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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA TESE DE DOUTORADO O CORPO PSICÓIDE A CRISE DE PARADIGMA E O PROBLEMA DA RELAÇÃO CORPO- MENTE WALTER BOECHAT Tese apresentada como requisito parcial para obtenção de título de Doutor em Saúde Coletiva Curso de Pós-graduação em Saúde Coletiva- área de concentração em Ciências Humanas e da Saúde do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientador: Dr. Carlos Alberto Plastino Rio de Janeiro, Março de 2004. II INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UERJ PÓS- GRADUAÇÃO TESE DE DOUTORADO O CORPO PSICÓIDE A CRISE DE PARADIGMA E O PROBLEMA DA RELAÇÃO CORPO- MENTE WALTER BOECHAT Imagination is the divine body in all of us. William Blake. À Paula, companheira incansável nos múltiplos caminhos . II Agradecimentos Agradeço ao Prof. Carlos Plastino, pela pronta disponibilidade na orientação, troca de idéias e sugestões teóricas e práticas na construção de meu trabalho. Meus agradecimentos ao apoio bibliográfico e orientação da Profa. Madel Luz, inclusive em seus seminários organizados no Instituto de Medicina Social. Agradeço à amiga Profa. Amnéris Maroni, pela cessão de fascinante material bibliográfico sobre a filosofia romântica. Agradeço também pela sua disponibilidade de vinda de São Paulo para participar de minha Banca de Doutoramento. Agradeço ao Prof. Benilton Bezerra Jr. sua participação muito útil desde o exame de qualificação, com conselhos úteis quanto à estruturação da tese. Agradeço ao Dr Joel Salles Giglio sua vinda da Unicamp para participar da Banca de Doutoramento. Aos meus pacientes, sábios professores do diálogo corpo-mente. Ao Roberto Lima Netto, pela amizade. O CORPO PSICÓIDE. A CRISE DE PARADIGMA E O PROBLEMA DA RELAÇÃO CORPO-MENTE. Resumo A tese trata da questão das relações corpo-mente, suas abordagens possíveis dentro do novo paradigma emergente. A questão das relações corpo-mente e mesmo da possível continuidade corpo-mente emergiu a partir de repetidos achados clínicos na terapia analítica em consultório particular. O trabalho cita recortes clínicos nos quais fenômenos simbólicos fundamentais para o entendimento do processo terapêutico se manifestam nos limites da psiqué e do corpo. O autor defende a posição de que o antigo questionamento da continuidade psicofísica que intrigou Freud e Jung, esteve presente na alquimia Alexandrina, no pensamento de Jakob Boehme, Espinosa, entre os românticos, como Schelling, com sua Filosofia da Natureza. Há no trabalho uma preocupação com um resgate do passado histórico desta unidade psicofísica presente na alquimia e entre os filósofos do período romântico, que foi perdida com o iluminismo. Para oferecer uma base histórica e filosófica e buscar uma continuidade psicofísica, a idéia do corpo psicóide é desenvolvida não só dentro de um modelo teórico dado, o da psicologia analítica de C.G.Jung, mas também surge num tempo determinado, na época do paradigma da complexidade (Morin). A polaridade corpo-mente é uma das diversas oposições características do paradigma da modernidade, como natureza-cultura, consciente-inconsciente, sujeito- objeto, alma-corpo, espírito-matéria. Na opinião do autor, a polaridade mente-corpo é definida no capítulo 2 como inserida dentro de um choque paradigmático, ou a “dança dos paradigmas”, quando também são descritos os complexos psicossomáticos por C.G.Jung. Os métodos experimentais usados para a descoberta dos complexos inconscientes pertencem nitidamente ao paradigma newtoniano, mas abrem caminho para o novo paradigma. II O autor deteve-se em descrever o modelo do arquétipo psicóide segundo C.G.Jung em detalhe, porque dele depende o entendimento do modelo do corpo psicóide. Também todo um capítulo da tese foi dedicado a explicar com recortes clínicos psicossomáticos o fenômeno da sincronicidade definida por C.G. Jung e pelo físico prêmio Nobel Wolfang Pauli. O autor considera fundamental para a sua abordagem da questão corpo-mente o fato que de que diversas patologias psicossomáticas não podem ser abordadas pela causalidade e sim pela sincronicidade. THE PSYCHOID BODY THE PARADIGM CRISIS AND THE PROBLEM OF THE BODY-MIND RELATIONSHIP Abstract The thesis deals with the question of the body-mind relationship, its possible approaches within the emerging