë, autora de Shíiley eJane Eyre. No Brasil, diversas foram as vozes femininas que romperam o silêncio e publicaram textos de alto valor literário, denunciadores da opressão da mulher, embora a crítica não os tenha reconhecido na época. O primeiro romance brasileiro de autoria fe1ni4ip4 de-,clge- se tem notícia, Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, foi seguido de muitos outros, dados, agora, ;.òrìh.;; p;i" ã;i;iã-rmnti;lM UzART' lses) . 'i : .- ^:a ,{ ca,!!â a" t"x"r literários representada da literatura de autoria feminina na Europa pela pequena amostragem acima deu início a gry1t1.1diç1o e na América, que, de certa forma, reverteu os valores que Tsoraas BoNNrcr / Lúctr OsaNa Zorrro (oncnNlzrnonrs) - 221 ,Z\ :l{Ìi l alicerçavam a tradição literária masculina no que tange à representação da mulher e aos valores a ela referentes. Como se pode verificar com mais detalhes em um dos itens do Capítulo 18, intitulado "Literatura de autoria feminina", deste volume, p-ersonagens femininas tradicionalmente construídas como submissas, dependentes, econômica e psicologicamente do homem, reduplicando o estereótipo patriarcal, passâm, paulatinamente, a ser engendradas como sendo conscientes de sua condição de inferioridade e como càpazes de empreender mudanças em relação a esse estado de objetificação. Ou, de outro lado, passam a ser inseridas em contextos que, de alguma íorma, trazern à baila discussões àcer ca dessa proble mâtica. O rsluNrsno oB VrncÍNre Woorr A escritora e ensaísta inglesa Virgínia-Woolf (1882-1941), além de autora de romances que rompem com o formalismo tradicional da ficção da E1a Vitoriana, sobretudo no que se referíao üso de técnicas narrativas inovadoras como o monólogo interior e o fluxo da consciência, escreveu uma série de ensaios sobre a escrita da mulher, sendo, por isso, considerada uma importante precursora da crítica feminista. Em vista disso, passemos ã perscrutar aigumas de suas principais ideias, as quais impulsionaram um novo olhar em relação ao tema "mulher e literatura", até então ma19-ado por toda sorte de preconceitos e discriminações. Em,4 ,oo,* o1 o,rr', o,rr, um de seus principais ensaios, publicado ern 1929, traduzido para o português como (Jm teto todo seu, organtzàdo a partir de anotações que fez para conferências proferidas em estabelecimentos de ensino para mulheres na Inglaterra, ela aborda o modo comQ as circunstâncias atuam sobre o trabalho da mulher escritora e questões relativas à sua sujeição intelectual. A ideia central desse importante ensaio gira em torno da tese de que para escrever {ìcção ou poesia dc qualidade a mulher necessita de "um teto todo seu" em que possa trabalhar em paz e de uma renda anual capaz de lhe garantir independência. A genialidade de Shakespeare e sua vultosa produção liteiária são tomadas como .".-pio. Ela argumenta que se Shakespeare tivesse tido uma irmã igualmente dotada, com talento para ficção e desejosa de obter erperiências a partir do contato com vidas de homens e mulheres e do estudo de seus estilos, teria certamente enlouquecido e se suicidado ou terminado sozinha e ridicularizada em algum reÍúgio. É qn. naturalmente ela não teria sido mandada à escola, como ele, nem tido oportunidade de viajar para conhecer o mundo, nem aprender Gramâttca eLógica, muito menos o latim para ler Horácio e Virgílio. Em vez disso, ter-lhe- iam proibido de ler e escrever e feito dela a noiva de algum negociante importante, que â tornaria uma resp.itá.rel "rainha do lar". Em face dessa realidade, a mulher que nascesse com o Yeig psçgçg*llo sécrrlo X\{I, no entender de'V/oolí seria uma mulher infeliz e em conflito consigo mesma. O mesmo aconteceria com as mulheres dos séculos seguintes. com igual inclinação para a arte. Mesmo no século XD( tais mulheres, além de terem que enfrentar a hostilidade, a arrogância e toda sorte de sermões e recriminaçóes sociais (que no caso de homens escritores da casta de um Flaubert, por exemplo, se traduzia apenas como indiferença), tinham que enfrentar as diÍìculdades materiais e a questão da dependênc-i". P"r" a maioria delas, ter Llm quarto próprio estava fora de questão; o mais comum era aì"iait conjugados de sala e quarto com toda a família. O dinheiro para os "alfinetes" dependia da boa vontade do pai e mal dava para mantê-las vestidas. A não ser que se tratasse de filha de pais muito ricos ou muito nobres - raras exceções. Outro aspecro fundamental da abordagem de Virgínia-Woolf acercado tema "mulher e -ficçag] gstá ligado à quesìlo do ressentimento que marca a literatura escrita por mulheres e que, de certa forma, inlerfere "- ,.r" qualidade. Os poemas escritos por mulheres abastadas do século XVII, como os de Anne Finch v/inchilsea (1661-1720) ou os da duqueza Margaret Newcastle (1623-1673), bem como os romance s (escritos nas salas de estar comuns) de centenas de mulheres que, a partir do século XVIII, começaram, gradativamente, a ganhar dinheiro com eles, são visivelmente marcados pela amargurâ' 222-rEoRI LITERARIÁ ,u ilr ili ffii fl *.@ cRÍrrcA FEMrNrsrÀ pelo ódio e por ressentimentos em relação aos homens, seres odiados e temidos por deterem o poder de barrar-lhes, entre tantas outras coisas, a liberdade de escrever. Paraa ensaísta, essa revolta das mulheres escritoras dos séculosXVII eXVIII, espécie de "ervas daninhas" a enredar-lhes o talento, consistiu no principal empecilho à emergência de uma literatura de autoria feminina a que se pudesse atribuir valor. Apesar disso, tais escritoras consistiram em peças fundamentais na tradição literária feminina que se consolidou nos séculos XD( e )C(: Sem aquelas precursoras, Jane Austen e as Brontës e George Eliot não teriam tido maior possibìlidade de escrever do que teria Shakespeare sem Marlowe, ou Marlowe sem Chaucer, ou Chaucer sem aqueles poetas esquecidos que prepararam o terreno e domaram a selvageria natural da língua. As obras-primas não são frutos isolados e solitários; são o resultado de muitos anos de pensar em conjunto, de um pensar através do corpo das pessoas, de modo que a erperiência da massa está por trás da voz isolada (V/OOLF, 1985, p. 87). 'V/oolf salienta, ainda, que mesmo os considerados "bons românces" (e raros) das escritoras oitocentistas referidas no trecho acima, Villete, Emma, O morro dos uentos uiuantes, Middlemarch,Jane Eyre etc., foram escritos nas salas de estar comuns, por mulheres pobres que mal podiam comprar o papel onde escrever, privadas de experiência, intercâmbio e viagens. Daí persistir nesses livros, por mais esplêndidos que sejam, um tom de rancor que os contrai; toda a sua estrutura está erigida por "uma mente ligeiramente tirada do prumo e forçada a alterar sua visão clara em deferência à autoridade externa" (V/OOLF, 1985, p. 97). As reflexões da ensaísta em relação à escrita feminina avânçam até o momento presente da produção do ensaio (1,929), momento em que ela constata que "talvez a mulher esteja começando a usar a literatura como uma arte, não como um método de expressão pessoal" (-V/OOLF, 1985, p. 105). Por entender que os livros continuam uns aos outros, ela tece, agora, suas considerações a partir de A auenturd da uida, provavelmente o primeiro livro da j ovem e desconhecida escritora Mary Carmichael, publicado naquele mesmo ano, como se fosse o último da série que vem examinando. O exame detalhado do volume apontâ um estilo mais conciso do que os de suas predecessoras, parecendo evitar o tom