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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS Lenora de Beaurepaire da Silva Schwaitzer DESMISTIFICANDO O AI2 A recriação da Justiça Federal a partir da visão dos bacharéis em Direito Orientador: Prof. Dr. Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos Rio de Janeiro 2017 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV Schwaitzer, Lenora de Beaurepaire da Silva Desmistificando o AI2 : a recriação da Justiça Federal a partir da visão dos bacharéis em direito / Lenora de Beaurepaire da Silva Schwaitzer. – 2017. 259 f. Tese (doutorado) – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Orientador: Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos. Inclui bibliografia. 1.Justiça Federal. 2. Direito constitucional - Brasil. 3. Intervenção estatal. 4. Corporativismo. 5. Brasil. Supremo Tribunal Federal. I. Mattos, Marco Aurélio Vannucchi Leme de. II. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas. Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. III.Título. CDD – 341.256 À constelação masculina ao meu redor: meu pai, inspiração nessa jornada histórica, meus dois irmãos, de sangue e de coração, meu companheiro de vida e de profissão e meu bebê, que me faz muita falta. AGRADECIMENTOS Esta tese é resultado da ações de muitas pessoas a quem devo meus sinceros e profundos agradecimentos a: Luciana Heymann, que sempre se mostrou solidária; Marco Aurélio Vannucchi, que me forneceu valiosas referências para apoiar minha tese, que foi sempre extremamente cuidadoso com seus comentários ao meu trabalho e que confiou na minha capacidade de concluí-lo, quando eu mesma não mais a tinha; Eloiza Rocha Pereira, querida amiga, que me brindou com a melhor fonte que poderia obter para orientar minha pesquisa; Maria Alice Gonzalez Rodriguez, Claudia Maria Pigozzo, Eliane Maria Tristão, Elisabeth Guercio, José Eduardo da Silva Queiroz e Maria Aparecida de Assis Marks, que muito me auxiliaram na obtenção de documentos arquivísticos e bibliográficos; Maria da Conceição Cardoso Panait e Débora Cordeiro da Costa, amigas que sempre me estimularam a dar continuidade a minha pesquisa, mesmo quando estive doente; Nívia Ferraz e Ricardo Horta, que auxiliaram na impressão de meu trabalho; Jadir Cabral Rodrigues, que diariamente me apoiou em minhas jornadas acadêmicas; Ana Paula Schwaitzer, que me auxiliou com o meu abstract; Sergio Schwaitzer, que leu todo o meu trabalho; Vera de Beaurepaire Rohanv, que compreendeu os desafios que eu enfrentei e que me apoiou em todos os momentos; Sem o suporte de todos, este trabalho não existiria. Após 30 anos, extinta que foi pela Carta de 1937, ressurge renovada a Justiça Federal de primeira instância, defendida por uns, combatida por outros e sob a indiferença de muitos [...] Jorge Lafayette Pinto Guimarães Juiz Federal do Estado da Guanabara 1967 RESUMO Tese que reflete acerca da reforma do Poder Judiciário e, particularmente, sobre a reinstalação da Justiça Federal de 1a instância através do Ato Institucional no 2, de 27 de outubro de 1965. Refaz a trajetória da instituição desde sua criação em 1890, perpassando pela extinção em 1937 e utiliza, como elementos centrais de análise, as propostas de reforma apresentadas ao Ministério da Justiça para elaboração de anteprojeto de emenda constitucional por determinação do Presidente da República. Identifica os interesses das associações de advogados, da Fundação Getúlio Vargas e do próprio Judiciário, associa a recriação do órgão com a denominada “crise do STF”, intensificada a partir da Constituição Federal de 1934 e conclui que a Justiça Federal ressurge para dar conta do aumento das ações que envolvem interesses de um Estado que cada vez mais intervém no domínio econômico e que ocorre em paralelo com a reforma administrativa empreendida para aumentar a arrecadação e melhorar a fiscalização das atividades estatais. PALAVRAS CHAVE: Justiça Federal. Ato Institucional no 2. intervencionismo estatal. Corporativismo. “crise do STF” ABSTRACT This thesis reflects on the reform of the Judiciary and, particularly, on the reinstallation of the first instance of the Federal Court through the Institutional of the Act No. 2 of October 27, 1965. It re-traces the institution's trajectory since its inception in 1890 through its extinction in 1937 and uses, as central elements of analysis, the proposals of reform presented to the Ministry of Justice for elaboration of constitutional amendment draft by determination of the President of Brasil. It identifies the interests of lawyers' associations, Fundação Getúlio Vargas and the Judiciary itself, associates the re-creation of the body with the so- called "STF crisis", intensified since the Federal Constitution of 1934 and concludes that the Federal Justice resumes to account for the increase in the suits involving the interests of a state that is increasingly involved in the economic field, and which takes place in parallel with the administrative reform undertaken to increase revenue and improve oversight of state activities. KEY WORDS: Federal Justice. Institutional Act no. 2. state intervention. corporativism. "STF crisis" SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................ 10 2 CONTEXTO HISTÓRICO-POLÍTICO E ECONÔMICO EMBASANDO A EXISTÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL .......................................................... 21 1.1 CRIAÇÃO ATRAVÉS DA CONSTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE 1890 ............. 23 1.1.1 Judiciário como um dos quatro poderes do Império ................................ 24 1.1.2 Da escravidão ao trabalho livre ................................................................... 28 1.1.3 Ideais progressistas: república, democracia e federação ........................ 29 1.1.4 Justiça Federal e o Governo Provisório ..................................................... 31 1.1.5 Justiça Federal na Constituição Federal de 1891 ...................................... 36 1.2 JUSTIÇA FEDERAL NA PRIMEIRA REPÚBLICA .......................................... 40 1.2.1 Entraves para a atuação da Justiça Federal .............................................. 41 1.2.2 Crise econômica e política com reflexo na Justiça Federal ..................... 42 1.2.3 Reforma Constitucional de 1926 ................................................................. 46 1.3 JUSTIÇA FEDERAL NO GOVERNO PROVISÓRIO DE 1930 ....................... 47 1.3.1 Reforma legislativa e projeto constituinte .................................................. 51 1.4 JUSTIÇA FEDERAL NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1934 ............... 53 1.4.1 Reforma do Judiciário ..................................................................................54 1.5 JUSTIÇA FEDERAL NO ESTADO NOVO ...................................................... 57 1.6 DA CONSTITUIÇÃO DE 1946 AO ATO INSTITUCIONAL No 2 DE 1965 ..... 60 2 O ADVOGADO, SUAS ASSOCIAÇÕES DE CLASSE E A REFORMA DO JUDICIÁRIO ................................................................................................... 69 2.1 O CURSO JURÍDICO E O BACHARELISMO NO BRASIL ............................ 70 2.2 O ADVOGADO E SUAS ASSOCIAÇÕES DE CLASSE ................................. 71 2.2.1 Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB ................................................ 72 2.2.2 Ordem dos Advogados do Brasil – OAB .................................................... 80 2.2.3 Associação dos Advogados de São Paulo - AASP ................................... 87 2.3 O ADVOGADO, SUAS ASSOCIAÇÕES E O PODER JUDICIÁRIO .............. 89 2.3.1 Manifestação individual de advogados ...................................................... 91 2.3.2 A “crise” do Judiciário em eventos de classe ........................................... 97 1.1.6 Pareceres e anteprojetos das associações de classe dos advogados . 104 2.4 REFORMA DO JUDICIÁRIO E O INTERESSE DOS ADVOGADOS ........... 110 3 MESA REDONDA NA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ........................... 115 3.1 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ................................................................. 117 3.2 INSTITUTO DE DIREITO PÚBLICO E CIÊNCIA POLÍTICA - IDPCP .......... 123 3.2.1 MESA REDONDA SOBRE REFORMA DO JUDICIÁRIO ........................... 130 3.3 PARTICIPANTES DA MESA REDONDA ..................................................... 131 3.3.1 Membros do IDPCP ..................................................................................... 132 3.3.2 Participantes convidados pelo IDPCP ...................................................... 137 3.4 DO ENCAMINHAMENTO DO EVENTO ....................................................... 143 3.4.1 Estrutura organizacional do Judiciário ..................................................... 145 3.4.2 Recriação da Justiça Federal ..................................................................... 152 3.4.3 Criação de uma Justiça Administrativa e Fiscal ...................................... 154 3.4.4 Provimento do cargo de juízes dos tribunais superiores ....................... 156 3.4.5 Resultado obtido na mesa redonda .......................................................... 158 3.5 REFORMA DO JUDICIÁRIO E O INTERESSE DA FGV ............................. 