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Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 1 JUSTIÇA E ARGUMENTAÇÃO CHAÏM PERELMAN 1 Se decido jantar no Waldorf Astoria ou ir à Itália, ou ainda se resolvo pedir certa moça em casamento, desde que se considere que minha decisão de fazer uma destas coisas não envolve romper uma obrigação ou compromisso, ninguém diria que eu estaria tendo um comportamento injusto. Na verdade, antes de caracterizar qualquer decisão, escolha ou julgamento - ou ainda qualquer lei ou regulamento - como injusto, devemos estar prontos para estabelecer as razões que justificam esta opinião, que devem ser aceitas pelo auditório a que se está endereçando. Seria um erro afirmar que baseamos nossos julgamentos em algum sentimento ou intuição, ou ainda em alguma qualidade indefinida que desperta simpatia ou antipatia, como acontece quando estamos apaixonados. A escolha dos adjetivos 'justo' ou 'injusto' pressupõe que estejamos recorrendo a algum critério estabelecido, a algum padrão comum, eventualmente até a um padrão aceito pela comunidade, e não simplesmente expressando um preconceito. Novamente, não seria suficiente mostrar que a ação que caracterizamos de injusta causou mal a alguém. Teríamos que ir além, mostrando que houve um ato culpável, no sentido de ruptura de alguma regra - seja ela explícita ou implícita, moral ou legal - e que há um nexo de causalidade entre o ato culpável e o mal causado. Se um homem diz ser vítima de um destino injusto, ele está implicitamente imputando a alguma divindade ou à própria natureza certos deveres não cumpridos, como, por exemplo, a obrigação de tratar 1 Texto traduzido por Ana Luísa Leão, ex-bolsista do PET-JUR, do original inglês do original inglês de “Law, Reason and Justice: Essays in Legal Philosophy. Organizado por Graham Hughes. Nova Iorque: New York University Press e Londres: University of London Press, 1969. DISCIPLINA: Filosofia Prof.: Nicodemos F. Maia CARGA HORÁRIA: 80h / a GRAU DE ENSINO: GRADUAÇÃO (Bacharelado) CURSO DE DIREITO CÓDIGO: 31076 NOTA DE AULA DISCIPLINA Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 2 seres semelhantes aproximadamente da mesma maneira. Na falta de pelo menos uma imputação implícita deste tipo, a vítima estaria apenas expressando o sentimento de que não merece aquilo que recaiu sobre ela e que aquele resultado causado por um agente responsável teria sido injustamente imposto. O sentimento de que alguém é vítima de injustiça resulta, inicialmente, de uma comparação com outras pessoas que acreditamos serem iguais a nós, e terem sido favorecidas. Achamos injusto qualquer infração à regra de justiça, que determina que as pessoas sejam tratadas igualmente e que situações similares sejam resolvidas da mesma maneira. 2 Quem obedece à regra de justiça ou segue um precedente apropriado, escapa, prima facie. a uma acusação de injustiça e não tem que justificar a sua conduta. Em contrapartida, a pessoa que é acusada de descumprir a regra de justiça ou de desviar-se de um precedente estabelecido deve apresentar uma justificativa, se não deseja que seu comportamento seja considerado injusto. Esta justificativa terá de consistir em motivos que considerem a existência de certos fatos e sua classificação. Se a impugnação é dos fatos alegados, então estamos preocupadois com a verdade e não com a justiça. Quando o estabelecimento dos fatos dá origem a problemas de prova, temos que distingüir os domínios da moral e do direito. No domínio da moral, qualquer um é livre para fazer uso de todos os meios de prova a fim de estabelecer os fatos relevantes ou oferecer uma nova versão dos mesmos. No direito, entretanto, uma série de presunções regula a questão do ônus da prova, e de diversas maneiras limita a admissibilidade de diferente tipos de provas. Portanto, sob a regra da presunção de inocência, os fatos em questão precisam ser provados pelo acusador ou pelo autor, e o réu pode valer-se de uma simples negação. Da mesma forma, a prova de fatos preclusos não pode mais ser produzida, bem como é inadmissível a prova difamatória. Certos atos