sentimental, comumente atribuído aos escritos delas; a sequência esperada da frase é quebrada, causando certo estranhamento em relação a temas como amor, morte etc.; a mulher é representada com outros interesses, diferentes daqueles por tanto tempo enfocados, referentes ao mundo doméstico e às relações amorosas; não i, sobretudo, representad a a parrir do olhar do outro sexo e em relação ao outro sexo, conÌo tradicionalmente acontece na ficção, mas é vista em relação à própria mulher; o homem não é mais a "facçã,o oposta"; do ódio e do medo em relação a ele ficaram apenas uma alegria pela liberdade (mais acentuada do que o desejável) e certo tom cáustico e satírico ao referir-lhe. Em resumo: a escritora desconhecida escreve como mulher, sem a consciência disso. Mas, apesar de tantos avanços, falta-lhe conseguir ctÃúii "com ó efêmero e o pessoal o duradouro ediÍïcio que permanece de pé" (V/OOLF, 1985, p.123). Do ponto de vista da ensaísta, isso implica dizer que, para escrever um grande romance, é necessário à escritora, ao se defrontar com uma "situação", mais que roçâr superfícies, "mergulhar o olhar até as profundezas". Em vista disso, é preciso que a mulheres saltem, ainda, uma série de obstáculos, ignorando o olhar de reprovação que emana dos bispos e deões, dos doutores e lentes, dos patriarcas e pedagogos: "Deem-lhe mais uns cem anos [...]". Para concluir suas ponderações acerca do tema "mulher e ficção", ao final dessas reflexões acerca da trajetória da literatura de autoria feminina, Woolf discute os prejuízos acarretados, sobretudo p_ïra:aficção, com o fato de pensar-se em cada um dos sexos sepâradamente, a seu ver, isso interfere na unidade da mente. A partir do princípio da "androginia", frequentemente discutido pelo grupo crítico-literário de Bloomsbury (Londres), que reunia a quinta-essência dos escritores britânicos entre 1907 e 1930, ela pondera que é natural os sexos cooperarem entre si. Com Coleridge (1772- IB34), ela afirma que as grandes mentes não pensam especialmente ou separadamente no sexo; são andróginas, como era andrógina a mente de Shakespeare (1564-1616) ou de Proust (1,871,-1922). Casos bem diferentes daqueles observados em escritores oitocentistas da casta de um Tolstoi -- Tuouas BoNNrcr / Lúcra OsaNa ZorrN (oncaNrzalonxs\ - 223 .z) õÌ! lì OLiN (1828-1910), por exemplo, que, ao escreverem apenas com o lado masculino do cérebro, parecem criar obstáculos na comunicação: a emoção que lhes permeia a ficção é incompreensível à mulher. Tiata-se de livros que carecem do poder da sugestão e que por isso não atingem â mente em sua totalidade. Daí defender a necessidade de se ser masculinamente feminina e femininamente masculino para que a arte se realize e comunique experiências com integridade. O rumrNrsnno ExISTENCIALISTA lp SruoNB oB BEauvorn Antes de nos determos, Íìnalmente, no trabalho de estudiosas que aliam, a partir de 1970, feminismo e literatura, dando origem à crítica literária feminista, perscrutemos as ideias disseminadas por Simone de Beauvoir, ernLe deuxième sexe (1949), acerca da situação da mulher na sociedade, publicado em português como O segundo -rexo, em 1980. Isso porque o modo de Beauvoir encarar a relação erÌtre os ,."or, qnrl seja, a mulher sempre como escrava (o Outro) e o homem sempre como senhor, vem sendo problematizado ao longo da trajetória dos estudos de gênero: em alguns aspectos, contribuiu com os estudos empreendidos pela nova geração de femtnistas; em outros, foi rejeitado, conforme veremos. Beauvoir (19S0) discute a situação da mulher por meio de uma perspectiva existencialista, numa espécie de resposta ao marxismo, que, segundo ela, não explicou o sexismo a contento; não o tendo f.ito, to.rrorr-se incapaz de elaborar um programa adequado para a libertação das mulheres. De sua ótica, não basta apontar as relações de propriedade como responsáveis pela opressão feminina; é necessário, também, erplicar po, qr. ^, rel"çOes de propriedade foram instituídas contra a comunidade e entre os homens. O feminismo existencialista da pensadora pode, de um lado, oferecer um estudo da opressão das mulheres e, de outro, sugerir formas de emancipá-las dessa opressão. No que tange ao primeiro aspecto, ela analisa a problemática íeminina de modo a salientar que não existe absolutamente uma essência Gminina, responsável peia marginalidade damulher; eriste apenas o que ela chama dé situãçáo da mulher: o fato de a mulher dar à luz é tomado como a matriz das diferenças entre os sexos. Estando impossibilitada de ir à caça e de dedicar-se a trabalhos pesados em razão das limitaçoes fisicas e dos cuidados com o bebê, ela foi privada de afìrmar-se em relação à natureza, como fizetant os homens. Como a superioridade, explica Beauvoir (1980), é dada não ao sexo que dâàluz, mas ao sexo que mata, a mulher é tomada como o Outro, contra quem os sujeitos masculinos se afirmam. O privilégiomaior do homem, portanto, reside no fato de a sua "vocação de ser humano" (transcendência) não se chocar com seu "destino de macho"; em contrapartida, a mulher vive dividida entre essâ mesma vocação e o seu "destino de mulher" (imanência). Tâ1 destino, no entender de Beauvoir (1980), não está ligado apenas à questão da maternidade; a sexualidade feminina também concorre para a.perda de suJsubjeiirrid"d.. ^O ato sexual, por si, a obriga a cumprir_o papel de olrjcto passivo, o qual "iaba por contaminar todos os seus trâtos não sexuais com o mundo.Já no que se refere ào ho-.-, ,.t ,.. sexual é congruente com sua transcendência. Desse modo, a situação da mulher no mundo (a de oprimida) lhe nega a expressão normal de humanidade e frustra seu projeto humano de autoafirmação e autocriação. Enquanto os homens são encarregados de "remodelar a face da Terra", apropriando-se dela, impondo-lhe sua marca, à mulher é vedada a possibilidade de ação. Além de estar aí, sua opressão está também, e principalmente, na crença d" qu. o destino da mulher é ser passiva, uma vez que a passividade integra, irremediavelmente, sua natttreza. Em vista disso, e não podendo rebelar-se contra a';latl:;reza, o mundo não lhe pertence e sua energia é canalizadapara o narcisismo, o fo!1a4,!1*sm-o -o-U 4 tqligião. O acesso a elevados valores humanos, como o hqroismg, 4 lnvenção e a criação lhe é vedado' partindo do pressuposto de que o sujeito humano deve ser livre, Beauvoir (1980) questiona as razões que levam, -.rl^h., " r. ,.rb-.rer à opressão. Para etplicá-lai, ela invoca a noção sartreana de 224 tEoRtA LITERARIA ;à -* *{3 Cnt t t' q FLMINI) rA "mífé", um dos pontos mâis intrigântes do livro deJean-Paul Sartre sobre filosoÍìa existencialista O ser e 0 nada, publicado em 1943: er -se,,tes humanos são livres, mas podem enganar-se, fingindo não sê-lo. No caso da mulher, os meios são mais favoráveis para que esse processo se realize: sua fraque)a é estimulada. No entanto, a má fé dos outros em anular-ihe a liberdade - que é inerente à sua condiÇ1o de ser humano - não é suficiente para a plena realização dessa empreitada; a mulher mesma aceita a opressão que lhe é imputada, tornando-se cúmplice da própria escravização. Isso posto, a filósofa parte para a proposição de uma maneira de reverter esse estado de coisas: cabe à mulher inverter os papéis. Ao recusar os desmandos que lhe são impostos pelo homem, ela se fõina o sujeito e o opressor torna-se a "coisa". f{á que se aprender a ser I'Hommc-, sobretudo atrãvés da conquista de uma