159 4 REORGANIZAÇÃO DA JUSTIÇA NA VISÃO DO JUDICIÁRIO ................. 165 4.1 O JUDICIÁRIO FEDERAL NA REPÚBLICA ................................................. 167 4.2 DESEMBARGADORES E FEDERALIZAÇÃO DA JUSTIÇA ........................ 171 4.2.1 II Conferência Nacional de Desembargadores ......................................... 172 4.3 TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS E REFORMA DO JUDICIÁRIO ..... 179 4.3.1 O Tribunal Federal de Recursos ................................................................ 179 4.3.2 O desafio organizacional do TFR .............................................................. 180 4.4 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E SUA “CRISE” ..................................... 183 4.4.1 Competência do STF .................................................................................. 183 4.4.2 STF em debate – 1942 a 1965 .................................................................... 185 4.5 COMENTÁRIOS À REFORMA PROPOSTA EM 1965 ................................. 191 4.5.1 Perfil dos ministros que se manifestam sobre o projeto ........................ 192 4.5.2 O projeto de reforma do Governo Militar .................................................. 193 4.5.3 A reforma do STF a partir da ótica de seus membros ............................. 195 4.6 A PROPOSTA DE COLOMBO DE SOUSA .................................................. 197 4.6.1 Perfil biográfico de Colombo de Sousa .................................................... 198 4.6.2 Colombo de Sousa e seu projeto para o Judiciário ................................ 198 4.7 REFORMA DO JUDICIÁRIO E O INTERESSE DOS MAGISTRADOS ....... 201 5 CONSIDERAÇÕES ...................................................................................... 208 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 221 APÊNDICE A – Comparação Constituição Provisória e de 1891 ...................... 235 APÊNDICE B – Processos do arquivo do TRF2 .................................................. 240 APÊNDICE C – Constituição de 1891 e Reforma de 1926 .................................. 245 APÊNDICE D – Decretos entre 15/11 a 03/12/1889 ............................................. 249 APÊNDICE E – Constituição de 1946 e projeto de 1965 .................................... 252 10 1 INTRODUÇÃO Esta tese objetiva compreender as razões e o contexto que possibilitaram a reinstalação da Justiça Federal de 1a instância1, em 1965, mais precisamente por meio do Ato Institucional no 2, de 27 de outubro de 1965 – AI2. Ela é fruto da curiosidade de uma analista judiciária do Tribunal Regional Federal da 2a Região – TRF2 que tomou posse na Justiça Federal da seção judiciária do estado do Rio de Janeiro, antes mesmo de se tornar bacharel em Direito, em 198. Não há como precisar a época em que a trajetória da Instituição começou a me interessar, mas, em determinado momento, o fazer diário de processamento e análise de ações judiciais foi superado pela necessidade de identificar o caminho trilhado pelo Órgão ao qual eu ainda hoje pertenço. Na qualificação dessa tese, revelei meu fascínio pelo conteúdo do prédio secular no bairro de São Cristóvão, que já acolheu uma fábrica de sabonetes e que hoje abriga os quase dois milhões de processos do arquivo institucional, intermediário e permanente. Ao folhear alguns desses processos que ali se encontram, conscientizei-me que possuía um questionamento antigo, que remontava aos meus primeiros anos no Judiciário, acerca da origem da Instituição que havia decidido tantas questões – muitas delas extremamente controvertidas - ao longo de sua existência. Ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC/FGV, propus-me a buscar as razões da extinção da Justiça Federal em 19372, malgrado reconhecesse a dificuldade do trabalho, já que deveria me basear em fontes primárias. 1 Como a Justiça Federal sempre possuiu duas instâncias e que somente a primeira foi extinta em 1937, permanecendo o STF com a competência para julgar os recursos ordinarios nas ações de interesse da União, o trabalho é sobre a sua reinstalação em 1965. Assim, quando houver menção à Justiça Federal, compreende-se que se trata de sua 1a instância. 2 A Justiça Federal foi organizada pelo Decreto no 848, de 11 de outubro de 1890 e, por meio do decreto-lei no 6, de 16 de novembro de 1937, foi declarada a sua extinção. 11 A pesquisa me fez compreender que um ato de demonstração de força política, como um decreto emanado por um Governo Provisório, a outorga de uma constituição ou a edição de um ato institucional, tem que ser examinado para além da letra da lei, pois decorre de um contexto autoritário que deve ser delimitado e compreendido. Assim como a extinção da Justiça Federal, que ocorreu em um momento de centralização do poder, como foi o Estado Novo, causava espanto – e, por que não admitir, um certo constrangimento – a recriação da Justiça Federal por meio de um ato institucional que determinou a eleição indireta, a intervenção federalnos Estados, a suspendeu garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por tempo certo. Esse ato suspendeu, ainda, a apreciação judicial de atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução e pelo Governo Federal e que extinguiu os partidos políticos3. Ao efetuar a pesquisa no banco de teses e dissertações do IBICT vi que a busca com os termos “Justiça Federal” e “história” retornou apenas cinco documentos – um desses resultados é a minha dissertação –, e que, com a combinação dos termos “Justiça Federal” e “criação”, obtive somente doze documentos, sendo que nenhum deles estava relacionado ao tema da pesquisa. Com esse magro resultado, compreendi que a busca por elementos para conferir base ao meu trabalho deveria se dirigir para o contexto em que a recriação se operou, ou seja, para os primeiros anos do regime militar, se eu pretendesse encontrar os motivos para a reinstalação da Justiça Federal. Em 2012, quando foi apresentado o projeto ao CPDOC, a hipótese apresentada foi a de que a recriação da Justiça Federal era fruto da força coercitiva do Poder Executivo que, durante o regime militar, “encarnaria o próprio Estado” (BOSCHI; LIMA, 2002, p. 197). No entanto, no final de 2014 tive acesso, por acaso, a uma fonte que mudou o curso da pesquisa, fonte esta que foi fornecida pela então diretora da área de gestão documental do Conselho da Justiça Federal, Eloiza Rocha Pereira. Esse documento provinha diretamente do Arquivo Nacional, em 3 A recriação da Justiça Federal só ocorreu através do Ato Institucional no 2, de 27 de outubro de 1965. 12 Brasília: um ofício datado de 1o de outubro de 1965 do então ministro da Justiça Milton Campos (1965), encaminhando projeto para emenda constitucional para reforma do Judiciário. Esse documento era resultado de consulta por ela efetuada para obter mais dados sobre o projeto de lei que deu origem à Lei no 5010, de 30 de maio de 1966, que cria o Conselho da Justiça Federal. Sabendo sobre minha tese, Eloiza repartiu comigo, eufórica, sua descoberta, que servia mais para a minha pesquisa do que para a dela. Logo que procedi a leitura do documento, reconheci que o mesmo fornecia duas informações extremamente relevantes e que mudaram o enfoque do meu trabalho: que na abertura do ano legislativo de 1965 o presidente Castelo Branco4 requereu medidas para reforma do Judiciário com o restabelecimento da Justiça Federal, e que foi constituída uma comissão para a redação de uma proposta de emenda constitucional e que o documento foi elaborado com base em sete outros documentos que tinham sido encaminhados ao Ministério da Justiça. Após perceber que existiam diversos registros documentais que auxiliariam a construir a tese, procurei nos inúmeros periódicos especializados em Direito todos os artigos que mencionassem a reforma do Judiciário. Mais uma vez, fui surpreendida com a variedade de posicionamentos e com as ramificações existentes em relação ao tema. Identifiquei que os desafios enfrentados à época eram múltiplos. Além do óbvio problema de excesso de ações e de recursos, tanto ordinários quanto extraordinários, submetidos ao STF, que eram a fonte para o que foi denominada como “a crise do Supremo Tribunal”, havia questionamentos que envolviam temas nas áreas dos direitos Administrativo e Tributário e dúvidas processuais relativas a ações que envolviam aqueles temas, já que ainda não havia código de processo tributário ou código de processo administrativo. O que existia à época eram práticas reiteradas de autoridades administrativas e entendimentos judiciais, que a maior parte das vezes não estavam pacificados, e que ocasionavam divergência na aplicação das normas específicas nos processos, seja na via administrativa, seja na via judicial. 