jurídicos só podem ser provados mediante prova documental, enquanto que a prova negativa de paternidade, por exemplo, só pode ser fornecida por certas pessoas e dentro de determinados prazos. II Para que os fatos provados possam constituir uma violação de uma regra moral ou jurídica, devem ser classificados de modo que possam subsumir-se a alguma norma. O que foi provado deve ser Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 3 imputado a alguém que é responsável por sua conduta, da qual poderia ter-se abstido. Ninguém pode ser responsabilizado por ter feito algo que era impossível evitar. Essa especial caracterização de um ato pode ser efetuada de duas maneiras: tratando o conjunto dos fatos novos como sendo essencialmente similares a um outro conjunto de fatos que já tenha sido julgado anteriormente (é a técnica do precedente), ou subsumindo-os a uma regra geral (aplicação de uma regra geral a um caso particular). A classificação, então, demandará uma avaliação do precedente que for citado, ou da regra escolhida. Este julgamento pode ser contestado, já que poder-se-ia argüir ser o precedente inaplicável ou que a regra usada deveria ter sido aplicada de maneira diferente, o que levaria a um outro resultado. O juiz que examina o caso também pode, por inúmeras razões, especialmente se estiver em um tribunal de última instância, recorrer a uma ficção. O instrumento da ficção, que é claramente uma recusa à aplicação da lei em determinadas situações, pode ser considerado realisticamente como uma modificação no campo de aplicação da norma por um órgão que não tem poderes legais para modificá-la expressamente. Isto explica, incidentalmente, por que a noção de ficção não existe no juízo moral, já que a prática da decisão moral não incorpora uma doutrina de separação de poderes. Uma outra forma de se contestar um julgamento ocorre quando os mesmos fatos podem ser vistos de ângulos diferentes. Um aspecto desses fatos pode parecer o mais significativo para certas pessoas, e isso pode levá-las a aproximar aqueles fatos de um precedente diferente do invocado pelo adversário, ou a julgá-los com base em uma norma diferente daquela aplicada por este. Esta situação - em que é possível a aplicação de dois precedentes ou duas regras para os mesmos fatos com igual plausibilidade - pode levar a antinomias dentro do sistema jurídico e a um conflito de deveres no campo da moralidade. Nesse caso, torna-se necessário apontar qual norma terá prioridade na solução da lide em questão. Em cada caso, para que a decisão não pareça arbitrária ou injusta, a interpretação ou aplicação adotada tem que ser justificada por um argumento que não precisa ser incontestável, mas sim razoável à luz de um bom número de opiniões. Estas opiniões serão normalmente teleológicas ou pragmáticas; ou seja, elas poderão invocar a política legislativa ou a discussão sobre as conseqüências práticas de decidir de uma maneira e não de outra.2 V. Perelman, Ch. The Idea of Justice and the Problem of Arguments, 1965, pp. 79-87; Perelman, Ch. Justice, 1967, cap. 2 Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 4 A escolha do ponto de vista sob o qual os fatos de um caso será avaliado contribui para fixar mais precisamente o campo de aplicação de uma norma ou o escopo de um precedente. Isto pode originar- se de certas doutrinas gerais que se expressam em princípios como aqueles relacionados ao abuso de direito3, ou à ordem pública internacional4, e que incorporam noções sobre política pública que levam a uma limitação da esfera de alcance de uma determinada norma. Devemos notar que esses problemas de interpretação e aplicação surgem tanto no campo da moral como no direito, mas o processo de raciocínio envolvido é mais facilmente percebido na prática de decisões judiciais. Isso porque, em um sistema jurídico, a natureza da discussão, os argumentos, e as posições tomadas são controladas por normas processuais que obrigam as partes a responderem uma à outra já que os argumentos contrários e as conclusões precisam ser refutados e não podem ser simplesmente ignorados. Os mais interessantes problemas