p1ofissão. A armadilha do casamento e, consequentemente, dos filhos deve _ser èvitada; ao inwés da â-iti". ela deve assumir seu lugar no mundo em meio aos homens. Nesse sentido, a noção de igualdade e semelhança de todos os seres humanos consiste na pedra fundamentaldo feminismo existencialista de Beauvoir (1980). Trata-se do principal aspecto que afasta seu Gminismo daquele defendido pela nova geração do feminismo francês. Segundo Moi (1985), as teó_ricas pós-Beauvoir teriam abandonado o anseio liberal dela de obter igualdade com os homens para enfatizar a diferença, isto é, exaltar o direito de a mulher proteger os valorés especificamente femininos . ..3èirrr a ièGiida "igualdade", entendida como disfarce para forçar as mulheres â se tornarem-como homens. No entanto, a despeito dessa divergê nçia, aamplidão dos temas tratados em O segundosÕco prepârou o caminho para muitas das alegações dos adeptos do feminismo radical, uma das correntes que integram o movimento, ao lado da liberal e da socialista (veja Quadro 2). Nye (1995) arrola as principais delas: o patriarcado é a constante universal em todos os sistemas políticos e econômicos; o sexismo data dos inícios da história; o a sociedade é um repertório de manobras nas quais os sujeitos masculinos firmam o poder sobre objetos femininos: o violaçóes, pornografia, prostituição, casamento e heterossexualidade são imposições do poder masculino sobre as mulheres; . a aquiescência das mulheres é uma indisposição de má Íé de enfrentar suâ própria falta de poder. Feminismo radical (dois sentidos) 1) Tendência do feminismo que, inspirada em Beauvoir, toma â divisão sexual, e não a de classe. como central na análise do social. A luta pela libertaçâo da mulher dirige-se ao combate de seu papel como reprodutora (gestação, criaçáo e educação dos filhos). 2) Têndência do feminismo que. aliada à desconstrução de Derrida, visa destruir a supremacia llasculina, por meio da desconstrução das oposiçóes binárias que mântêm a dominação das mulheres pelos homens. Isso porque entende-se que as releridas oposições nada mais são do que linguagem. e a linguagem exorbita a realidade. Ao desconsrruir a oposição binária homem x mulhel essa facção do feminismo coloca no seu lugar o andrógino, o ser humano acima das diferenças de sexo. Feminismo libetal Tendência do feminismo que atribui a causa da opressão feminina à ausôncia de igualdade de direitos entre os sexos; em vista disso, defende uma sociedade em que homens e muÌhêres tènham oportunidades iguais garantidas pela legislação. Feminismo socialista Tèndência do feminismo que pârte da premissa de que todos os antagonismos sociais passam pela questão da hierarquia de classes, onde se locahzam todas as relações de poder. Nesse sentido, essa facção defende a tese de que a liberação feminina está atrelada a uma sociedade socialist.a, em que os princípios igualitários se estendam à sociedade como um todo. Quadro 2. As principais facções do movimento feminista. Tsola,rs BoNNrcr / Lucta OsaNa ZorrN (oacaNrzaoonzs! - 225 OLIN O rnurNrsuo polÍrrco or Kars Mru-Er A crítica feminista propriamente dita tem seu marco inicial com a publicação de Sexual politics, de Kate Millet, em 1970. Como já antecipa o título, a obra suplanta o âspecto puramente literário e, com uma agu(áda consciência política, traz à tona discussões acerca da posição secundária ocupada pelas heroínas dos romances de autoria masculina, como também pelas escritoras e críticas literárias. Millet (1977 apud SELDEN, 1988; BENNETT; ROYLE, 1999) discute-ag causis da opressão feminina a partir do conceito de patriarcado - a lei do pai. Nos limites desse s'istema, o. ser feminino é subordinado ao masculino ou tratado como um masculino inferior; o poder ó exercido na vida civil e doméstica de modo a submeter a mulher, que, a despeito dos avanços democráticos, tem continuâdo a ser dominada, desde muito cedo, por um sistema rígido de papéis sexuais. Ao lado de outras feministas, Millet (1977 apú SELDEN, 19BB; BENNETï ROYLE,1999) ataca os estudiosos sociais que tomam esses papéis femininos culturalmente ensinados como próprios da naturez^feminina. Esse modo de pensar é perpetuado não só por homens, mas também pelas própri4s mulheres. Concordando com Sartre (1957) e Beauvoir (1980), Millet acredita que toda manifestação -de poder exige o consentimento por parte do oprimido. No caso da mulher, tal consentimento é obtido atra,réi de instituições de sàcializaçáo, como a família, ou através de leis que punem o aborto ou a violência à esposa, afìrmando, às avessas, o poder masculino. Ao serem perpetuados, os papéis femininos tornam-se repressivos; a necessidade de representí- - los, que se impõe no âmbito da relação entre homem e mulher, caracterizada pela dominância de ho-en, e subordinação de mulheres, é o que Millet chama de "política sexual". Essa política de força, segundo a teórica, afeta a literatura na medida em que os valores literários têm sido moldados pelo homem. Ela pondera que, nas narrativas de autoria masculina, as convenções dão forma às aventuras e moldam as conquistas românticas segundo um direcionamento mascqljr-io. Além disso, são construídas como se seus leitores fossem sempre homens, ou de modo a controlar a leitora pâra que ela leia, inconscientemente, comoum homem. A fim de opor resistência a essa doutrinação da leitora, Millet (1977 apú SELDEN, 19BB; BENNETT; ROYLE, 1999) erpõe exemplos dessas constatações retirados da ficção canônica masculina, enfatizando a exploração e a repressão feminina que permeiam as descrições dos papéis sexuais nas novelas de escritores como D. H. Lawrence, Henry Miller, Norman Mailer eJean Genet, tidos em alta conta por muitos críticos pela ousadia e liberdade no relato de relações eróticas. Essas discussões empreendidas por Kate Millet ilustram o que hoje se classifica como sendo uma vertente mais tradicional da crítica Gminista. Concentrando-se na mulher como leitora, tal vertente busca responder a questões como: Que tipo de papéis as personagens femininas representam? Com que tipo de temas elas são associadas? Quais âs pressuposições implícitas contidas num dado texto em relação ao(à) seu (sua) leitor(a)? Ao trabalhar no sentido de responder a essas questões, as(os) crítica(os) feministas mostram como é recorrente o fato de as obras literárias canônicas representarem a mulher a partir de repetições de estereótipos culturais, como, por exemplo, o da mulher sedutora, perigosa e imoral, o da mulher -o-o -"g.ra, o da mulher indefesa eíncapaz e, entre outros, o da mulher como anjo capaz de se sacrificar pelos que a cercam. Sendo que à representação da mulher como incapaz e impotente subjaz uma conotação positiva; a independência feminina vislumbrada na megeÍa e na adúltera remete à rejeição e à antipatia. Na literatura brasileira, muitas sáo as obras que retratam a mulher segundo esses estereótipos. Em Lucíola. de José de Alencar, Lúcia transita da menina inocente à prostituta imoral, para posteriormente regenerar-se, encarnando a mulher-anj o, càpaz de sacrificar-se pelo bem dos que a cercam. EmDom Casmurro,de Machado de Assis, Capitu é, na visão do marido Bento, uma sedutora imoral e dissimula da, capaz de traí-lo com seu melhor amigo. Tàmbém na literaturâ portuguesa j 226 TEoRIA LrrEnÁnra ***@ cnÍrrcA FEMTNIST são abundantes âs figuras estereotipadas. Em Amor de perdiçã0, Teresa encarna a mocinha indefesa afastada de seu grande âmor, em