4 Como a maior parte da biografia apresentada nesta tese é extraída do Dicionário Histórico- Biográfico Brasileiro, do CPDOC, optou-se por grafar os nomes pessoais da mesma forma como a existente nos verbetes 13 Esse conjunto de documentos me permitiam perceber que, diversamente do que acreditava quando iniciei a pesquisa para a minha tese, a recriação da Justiça Federal pelo AI2 não era fruto exclusivo da força coercitiva do Executivo, mas resultava de uma longa discussão em torno da reforma do Judiciário que se intensificou nos primeiros anos da década de 1960. Enquanto me apropriava do conteúdo dos documentos coletados, ia se dissipando para mim o caráter misterioso que envolvia a recriação da Justiça Federal e que, em minha percepção, impediu que no ano de 2015 todo o Judiciário Federal deixasse passar a oportunidade de celebrar de forma grandiosa o seu jubileu de ouro. Na realidade, o que observei é que no ano de 2016 o Conselho da Justiça Federal – CJF comemorou de forma singela os cinquenta anos da Lei no 5010, que organiza a Justiça Federal de primeira instância, e que neste ano de 2017 surgiram algumas iniciativas comemorativas da reinstalação da Justiça Federal, com a criação de logos e cerimônias dispersas evocando a data, fazendo com que os atos de organizar e instalar fossem mais relevantes do que o de recriar. E é isso o que se tem em mente ao efetuar esta tese: trazer a luz as discussões que antecederam a recriação da Justiça Federal e dissipar a equivocada crença de que a recriação da Justiça Federal é fruto exclusivo de um ato institucional, e esclarecer que o ato foi precedido de um longo debate ocorrido em diversos nichos em que transitam bacharéis de Direito. A pesquisa partiu da percepção de Elias (1994) de que a formação do Estado Nacional ocorre de forma gradual e dinâmica, em conformidade com o contexto em que é constituído, durante um período de longa duração e cujos resultados não têm como ser previstos ou antecipados na totalidade por seus membros, mas que a retrospectiva histórica desses fatos possibilita a delimitação de marcos para, a partir dos mesmos, extrair elementos fundamentais para compreender como aquele Estado foi sendo formado. Como o Poder Judiciário integra o Estado, nada mais natural do que também delimitar marcos para compreender como foi concebida a organização do Poder Judiciário enquanto se formava o Estado Nacional. 14 Por esse motivo, a existência e a atuação da Justiça Federal durante a República se tornou a linha mestre para esta pesquisa. Ter muito claro o contexto e as razões para a sua criação e o que motivou sua extinção eram essenciais para esclarecer porque a Justiça Federal foi recriada durante o governo Castelo Branco. O que se objetiva, primordialmente, é a desmistificação da natureza coercitiva da recriação da Justiça Federal através do AI2 e revelar que sua recriação pelo Ato Institucional não resulta de um interesse unilateral do governo militar, mas que reflete a anseio de um determinado grupo social e político, que possuía ideias específicas acerca da estrutura organizacional da Justiça. No caso deste trabalho, o objetivo deve ser alcançado através do mapeamento das visões dos bacharéis em Direito acerca da forma de organização do Poder Judiciário em locais específicos e dentro de um determinado momento da história republicana. Em assim o fazendo, busco identificar tanto a “ordem” quanto a “mudança” social e “[...] trazer a lume as dimensões históricas de uma estrutura social” (BENDIX, 1996, p. 48). Conforme bem enfatizado pelo autor, é preciso, antes de se indagar o percurso das mudanças sociais, organizar os fenômenos de mudanças e saber como ocorreram, a partir do relacionamento de conceitos e de teorias a favor das descobertas que venham a serrealizadas. Nesta tese, como se percebeu que, com exceção de Castelo Branco, todas as visões e os discursos acerca da reforma da Justiça emanaram de bacharéis em Direito5, a ênfase foi no estudo de uma classe que “[...] a inteligência sociológica brasileira conferiu pouca importância” (ABREU, 1988, p. 20), mas que Abreu (1988) em seu “[...] levantamento bibliográfico preliminar revelou a importância dos bacharéis na construção do Estado Nacional” (ABREU, 1988, p. 24). Mattos (2011, p. 135), por seu turno, sustenta que “[...] as informações bibliográficas demonstram o engajamento dos dirigentes da OAB e de alguns de seus conselheiros federais mais ilustres na campanha de desestabilização do governo Goulart e na ditadura instaurada em 1964”. Diz que “[...] seria preciso aprofundar a compreensão da participação dos bacharéis na instauração da ditadura 5 Neste trabalho muitas vezes haverá menção apenas ao bacharel e, neste caso, será sempre aquele graduado em Direito 15 militar” e é esta participação que será estudada, a partir de múltiplos cenários constituídos em um período predeterminado, qual seja, no período compreendido entre o Estado Novo e a edição do AI2. Convém grifar que, embora o intuito fosse restringir o trabalho ao período compreendido entre a proposta de reforma da Justiça do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, em 22 de outubro de 1963 e os debates ocorridos, em agosto de 1965, no Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB para a elaboração de parecer acerca da aludida reforma, essa pretensão não se revelou viável. Isto porque a pesquisa denunciou a necessidade de se retornar ao período do Estado Novo para mapear a origem do motivo da reinstalação da Justiça Federal que, em minha perspectiva e, ironicamente, coincide com o de sua extinção, conforme será esclarecido e demonstrado ao longo deste trabalho. O trabalho está centrado na visão dos bacharéis e nas propostas emanadas por três6 segmentos distintos: os advogados e suas associações de classe, a Fundação Getúlio Vargas - FGV e os magistrados dos tribunais. A justificativa para efetuar tal divisão é porque cinco dos sete7 documentos utilizados pela comissão designada pelo ministro da Justiça haviam sido produzidos por entidade coletiva: dois foram formulados por associação de classe – Conselho Federal da OAB e AASP –, um era de autoria de autarquia de ensino e pesquisa – 6 Esses segmentos não são os únicos que podem ser estudados. No decorrer da pesquisa identificou-se ao menos mais dois campos possíveis de análise, mas que não foram extensamente mapeados porque abriam uma nova linha de interesse na já muito ramificada pesquisa. Ademais, a escolha efetuada foi a de centrar nos documentos que embasaram o projeto de emenda constitucional oferecido pelo Ministério da Justiça que, em momento algum mencionam documentos provenientes desses campos. Um dos campos é o Poder Legislativo, que discute a reforma do Judiciário durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1946, onde se apresentam três projetos de emendas constitucionais para a reforma da Justiça, que aprova a emenda constitucional no 16, de 26 de novembro de 1965 e a Lei no 5010, de 30 de maio de 1966 e que aprova a Constituição de 1967. Outro local que pode ser estudado com foco na reforma da Justiça e reinstalação da Justiça Federal é o próprio Poder Executivo, que cria diversas comissões para estudar a reforma administrativa e a reforma da Constituição, que inclui a reforma da Justiça. Algumas dessas iniciativas, embora não sejam examinadas mais profundamente nesta tese, são mencionadas no trabalho, porque são relevantes para a construção da linha argumentativa aqui desenvolvida. 7 As demais propostas são de autoria dos desembargadores Colombo de Sousa e Frederico Marques, propostas essas que serão descritas no capítulo do Judiciário, ficando ali incluídas devido ao perfil dos proponentes. 16 FGV – e dois eram dos tribunais superiores – STF e TFR8. E o exame desses documentos revelaram que os produzidos pelas associações dos advogados poderiam ser apreciados em conjunto, assim como os provenientes dos tribunais superiores eram complementares e também poderiam ser agrupados em uma mesma seção, apesar de cada um dos cinco possuir um foco de interesse divergente dos demais9. Estava claro, no entanto, que os interesses das associações de classe estavam mais próximos do interesse da entidade de ensino do que dos tribunais. De igual forma, a legitimidade das manifestações mencionadas no trabalho possuem bases distintas. Enquanto que as associações de classe se valem do corporativismo para propor seus projetos de reforma da Justiça e a FGV se sustenta como um think tank10, os advogados lastreiam seus discursos11 no profissionalismo e e os magistrados, em sua toga, ou seja, na experiência de quem está imerso nos fazeres diários da Justiça, no ethos profissional12, que embora guarde estreita semelhança com o profissionalismo do advogado, está também associado à meritocracia que distingue os magistrados dos advogados. Conforme enfatizado com propriedade por Bonelli (2002), Cada uma dessas carreira tem seu perfil social, sua história profissional e suas formas distintas de se relacionar com o Estado, embora se vinculem umas às outras pela proximidade e pela competição, diferenciando-se de outras profissões. Os elos que ligam o mundo do Direito não são consequências apenas de se ter a mesma formação de bacharel. Eles são reforçados pelos laços construídos e pelas tensões partilhadas na busca cotidiana de soluções para os dilemas da ordem jurídica e da segurança pública (BONELLI, 2002, p. 16) Porém, de uma forma geral, o conceito de profissionalismo aqui utilizado, seja em relação aos advogados ou aos magistrados, está associado a um processo 8 No processo administrativo (BR RJANRIO 0.0.28) localizado que possui uma cópia do parecer e projeto da comissão designada pelo ministro da Justiça também possui cópia de alguns Tribunais de Justiça estaduais que não foram analisados, mas que são aqui mencionados para auxiliar pesquisas futuras em relação ao tema 9 O interesse de cada segmento é objeto de destaque ao final de cada seção 10 O conceito de think tank será fornecido mais adiante 11 A questão de discurso e da análise de sua intencionalidade não tem como ser aqui enfrentadas. Sinale-se, apenas, que o conceito aqui adotado guarda sintonia com o apresentado por Fairclough (2007, p. 64) de que “o discurso é uma prática não apenas de representar o mundo, mas de fazê-lo significar, constituindo e construindo o mundo com base em significados”. 