morais, políticos e filosóficos dizem respeito ao que é justo e injusto de uma maneira que vai além de questões de fato e classificação, alcançando a problematização mesma das normas que foram supostamente violadas. Nestes casos, os argumentos vão além de questões sobre aplicação de regras, submetendo à crítica os princípios concebidos para guiar os indivíduos e as sociedades. Enquanto a apreciação das norma ocorrer em um plano puramente jurídico, temos que levar em consideração as instituições que determinam essa separação, a hierarquia, e o equilíbrio dos poderes, porque não é qualquer um que tem o poder de mudar uma lei considerada injusta. Para que se aja como um juiz ou um legislador, há que se ter autoridade. Aqueles que não possuem essa autoridade podem, meramente, tentar influenciar os detentores do poder judiciário ou legislativo. Somente fora da perspectiva 3 Por exemplo, uma pessoa pode ter o direito genérico de caçar na sua propriedade rural, mesmo se o barulho dos tiros puder causar algum aborrecimento a seus vizinhos. Todavia, se o juiz adotar o ponto de vista de que o objetivo predominante da caçada é interferir, com má intenção, na tranqüila fruição da propriedade do vizinho, pode vir a conceder indenização. V. o caso inglês do Hollywood Silver Fox Farm vs Emmett, 1936, 2 K.B. 468. 4 .A atuação deste principio pode ser ilustrada pelas leis sobre a bigamia. Se um marroquino casado poligamicamente fosse para a França, o direito criminal francês não teria a pretensão de estender sua jurisdição para processá-lo. Entretanto, se um marroquino solteiro fosse para a França, as autoridades desse país não aceitariam a lei do seu domicílio para oficializar uma cerimônia poligâmica. Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 5 jurídica - quando consideramos uma ação ou norma como moralmente ou politicamente injusta - é que podemos ignorar todas estas questões sobre competência e autoridade que são tão essenciais ao direito. III Quais são as técnicas de argumentação que tomam possível a crítica das normas em si? Em primeiro lugar, a crítica poderia, novamente, basear-se na regra de justiça. Não mais seria usada, porém, para demonstrar que algumas disposições jurídicas foram violadas ou que a lei não foi imparcialmente aplicada, segundo o princípio da igualdade perante o direito. Em vez disso, tal tipo de crítica estaria direcionada para as disposições do próprio direito, que estabelecem uma discriminação injustificada ou negligenciam distinções que são consideradas essenciais. A crítica estaria dirigida à ausência de uma relação proporcional entre ilícitos e sanções, ou poderia, ainda, sublinhar a crueldade desnecessária e a ineficácia de disposições jurídicas que não conseguem atender aos propósitos sociais para os quais teriam sido instituídas. Além da crítica que paira sobre a ineficiência das medidas legislativas e que aponta para a importância da sociologia jurídica para o legislador, qualquer outra crítica pressupõe uma concordância de juízos de valor relacionados com o caráter necessário ou trivial de distinções envolvendo a seriedade de ilícitos e sanções. O peso dado a certas distinções e à seriedade de certas ofensas pode ser estimado de várias maneiras, tendo em mente as condições político-sociais e econômicas de um país, bem como os conflitos ideológicos. Para que afirmemos ser uma norma injusta, não é suficiente demonstrar a injustiça da mesma apenas sob nossa própria perspectiva, porque do ponto de vista do adversário, pode parecer uma norma justa. Devemos estar prontos para explicar porque nossa perspectiva é preferível à do oponente. Precisamos, para tal, obter o apoio da opinião pública para a tese, e, mais especificamente, o apoio de boa parte dos que zelam pela ordem estabelecida. Isso explica a importância de todas as discussões ideológicas, sejam elas de natureza política, filosófica ou religiosa. Quando desacreditamos a ideologia do oponente, estamos enfraquecendo a autoridade moral de quem, através da mesma, detém poder, fazendo-os parecer meros porta-vozes de interesses particulares escondidos atrás de