new paradigm. The question of the body-mind relationship and even of the possible body-mind continuum began after many findings in private practice. This work mentions clinical findings in which symbolical phenomena fundamental for the understanding of the outcome of the therapeutic process happen at the very psyche/soma borders. The author has the opinion that the ancient question of the psychophysics continuum which puzzled Freud and Jung was present in the Alchemy of Alexandria, in the thinking of Jakob Boehme, Spinoza, within the romantics as Schelling, who posited the Naturphilosophie. There is in the thesis a concern with the historical past of the psychophysics unit present in alchemy and within the philosophers of the romantic period. Unit that was lost with the outcome of the illuminism. The author thinks it is necessary to offer a historical and philosophical basis to a psychophysics continuum, because the model for a psychoid body develops not only within a theoretical framework, in this case the analytical psychology of C.G.Jung, but it also comes up within a certain sprit du temps, in the time of the paradigm crisis of the beginning of xxth century and the stating of the new paradigm of complexity (Morin). III The body-mind polarity is one of the several methods used in the discovery of the unconscious complexes belong clearly to the Newtonian paradigm, but they open new paths for the oppositions typical of paradigm of modernity, as culture-nature, conscience- unconscious, subject-object, soul-body, spirit-matter. The body-mind polarity shouldn’t be understood isolated, but belonging to a paradigm crisis, or to a “paradigm dance”. In chapter 2 this crisis is mentioned together with the description of the psychosomatics complexes by C.G.Jung. The experimental new emerging paradigm. The author describes the model of the psychoid archetype at length according to C.G. Jung, with some clinical examples in the transference and counter-transference situation, because on this model depends the correct understanding of the model of the psychoid body. Also a full chapter of the thesis was dedicated to the problem of the synchronicity phenomenon as defined by C.G.Jung and the by the physics Nobel Prize Wolfgang Pauli. The author considers fundamental the fact that many psychosomatic pathologies cannot be explained in a causal way. He emphasizes the psychoid body and synchronicity as better means to understand it. 1 INTRODUÇÃO A relação corpo-mente é tema de vários debates, motiva diversas teses e dissertações por ser um aspecto ainda relativamente pouco explorado pela psicologia de profundidade. Em inícios do século XX a fronteira consciente-inconsciente passou a ser explorada de forma sistemática pela psicanálise e pela psicologia de profundidade em geral. Freud trouxe novos aportes à clínica pela descrição sistemática das relações entre consciente e inconsciente e a ele se seguiram teóricos importantes. É minha percepção que nesta nova transição de século, outra dimensão adquire importância fundamental clínica e teórica: a fronteira corpo-mente. A preocupação com os limites do corpo-mente e suas implicações com os dinamismos inconscientes tantopsicopatológicos como da normalidade, antes restritos ao pensamento de William Reich e autores pós-reichianos, tornou-se um imperativo para a compreensão mais ampla do campo transferencial, não só de casos dos pacientes chamados somatizantes, mas da clínica analítica em geral, em se tratando da psicologia de profundidade.. Esta radical implicação do corpo na escuta psicoterapêutica tem, a meu ver, motivos históricos, culturais, e principalmente de crise paradigmática. A questão dos paradigmas em ciência tem importância fundamental para uma nova compreensão do corpo-mente. É verdade que uma gradual mudança paradigmática vem se operando na cultura ocidental nas ciências e nas artes desde os inícios do século XX. A palavra paradigma, que vem se tornando uma espécie de lugar comum no pensamento contemporâneo, precisa ser bem compreendida. Vem do grego para, além de, ao lado de e deigma, manifestação (Cardoso, 1993, p.13). Este entendimento do conceito de paradigma nos parece bem mais acurado do que as traduções normalmente dadas de modelo ou protótipo, no sentido platônico, pois visto assim, o paradigma é algo