12 Cf Bonelli (2002) 17 histórico de longa duração para o reconhecimento de uma expertise para o exercício de uma ocupação e através do qual se estabelece relações no mundo do trabalho. De acordo com Bonelli (2002), o profissionalismo valoriza o conhecimento abstrato, a obtenção de diploma de nível superior, o controle do mercado pelos pares, a autonomia para realizar diagnósticos e a prestação de serviços especializados. O conceito de corporativismo utilizado neste trabalho é o de um sistema integrado por um número limitado de entidades para representação exclusiva de interesses de uma determinada categoria social, que é legitimado pelo Estado para regulamentar a profissão e apresentar reivindicações das entidades constituintes do sistema. Tal conceito foi desenvolvido a partir das oito características identificadas por Mattos (2016, p. 508). Já o conceito de think tank13 aqui adotado é o de organização que, independente de sua forma jurídica ou de fonte de financiamentorealiza “[...]pesquisas sobre políticas públicas, com a finalidade de aconselhar os policy makers, influenciar a tomada de decisão política e divulgar para a sociedade os resultados obtidos em seus estudos e pesquisas” (SOARES, 2009, p.11). Acredita-se que trazer à tona as diversas correntes defendidas em relação à reforma do Poder Judiciário permite que se desvende não apenas os fatores preponderantes para o destino da Justiça Federal, como também pode abrir a oportunidade de sistematizar o estudo sobre a construção do Estado Nacional brasileiro a partir de uma perspectiva específica: a dos bacharéis em Direito. Embora as fontes que discutem a reforma da Justiça estejam limitadas ao período entre o Estado Novo e o governo Castelo Branco, é imperioso esclarecer que a necessidade de entender a finalidade da Justiça Federal obrigou a retornar, ainda que rapidamente, à primeira Constituição brasileira para diferenciar o Judiciário no Regime Imperial daquele que se instala na República. Embora sem se 13 Observe-se, por relevante, que McGann (2012) inclui a FGV entre os think tanks brasileiros. Além disso, Dreifuss (2006, p. 84) já incluía a FGV entre os think tanks brasileiros. 18 aprofundar em nenhum ponto específico, refaz-se os passos imprimidos durante o mestrado para se refletir novamente acerca da extinção da Justiça Federal. As fontes adotadas para construir o contexto histórico que se relaciona mais diretamente com a trajetória da Justiça Federal foram basicamente Carvalho (1990, 1998, 1999, 2003, 2011), Camargo (1992), Fausto (2010), Ferreira e Gomes (2014), Ferreira e Sarmento (2002), Gomes (1980), Leal (1975), Levy (1980), Maluf (1986), Pandolfi (1999, 2007), Reis (2014) e Reis, Ridenti e Motta (2014). Outra fonte utilizada no trabalho para descrição da trajetória da Justiça Federal durante a Primeira República são os processos já tratados do arquivo do TRF214, que robustecem a ideia do papel desempenhado pela Justiça Federal durante a Primeira República. Além disso, o trabalho se baseia em diversos documentos obtidos no arquivo nacional, tanto em sua sede no Rio de Janeiro quanto em Brasília, em atas do Conselho Federal da OAB, do IAB, da AASP, do TFR e do STF, além de diversas notícias de jornal e de um grande número de artigos publicados em periódicos especializados em Administração e Direito. Como a grande maioria desses documentos nunca foram utilizados, ao menos segundo a percepção que se chegou a partir da pesquisa realizada, no decorrer do trabalho, o leitor irá observar a preocupação na descrição detalhada de seu conteúdo. Entretanto, ao final de cada seção, elabora-se um resumo, não apenas do conteúdo das fontes apresentadas, mas também as conclusões a que se chega quanto ao interesse de cada segmento analisado. Um ponto relevante é que, embora sejam apresentados dados biográficos de diversas personalidades, somente se considerou relevante efetuar uma abordagem prosopográfica quanto aos integrantes da mesa redonda do IDPCP. A prosopografia ou biografia coletiva auxiliar no trabalho ao efetuar o “desvelamento dos interesses mais profundos que se considera residirem sob a retórica da política” (STONE, 2011, p.115), desnuda o funcionamento da máquina política e auxiliaa na 14 Por força de resolução do TRF2, os processos de guarda permanente julgados pela Justiça Federal do Rio de Janeiro integram o fundo daquele tribunal 19 identificação daqueles que a controlam. No caso daqueles integrantes, percebeu-se diversos pontos em comum entre eles que, com o uso de um estudo prosopográfico, puderam ser destacados. Outra questão que merece destaque é que há opção do uso do tempo verbal no presente, com exceção de algumas passagem desta introdução, ou quando se descreve os dados biográficos dos produtores dos documentos e ainda nas considerações finais. Esse recurso, embora possa causar estranheza inicial, é uma escolha consciente que tem o intuito de conferir maior proximidade do leitor às fontes e ao momento histórico que está sendo relatado e após perceber o uso de diversos tempos verbais na redação da tese. O trabalho está dividido em seis seções15, sendo que esta é a primeira delas. Ela tem o objetivo de introduzir o tema ao leitor, tecer esclarecimentos acerca da finalidade, da metodologia, das fontes e acerca de sua estruturação. A segunda seção efetua uma breve retrospectiva histórica desde a declaração da Independência do Brasil, e possui a finalidade de esclarecer o motivo da criação da Justiça Federal após a proclamação da República e vai até o dia 1o de outubro de 1965, data do ofício do ministro da Justiça que encaminha anteprojeto de emenda constitucional para a reforma do Judiciário, no qual está inserida a redação do art. 105 e que foi utilizada no AI2. A terceira seção emerge no campo dos advogados, esclarecendo quanto à criação dos cursos jurídicos no país e a instituição do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB e de seu Conselho Federal. Como o ofício de Milton Campos menciona projeto da Associação dos Advogados de São Paulo – AASP, tal instituição também é apresentada. Nesta seção são descritas as manifestações individuais dos advogados e aquelas proferidas em eventos de classe e no seio de suas associações, que resultam em projetos de reforma do Judiciário. 15 A ABNT NBR 14724, que dispõe sobre apresentação de trabalhos acadêmicos, estabelece que os mesmos são divididos em seções primárias, secundárias e terciárias e não por capítulos. 20 A quarta seção contextualiza a realização de mesa redonda promovida no IDPCP para discutir a reforma do Judiciário em 1965, dando ênfase às ideias e ao perfil dos integrantes do evento, à finalidade tanto do IDPCP quanto da própria Fundação Getúlio Vargas – FGV, a fim de demonstrar que, em conformidade com o pensamento de Dreifuss (2006), a FGV atuava como think tank. A quinta seção foca em dois períodos distintos, sendo que o primeiro ocorre em 1962, quando é realizada a II Conferência Nacional de Desembargadores, evento onde se discute a proposta de federalização do Poder Judiciário constante no projeto de emenda constitucional formulado pelo deputado Nereu Gomes, em 1961. O segundo, envolve os meses que antecedem a edição do AI2, quando o STF, o TFR e o desembargador Colombo de Sousa apresentam seus projetos de reforma da Justiça. A sexta e última seção alinha todas as demais e tece considerações sobre o tema, com o intuito de demonstrar que a trajetória da Justiça Federal está marcada por atos emanados pelo Poder Executivo e em períodos em que há a exacerbação da figura do Chefe do Estado. Efetua também um paralelo entre a ativa participação dos bacharéis com a interferência efetuada por empresários, tecnoempresários e pelo capital transnacional identificada por Dreifuss (2006) para afirmar que a reestruturação ocorrida no Poder Judiciário em 1965 resulta de um projeto modernizante iniciado durante o Estado Novo, período histórico em que se observa iniciativas reiteradas de centralização do poder no Executivo, a crescente intervenção no domínio econômico, a criação de entidades autárquicas e o maior encargo tributário instituído para alimentar políticas econômicas e sociais. Espera-se com esta tese demonstrar que, da mesma forma como ocorreu na administração pública, a reforma do Poder Judiciário promovida pelo AI2, ao menos no que se refere à Justiça Federal de 1a e 2a instância integra um modelo a ser desenvolvido no regime militar, que visava atender o interesse dos empresários,dos tecnoempresários e do capital transnacional seguindo a mesma linha daquele desenvolvido por integrantes do IPES para a reforma da administração pública perpetrada naquele regime. 