uma aparente respeitabilidade. Duvidar da justiça das normas freqüentemente leva à crítica de uma ideologia e à contestação da autoridade que esta Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 6 ideologia procura legitimar. Pessoas em posições de autoridade poderão parecer, assim, meras usurpadoras que, sem mais recursos, usam da coerção pura para manter o poder. Quando uma linha de raciocínio nasce de premissas que são aceitas como verdadeiras e conduz a uma conclusão necessária, não há como recorrer à autoridade ou à força para apoiar ou atacar qualquer das partes. No entanto, quando as premissas são contestadas ou fornecem razões parcialmente constringentes em favor de um argumento, ou ainda quando argumentos contrários se contrapõem razoavelmente e nenhuma conclusão única se impõe, então o papel da autoridade e até do legítimo uso da força se toma crucial para assegurar-se o assentimento à ordem existente. Nesse sentido, devemos observar que as técnicas jurídicas podem tentar limitar o uso da força através das instituições judiciais e legislativas que fornecem procedimentos aceitos para a elaboração de normas e solução de conflitos. Se, no entanto, estas instituições puderem, sem maiores dificuldades, solucionar os conflitos através de sua autoridade, será necessário, ainda, que exista um reconhecimento da legitimidade daqueles que tomam as decisões. Mas o papel desses decision-makers autorizados não é tão vital quando se trata, não de intervir em reivindicações conflituosas, mas de reconhecer os costumes e princípios gerais que formam parte da cultura de uma civilização, e são, além do mais, aceitas como tal. Na verdade, existe uma relação complementar entre o caráter dúbio das normas e a autoridade daqueles que tentam impor sua aceitação. Quanto mais essas normas e decisões forem questionáveis e questionadas, maiorterá que ser a autoridade daqueles que querem vê-las aceitas pela comunidade, Não há necessidade de essas autoridades assegurarem a aceitação de princípios morais geralmente admitidos ou inculcar respeito por valores e instituições tradicionalmente reconhecidas, princípios e valores aos quais as autoridades não poderiam se opor sem minar seu próprio prestígio e sem provocar desobediência. Este é o significado da oposição que a ordem de Creonte - que violou leis divinas tradicionalmente respeitadas - desperta em Antígona. Este é o significado e o peso das afirmações dos que advogam direitos naturais, segundo quem os direitos do homem não derivam de uma autoridade positiva, que poderia, então, revogá-los a seu arbítrio, mas existem independentemente de autoridade positiva, cuja missão é simplesmente respeitá-las e protegê-las. No entanto, mesmo neste campo onde a existência de normas genericamente aceitas numa sociedade ou civilização não dependem da decisão de uma autoridade Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 7 positiva, estas autoridades têm um inegável papel na sua interpretação e na determinação da sua aplicabilidade. Essas normas fundamentais não devem ser comparadas com premissas matemáticas, que são evidentes em si mesmas e inequívocas, mas sim com "lugares-comuns", isto é, princípios vagos, mas comumente aceitos, que requerem um esclarecimento acerca do modo de sua aplicação, que pode, em alguns casos, entrar em conflito com outros princípios. O papel das autoridades é determinar o alcance de cada um destes princípios e sua hierarquia, para solucionar os conflitos oriundos de sua aplicação aos casos concretos. A que tipo de raciocínio poder-se-ia recorrer, a fim de justificar decisões tomadas em tais casos? Pode-se descrevê-lo como raciocínio dialético, porque há de se recorrer a uma variedade de argumentos que não podem ser reduzidos a esquemas dedutivos ou a simples indução. Eles freqüentemente conjugam raciocínio analógico e argumentos pragmáticos, recorrendo à regra de justiça do tratamento equivalente entre iguais. Uma análise sistemática das relações entre as normas do direito positivo, os princípios gerais do direito, as regras da moral, e as técnicas usadas pelos legisladores e juízes