estático, preso a um modelo fixo, enquanto que como manifestação de um valor em movimento, aponta dinamicamente para o futuro, e é neste sentido que os paradigmas funcionam como orientadores do pensar científico. As mudanças de paradigma foram definidas por Thomas Kuhn, em sua obra seminal, “A Estrutura das Revoluções Científicas”(1998). As idéias fundamentais de 2 Kuhn são importantes em nossa pesquisa, no tocante à questão das mudanças paradigmáticas. Também as idéias de Edgar Morin (1999, 2002) , Boaventura Sousa Santos (2000, 2001), Madel Luz (1997) , Plastino (2001A, 2001B), Castoriades (1982, 1997) e outros, servem de referência para esta reflexão sobre a mudança paradigmática. Madel Luz situa as grandes mudanças paradigmáticas que tiveram lugar a partir do renascimento, quando pela primeira vez se instaura “o objeto Natureza”, prioritário para a organização do estado moderno. A partir de então a natureza passa a ser imaginada como um continente desconhecido, e a razão ganha o estatuto de instrumento explorador e domador deste território misterioso. (Luz, 1997, p.30). Durante a modernidade a razão exploratória da natureza oscilou entre campos opostos, dividida entre a categoria da razão como princípio único ou absoluto do conhecimento, e a experiência empírica como critério único para estabelecimento das verdades. “De Locke a Espinoza, de Hume a Kant, para citar exemplos polares, existe sempre esta oscilação que estará presente , entre racionalismo e empiricismo. Oscilação que alimentará não só a filosofia da ciência, mas também as teorias científicas e a própria prática científica como produtora do conhecimento............................................. A dualidade mais importante..... é a que constitui em termos epistemológicos a ruptura natureza-homem, na medida em que cria, em um mesmo movimento, um objeto privilegiado da intervenção da razão e na medida que atribui o estatuto de realidade às dualidades matéria- espírito e objeto-sujeito. As rupturas dualistas da racionalidade moderna (matéria-espírito, qualidade-quantidade, natureza-homem, objeto-sujeito, corpo-alma, sentidos-razão, organismo-mente, paixões-vontade) são dicotômicas, não admitindo terceiros princípios, ou sínteses.” (Luz, op.cit. p 30) [minha tradução]. Sousa Santos (op.cit) enfatiza a importante questão dos dualismos dentro do paradigma da modernidade. Também se refere ao grande dualismo, fundante da 3 modernidade e de todos os demais dualismos: o dualismo homem-natureza. A oposição homem-natureza é a referência básica do paradigma da modernidade, e dele parecem derivar todos os demais dualismos: sujeito-objeto, conhecimento científico-conhecimento popular, mitológico ou teológico, colonizador-colonizado, homem-mulher . Entre todas estas oposições, todas elas hierarquizantes e unilaterais, se situa a oposição corpo-mente e logicamente, esta oposição não pode ser resolvida ou questionada sem ser entendida dentro de um amplo contexto do esprit du temps da crise da modernidade. Tomo primariamente este contexto, para propor relativizações da alienação mente-corpo dentro da psicoterapia atual e chegar a propor a totalidade corpo- mente. Quando uso a expressão “alienação corpo-mente” e a oponho à “totalidade corpo- mente” objetivo central de meu trabalho, quero enfatizar que se a psiquiatria organicista enfatiza, muitas de vezes de forma unilateral a primazia do corpo fisiológico, literalizando e enfatizando os processos químicos e biológicos como tendo uma importância absoluta, há também o perigo de uma ênfase exagerada e unilateral em processos mentais. Estou tratando aqui do antigo “paralelismo psicofísico” que tanto preocupou os filósofos românticos e vem sendo sempre objeto de reflexão para a psicologia de profundidade, inclusive Freud, com a publicação de seu Projeto para uma psicologia científica (Freud,1895/1975). Procurarei oferecer como modelo de reflexão para a questão corpo/mente neste meu trabalho a teoria de o corpo psicóide, derivado do conceito de arquétipo psicóide de Jung que será especificado no capítulo 3. As rígidas dicotomias da razão da modernidade foram antecedidas por uma visão do mundo menos dissociada, própria do Renascimento. Creio ser importante caracterizar a visão de mundo renascentista que antecedeu a crise da cisão da modernidade. Com a rejeição dos rígidos