21 2 CONTEXTO HISTÓRICO-POLÍTICO E ECONÔMICO EMBASANDO A EXISTÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL Delineia-se aqui, em paralelo com o contexto histórico brasileiro, a trajetória da Justiça Federal, desde o período que antecedeu sua criação, através do Decreto no 510, de 22 de junho de 1890, passando pela sua extinção implícita promovida pela Constituição Federal de 10 de novembro de 1937, até a sua reinclusão entre os órgãos do Poder Judiciário por meio do art. 6o do Ato Institucional no 2, de 27 de outubro de 1965. O objetivo é realçar que todos os atos relacionados à sua existência são frutos de períodos históricos em que há a centralização do poder no Executivo. Deseja-se demonstrar é que apenas sua criação possui alguma justificativa formal, mas espera-se pontuar, a partir da descrição da conjuntura política, histórica e econômica do país, que tanto sua extinção quanto sua recriação – curiosamente ocorridas pela omissão ou inclusão dos Juízes Federais como um dos órgãos do Poder Judiciário - guardam estreita relação com a proposta de Estado Nacional que se almeja instituir naqueles períodos em que há a exacerbação dos poderes do Executivo. O período histórico longo, de mais de um século, obriga uma aproximação tangencial sobre questões extremamente relevantes para a consolidação do Brasil como nação16, mas a opção em percorrer tal caminho decorre da certeza de que tais considerações favorecem uma adequada abordagem do tema de pesquisa, que é a recriação da Justiça Federal através do AI2. Dessa forma, inicia-se por delimitar os fatores que propiciam a proclamação da República e que dão termo ao período imperial. Com isso, espera- se tornar evidente que a criação da Justiça Federal está estreitamente relacionada 16 Escravatura, federalismo, coronelismo, “política dos governadores”, “revolução constitucionalista”, integralismo, populismo, “movimento queremista”, são alguns dos pontos mencionados no trabalho, mas que não serão aprofundados, por se reconhecer a impossibilidade de se adentrar em cada um deles 22 com a absorção de atribuições que antes eram exclusivas do Imperador, quais sejam, a de mediador de conflito entre normas dispersas e muitas vezes conflitantes e também a de órgão de decisão quanto à prevalência dos interesses coletivos sobre os interesses particulares. A seguir, o enfoque está na atuação da Justiça Federal durante o período histórico denominado “Primeira República”, época em que ocorre um forte domínio das oligarquias na política nacional, e que assiste, sob a perspectiva da Justiça Federal, um início de busca por direitos de cidadania por meio do habeas corpus, instrumento amplamente utilizado para assegurar a liberdade individual. Demonstra- se, ainda, que decisões judiciais na Justiça Federal de 1a e 2a instância irão refletir na reforma da constituição em 1926, que restringe o alcance do habeas corpus, que delimita a atuação do Supremo Tribunal Federal e que prevê a criação de tribunais regionais federais para julgar os recursos nas ações de interesse da União, que até então era competência do STF. Depois, esclarece-se que, durante o Governo Provisório de 1930 até a instalação do Estado Novo há claramente o conflito entre duas posições distintas em relação ao Judiciário: de um lado, percebe-se as inquietações no tocante à falta de aparelhamento da Justiça Federal para atuar fora da capital dos Estados. Do outro lado, há a clara busca para solucionar o problema da influência oligárquica nas decisões do Judiciário e conferir autonomia ao magistrado. Como representante máximo do ideário procedimental está o ministro Artur Ribeiro, que reconhece a inviabilidade de se construir toda uma estrutura para o Judiciário federal e que defende a sua estadualização. Como defensor do fortalecimento do Judiciário, investindo-o como um todo com o manto federal está Oliveira Viana, que vê como solução para o problema nacional, e via de consequência para o Judiciário, a centralização das decisões políticas, a fim de fazer prevalecer o primado do interesse público sobre o privado. Segue-se com o pensamento nacionalista autoritário de Oliveira Viana, que é fortalecido pela visão constitucional antiliberal17 de Francisco Campos que, 17 Cf Santos (2006) 23 fundidos, possibilitam a compreensão das modificações empreendidas no Poder Judiciário através da Constituição de 1937, que extingue tanto a Justiça Federal quanto a Justiça Eleitoral e que retira do Supremo Tribunal Federal a soberania do reconhecimento de constitucionalidade de normas legais. Por fim, a proposta é delinear o cenário político e econômico existente após a queda do Estado Novo, demonstrando que a ruptura do equilíbrio entre os detentores do capital transnacional e as classes trabalhadoras subordinadas abalam a base estabelecida pelo populismo da década de 1950 e ensejam a ruptura do regime democrático e a edição, em 27 de outubro de 1965, do ato institucional que recria a Justiça Federal. 1.1 CRIAÇÃO ATRAVÉS DA CONSTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE 1890 O ponto de partida dessa parte do trabalho é a afirmação de Koerner (1998, p. 144) de que “[...] o advento da República resultou menos da força política organizada dos republicanos do que das tensões e conflitos criados sob a ordem política imperial” e objetiva demonstrar que é a posição central do Imperador o elemento catalisador tanto da proclamação da República quanto da criação da Justiça Federal. De acordo com Koerner (1998), esse eixo nodal do Imperador passa a ser elemento de repulsa para agentes políticos, que veem na federação e na república referências para a unificação de interesse de “[...] fazendeiros decepcionados com a Abolição, republicanos, militares e mesmo padres envolvidos na ‘questão religiosa’” (KOERNER, 1998, p. 146). E é a eliminação dessa figura nuclear da sociedade brasileira que deflagra a criação da Justiça Federal de 1a e 2a instância. Para comprovar tais argumentos, é preciso identificar, de início, a competência do Judiciário e a do poder Moderador durante o Império. A seguir, menciona-se a questão conflituosa do trabalho escravo e o impacto econômico provocado com a passagem gradual da escravatura para o trabalho livre. Por fim, e aproveitando assertiva de Comparato (2003, p. 12) de que ‘[...] a autêntica ideia republicana nunca medrou entre nós”, enfatiza-se a falta de clareza quanto a muitas das ideias progressistas que circulam nas décadas que antecedem a proclamação 24 da República e que servem como ponto de contato para a unificação de interesses distintos que resultaram na queda do regime. A partir desses elementos, pretende-se desenhar a competência da Justiça Federal de 1a e 2a instância como sucessora do poder Moderador, de forma a atuar como árbitra dos conflitos políticos e sociais, como solucionadora dos conflitos entre indivíduos e a administração pública e defensora dos preceitos constitucionais. O que se afirma, em síntese, é que, com o término do Império, é preciso redirecionar as atividades que até então são do poder Moderador, e que acabam passando para a órbita do Poder Judiciário federal. Com isso, o Judiciário, que durante o Império representa não mais do que uma “[...] mola da máquina administrativa”, no dizer do Visconde de Uruguai (1862, p. 261), passa a estar sujeito diretamente, não mais apenas às pressões políticas, mas também às intempéries e às oscilações econômicasno País. 1.1.1 Judiciário como um dos quatro poderes do Império De início, enfatiza-se que a Constituinte de 1823 determina a manutenção da aplicação das Ordenações do Reino, das Leis, dos Regimentos, dos Alvarás, dos Decretos e das Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal enquanto a estrutura legislativa nacional não estiver organizada18. Outro ponto relevante é que a Constituição brasileira de 1824 não observa o princípio de tripartição de poderes ou o sistema de freios e contrapesos previstos por Montesquieu (1982), que foram concebidos com o objetivo de assegurar a harmonia entre os poderes. Na Constituição de 1824, o Judiciário brasileiro figura como um dos quatro poderes do Império e incumbe ao Poder Moderador - e portanto ao Imperador, como chave de toda a organização política -, a manutenção da independência, do equilíbrio e da harmonia entre os demais poderes19. Com isso, deve-se pontuar que o Judiciário brasileiro, ou Poder Judicial, durante o império age como representante do poder imperial na aplicação de leis promulgadas pelos 18 Informação obtida em Vianna (1894) 19 Observe-se a regra inserta nos arts. 10 e 98 da Constituição de 1824. 