para fundamentar suas afirmações e decisões, possibilita a enumeração, classificação, e sistematização dos modelos de argumentos empregados pelos advogados quando lhes é necessário raciocinar em termos de justiça. Se, então, à luz do resultado de tais investigações, os filósofos da moral refletissem sobre a função que deles se espera desempenhem, perceberiam que não deveriam limitar-se ao estabelecimento de princípios gerais, que os levaria a uma multiplicidade de interpretações. Eles não devem evitar o estudo de situações concretas ou desconsiderar técnicas de argumentação as quais se deve necessariamente recorrer caso se pretenda que a razão prática tenha sucesso em conduzir os homens de bem e limitar, em alguma medida, o recurso irrestrito à arbitrariedade e a violência. Texto da Professora: Maria Geralda de Miranda 2.2.3 — A "Teoria da Argumentação" de Chaïm Perelman Além da mencionada "lógica do razoável", outra teoria questiona os paradigmas do "formalismo-silogístico" e do "pluralismo". Trata-se da chamada Teoria da Argumentação, que tem sua base em Chaïm Perelman,12 e trabalha basicamente com a questão da argu- Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 8 mentação, como método a ser adotado na busca de uma decisão judicial " razoável". Perelman fornece as bases da Teoria da Argumentação, através da distinção entre demonstração e argumentação. 2.2.3.1 — Demonstração x Argumentação Para que se possa compreender melhor a Teoria da Argumentação de Chaïm Perelman é fundamental que se conheça bem a distinção entre argumentação e demonstração, que representa um de seus pilares. A demonstração é típica de uma lógica formal, que adquiriu grande projeção no Século XIX, com a ascensão do paradigma positivista, que defendia a adoção, no estudo das ciências sociais e humanas, do mesmo método utilizado nas ciências naturais e exatas. Segundo essa visão, os fenômenos sociais poderiam ser analisados sob os mesmos parâmetros metodológicos da física ou da química, por exemplo. Quando se trata de demonstração, as conclusões resultam de um cruzamento entre juízos hipotéticos e mecanismos de comprovação prática. Tais mecanismos seguem uma receita predeterminada de operações lógicas, que independem do campo de estudo (matemática, física, antropologia, direito ou biologia, por exemplo). O importante é exatamente a comprovação de que, com a repetição de certos procedimen- tos, previamente determinados, serão observadas certas consequências necessárias, a partir das quais se formarão regras. Segundo Perelman, demonstração é "um cálculo feito de acordo com normas previamente estabelecidas". A chamada prova demonstrativa normalmente é imutável, desde que mantidas as mesmas condições ambientais e adotados os procedimentos previamente estabelecidos. Em função disso, essa prova independe de qualquer tipo de adesão por parte daqueles perante os quais ela se realiza, sendo válida por si só. Em um processo de demonstração, basta indicar os pressupostos metodológicos que levaram a uma determinada conclusão, sem uma preocupação maior com os conteúdos axiológicos e de experiência que possam porventura tê-la influenciado. Este é um princípio perfeitamente aplicável às ciências naturais e exatas, pois tanto a demonstração de uma fórmula matemática, quanto a realização de uma reação química independem dos conteúdos valorativos ou padrões culturais daqueles que as observam. O sistema resultante de tais processos apresenta uma absoluta coerência entre suas premissas e conclusões, sendo, portanto, concebido como um sistema formal.Todavia, quando se trata das chamadas ciências humanas e sociais, os resultados obtidos são profundamente influenciados pelo meio em que a pesquisa é realizada. Justamente neste ponto, se observa a grande limitação do uso da demonstração, como método de abordagem das ciências sociais. Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 9 O processo argumentativo apresenta natureza bastante diversa do processo demonstrativo, a começar pelo fato de que a demonstração prescinde de um interlocutor para que suas premissas sejam tidas como válidas. Seguidas as regras fixadas, a demonstração é tida como eficaz, desde que os resultados atendam à hipótese previamente estabelecida. Daí dizer-se que o processo pertinente à demonstração pode ser realizado até por uma máquina. Por outro lado, a argumentação pressupõe um "en- contro de mentes", no dizer de Perelman, isto é, uma relação entre atores diferentes, para que se torne efetiva. Daí surgem as figuras do orador e do auditório. O orador é aquele que se dirige, oralmente ou mesmo por escrito, a um interlocutor determinado, o chamado auditório ou audiência, que pode ser formado por uma ou mais pessoas, das quais se busca a adesão a uma ideia proposta. Essa adesão é a finalidade maior do processo argumentativo, estando a eficácia do mesmo ligada diretamente a ela. Só há que sefalar em argumentação quando há uma inequívoca identidade entre a tese proposta e o auditório, de modo a criar um vínculo entre o orador e seus interlocutores. A argumentação se mostra bem mais adequada ao estudo das ciências humanas e sociais, por não trabalhar com uma lógica puramente formal, adotando procedimentos flexíveis, fundados em uma necessária interação entre o orador e o auditório. Diferentemente da demonstração, o discurso argumentativo destina-se a um auditório específico, cuja adesão é de vital importância. Em consequência disso, a argumentação tende a variar, conforme a composição do auditório e a natureza dos valores nele dominantes. 2.2.3.2 — Requisitos da Argumentação a) REGRAS BÁSICAS — na argumentação é necessário que se estabeleçam determinadas normas que disciplinem a relação entre o orador e o auditório, a fim de que o processo de comunicação possa acontecer de maneira tal que permita uma efetiva troca de informações e uma satisfatória compreensão pelo auditório da tese proposta pelo orador. As normas podem até fazer parte do cotidiano daquele grupo, sendo implicitamente aceitas por todos, apesar de não expressamente formuladas; contudo, a sua existência é fundamental. b) LINGUAGEM COMUM — a linguagem utilizada deve ser compreensível por todos os membros do auditório. A argumentação lança mão da linguagem falada ou escrita, de complexidade variável, conforme o tipo de auditório a que se destina. Já a linguagem demonstrativa se apresenta de maneira puramente formal, dedutiva, podendo ser Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 10 simbólica (fórmulas físicas e matemáticas, por exemplo), mas certamente padronizada e continuamente reproduzida de modo idêntico, em face de qualquer auditório. c) TRIUNFO DE UMA CAUSA — enquanto a demonstração tem a pretensão de formar um conhecimento "verdadeiro", a argumentação tem como finalidade precípua a aceitação hegemônica de uma tese, por parte do auditório. A tradição formalista ocidental da "unicidade da verdade"15 mergulhou a retórica no ostracismo a partir da Era Moderna, sobretudo em razão de uma tendência racionalista de restringir a abordagem científica a esquemas matemáticos e de lógica formal. A Teoria da Argumentação reabilita a retórica, dentro do debate científico e principalmente no campo do Direito. Segundo Perelman, um argumento não é aceito por ser verdadeiro e sim porque é socialmente útil, justo ou razoável. O processo argumentativo também difere do demonstrativo, quando este último admite a existência de conhecimentos imutáveis e dotados de uma certeza científica. As teses argumentativas normalmente são admitidas em um local determinado, durante um certo período de tempo. Assim sendo, todo conhecimento resultante desse tipo de processo pode ser a qualquer momento contraposto de maneira eficiente, perdendo o seu caráter hegemônico. Na esfera da argumentação não existem teses falsas ou verdadeiras, uma vez que não se trata de um "jogo de soma-zero", em que há proposições absolutamente coerentes e proposições totalmente falsas. Em verdade, teses opostas podem estar interligadas em alguns aspectos ou até mesmo apresentar uma esfera de complementação, em relação àqueles pontos em que não se contradizem. d) PERMEABILIDADE DO AUDITÓRIO — é importante, ainda, que exista uma permeabilidade