valores religiosos da idade média, foram resgatados os ideais da beleza clássica grega. “Há de fato um neoplatonismo renascentista de Plotino, em substituição ao aristotelismo de Santo Tomás.” (Luz, 1997, p.24). Todo o movimento renascentista se desdobra com um grande desenvolvimento das artes, da pintura, arquitetura e das letras. É todo um movimento cultural que ocorre sem dissociação entre o mundo sensorial e o mundo das idéias, ao contrário da idade média, na qual estava 4 implícito que o desenvolvimento espiritual se daria sempre à custa do sacrifico do mundo dos sentidos. Luz estabelece a importante transição da razão renascentista para a razão da modernidade. (Luz, op. cit.). Realmente, no renascimento como no neoplatonismo italiano de Florença, as idéias de Vico e Marcilio Ficino foram importantes no estabelecimento de uma escola filosófica onde a beleza era cultuada, o deus Saturno considerado patrono da academia, pois Saturno (como deus da melancolia) levava à contemplação do belo e à criatividade filosófica. (Vitale, 1979). A razão da modernidade, entretanto, será uma “razão depurada dos sentidos e dos objetos. Uma razão des-subjetivada”. A racionalidade moderna pode ser vista como a tentativa de instaurar um pan-racionalismo, tanto na ordem do objeto (Natureza, mundo, “coisas” quanto na ordem do sujeito (“homem”) (Luz, op.cit. p.31)). Darei especial atenção às considerações de Castoriades (1982, 1999, 2000) no que concerne àquilo que denomina o magma da realidade (Castoriades, 1982, p. 385 e ss.) para fundamentar minhas reflexões sobre a condição de serem pressupostos as chamadas verdades científicas, isto é, sobre a questão da teoria científica ser uma construção. Castoriades afirma a natureza magmática da realidade. Isto é, o real não possui uma verdade última e própria que lhe é característica e que caberá à ciência demonstrar esta verdade única e insofismável. Com isto Castoriades não quer dizer que o real seja puramente caótico. Oferece, na verdade, um limite à organização que as várias ciências lhe querem dar. Como um magma vulcânico, matéria energética, vaporosa e moldável ao contato, o real é moldado pelo pressupostos científicos do observador. Isto é, o real não possui um legéin que lheé próprio, uma lógica que Castoriades chama conjuntista identitária (Castoriades, op. cit. p.386) mas antes, recebe e toma as formas dos pressupostos teóricos que procuram assimilá-lo. Castoriades alinha-se dentro de uma perspectiva de uma epistemologia construcionista. O cerne do construcionismo, na perspectiva da teoria do conhecimento, é a compreensão de que ‘os termos em que o mundo é compreendido são artefatos sociais, produtos das trocas historicamente situadas entre as pessoas’(Gergen, cit. por Spink, 1999). Nesta perspectiva, o construcionismo tem como foco principal a explicação dos 5 processos pelos quais as pessoas descrevem, explicam, ou contabilizam o mundo no qual vivem, incluindo a si mesmas. Essa forma de entender o conhecimento implica abdicar a visão representacional do conhecimento que está associada à compreensão da mente como “espelho da natureza”. (Spink, 1999, p. 76) Procuro manter, dentro de toda a minha pesquisa, uma atitude de propor teorias ou modelos de trabalho como construção, considero que novas idéias ou conceitos são sempre construções de uma realidade magmática e não fórmulas rígidas para elucidar de maneira definitiva um mundo visto como um “espelho imutável” de meu modelo. Dentro desta perspectiva, o objeto da tese, de forma sucinta, é uma tentativa de sugerir que a abordagem moderna e dissociada do corpo-mente é apenas uma entre muitas outras teorizações possíveis, condicionada por uma determinada perspectiva histórica, a da modernidade. Não é minha intenção oferecer um referencial teórico-operacional para a abordagem psicossomática dentro do processo transferencial, “único possível”, ou melhor ou mais diferenciado que outros, pois considero tal coisa uma impossibilidade. Pretendo contribuir para a construção de um referencial teoricamente coerente, partindo de achados clínicos em meu consultório, a partir de observações do campo transferencial. Meu referencial teórico principal são as idéias de C.G.Jung e pensadores pós-junguianos, embora a escola francesa de psicossomática e outros autores, como Cristophe Dejours e