razão das rivalidades reinantes entre as duas famílias. Em O primo Basílio,Eça de Queiroz põe em cena â megera chantagista, na pele deJuliana, e a adúltera imoral na pele de Luísa. O exame cuidadoso das relações de gênero na representação de personagens femininas' tarefa dessa primeira vertente da crítica feminista, aponta claramente para as construções sociais padrão, edificadàs, não necessariamente por seus autores. mas pela cultura a que eles pertencem, para seruir ao propósito da dominação social e cultural masculina. {ssim, o feminismo mostra a nrrur"r" construída das relações de gênero, além de mostrar, também, que muito frequentemente as referências sexuais aparentemente neutras são, na verdade, engendradas em consonância com a ideologia dominante: o engendramento masculino possui conotações positivas; o feminino, negativas. ESTEREÓTIPOS FEMININOS EXEMPLO NA LITERATURA CONO- TAçAO Mulher sedutora e/ou perigosa e/ou imoral Lúcia (Lucíola, de José de Alencar); Capitu (Dom Casmurto, de Machado de Âssis); Erna (Madame Bouary, de Gustave Flaubert); Luísa (O primo Basílio, de Eça de Queiroz) Negativa Mulher como megerâ Juliana (O primo Basílio, de Eça de Queiroz) Negativa Mulher-anjo e/ou indefesa el ou incapaz e/ ou impotente Tèresa (Amor de perdíção , de Camilo Castelo Branco). Positiva Quadro 3. O modo tradicional de representaçío da mulher na literatura. As rExoÊNcrAs DA cúrrce FEMrNrsrA coNtnuponÂnEa Ngry"_{ef pqs-terior a essa, preocupada essencialmente em 4gq!-rai.çafar a-mipogi4-!4-d;4,p1átticalitetií, a, íliiica feminista expandiu-se segundo outros direcionamentos: ao invés de se ocupar dos tçxtos masculinos, pâssou a investigar a literaturâ feita pOf mulh91e5, enfatrzando quatro enfoques pii".ip"ii'ãblologi.o,olinguístico,opsicanalíticoeopolítico-cultural. Tâis enfoques emergem da ênfase dada a certos aspectos, em detrimento de outros. Mas todos são constituídos a partir da ideia básica do pensamento feminista: desnudar os fundamentos culturais das construções de gênero (opondo-se às perspectivas essencialistas e ontológicas dos estudos que a*bãfdã- a qqestãc da mulher).e promover a derrocada das bases da dominação de um gênero sobre outro. A crítica que se vale de ârgumentos que tratâm abiologia como fundamental tem sido ttlliztda, de um lado, por homens, que, baseados na máíma "a mülhèr não é nada além de um útero", desejam manter as mulheres em seus "lugares". Tiata-se de tomar o corpo da mulher como o seu destino e, portanto, de aceitar os papéis a ela atribuídos como sendo da ordem danattreza. De outro lado, algumas feministas radicais celebram os atributos biológicos da mulher como atributos de superioridade, ao invés de inferioridade. A anatomia física é entendida como sendo textualidade, e o corpo, como fonte -de imaginação. Tsou,ls BoNNtct / Lú.1A OsaNa ZorIN (oncaNtz,Llonnsl - 227 n YÌ ti l OLIN O enfoque linguístico, ou textual, encerÍa discussões àcerca de problemas Íìlosóficos, linguísticos e práticos do uso da linguagem pela mulher. Tâis discussões buscam responder se homens e mulheres usam â língua de forma diferente; se tais diferenças, no caso de uma resposta afirmativa, seriam teorizadas em termos de biologia, de socializaçáo ou de cultura; se as mulheres podem criar novas linguagens, próprias, e se a fala, a leitura e a e scrita são marcadas por diferenças de gênero. Esse enfoque privilegia ainda questões relacionadas à ideologia dominante: partindo do argumento de Foucault de que a verdade depende de quem controla o discurso, e alimentados pela crença de que o domínio dos homens sobre o discurso tem aprisionado as mulheres nas armadilhas da verdade masculina, alguns estudos têm se ocupado em contestar o controle da linguagem pelos homens, ao invés de meramente recuarem-se no gueto do discurso feminino. Estudiosas francesas defendem a reinvenção da linguagem, ou seja, a adoção de uma linguagem feminina revolucionârra, capaz de romper com a ditadura do discurso patriarcal, de estrutura falocêntrica, falando não apenas contra ele, mas fora dele. As teorias psicanalíticas consistem em um terceiro enfoque, e incorporam os modelos biológico e linguístico, situando a diferença na psique do autor - moldada pelo corpo, pelo desenvolvimento da linguagem e pela socialtzação do papel sexual - e n? relação do gênero com o processo criativo. Inicialmente, a críticapsicanalítica tomou os postulados de Freud do complexo de castração e da fase edipiana para definir a relação da mulher com a escrita; mais recentemente, tem-se orientado pela metáfora da desvantagem linguística e literária feminina proposta por Lacan. Segundo o psicanalista, o fato de a aquisição da linguagem e o ingresso na sua ordem simbólica ocorrerem na fase edipiana, em que a criança aceita sua identidade sexual, implica a aceitação do falo como uma significação privilegiada. Sendo a linguagem da ordem do masculino, porque 'são os valores do mundo masculino que ela veicula, a criança adere a ela pela Lei do Pai: ao dizer "eu sou", distinguindo essa frase de outras como "você é" ou "ele é", a criança estaria assumindo sua posição na Ordem Simbólica e abandonando o direito à identidade imaginária com a mãe e com todas as outras posições possíveis. Assim, o acesso da menina à linguagem é problemático, já que ela só se tornã capaz de exprimir-se por meio de frases condizentes com o polo masculino da cultura. Tendo em vista essas considerações, a.crítica feminista, psicanaliticamente orientada, estuda as especificidades da escrita feminina em relação à problemática da identidade da mulher. Aí, um certo sentimento de inferioridade marca a sua luta pela afirmação como artista, ao mesmo tempo em que diferenciaseus esforços de criação daqueles empreendidos pelos escritores. O enfoque político-cultural da crítica feminista engloba linhas diversas: tendências matxistas que estabelecem â relação entre gênero e classe social como categoria de análise, enfatizando formas de cultura popular, relatando mudanças sociais, condições econômicas e transformaçõcs relacionadas ao equilíbrio de força entre os sexos, tendências que tomam a noção de experiência ligada às práticas culturais dos sujeitos femininos na sua relação com a produção literária; tendências que analisam a arte literária da mulher tendo em vista o contexto histórico-cultural no qual se insere. Esses quatro enfoques referidos podem sobrepor-se, de modo que cada um incorpore o anterior. Eles estão contidos em duas grandes vertentes da crítica feminista: a anglo-americana e a francesa. Ambas estão articuladas em torno de um eixo fundamental, o da investigação e contestação da estrutura patriarcal que sustenta o nosso sistema social. No entanto, há que se considerar que mesmo no interior de cada uma dessas vertentes existem diferenças e antagonismos de pensamento, configurados em termos de oposiçóes binárias, como: mulher/gônero, igualdade/diferença, privilégio/opressão, centralidade/ marginalidade e essencialismo/ antiessencialismo. 