do auditório, para o conhecimento da tese proposta pelo orador. Se não há, por parte do auditório, qualquer ânimo de permitir a exposição de ideias pelo orador ou mesmo disposição para o seu conhecimento, torna-se impossível o estabelecimento de qualquer processo retórico. Nenhum argumento se estabelece sem a aceitação do auditório ou apenas através do uso da força. Nessa última hipótese, sequer se poderia cogitar de um processo argumentativo, mas apenas de uma imposição de ideias, pois é da essência da argumentação a contraposição de teses, a dúvida, o questionamento.Já no caso da demonstração, se trabalha com uma pretensão de certeza, sendo totalmente irrelevante a forma como se dá a relação entre emissor e receptor de certa informação. e) DISCURSO COMPATÍVEL COM O AUDITÓRIO — deve-se estar atento para o fato de que o processo decisório está submetido a outras variáveis, além do simples exercício retórico. A própria argumentação sofre limitações de ordem institucional e cultural, de vez Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 11 que o sucesso desse tipo de prática pressupõe a aceitação da decisão por parte daqueles a quem ela se destina e, para tanto, torna-se necessário que o discurso utilizado esteja de acordo com as expectativas dos ouvintes. Daí, a relevância de uma incursão pelas con- dições psicológicas e sociais do ambiente onde se trava o processo argumentativo, a fim de buscar as razões que justificam o triunfo de determinada tese. E fundamental que o orador funde o seu discurso em premissas majoritariamente aceitas pelo auditório, mesmo que suas conclusões venham a ser diferentes daquelas nele dominantes. Esta exigência está intimamente ligada à permeabilidade da audiência ao discurso do orador. Sem que se estabeleça plenamente a comunicação entre os agentes, não há como persuadir o auditório da conveniência da proposta do orador. Em se tratando de argumentação, a receptividade do auditório é imprescindível e, para tanto, a tese proposta deve ser compatível com os valores dominantes naquele grupo cultural, mesmo que a sua eventual aceitação posterior resulte na mudança de tais valores. Em função disso, a argumentação é dotada de flexibilidade, podendo ser encurtada, ampliada ou mesmo modificada, a partir das reações daqueles a quem se destina o discurso. Por outro lado, quando se fala de demonstração, as conclusões são postas de modo imutável e sua essência independe de qualquer forma de manifestação da audiência. TEXTO DO PROFESSOR: NICODEMOS FABRÍCIO MAIA – PUBLICADO NA REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO – MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO – PROCURADORIA REGIONAL DO TRABALHO NO ESTADO D1O CEARÁ NOTAS SOBRE AXIARQUISMO, AXIOLOGIA E IDEOLOGIA O Dicionário OXFORD de Filosofia define AXIARQUISMO como ponto de vista que sustenta a ideia de ordem natural governada ou explicada por intermédio de valores. As coisas são como são. São assim porque devem ser e nem poderiam ser de outro modo. A referência é ao objetivismo axiológico. Neste caso, a interferência humana nessa esfera seria irrelevante na construção de valores, visto que eles seriam dados. Quanto às origens, fundamentos, desenvolvimento e parâmetros sistêmicos, são funções inerentes à AXIOLOGIA. É fato que o Direito contemporâneo namora com os valores. Obras monumentais foram consagradas ao estudo dos valores na Filosofia, como a de JOHANNES HESSEN, Filosofia dos Valores, e o clássico nacional de ARTUR MACHADO PAUPÉRIO, Introdução Axiológica ao Direito, cuja primeira edição é de 1977. Não se devem definir valores, é a lição deixada pelos clássicos. A expansão valorativa da Carta Política brasileira é incontestável. Proposições jurídicas constitucionais, de natureza prescritiva, cedem espaço às axiológicas. Tudo isto tem sérias implicações na teoria da interpretação jurídica e sua paradoxal exigência, a neutralidade reclamada pela Ciência do Direito. O mundo natural está coberto de valores e o homem éum animal axiológico e ainda essencialmente hermenêutico, como Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 12 