Joyce McDougall sejam abordados. A predominância do referencial teórico da psicologia analítica de C.G.Jung deve-se aos três anos e meio que permaneci em Zurique, de 1974 a 1979, (com um ano e meio de intervalo de permanência no Brasil) em formação no Instituto C.G.Jung de Zurique, onde me diplomei em junho de 1979. Na volta, interessei-me por psicossomática, fazendo minha especialização no Instituto de Medicina Psicossomática do Rio de Janeiro (IMPSIS) onde pude refletir sobre os conceitos psicanalíticos da escola de Paris e com as idéias de Cristophe Dejours e McDougall. Mas todas estas questões da minha formação teórica interagem com algo mais importante, em minha opinião: a vivência clínica da importância dos fenômenos do corpo-mente para o entendimento da totalidade simbólica do processo terapêutico. Portanto, no primeiro capítulo da tese cito diversos casos clínicos como exemplo de 6 situações que me sucitaram interrogações radicais, marcas no caminho que levantaram a questão: “o que fazer aqui? Como proceder?” Em todo o transcorrer do meu trabalho, quando volto a citar algum referencial teórico de maior importância, parto, na maior parte das vezes de encruzilhadas deste tipo, nas quais os símbolos corporais iluminaram o caminho de forma maior. As interrogações clínicas entram portanto em primeiro lugar como órgãos motores do processo deste trabalho. O referencial teórico entra em segundo lugar, mas sempre referido à questão paradigmática, sendo assim, o referencial teórico é sempre um modelo para uma realidade magmática. A psicologia analítica de C.G.Jung está inserida no novo paradigma emergente devido a várias características de suas formulações teóricas. Talvez a própria abrangência da vida de Jung tenha influência neste fato. O pensador suíço nasceu em 1875, em Keswill, aldeia do interior do cantão de Argau, em ambiente no qual os pressupostos medievais tinham influência ativa no comportamento social, vindo a falecer somente em 1961, com a avançada idade de 86 anos, tendo portanto presenciado as duas grandes guerras e mesmo as questões políticas da guerra fria e a chamada “corrida espacial”. Todos estes eventos sociais e tecnológicos tiveram, como aconteceu com Freud e outros gênios criadores, marcada influência em sua obra. Eventos sociais, pessoas e idéias que o cercaram marcam a evolução de suas idéias: desde o associacionismo de William Wundt, que predominou em fins do século XIX, passando por Eugen Bleuler, Einstein, Freud, o sinólogo Richard Wilhelm e Wolfang Pauli, prêmio Nobel de física de 1946, com quem privou, trocou extensa correspondência e escreveu uma importante obra a quatro mãos.1 Todas estas influências levaram a conceituações fundamentais que discutirei especificamente em meu trabalho. Uma palavra especificamente sobre as relações de Jung com Einstein e Pauli. Einstein conviveu com Jung quando ambos lecionaram na conhecida Universidade Politécnica de Zurique, a famosa Erdegnosische Techniche Hochschule, a ETH. Em sua correspondência com um biógrafo de Einstein, Jung relata que o recebera para jantar em 1 Vide nota 3. 7 sua casa, juntamente com Bleuler2. Nestes encontros, o físico tentava fazer entender aos dois psiquiatras os princípios da teoria da relatividade restrita, que acabara de publicar em 1905. Jung relata que se esforçava para entender os conceitos de Einstein, mas era muito jovem para elaborar as complexas idéias do físico. Mas os revolucionários conceitos relatados ficaram em sua mente, e tiveram influência décadas depois na formulação da teoria do arquétipo psicóide e do fenômeno da sincronicidade, conceitos fundamentais em meu trabalho. Quanto a Pauli, o físico procurou Jung para análise, sendo encaminhado para uma colaboradora. Jung fez extenso trabalho sobre os sonhos de Pauli, demonstrando a emergência de símbolos arquetípicos importantes, trocaram extensa correspondência e seu relacionamento culminou com a publicação de uma obra significativa, The influence of archetypal ideas on the scientific theories of Kepler.3 Recentemente a correspondência completa dos dois autores foi publicada com comentários de Zabrieskie e Meier, dois analistas junguianos, em livro com o sugestivo título: Átomo e arquétipo.4 Como sempre acontece nos grandes processos criativos em psicologia de profundidade, as idéias novas surgem da