25 Reis de Portugal para a solução dos conflitos entre os indivíduos. Para a solução dos conflitos com o governo, conforme realçado por Koerner (1998), [...] não haveria decisão propriamente judiciaria, porque neste caso seriam confrontados o interesse coletivo e o direito, ou interesse, particular. Se o interesse coletivo afetasse um mero interesse individual, o único recurso ao indivíduo seria suscitar uma jurisdição graciosa, na qual a reconsideração do ato pelo agente do governo seria discricionária. Se o interesse coletivo afetasse um direito privado, a decisão seria de tipo contencioso, processado com as devidas garantias, mas decidida por um órgão administrativo (KOERNER, 1998, p. 41-42) A Constituição de 1824 prevê a existência de um Conselho de Estado, órgão criado como de consulta obrigatória “[...] em todos os negocios graves, e medidas geraes da publica Administração; principalmente sobre a declaração da Guerra, ajustes de paz, negociações com as Nações Estrangeiras, assim como em todas as occasiões” (BRASIL, 1824) e que assume, segundo Coser (2008), a função de uniformizar a interpretação das leis administrativa e de decidir os conflitos de atribuições entre os Poderes A Carta Magna de 1824 limita, ainda, a incumbência do Supremo Tribunal de Justiça para a concessão ou denegação de revistas nas ações, para a decisão dos conflitos de jurisdição e de competência das Relações provinciais, assim como para o julgamento de seus ministros, os ministros das Relações provinciais, os empregados do Corpo Diplomático e os presidentes das Províncias e outorga ao poder Moderador a reponsabilidade pela manutenção da Independência, do equilíbrio, e da harmonia entre os demais Poderes. Em 1830, surge o primeiro normativo relevante do Império, o Código Criminal. Em 1832, entra em vigor o Código de Processo Criminal, que traz grande inovação para a forma de atuação do Judiciário, eis que substitui os procedimentos inquisitoriais previstos pela legislação portuguesa por uma fórmula mais próxima ao modelo do common law20. De acordo com o Código de Processo Criminal, o juiz de 20 Common law é um sistema judicial que surgiu na Inglaterra e que foi disseminado nos países por ela colonizados. Traduz-se num sistema contencioso no qual partes opostas se apresentam perante um juiz com conhecimentos jurídicos que está encarregado de moderar conflito e um júri que não possui treinamento legal, mas que emite decisão acerca dos fatos apresentados pelas partes. Seu preceito básico é a valorização dos precedentes para a prolação da decisão judicial em detrimento das esparsas decisões do legislativo 26 paz, eleito por voto direto dos cidadãos da localidade, é o principal agente do Judiciário. O Código prevê também que, além do juiz de paz, os cidadãos também elegem o promotor, o juiz municipal e o júri popular21. Com essas medidas, o Judiciário deixa de ser um representante do Imperador e passa a ser um órgão que está vinculado à sua localidade de funcionamento. A Lei no 16, de 12 de agosto de 1834, conhecida como Ato Adicional de 1834, opera reformas relevantes na Constituição de 1824, traçando contornos mais descentralizados à forma de governo do Império e suprime o Conselho de Estado, mas a Lei no 105, de 12 de maio de 184022, que marca o período conhecido como “Regresso Conservador”23, antecipa o que viria a ser a reforma do Código de Processo Criminal, promovida pela lei no 261, de 3 de dezembro de 1841. De uma forma geral, ocorre a retirada da competência das Assembleias Provinciais para a organização do Judiciário, transfere-se os poderes que haviam sido atribuídos ao juiz de paz pelo Código de Processo Criminal para os chefes de polícia – que são funcionários do Estado nomeados pelo imperador e escolhidos dentre a magistratura profissional –, para os delegados e para os juízes municipais, e altera-se a composição do Tribunal do Júri, que passa a ficar sob a direção do Juiz de Direito, ao qual ficava facultado apelar à Relação quando a decisão do Júri fosse contrária às evidências dos autos. No mais, estabelece-se que os assuntos da Justiça e da política passam a ser de incumbência do Executivo central, com subordinação direta à Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça. A Lei no 234, de 23 de novembro de 1841 recria o Conselho de Estado e o Regulamento no 124, de 5 de fevereiro de 1842 estabelece suas diretrizes, deixando claro, em seu art. 24, que a autoridade judiciária não é competente para conhecer de algum pedido que tenha como base um objeto administrativo, que deverá ser solucionado pela autoridade administrativa e pelo Conselho de Estado. 21 Cf Coser (2008) 22 Conhecida como Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834 23 Regresso Conservador é o nome denominado ao programa criado pelo partido conservador para reforçar a autoridade monárquica, restabelecer a centralização político-administrativa e reduzir as ameaças à unidade territorial. Ver Coser (2008) e Carvalho (1998) 27 Em 1850 ocorre nova alteração relevante no arcabouço legislativo Imperial com a edição do primeiro Código Comercial brasileiro, cujo objetivo primordial é o de regulamentar as atividades dos bancos, das instituições de crédito, das companhias de seguro, além de criar normas para sociedades anônimas, regulamentar títulos ao portador, a emissão de debêntures e a concessão de patentes (PAULA, 2012), mas que também prevê critérios para procedimentos judiciais vinculados às atividades comerciais. A reforma judiciária promovida pela Lei no 2033, de 20 de setembro de 1871, promove o reordenamento das relações entre o Poder Judicial, o governo central e os poderes locais e a reorganização administrativa de suas atividades. Ela cria e altera os tipos de comarcas, modifica o número de juízes e estabelece a competência de juízes de paz, de juízes municipais, de juízes de direito e de ministros da Relação, a partir do valor da causa24. Em relação ao magistrado profissional, mantém a remoção prevista no art. 153 da Constituição de 1824, que, segundo Koerner (1998, p. 130), o “[...] instrumento que permitia ao governo central, e aos poderes locais, regular a eficácia da legislação no âmbito local”. Quanto aos crimes, a reforma de 1871 separa a Justiça da Polícia, impedindo que essa efetue julgamento de autores de crimes e estabelece a incompatibilidade no exercício dos cargos judiciais com os cargospoliciais, ressalvada a hipótese do juiz de paz. Mantém-se, no entanto, o poder das autoridades policiais de detenção sem mandado e é criado o inquérito policial, no qual ficam mantidos os poderes de iniciativa da instrução criminal. Uma outra inovação trazida pela reforma de 1871 é a previsão de limites para os valores da fiança e a criação do habeas corpus preventivo. Tais diretrizes legislativas aqui pontuadas evidenciam a organização gradativa do sistema legal brasileiro e também possibilitam entrever a existência de conflito entre o poder central e o poder local durante todo o período imperial em 24 Koerner (1998) enfatiza que, apesar de a reforma promovida em 1871 promover alteração nas competências dos diversos órgãos do Judiciário, o exercício direto do controle social irá permanecer com as autoridades locais, através da ação da polícia e dos juízes de pais, e que os magistrados profissionais só interviam nos recursos, correições e habeas corpus. 28 relação ao efetivo controle social, conflito que não se dissipa com a proclamação da República. 1.1.2 Da escravidão ao trabalho livre Para que se possa compreender a influência da economia para a proclamação da República, é preciso identificar a importância da produção cafeeira para o país, produção essa que é a responsável pelo deslocamento do pólo econômico nacional do Nordeste para o Sudeste. Segundo Fausto (2010), entre a Independência e a República, a exportação do café passa de 18% para 61% do valor das exportações nacionais e é considerada a grande responsável pelo aparelhamento de portos, pela criação de mecanismos de crédito voltados para a exportação, em particular para esse segmento econômico, e também pela manutenção do tráfico de escravos, apesar das pressões da Inglaterra para o término de sua prática. Sem ter a pretensão de adentrar profundamente no tema da escravidão, é importante ressaltar que as medidas implementadas após 1850 para repressão do ingresso de escravos no país e também para a punição daqueles que fossem coniventes com o tráfico negreiro tornam clara a necessidade de se buscar alternativas para a força de trabalho escrava. É nesse período que se observa, não apenas o deslocamento interno da mão de obra escrava das zonas açucareiras do Nordeste para o Sudeste, como também o direcionamento do capital antes empregado na aquisição de escravos para o surgimento de diversas práticas comerciais, dentre elas a criação de bancos, de indústrias e para a expansão das vias de transporte. No final da década de 1860, são iniciadas medidas legislativas para emancipação gradual dos escravos, que resulta na promulgação da Lei no 2040, em 28 de setembro de 187125. Essa lei, além de emancipar os filhos de mulheres escravas que nascessem após aquela data, prevê a existência de fundo destinado à emancipação e também determina a matrícula de todos os escravos existentes no Império. Koerner (1998) destaca que a lei cria formas de intervenção da justiça nas 25 Essa norma ficou conhecida como “Lei do Ventre Livre” 29 relações entre o senhor e os escravos e autoriza o Judiciário não apenas a conceder alforria ao escravo, mas também a declarar libertos aqueles que não forem matriculados no prazo legal. Diz que através de um rito sumaríssimo fica permitido ao escravo apresentar pedido de manumissão, mediante o pagamento do seu preço, cujo valor, em caso de divergência, deve ser arbitrado pelo juiz de órfão e, em caso de decisão desfavorável à liberdade, cabe apelação ex officio26. E é nas últimas décadas que antecedem a proclamação da República que, segundo Fausto (2010), a economia cafeeira passa a ser constituída de duas classes regionais bem delimitadas e que possuem destinos diversos: os fazendeiros do Vale do Paraíba, que sustentam a Monarquia e que dela vão se separando à medida que se imprimem medidas para a abolição da escravatura, e a burguesia do café do Oeste Paulista. Enquanto a primeira declina – seja pelo esgotamento de suas terras ou pela perda de suas fortunas que estava lastreada nos escravos –, a última se expande, por meio da incorporação contínua de novas áreas, pela introdução de ferramentas tecnológicas e pelo emprego de imigrantes, que saíam da Europa com subsídios do Governo Paulista. Do que foi acima relatado, evidencia-se que a política que promove a transposição progressiva de uma mão de obra escrava para o trabalho livre afetando a atividade econômica, a forma de produção brasileira, a relação entre os grandes proprietários de terra com o Imperador e contribui para a desintegração do regime imperial, como também evidencia uma maior participação do Judiciário na relação entre escravo e seu proprietário. 