228 - r E o R I A LITERARIA Enfoque biológico 1) De um lado, a tradição patriarcal defende a ideia de que,o corpo da mulher é seu destino, ou seja, os papéis sociais a ela atribuídos são tomados como sendo da ordem do natural; 2) De outro, as feministas celebram os atributos biológicos da mulher como atributos de superioridade: o corpo como textualidade e fonte de imaginação. Enfoque linguístico ou textual 1) Tenta responder se as diferenças de gênero implicam o uso da linguagem de forma diferente por cada um dos sexos; 2) Contesta o controle masculino da linguagem; 3) Propõe a adoção de uma linguagem feminina revolucionária. Enfoque psicanalítico 1) Incorpora os modelos anteriores; 2) Debruça-se sobre as especificidades da escrita feminina (écriturefeminine) àluz da tçoria d4 fase pré-edipiana de Lacan. Enfoque político- cultural 1) Tendê_ncia marxis.ta como categoria de análise (relação entre gênero e classe social); 2) Estabelece analogias entre a noção de experiência e a produção literârra da mulher; 3) Analisa a literatura de autoria feminina tendo em vista o contexto histórico-cultural no qual essa produção se insere. Quadro 4. Principais enfoques da crítica feminista contemporânea. *@ CnÍrrc,r FEMTNIST A cnÍrrca FEMrNrsrA ANGLo-AMERTcANA A crítica norte-americana Showalter (i985) sistematiza os estudos sobre mulher e literatura identificando dois tipos de crítíca: a "critica feminista", que se dedica a mulheres como leitoras, ocupando-se da análise dos estereótipos femininos, do sexismo subjacènte à crítica literária tradicional e da pouca representatividade da mulher na história literâria; e o que ela chama de "ginocrítica", que se dedica a mu1h91qs cgmo escritolas, qglslituindo-se num discurso crífco especializado na mulher, aLicerçado çm modelos teóricos desenvol,ridos a partir de sua eryeriência, conhecida por meio do eslqdo de obras de sua autoria. Ao centrar-se genuinamente na mulher, coníìgurando-se como corrente crítica independente e intelectualmente coerente, a-glnocrítica colo_ca-se nLtma postura de oposição às tendências que continuaram a alimentar-se da tradição crítica androcêntrica, do "discurso dos mestres", numa espécie de revisionismo, que. no fim, rorna-se uma homenagem. A questão essencial, portanto. nessa segunda vertente crítica, não é mais tentar reconciliar pluralismos revisionistas, mas discutir a diferença por meio do estudo da mulher como escritora, plivilegia1lda a história, os estilos, os temas, os gêneros e âs estruturls .dos escritos de mulheres; a psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da carreira feminina individual ou coletivâ; e a evolução e as leis de uma tradição literâria de mulheres (SHowArrER. ree4). A ginocrítica é tornada por Showalter (1994) como um instrumento capaz de possibilitar o conhecimento de "algo sólido, dúia{guto e real sobre a relação da mulhei com a cultura hterâiia". Dos quatro principais modelos da dife.ença ãos escritos femininos de que atualmente as teorias feministas fazem usò, quais sejim, ò biológico, o linguístico, o psicanalítico e o cultural, Showalter defende o último como sendo o mais capaz de proporcionar umi maneira satisfatória de discorrer Tsouls BoNNlcr / Lúctt osaNa ZorIN (onc,tNlz.roonls) 229 OLIN sobre o tema. lJma teoria da cultura admite as ideias relacionadas ao "corpo, à linguagem e à psique da mulher, mas as interpreta em relação aos contex-tos sociais nos quais elas ocorrem" (1994,p.44). Em vista disso, são consideradas as diferenças existentes entre as próprias mulheres escritoras, como classe, raça, nacionalidade e história, as quais são tomadas como sendo determinantes literárias tão importantes quanto a própria noção de gênero. Além de privilegiar o estudo da literatura de autoria feminina, a crítica feminista anglo-americana, nesse segundo momento, ou 4 ginocrítica (SHOV/ALIER, 1985), passaram a se dedicar, também, a uma revisão dos conceitos básicos dos estudos literários, formulados pela tradição masculina. O côntato da vertente norte-âmericana com a inglesa e a francesa contribuiu p"r, ã crescimento do intcresse em relação às teorias: A crítica inglesa, ao estabelecer a relação entre gênero e classe social como categoria de análise, enfatiza formas de cultura popular e dá origem à versão feminista da teoria literária mancista. A escola francesa com seu interesse pelo feminino, pelo modo como é definido, representado :,ï:ilT:lï Jï,ii:ï:'.;-i?ffi ,i: Ëcril;Í;, f :"ïïu"" e da a*e' reraciona a Em face desse panorama, ^ crítica Gminista contemporânea nos Estados Unidos ocupa-se de uma gama bastante variada de questões. As mais debatidas referem-se a: 1) noçoes de gênero, classe e raça, discutidas em confronto com a noção de essencialidade da mulher; 2) noção de experiência, que enfoca as práticas culturais da mulher relacionadas com sua produção literária, a fim de recúperar uma "identidade feminina" e rejeitar a repetição dos pressupostos da crítica literária tradicional; 3) noções de representação literária, de autoria e de leitor/leitora; 4) noção do cânone literário e crítico, discutindo a legitimidade do que é, ou não, considerado literário e denunciando a ideologia patriarcal que o permeia e determina sua constituição; 5) discute, por fim, a problematização do projeto crítico feminista, no que tange às possibilidades de interuenções nas relações sociais (QUEIROZ,1995). Em relação ao tópico que contempla os estudos âcerca do modo de representação da mulher na literatura de autoria feminina, há que se salientar aí a preocupação em reconhecer-se uma tradição que lhe seja específica. Estudos mostram que também a escrita de autoria feminina pode ser .trg.trdrrJ", no sentido de refletir a experiência da mulher. Veja-se, por exemplo. a obra das críticas feministas Sandra Gilbert e Susan Gubar, The madwoman in the attic: the woman writer and the nineteenth-century literary imagination, publicado em 1979. Nesse livro sobre a criaçáo literâria, mais especificamente sobre o ato da escrita como prâtica masculina por excelência, elas caracterizam a mulher escritora como uma Íìgura dividida entre as imagens de "anjo" e "monstro", construídas pelo imaginário masculino. Em vista disso, a criação literária só seria possível se essas Critica feminista A mulher como leitora: 1) Análise dos estereótipos Gmininos na literatura canônica; 2) Análise do sexismo subjacente à críticaliterâria tradicional; 3) Análise da pouca representatividade da mulher na história literária. Ginocrítica A mulher como escritora: 1) Estudo da história, do estilo, dostemas, dos gêneros e da estrutura dos tertos literários de autoria feminina; 2) Estudo da psicodinâmica da criatividade feminina; 3) Estudo da trajetória da carreira literária da mulher, tanto individual quanto coletiva; 4) Estudo da evolução e das leis da tradição literária de mulheres. Quadro 5. Os estágios da crítica literária feminista segundo Elaine Showalter (1994). 