vivência clínica. Trabalhando com Bleuler, a partir de 1902, Jung vinha aplicando em casos de esquizofrenia, histeria dissociativa grave e epilepsia o teste de associação de palavras que criara, juntamente com Bleuler. (Jung, 1902/1975). O teste fundamentava-se em Wilhelm Wundt e no associacionismo, corrente psicológica predominante em fins do século XIX, segundo as quais todos os processos mentais se dão por associação de idéias. Através do trabalho sobre estas associações, poderiam ser encontradas as origens destas perturbações; encontradas essas origens, as saídas terapêuticas poderiam talvez ser divisadas. Jung percebeu que nos processos delirantes de esquizofrênicos havia motivos repetidos de conteúdo religioso e mitológico, núcleos míticos, os mitologemas. Esses conteúdos, comuns ao ideário mitológico dos mais diversos povos em todo mundo, 2 Jung, Correspondência completa, carta a em 1909. 3 “A influência de idéias arquetípicas nas teorias científicas de Kepler” In: The Interpretation of Nature and the Psyche, New York: Pantheon, 1955. 4 Atom and archetype, New Jersey: Pricenton University Press, 2001. 8 levaram-no à hipótese de um inconsciente impessoal, coletivo, comum a todaa humanidade. Realmente, na clínica com pacientes esquizofrênicos, hospitalizados ou não, ou mesmo em pacientes limítrofes, encontramos a todo instante conteúdos mitológicos e religiosos, como se estes pacientes estivessem mergulhados em uma camada coletiva do inconsciente. Tais conteúdos são dissociados de qualquer associação de vivência pessoal, recente ou remota.5 Posteriormente, Jung verificou a presença destes conteúdos coletivos em sonhos e fantasias do não-psicótico, e construiu a teoria do inconsciente coletivo e seus conteúdos, os arquétipos. A palavra arquétipo deriva do grego arché, substância primordial, e typós, impressão, marca. Arquétipos seriam marcas, um blueprint, uma impressão psicológica que daria à psiqué uma faculdade para formar sempre as mesmas imagens, ou para reagir de modo sempre semelhante a circunstâncias dadas. Esta disposição, devida à estrutura cerebral idêntica de todos os seres humanos, explicaria a semelhança de imagens em todas as mitologias, em todos os povos, na literatura e na arte universal. Jung assim se refere aos arquétipos: “Sempre me deparo de novo com o mal-entendido de que os arquétipos são determinados quanto ao seu conteúdo, ou melhor, são uma espécie de ‘idéias’ inconscientes. Por isto devemos ressaltar mais uma vez, que os arquétipos são determinados apenas quanto à forma e não quanto ao conteúdo, e no primeiro caso, de um modo muito limitado. Uma imagem primordial só pode ser determinada quanto ao seu conteúdo, no caso de tornar-se consciente....... O arquétipo nada mais é do que um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo que uma facultas praeformandi, uma possibilidade dada a priori da forma de sua representação. O que é herdado não são as idéias, mas as formas, as quais, sob este aspecto particular correspondem aos instintos, igualmente 5 Vide cap. 1, onde são mencionadas idéias de Jacob Boehme em paciente esquizofrênico em hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro. 9 determinados por sua forma”. (Jung, 1940/1975, minha tradução). Nesta citação de Jung, uma última questão referida me interessa de modo especial em meu trabalho: a correspondência dos arquétipos com os instintos. Este problema fundamental, ao qual Jung se referiu pela primeira vez em sua obra de 1919 Instinto e Inconsciente (Jung, 1919/1972) é abordada em profundidade em 1954, em A Natureza da psiqué (Jung, 1954/1972). A correspondência entre arquétipo e instinto é reforçada pelos trabalhos da etologia de Lorenz e Uxkwell, com seu conceito de padrões de comportamento animal. Se as diversas espécies animais têm padrões de comportamento, também o Homo sapiens teria equivalentes a estes padrões, os arquétipos, verdadeiros correspondentes psíquicos aos instintos biológicos. Isto porque o inconsciente, além de seu aspecto ontogenético, ligado às experiências individuais de cada um, tem também um aspecto filogenético. Este seria o inconsciente coletivo comum a toda a espécie humana e seus conteúdos, os arquétipos. Jung (1954/1972) desenvolveu um fascinante modelo para exemplificar a correlação dos instintos com os arquétipos, o do espectro