produto da natureza que é, tudo abalizado por HUSSERL e HEIDEGGER. É notável que a condição humana tenha como eixo central a consagração de valores fundamentais, arquétipos da existência terreal, por exemplo, o valor à vida, o desapreço e à fuga da morte, o amor ao sexo e a sanha pelo poder. Vem dos gregos a expressão PROAÍRESIS que quer dizer, segundo ARISTÓTELES, a escolha racional de uma ação pela avaliação de seu valor ético. Para PLATÃO esse signo remetia a princípios pelos quais se guiam as ações éticas e políticas. Já se sabe que o homem é um animal axiológico, um ser hermenêutico e agora é visto como animal social e político. Diante dessas afirmações indaga-se: o fenômeno processual da imparcialidade do julgador seria uma quimera? O Direito repousa sobre bases sociais verdadeiramente axiológicas. O intérprete do Direito estaria livre de suas convicções, crenças e valores? Comunga-se, como ZAFFARONI, com a definição de que “o juiz asséptico, imparcial, objetivo ou incondicionado é uma impossibilidade antropológica.” É na argumentação dialética que os valores vêm à luz. A verdade jurídica é puramente discursiva. O discurso somente vale dentro de contextos sociais. O debate tudo esclarece e leva ao consenso, base do contratualismo hodierno. O homem é corpo, mente e linguagem, já se disse alhures. O discurso dialógico é fundamental no processo judicial. Temos, neste ponto, uma forte vinculação entre axiologia jurídica e a semiótica do Direito da qual o intérprete não pode fugir. Invoca-se no contexto hermenêutico atual a chamada SOPHROSÝNE que, segundo MARILENA CHAUÍ, vem de SOPHRONÍZO que significa: tornar temperante, moderado, prudente, capaz de conter desejos, impulsos, paixões e de SOPHRONÉO que remete à sobriedade, temperança e modéstia. Não se pode abdicar de valores no processo de compreensão, interpretação e aplicação do Direito, pois eles formam a base da condição humana. O hermeneuta deve pautar sua formação nas chamadas virtudes cardeais, dentre as quais, destacam-se: a justiça, a sabedoria, a prudência e a coragem. Coragem de criar, de mudar, de ousar, de ficar na história. A razão é uma força criadora. Só o justo ficará em memória eterna. Toda tibieza será castigada! Acredita-se que os homens recebem e transmitem valores as gerações futuras. Parte desses valores é dada e nunca se deve saber de onde vem o que se sabe, dizia NIETZSCHE. A outra parte é construída e abre o caminho para onde vamos (relativismo axiológico). É também como base nos valores que criamos nossas ideologias. Crê-se que ainda que uma medida de valores é atribuída as nossas necessidades e outra as estimativas humanas. As estimativas baseiam-se em cálculos. Cálculos exigem compreensão e ponderação. Valores se chocam e valores dividem a humanidade. É indubitável também que o homem é um ser ideológico. Vivemos segundo nossas ideologias. Ideologias se constroem com base em valores. O Direito tem raiz ideológica. Para NIETZSCHE, o homem é um animal múltiplo, mentiroso, falso e impenetrável, sinistro e amedrontador para todos os outros animais por sua inteligência e astúcia. Duras palavras! Todos os elementos analisados participam, em proporções variadas, dessa mistura que se apresenta diariamente nos tribunais. Para CARDOZO, não há um só intérprete que não tenha participado de seu preparo. Os elementos não se misturam por acaso, algum princípio, ainda que não declarado, não articulado e inconsciente, pauta o resultado dessa infusão. Sempre há uma escolha calculada em valores. As forças conscientes podem ser classificadas e são reconhecidas como princípios que orientam condutas. É em razão dessas forças inconscientes que o intérprete mantém a coerência consigo e a incoerência com o Outro. É também nessa configuração mental que cada solução jurídica encontra seu Av. Dom Luís, 911, Meireles Fortaleza-Ceará – CEP 60160-230 Tel. (0xx85) 3461-2020 / FAX (0xx85) 3461.2020 Ramal 4074 E-mail: fc@christus.br 13 contexto de aplicação e permanência. O Direito é, nesse cenário, a arte da prudência, da moderação e da modéstia!
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