230 TEoRr LITERARIA ,tï\{ï(12) Cn r t rcn FFMI NI\r\\-zl imagens fossem destruídas, ou seja, se essa identidade fabricada e polarizada fosse desestabrlizada. Dada a força da cultura sobre as identidades, os trabalhos literários das escritoras do século XD( apresentam um forte interesse por certas limitações impostas às mulheres. Tàl interesse expressa- se numa "série de imagens obsessivas de confinamento que revela a maneira com que essas artistas sentiam-se presas e 'doentes' tanto pelas alternativas sufocantes quanto pela cultura que as criara e impusera" (GILBERT; GUBAR, 1979, p. 64). Um exemplo desse comportamento dos textos escritos por mulheres que sucumbiram às armações das representações estereotipadas pode ser reconhecido em Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis. Tiata-se de um dos primeiros romances escritos por mulher brasileira, em que a heroína enlouquece em consequência das atrocidades que sofre: é raptada após assistir ao assassinato do noivo à porta da igreja. Tâmbém em D. Narcisa de Vílar, romance contemporâneo de Úrsula, escrito pela catarinense Ana Luísa de Azevedo Castro, a trajetória da protagonista segue urnscript parecido: na noite em que ia se casâr, por conveniência, com um rico coronel português, é raptada pelo homem que ama; após uma fuga permeada de adversidades, são encontrados e assassinados. Outra faceta dessa casta de romances pode ser reconhecida em Afalência, deJúlia Lopes de Almeida, cuja protagonista Camila encarna o estereótipo da mulher prendada, boa mãe e boa esposa que se degenera ao tornar-se amante do médico da família, mas depois se redime em busca da felicidade conjugal, equacionada em termos de honestidade, trabalho, obediência, sujeição e servidão ao marido. Por outro lado, a crítica feminista tem mostrado que a produção literâria de mulheres após a década de 1960 tem seguido outros direcionamentos. Âs escritoras, partindo de suas experiências pessoais, e não mais dos papéis sexuais atribuídos a elas pela ideologia patriarcal, debruçam-se progressivamente sobre a sexualidade, identidade e angústia femininas, bem como sobre outros temas especificamente Gmininosl como nascimento, maternidade, estupro etc. Veja-se, à guisa de exemplo, textos de Clarice Lispector, como Perto do coração seluagem, em que Joana, a heroína problemática do terto, não consegue adaptar-se à estereotipia dos papéis femininos predeterminados pela famíiia pequeno-burguesa. Ela se incompatibiliza com a imagem da boa filha e da boa dona de casa, optando pela errância por entre a memória, o presente e as projeções do desejo, a fìm de trarÌspor as limitações impostas pela ideologia vigente. En Uma aprendizagem ou O líuro dos prazeres, ao narrar o romance entre Lóri, uma profe ssora primária, e lJlisses, um professor universitário, Lispector também põe em discussão questões ligadas ao modo de a mulher estâr no mundo. O namoro dos protagonistas estabelece-se como uma relação de ensino-aprendizagem voltada para o relacionamento amoroso, em que Lóri é a aprendiz. Terminado o aprendizado, ela se entrega ao professor, revelando-lhe, durante o ato amoroso, que sabe mais que ele. Por fim recebe uma proposta de casamento, mâs a história termina em aberto, com a protagonista dividida entre dois extremos: a independência feminina, caracterrzadapela liberdade sexual, entre outras, e a alienação de si que o vínculo matrimonial oficializado pela ideologia patriarcal implica. A cnrrrca FEMrNrsrA FRANCESA Hélène Cixous e Julia Kristeva são algumas das principais representantes da teoria feminista francesa. Diferentemente dos estudiosos da vertente anglo-americana, todavia, elas não se detêm explicitamente sobre o câmpo literário, mas no da Linguística, da Semiótica e da Psicanálise. Tiabalham no sentido de identiÍìcar uma possível linguagem feminina. A fim de reunirem argumentos capazes de desmistificar e deslegitimar a discriminação do sexo feminino, as referidas estudiosas puseram em xeque, a partir de uma abordagem psicanalítica, o conceito tradicional dos gêneros masculino e feminino enquanto categorias absolutas, cujas .---- (âo ,,,., v Y i dif...nr"s são sistem atizadas a partir de rígidos aparatos conceituais. A tese que defendem é a dei O,r. ", iif.."nçrs sexuais são construídas psicologicamente, dentro de um dado contexto social' Nesta ordem de ideias, ao contrário das feministas americanas dos anos 1960, que se insurgrram contra o falocentrismo freudiano, as francesas tomam a Psicanálise como sendo capaz de fornecer uma teoria sobre as origens e a formação dos gêneros. Isso porque elas a entendem como sendo um método emancipador' capaz deer<aminar r.onrr..rção do sujeito humano em todos os seus aspectos. Seu pressuposto mais básico é à d. qu. tal sujeito.onrirt. .- u-, entidade complexa, 9u1 ablanSe desejos' impulsos, ímpetos infantis reprimidos, além de fatores materiais, sociais, políticos e ideológicos de que estamos apenas parcialmente conscientes. Na esteira de discussões desta .-plit.rd., são trazidos à tona questionamentos mais especí{ìcos sobre a mulher e suas relações com a socieclade e a linguagem (cIr\RKE, 1998). Essa facção do feminismo. cujas bases são constituídas a pârtir do pensamento pós-estruturalista de Derrida e Lacan, trabalha basicamente com os conceitos de difirdnce e de lmagiryino. o prirneiro consiste no éônceito-chave da crítica da desconstrução da lógica binária próposto por Derrida, a base da crítica feminista radical; o segundo, relaciona-se à teoria da fase pré-edipiana de Lacan, q": !"t-9" a definição de uma écrítureféminini.-fr^ta-rede investigar as ligações entre se>malidade e textualidade, bem como de eraminar o câmpo de articulaçõe s do desejo na linguagem (HOLLANDA,l'992)- para a escritora e crítica literária Hélène Cixous, a oposição homem/mulher (ou macho e Íêmea) consiste em um elemento fundamental na cultura ocidental e está presente, subjacentcmente, a todos os tipos de oposições que aparentemente não têm relação com ela' Nessa ordem de ideias' o termo "inferior" é sempre associado com o elemento feminino; o ternro que ocupa a posição privilegiada, com o -"r.,rlino, trata-se da "solidariedade do logocentrismo ao falocentrismo"' No polêmico ensaio Rire de la Méduse (1975), publicado no Brasil como O sorriso dd medusa, Cirous (1988), "trarró, do estilo da "não-racionalidade", que aíìrma ser próprio da mulher, defende a tese de qug g cg-rpo desta e sua esctita, se não policiados pela heterossex-ualidade lalllcal' constituem-se em armas desconstrutoras dos valores faiocêntricos, capazes de promover sua libertação. Expliquemos: partindo da recusa da falta que a Psicanálise atribui à mulher e considerando que seu corpo representa i-prrlro, instintivos e desejos que surgem do inconsciente, ela o toma como o instrumento da ,r.scritur" feminina". O corpo fala e, ao falar, "inscreve o que a mulher diz em si e por si, nas marcas biológicas de uma natureza que irrompe em arritmias sintáticas, vazios, ilogicidade, sopro, respiração advinda da relação com o corpo da mãe, que nunca cessa" (QUEIROZ ,1'995, p. 150). Seguindo na trilha da desconstrução de Derrida, Cixous abole as dicotomias escrita/sujeito e ercrítJf^l^,liberando tais conceitos das hierarquias binárias. Assim, a distância entre escrita e ,sujeito que escreve é abolida, de modo Qye o discurso produzido pela mulher passa.a ser.entendido como úma espécie de mêtonímia dela. Nessa mesma ordem de ideias, a mesma escrita dei-xa de ser tomada como um ato governado porfatores e\.ternos e limitadores' para aproximar-se da fala, entendida como um veículo de erpressão da interioridade' De sua ótica. há na mulher um imaginário inesgotável propulsor de um texto subvelsiv6' Fsse te)do, ou essa escrita feminina, no entanto, não pode ser sistematizado ou defi|do rigidamgnte; não implica absolutamente, segundo a teórica, uma prática fechada, o que não significa que ela não exista' Não só existe como .ri,."i"rr^ o discurso que regula o sistema falocêntrico e patriarcal masculino, tomando lugar em áreas que não estão suboidinadas a ele' Cixous (1988) não reconhece a "escritura feminina", subversora do falocentrismo e do patriarcalismo, apenas como sendo oriunda do ser biológico feminino. Embora ela considere a mulher privilegiada ao seu acesso, homens também podem eventualmente produzi-l" ìl -"9-Lq..?'d"' ela chama de femininaa escrita subversiva que ela tem em mente, porque aquela marcada pela opressão é claramente masculina. Jâ a crítícaliterária e psicanalista Julia Kristeva (1,g7 4), seguindo na trilha da Psicanálise lacaniana' integranre do que ,lgrnì chamam àe crítica pós-feminista, combinando Linguística, Literatura e 232 rEoRÌA LITERARIA li\ --.. .