da luz. O espectro luminoso tem, em seu extremo, abaixo da cor vermelha, a região do infra-vermelho, acima do violeta, o ultra-violeta, ambas as regiões invisíveis. As imagens arquetípicas, quer apareçam em sonhos, fantasias ou produções psicóticas, ocupariam a região do ultra- violeta, os instintos e padrões de comportamento equivalentes, ao infra-vermelho. O arquétipo está presente na região do ultra-violeta como imagem, na esfera do infra- vermelho como padrão de comportamento ou instinto correspondente. Devo estender-me um pouco mais na teoria dos arquétipos para justificar plenamente a sua importância para a compreensão de um modelo de totalidade corpo- mente, um modelo que seja coerente do ponto de vista teórico e tenha também uma aplicação clínica eficaz. O modelo luminoso da correlação imagem arquetípica-instinto é útil para a compreensão da noção de arquétipo psicóide. O adjetivo psicóide quer significar que o 10 arquétipo ocupa em seus aspectos mais profundos uma posição quase-psíquica, e ao mesmo tempo quase-material, uma posição intermediária entre psiqué e matéria. O importante significado clínico deste modelo teórico é que havendo a intensa manifestação de um arquétipo, poderá haver também sua constelação em nível psíquico, como imagem, e orgânico, como sintoma físico. Percebo também nesta conceituação uma busca de unificação do universo psíquico com o universo material, uma influência das idéias de Einstein e Wolfang Pauli nas formulações de Jung. Isto é, tanto a teoria da relatividade com sua equação famosa que relaciona massa e energia, quanto a mecânica quântica e seus conceitos particulares para o universo da microfísica, parecem influenciar Jung em seu modelo de uma tentativa de aproximação mente-matéria. Na vivência de consultório tenho percebido a presença constante do arquétipo psicóide pela interação de imagens, emoções e dinamismos corporais de meus pacientes e de meu próprio corpo. A noção de outros corpos, além do corpo fisiológico, é desenvolvida por vários autores desde Freud, que demonstrou que a conversão histérica ocorre em um corpo simbólico, distinto do corpo fisiológico, com Dejours (1997) com a noção de corpo erótico ou corpo de relação, Jung (1984) com o conceito de inconsciente somático, Anzieu (1989) com a descrição de envelopes epidérmicos, olfativos, táteis e sonoros, Mindel (1989), com sua formulação de corpo onírico, e Salant (1992), que descreve as importantes interações do corpo sutil no campo transferencial. Pretendo contribuir para a integração do corpo simbólico em psicoterapia com a descrição do que chamo em meu trabalho de corpo psicóide. Considero esta terminologia melhor do que a própria expressão corpo sutil que é mantida por Salant (op. cit) visto que esta última mantém um vínculo estreito com a tradição religiosa do oriente, mais do que com a psicologia do inconsciente. A expressão corpo simbólico (Ramos, op. cit.) também não me parece a ideal, pois a nosso ver a expressão simbólico é por demais ampla, tendo sido usada pela psicanálise desde Freud, mas com sentido diverso ao simbólico de Jung. Além disso, a expressão corpo psicóide faz justiça ao referencial de onde deriva e do qual depende, o arquétipo psicóide, definido e justificado por Jung (1954/1972). A conceituação de arquétipo psicóide é associada à noção de sincronicidade, pela qual o arquétipo é relacionado não só ao mundo orgânico da biologia e do instinto, mas ao mundo material em si. A sincronicidade é definida por Jung como a coincidência 11 significativa (para o sujeito) de um evento psíquico subjetivo e um acontecimento material externo. São eventos significativos acausais, onde o pressuposto tradicional da modernidade de causalidade é radicalmente confrontado por uma ordenação acausal dos eventos, pela constelação ou ativação de um arquétipo. Estendendo-me sobre a questão dos eventos sincronísticos porque a relação corpo-mente pode muitas vezes ser entendida não por uma relação de causalidade, mas por uma relação de sincronicidade. Naturalmente, muitas vezes podem-se estabelecer causas psíquicas para eventos orgânicos, e vice-versa, a origem causal evidente de fenômenos metabólicos e hormonais para diversas patologias mentais, dentro da mais pura tradição científica aristotélica da causa efficiens. Mas, como lembra Ramos, em muitos casos