1.1.3 Ideais progressistas: república, democracia e federação Concomitantemente à crise decorrente da política de dissolução da escravatura brasileira, é possível identificar nos discursos propagandistas e panfletários diversas referências à federação e à república, que passam a servir de base tanto para teóricos quanto para agentes sociais. Percebe-se também que, nas últimas décadas do Império, as ideias defendidas por republicanos ancoram-se nos 26 Apelação ex officio é o ato de submeter automaticamente a decisão do juiz ao reexame pela autoridade judicial superior. 30 conceitos de república, democracia e federalismo. Esses conceitos possibilitam, ainda que de forma incipiente, a unificação política. Malgrado também não constitua objeto do presente trabalho, pode-se afirmar que fica nítido através da leitura do Manifesto de 1870 que os republicanos à época não possuem clareza quanto àqueles conceitos (república, democracia e federalismo) e que sequer fazem distinção entre os dois primeiros. Mas do documento pode-se depreender que a carência de conhecimento mais profundo dos republicanos é compensado pelo entusiasmo quanto à ideia do federalismo, conceito que ocupou todo um capítulo daquele manifesto. Através de seu conteúdo, verifica- se em síntese que os republicanos defendem um sistema misto, no qual coexistem a hereditariedade do chefe de Estado com o regime republicano, visto como forma de governo apropriada ao exercício da soberania popular brasileira. Analisando as propostas republicanas, Carvalho (2011, p. 145) menciona que o ponto central do debate ocorrido no congresso republicano de Itu, em 1873, é “[...] a forma a ser assumida pela república, presidencialista ou parlamentarista, centralista ou federalista, democrática ou ditatorial” e que, somente no manifesto do Partido Republicano de Pernambuco, em 1888, percebe-se uma clara distinção entre república e democracia. O conceito de federação também recebe bastante destaque nas décadas que antecedem à proclamação da República, já que o pensamento político que predomina à época já se mostrava contrário à centralização do Império, uma vez que esse impossibilita [...] o crescimento econômico das províncias que ainda eram controladas pela coroa, por meio de pessoas de confiança do imperador que exerciam os cargos de Presidentes de Províncias, que detinham poder sobre a guarda nacional, nomeavam autoridades policiais além de fazer perseguições aos opositores. (LIMA; PONTE, 2015, p. 278) Desta forma, embora não exista uma proposta republicana consolidada, o Manifesto evidencia grande insatisfação quanto à forma de governo, quanto à centralização realizada pelo regime imperial e quanto à atuação do poder Moderador, muito embora acolha a ideia de hereditariedade do Chefe de Estado. 31 1.1.4 Justiça Federal e o Governo Provisório Conformeesclarecido até agora, as alterações na estrutura econômica do país, a defesa de ideias progressistas e a disputa pela organização judiciária são questões relevantes para o estremecimento da ordem política imperial. Proclamada a República e decretada a federação como forma de governo a ser adotada, surgem imediatamente diversas questões a serem elucidadas, das quais três são fundamentais para o presente trabalho: divisão dos poderes entre União e Estados, absorção das funções delegadas ao Imperador no exercício do Poder Moderador e edição da nova Constituição. Quanto à forma de organização da República, Koerner (1998) esclarece que Os militares ligados a Deodoro e os burocratas pretendiam limitar o alcance do federalismo, defendendo a centralização dos poderes e a organização nacional da burocracia. Líderes políticos dos estados menores ou em decadência econômica, antigos liberais e conservadores, e também alguns republicanos, defendiam uma organização federal, na qual o governo central mantivesse alguns poderes. Por fim, os republicanos históricos, os liberais e os conservadores dos estados maiores propunham uma organização ultrafederalista, na qual seria deixado à União apenas a renda ”estritamente necessária para viver”, reduzindo-se suas atribuições às relações internacionais, à defesa externa e arbitramento das questões entre os estados (KOERNER, 1998, p. 147-148) No que pertine à elaboração da nova Constituição, o “Apostolado Positivista”27 se mostra a favor da outorga de uma Constituição ditatorial positivista, enquanto que o ministro da Justiça, Campos Sales, defende o projeto do Governo Provisório, de ordem presidencialista e federativa. Por sua vez, Rui Barbosa sugere o plebiscito e Quintino Bocaiúva é a favor da convocação de uma Assembleia Constituinte, formato esse que, no final, se sagra vencedor. Após debates no seio do Governo Provisório28, decide-se pelo critério de eleição de membros para composição da Assembleia Constituinte, e constitui-se a denominada “Comissão dos Cinco"29, criada através do Decreto nº 29, em 03 de 27 Ver Carvalho (1990) e Mello (2011) 28 Cf Abranches (1907) 29 A Comissão dos Cinco, ou Comissão de Petrópolis, era composta por Joaquim Saldanha Marinho – presidente –, Américo Brasiliense de Almeida Melo, Antônio Luís dos Santos Werneck, Francisco Rangel Pestana e José Antônio Pedreira de Magalhães Castro e foi designada para elaboração de um projeto constitucional que foi entregue ao Governo Provisório em 30 de maio de 1890 (KOERNER, 1998) 32 dezembro de 1889, que é incumbida da redação do projeto a ser apresentado à Assembleia Constituinte. Para a redação do projeto de Constituição, são apresentadas três propostas distintas: a de Américo Brasiliense, a de Magalhães Castro e a elaborada por Santos Werneck em conjunto com Rangel Pestana. Da leitura dos projetos30 na parte relativa ao Poder Judiciário, depreende- se que Américo Brasiliense defende a existência de um único Poder Judiciário, a soberania da União para legislar sobre o direito substantivo31, a legitimidade concorrente entre União e Estados para legislar quanto ao direito processual32 e a temporalidade do exercício do cargo de membros do Tribunal da Relação, que são escolhidos pelo Presidente da República com base em lista tríplice elaborada pela Corte Suprema da Justiça33. Magalhães Castro propõe a unidade do Judiciário, do direito substantivo e processual34 e da magistratura, prevê eleição para juízes de paz, concurso para o cargo de juiz de direito e a escolha dos membros da Relação pelo Supremo Tribunal de Justiça. No projeto de Rangel Pestana e de Santos Werneck propõe-se a dualidade Judiciário, do direito substantivo e processual e da magistratura. Autoriza os Estados a regulamentar o processo de direito federal privado, estabelece validade das normas federais para os Estados que não possuam legislação específica e a resolução do conflito de leis através da doutrina e dos preceitos de direito internacional privado. Além desses pontos, os projetos também propõem instâncias distintas para a resolução dos conflitos políticos e privados e para a garantia da prevalência do 30 Ver Ribeiro (1917) 31 Direito substantivo ou direito material é o conjunto de normas que os fatos jurídicos que se relacionam a bens e utilidades da vida. São exemplos de normas de Direito substantivo as normas ou leis penais, as civis, as empresariais, as tributários, etc. O direito substantivo se contrapõe ao direito processual ou formal, que estabelece os procedimentos adequados para se pleitear ou defender algum direito material 32 Ver nota 31 33 O Supremo Tribunal Federal – nome atribuído à última instância do Judiciário por Rui Barbosa – também foi denominado Corte Suprema de Justiça e Supremo Tribunal de Justiça 34 O projeto prevê a possibilidade de adaptação das normas pelos Estados se não houver violação aos princípios gerais estabelecidos na Constituição 33 interesse geral perante os interesses particulares da sociedade, atividades que sob a égide do regime anterior estavam atribuídas ao Poder Moderador. Conforme destacado por Koerner (1998), essas questões são enfrentadas quando se discute o poder para interpretar a Constituição, que cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, em todos os casos, no projeto de Magalhães Castro. Esse projeto confere ainda uma atividade consultiva ao Supremo Tribunal de Justiça que deve apoiar a presidência da República acerca da constitucionalidade dos projetos de lei encaminhados para sanção presidencial. Américo Brasiliense entende que cabe à Corte Suprema de Justiça o poder de interpretar a Constituição, quando se tratar de execução da Constituição e das leis federais, e ao Legislativo, quando houver interpretação por via de autoridade. De igual forma, Santos Werneck e Rangel Pestana atribuem ao Supremo apenas a competência para interpretar a Constituição e ao Congresso, a obrigação por velar