-{dl 2) Cnr r rc c l LMr NIsr{\-/ Psicanálise, também problematiza, nadécada de 7970, as questões referentes à sexualidade, identidade, escrita e linguagem femininas, mas nega uma fala ou uma escrita específica da mulher. fol colsiderar q-ue é através da linguagem que o indivíduo ex?ressa a instabilidade que lhe é inerente como ser humano, Kristeva (1,974) a toma como o ponto central de seus estudos, detetrdo-tË, sobretudo, na proble mâtíca que â envolve e no modo pelo qual se define . Ëla considera a Linguística moderna autoritíria e repressiva, uma vez que suas investigaçoes têm co"mo alicerce estrururas monolíticas e monogêneas. Do seu ponto de vista. a linguagem deve ser analisada como um processo heterogêneo, complexo, em que o sujeito falante (dividido, descentralizado e instável) é tomado como objeto central na investigação. Visando melhor definir essas características que integram o ser humano, Kristeva criou o termo "sujeito em processol', qãg 3.Pen_q! lo- sgnlldo de "sujeito em curso", mas também cõmo prõ-èssò de lei, já que o indivíduo está constantemente em julgamento, ou seja, seu comportamento está sempre sendo posto à prova. Tendo em vista os três registros essenciais que Lacan distingue, no campo da Psicanálise (o Simbólico que aproxima a estrutura do inconsciente à da linguagem e mostra como o sujeito humano se insere numâ ordem preestabelecida; o Imaginário, caracterizado pela preponderância da relação com a imagem do semelhante, e o Real), Kristeva explica as raízes do termo acima referidopormeiodedoisconceitos:oSemióticoeoSímbólíro.Porqqtç-n-d-*Q!eoSimbólico e.st4. cgmpr.ometido com o polo masculino da cultura, ela redefine os conceitos de Imaginário e de Simbólico, deslocando a força que Lacan imprime à ordem deste último para a ordem : do Imáginário. Tiata-se de localizar na fase pré-edípica, anterior à entrada do Simbólico, um {fg=T93!_o-e,m- que a gyiança ç a mãe falam num discurso próprio, que pode ser considerado a matrtz da linguagem sequestrada da mulher. A esse lugar do Imaginário, Kristeva chama de Semiótígo,como mo_do de significação alternativo ao Simbólico. O_\.y1(_tíyor_p_ortan!o, retorna às fases pré-linguísticas da inÍância, em que a c1aLç1!albgc!a i or ."${ú{gu"é, tentando imitar o mundo que a rodeia, sem, no enãnto, póirülr or iinais linguísticos necessários para que haja, na linguagem, o sentido lógico e convencional. Tlata- se de um momento anterior à crise edipal já referida, eloSue não se possui identidade estávél : nenhuma, e'sim padrões e quadros flutuantes. 49, integrar,- atravé,s de aquisiçáo da linguagem, o universo social definido pelo polo masculino da cultura, a criança passa a ser definida por ele, ficando privada de ser um sujeito pletro, ..àlir^do . uniÍìcado. E_1gssa fase da trajetória humana que o desejo e o inconsciente são ciiaciõii e oiáo.- razão dessa faita. O1-nso^nsciente, nesse sentidg, çonsistq em úma e-spécie de repositório de tudo o que deve ser reprimido por chocar-se com a posição assumida pelo sujeito nã íociedade. -- Kristeva emprega a imagem do khóra, um vocábulo grego, retirado do Timeu de Platão, que significa receptáculo, espaço fechado, útero, para descrever o conteúdo essencial do inconsciente. Tiata-se de uma "instância do pré-Édipo e do pré-verbal que se define como o locus onde o mundo é percebido pela criança como iítmico, intonacional, melódico" (QUEIROZ, t995. p. 152), o,qua-l_.1a_m,ais pode ser eliminado ou reprimido plenamente. Em vista d!_qs-o', o s,qiçi!q, para Kristeva, é constitconstituído em linguagem na interação entre o Semiótico e o Simbólico, como um llgq.Jetlg.em.p_rocesso".D.ú o em lrnguagem na rnteraçao entre o D úgl,a_açfè n d èf a im-p.o.s.s ibi I i d-a d e d e ,íeÏãlï-sê a mulher: ei, "Ç-lhè uma essencialidadè biólógica, do mesmo rnodo que negâ uma especificidide da fala ou d" escrita feminina. Do seu ponto de vista, 4 mulher, ao liberar-se da rigidez da ordem simbólica. é capaz, sim. dc produzir textos peculiares. Mas as peculiaridades que os caracteri zam não podem ser atribuídas nem à especificidade feminina, nem à marginalidade social, mas a ligações com o locus onginal dakhóra. Q.fgmlnino, para Kristeva, como para Cixous, não implica a mulher real, pois, no que diz respeito à escrita, sujeitos biologicamente masculinos podem ocupâr uma posição de sujeito Tsouas BoNNrcr / Luctt OsaNr ZorIN (onc.r.Ntzroonrs) 233 feminino na ordem simbólica, conforme Joyce e Mallarmé, entre outros. F.la vê no na escritura feminina, uma força capaz de ela observa nas obras de artistas de vanguarda como feminino a negação do fálico e , mais especificamente, quebrar a ordem simbólica restritiva. l II I lr A atitude de desconstrução em relação à oposição homem,/mulher que a crítica feminista francesa pressupõe pode ser mais facilmente reconhecida em textos de escritoras(es) contemporâneas(os) do que "o lorio da histOria da literatura. Tomem-se, por exemplo, os romances da primeira fase da produção literária de Nélida Piíon, como Madeírafeita nuz (1963) ouA casa dd paixão (1'972)- No primeiro, a trajetória de Ana, a personagem central, trazàtonaa discussão acerc dos conflitos da mulher gerados pelo choque de ideologias: uma que lhe é própria, outra que the é imposta pelo modo de pensar dominante. O conflito se instaura na medida em que ela adquire uma profunda consciência de sua realidade corpórea e de seus desejos e, ao mesmo tempo, da realidade do cristianismo, em que a sexualidade é marca do pecado original. A solução se dá com â protâgonista reinventando um cristianismo mais humano, uma espécie de "evangelho" próprio: após uma "viagem de aprendizado", concretizada por meio de uma caminhada pela floresta, na qual se dá a descoberta solitária de seu próprio corpo e a felicidade daí advinda, â personagem toma o machado e destrói a imagem de madeira de Cristo na parede, num gesto de destruição dos modelos canônicos e de reinvenção dos conceitos do Bem e do Mal. ErnA casa da paixão, a atitude da escritora de "subverter a sintaxe oficial", no que se refere à tradição dos papéis conferidos à mulher, atinge um de seus pontos mais altos. O romance é, de certa -"n.irr, .r-" g."rd. discussáo aceïca da tradição cristã e da tradição cultural no Ocidente, sobretudo no que diz respeito à normatização da sexualidade apenas nos limites do casamento, com fins de reprodução, e a consequente eliminação da legitimidade do desejo Íïsico. Segundo a autora, 234 -TEoRIA LITERARIA Hélène Cixous (1e88) 1 ) Ârgumento pós -estruturali sta : dífér an ce (De rrida) ; imagináti o (Lacan) ; 2) O pensamento funciona por meio de oposições duais e hierarquizadas, de modoque a oposição homËm/mulher (superior/inferior) está presente em todos os tipos de oposições (solidariedade do logocentrismo ao falocentrismo); 3) Essa oposição repressorâ pode ser deruída â partir da escrita da mulher; 4) Écriturefeminine : terto subversivo; 5) Homens também podem produzir essaécriturefeminine. Julia Kristeva (1e74) 1 ) Àrgumento pós-estruturalista: imaginário (Lacan) ; 2) Criao conceito de "sujeito em processo" a partir da definição de duas modalidades'. o Simbólico e o