pela guarda da Constituição e das leis. O projeto elaborado pela “Comissão dos Cinco” é entregue ao Governo Provisório em 30 de maio de 1890 e é transformado na Constituição provisória brasileira, outorgada através do Decreto no 510, de 22 de junho de 1890, ficando nela previsto que: a) o judiciário da União é constituído pelo Supremo Tribunal Federal e por juízes e tribunais Federais (art. 54); b) o STF é composto por 15 juízes nomeados pelo Presidente da República dentre os 30 juízes federais mais antigos e cidadãos de notável saber e reputação, elegíveis pelo Senado (art. 55); c) é garantida a vitaliciedade dos juízes federais, com irredutibilidade de vencimentos (art. 56 e seu § 1o) d) o julgamento dos ministros do STF é realizado pelo Senado e que o dos juízes federais, pelo STF ((art. 56, § 2o); e) o Procurador Geral da República é designado pelo Presidente da República dentre os membros do STF (art. 57); f) é competência do STF a verificação da aplicabilidade de tratados e leis federais ou quando se contestar a validade de leis ou atos dos governos dos Estados em face da Constituição ou de leis federais e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos os atos ou leis impugnados (art. 58, § 1o, III); g) deve ser observada a jurisprudência dos Estados na aplicação das leis estaduais e da jurisprudência federal, na interpretação de leis da União (art. 58, § 2o); 34 h) é de competência exclusiva da Justiça Federal para decidir: - ação movida com base na Constituição Federal; - litígios entre Estado e cidadãos de outros Estados, entre cidadãos de Estados diversos ou entre Estados estrangeiros e cidadão brasileiros; - questões de direitomarítimo, de direito criminal ou civil internacional e crimes políticos (art. 59); - proibição de exercício de competência às justiças dos Estados para exercer competência do judiciário federal (art. 59, § 1o) e de intervir em questões submetidas ao Judiciário Federal, seja para anular, alterar ou suspender efeitos (art. 61) Posteriormente, o Decreto no 848, de 11 de outubro de 1890, imprime critérios para a organização da Justiça Federal, com o acréscimo dos seguintes pontos: a) inamovibilidade de seus membros (art. 2o); b) ministros devem ser escolhidos entre os juízes federais (seccionais) ou entre cidadãos de notável saber que possuam a condição de elegibilidade para o Senado (art. 5o ); c) mandato de 3 (três) anos para Presidente e Vice-Presidente do STF, com possibilidade de reeleição (art. 11); d) criação de Vara Federal em cada capital dos Estados e no Distrito Federal, com Juiz nomeado pelo Presidente da República entre bacharéis com mínimo de 4 anos de prática como advogado ou membro da magistratura (arts. 13 e 14); e) existência de um Juiz substituto, nomeado pelo Presidente da República, em cada vara com exercício por 4 anos (art. 18); f) nomeação de juiz ad hoc pelo Presidente da República quando houver circunstância em que não possa funcionar o juiz substituto (art. 20); g) o membro do STF que for nomeado Procurador Geral da República será vitalício e deixará de tomar parte no julgamento e decisões (art. 21); h) os Procuradores da República nomeados pelo Presidente da República para cada vara federal contarão com mandato de 4 anos (art. 23); i) aposentadoria dos membros do STF e dos juízes federais após 10 (dez) anos de atividade, se houver invalidez, com vencimentos proporcionais ou após 20 (vinte) anos, com vencimentos integrais (art. 39); j) os crimes federais estão sujeitos ao júri (art. 40); Vê-se, portanto que a Constituição provisória outorgada pelo Governo Provisório cria um Judiciário Federal que é constituído pelo Supremo Tribunal Federal – STF e pelos Juízes Federais, que possuem competência para decidir 35 qualquer ação movida com base na Constituição Federal, para decidir questões que envolve o direito marítimo, o direito criminal ou civil internacional e os crimes políticos. A Constituição provisória também veda às justiças dos Estados o exercício da competência do judiciário federal e a intervenção sobre questões que sejam submetidas ao ramo federal. Esse Judiciário é regulamentado através de novo decreto do Governo Provisório, que é editado antes mesmo da instalação da Assembleia Constituinte, sob a justificativa de que a imediata organização da Justiça Federal antecipa o término do período ditatorial e possibilita o exame das ações movidas com base na Constituição Federal. Para o ministro da Justiça Campos Sales, Não se trata de tribunaes ordinarios de justiça, com uma jurisdicção pura e simplesmente restricta á applicação das leis nas multiplas relações do direito privado. A magistratura que agora se installa no paiz, graças ao regimen republicano, não é um instrumento cego ou mero interprete na execução dos actos do poder legislativo. Antes de applicar a lei cabe-lhe o direito de exame, podendo dar-lhe ou recusar-lhe sancção, si ella lhe parecer conforme ou contraria á lei organica. (SALES, 1993, p. 13) Para Sales (1993), o Judiciário deixa sua posição subordinada ao Poder Moderador e se transforma em entidade soberana, com poderes para defender a liberdade e a autonomia individual. Diz ele que o sistema federativo “[...] exige para o seu regular funccionamento uma demarcação clara e positiva, traçando os limites entre a jurisdicção federal e a dos Estados, de tal sorte que o domínio legítimo de cada uma destas soberanias seja rigorosamente mantido e reciprocamente respeitado” (SALES, 1993, p. 14). Sustenta que o decreto de organização da Justiça Federal traça “[...] com clareza e precisão os limites da competência entre a Justiça Federal e a dos Estados, de tal modo que cada uma, resguardada de todo o perigo de invasão, conservará na mais completa integridade a sua autonomia jurisdiccional” (SALES, 1993, p. 15). Dessa forma, observa-se que à Justiça Federal de 1a e 2a instância, criada pela Constituição provisória de 22 de junho de 1890, são outorgados poderes para defender, com soberania, a liberdade e autonomia individual na apreciação das ações que estejam sob jurisdição federal, preservando a autonomia dos Estados para decidir quanto à organização de seu Judiciário. 36 Roure (1979, p. 5) comenta que “[...] logo que foi publicada a notícia da organização judiciária constante do projeto [da Constituição que foi promulgada em 1891], com a dualidade da magistratura, surgiram protestos e reclamações” advindos principalmente do corpo de magistrados. Koerner (1998, p. 165) diz que “[...] os ministros do Supremo Tribunal de Justiça, desembargadores da Relação do Distrito Federal e outros magistrados encaminharam representação ao Marechal Deodoro reivindicando os seus direitos adquiridos e combatendo com veemência o plano da nova organização” e Ribas (1983) relata que Campos Sales defende veementemente a dualidade de Justiça, chegando a ponto de condicionar sua continuidade no cargo de ministro da Justiça à criação do Judiciário federal. Ribas (1983) comenta que Campos Sales afirma não ser possível conceber uma federação sem soberania dos Estados e da União e sem a existência dos três poderes políticos em ambas as esferas e Koerner (1998) acredita que é para rebater a pretensão dos magistrados que Campos Sales redige a Exposição de Motivos do Decreto no 848, de 11 de outubro de 1890. Da comparação entre a redação do Decreto no 510, de 22 de junho de 1890, e do Decreto no 914-A, de 23 de outubro de 1890, identifica-se que a única grande diferença no que pertine à Seção III, que trata sobre o Poder Judiciário, é a previsão de que os ministros do STF não mais são escolhidos dentre os trinta juízes federais mais antigos e os cidadãos de notável saber e reputação elegíveis para o Senado, mas apenas dentre cidadãos de notável saber e reputação elegíveis para o Senado. Observa-se, ainda, que são efetuados pequenos acertos em relação à redação e inclusão do teor do § 1o do art. 58, que teria sido suprimido no Decreto no 510, de 1890. E é em cima desse texto que a Constituinte de 1891 se debruça para redigir a primeira Carta Magna republicana. 1.1.5 Justiça Federal na Constituição Federal de 1891 Segundo Koerner (1998), durante a Constituinte de 1891, a organização judiciaria é abordada pelo ângulo dos limites do federalismo e é objeto de grande debate. Roure (1979) afirma que no seio dos constituintes identifica-se três grupos majoritários: os dualistas, que defendem duas magistratura, uma estadual e outra federal, e a autonomia dos Estados para legislar; os unitaristas, que são a favor da 37 unidade da magistratura e da atribuição exclusiva da União para a criação de leis de Direito substantivo e de Direito processual; os que defendem um sistema misto, no qual é cabível aos Estados legislar sobre normas processuais e sobre a organização das magistraturas e à União incumbe legislar sobre o Direito substantivo. Vê-se, portanto, que as questões divergentes centrais em relação ao Judiciário, e que são objeto de disputa e de amplo debate entre os constituintes35, são a competência para legislar acerca do Direito material e formal, a unidade/dualidade da magistratura e a forma da organização judiciária no país. Anfilófio de Carvalho e José Higino são grandes defensores da unidade. Segundo Higino, todas as relações da vida civil e na vida pública devem ser mediadas por um Judiciário nacional,
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