Semiótico', 3) Toma a linguagem como ponto central de seus estudos; 4) A escritura da mulher é examinada a partir de uma perspectiva antiessencialista e anti- humanista; 5) O que foi reprimido e consignado ao Semiótico encontra possibilidades de maniíestâção em todos os tipos de linguagem que, por qualquer raziao, nío estão totâlmente sob o controle do falante ou do escritor, cujas estruturas de linguagem acham-se restritas aos códigos linguísticos do poder patriarcal; 6) As escritoras são câpazes de construir textos que oferecem resistência às regras da linguagem convencional, assim como a linguagem não totalmente regulada das crianças e da doença mental. Quadro 6. Representantes do Gminismo francês. **@ ctÍrrcA FEMINISTÁ "é um texto em que talvez o discurso feminino alcance umâ proeminência muito grande. E a história da relação âmorosâ de uma mulher. Como ela inaugura o corpo. E como o corpo, uma vez inaugurado amorosamente, erotizado, altera o pensamento- (PINON, 1988 apud PROENÇA FILHO, 1998,p.4). Marta, a protagonista, tem como meta tomar a palavra, falar e nomear, torrÌar-se uma mulher- sujeito âtravés do domínio do próprio corpo, entendido não como o templo de Deus, como quer o cristianismo, mas como a casa da pakão, desvestido de qualquer ideologia de natureza espiritual. O estado inicial da narrativa é de uma aparente harmonia: de um lado, o pai como chefe incontestável e natural, exercendo sua função de proteger a Íìlha contrâ a cobiça dos homens; de outro, Antônia, servâ e governanta, aquela que ocupâ o papel subalterno e hipotético de mãe, a ajudar, à sua moda, a filha a tornar-se mulher. Ao atingir a idade adulta, através da revelação de sua sexualidade, Marta, todavia, reage contra as imposições paternas. Thl reação se dá através da exibição de seu desejo carnal, num gesto que a torna autora de seu projeto de vida e, consequentemente, subversora do código que rege o comportamento feminino. Diante desse estado de coisas, o pai traz para casaJerônimo, o homem que deverá ser o parceiro da Íìlha, numa relação ofr.cializada- "Se é de macho que ela precisa, eu lhe darei" (p.44). AssimJerônimo e Marta desempenhariam os papéis que a cultura ocidental convencionou como sendo masculinos e femininos: enquanto ele, subordinado à ideologia patriarcal e ao cristianismo, é marcado pelarazáo, pela disciplina, pela organizaçáo e hierarquia; ela é rnarcada pelo desejo, pelo inconsciente e pela intuição. Correspondem, respectivamente, aos pares dicotômicos: atividade e passividade, intelecto e sentimento, espírito e corpo, cultura e ïÌatureza etc. A narrativa, todavia, se resolve com o surgimento de uma descoberta a partír do confronto entre esses dois polos: trata-se de uma espécie de reinvenção da relação homem-mulher, a qual vai acabar por permitir que tais personagens relacionem-se entre si sem que uma tolha a essência da outra. Ambos deverão despojar-se de suas antigas formas de entender a realidade para inaugurar uma outra, numa tentativa de conciliar os dois ideais, ou seja, equilibrar as forças antagônicas do masculino e do feminino. Marta insereJerônimo no universo feminino por elavivenciado, ao mesmo tempo em que resgata o seu lado masculino com â ajuda deJerônimo. O que Nélida Piflon propõe, portanto, em A casa da paixã0, é, em certo sentido, destruir os contornos nítidos das diferenças serüais, com vistas à afirmação do direito da mulher de usufruir sua sexualidade. Sem tais adaptações, certamente não seria possível a Marta alcançar a plenitude, já que ela não se adapta ao modelo Gminino consagrado pela ideologia. O par amoroso, aqui, aproxima-se de uma situação ideal no que se refere à relação homem-mulher, por meio da masculinização de uma e da Gminilização do outro: ele abre mão dos preceitos patriarcais, que relegam a mulher à passividade e lhe impõem a submissão, para aproximar-se do verdadeiro modo de ser de Marta, vivenciando-o ao lado dela; ela complementa a nova situação (que lhe é favorável) através da experimentação do papel masculino, como o entende Jerônimo. PnosrnMAs E NovAS pERspEcrÍvAs ta cúTrce FEMIMSTA: MULTIPLICIDADE E HETEROGENEIDADE O conceito de gênero, considerado por Showalter (1985) "uma dâs mudanças mais mârcantes dentro das ciências humanas e das letras na década de 80", passou a ser amplamente usado pela crítica literária feminista com o objetivo de evitar algumas armadilhas ou ambiguidades contidas nos conceitos de identidadefenlinina e lugar da diferença. A procura da definição desses conceitos é',a THoMÂs BoNNtcI / LúcIA OsaNa ZorIN (oncaNtzaoonrs; - 235 rigor, a preocupação central das duas principais vertentes da crítíca feminista, conforme discutimos nos itens anteriores. A tendência anglo-americana empenha-se na deÍìnição de uma identídade feminina e do lugar da dferença por entender que tais deÍìnições são fundamentais na luta contra as instituiçoes patriarcais dominantes. Nessa ordem de ideias, trabalha no sentido de: 1) denunciar a ideologia patriarcal que permeia a críticatradicional e determina a constituição do cânone na série literária; 2) empreender uma arqueologia literária para Íesgâtar obras de mulheres que foram ercluídas da história da literatura; 3) estudar a produção literária da mulher contemporânea, particularrzando-acomo um lugar privilegiado para a experiência social feminina. A noção de ídentidade, eÍÌtretanto, está comprometida com a estrutura da lógica patriarcal: ao reforçar a noção de mulher como o outro, o pensamento Gminista anglo-americano corre o risco de apenas legitimar e garântir a supremacia masculina, ou seja, a supremacia do mesmo. Em relação à tendência francesa, também são registrados problemas estruturais, na medida em que seus defensores preocupam-se com a especificidade de uma linguagem essencialmente feminina, investigando as relaçóes entre sexualidade e tertualidade e proclamando urna escrita do corpy l sem, no entanto, explicitar as relações concretas que as determinam, as práticas sociais que as constituem. Além disso, essa polêmica teoria da escríta do corpo, proposta, principalmente, por Hélène Cixous, acaba por entrar em choque com os caminhos teóricos da différance, os quais buscam a desconstrução das oposições binárias que regulam o logocentrismo. A esse propósito, Castello Branco (1994) assinala que considerar que o feminino se constrói em oposição ao masculino implica o risco de mergulhar-se num raciocínio simétrico e antinômico. E, sendo assim, ao invés de suspenderem-se as dicotomias e os maniqueísmos que envolvem as relações de sexo, está-se reiterando essas relações. E só no entrecruzar desse duplo movimento - daquele que parte com aquele que fica, daquele que rompe com aquele que repete, daquele que é o outro com aquele que é o mesmo - que se pode vislumbrar essa especificidade feminina do discurso. Aí o seu traço, aí o seu rastro, aí t sua diferência (CASTELLO BRANCO, 1994, p. 49). Na verdade, ao proclamar a existência de uma linguagem Jeminina, o feminismo francês tenciona valorizar e potencializar a obscuridade e a falá que caracterizariam essa linguagem, em oposição à racionalidade e à implacabilidade da linguagem hegemônica masculina. Segundo Hollanda, "é inegável que os discursos marginalizados das mulheres, [...] to momento em que desenvolvem suas 'sensibilidades experimentais' e definem espaços alternativos ou possíveis de expressão, tendem a produzir
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