que se tentou a explicação causal para patologias as mais diversas, esbarrou- se em um reducionismo de frágeis bases teóricas, pouco demonstrável clinicamente. É o caso da chamada personalidade tipo A como produzindoas cardiopatias e personalidade tipo C como tendendo a sofrer de câncer e tumores em geral (Ramos, 1994, p.51). As idéias de Jung de sincronicidade também se inserem na crise paradigmática da modernidade no que concerne à falência do monopólio da causalidade em ciência. Boaventura de Sousa Santos (2000, 2001) não deixa de discutir uma nova emergência da noção de finalidade em ciência, chegando mesmo a mencionar C.G.Jung (Sousa Santos, 2001). Na verdade, a abordagem arquetípica é essencialmente finalística, teleológica, visando um telos ou alvo dos sintomas e eventos. A questão central não é por que um tal sintoma aparece, mas para que aparece? Qual o seu alvo? A questão do corpo psicóide adquire importância essencial em pacientes terminais, pois a questão teleológica implica também a noção de sentido. Quando há contato com um sentido existencial de cada um, com uma verdadeira atitude religiosa para com a vida; o prognóstico melhora sensivelmente. A atitude religiosa implica a descoberta do religio; (gr: “observação atenta aos conteúdos internos”) que a própria doença pode, em muitos casos produzir, em vez da atitude oposta: ódio e revolta. No primeiro caso, observa-se um tremendo e rápido desenvolvimento psicológico, sensibilidade e capacidade de amar e doação; no outro, sentimentos opostos narcisistas de auto-destruição. 12 Como já mencionei, penso que as teorias psicológicas válidas são construídas a partir de interrogações na clínica. Procurando seguir este mesmo princípio em meu trabalho, minhas interrogações sobre as relações corpo- mente têm início a partir de repetidos achados clínicos. Em diversas situações na clínica, quer seja pelo histórico da patologia, quer seja pela dinâmica transferencial, o corpo representou um continuum com o psíquico, tendo grande importância simbólica para o desenvolvimento do caso clínico a compreensão deste continuum, e o respeito a este continuum, dentro do discurso e dos procedimentos terapêuticos. Acho importante mencionar alguns recortes clínicos para que fique claro o que quero dizer, e para enfatizar minha posição de que qualquer proposta teórica em psicologia profunda deva partir da prática de atendimento clínico. Certa paciente procurou-me com queixas de vertigens repetidas, que a impediam de exercer sua atividade de médica em um hospital. Já havia passado por duas longas análises, cada uma por cerca de oito anos quando, dois anos antes, os sintomas tornaram- se agudos e a paciente decidiu procurar-me. Em sua última terapia sua analista encaminhou- a um tratamento conjunto com um psiquiatra, que iniciou uma medicação com alprazolam, chegando a lhe prescrever 3 g por dia, sem resultados positivos. A paciente na ocasião respondeu a esse tipo de abordagem apenas com bastante sonolência e persistência dos sintomas vertiginosos. A paciente compareceu às consultas iniciais bastante desesperançosa, deprimida, cansada de fazer uso de fármacos, tendo sua vida social prejudicada pelas vertigens constantes. Era obrigada a evitar qualquer diversão social, vivendo uma vida isolada, tipo trabalho- casa, casa- trabalho, com raras oportunidades de relacionamento e convívio social. A origem das vertigens era um mistério, não se tratava de uma síndrome de Menière, afastada há muito por exames clínicos. O trabalho de reconstrução cuidadoso ajudou em muito a encontrar o caminho para o simbolismo corporal, que abriria soluções novas para o processo terapêutico. Também o trabalho simbólico com técnicas expressivas não- verbais, em especial o desenho, trouxe resultados excepcionalmente bons. Com pouco mais de um ano de análise, os sintomas físicos haviam praticamente desaparecido. 13 Tornou- se vital durante este período, construir uma relação com o corpo simbólico. Tronco, pescoço e cabeça eram parte dos dados da análise, e parte dos símbolos mais importantes. Porque a vertigem era o sintoma predominante em minha paciente? O estar- de pé, em oposição ao estar deitada, teria relação com a manifestação de seus sintomas? Tornou- se evidente que sim, e a inclusão do corpo psicóide nas interpretações tornou- se bastante produtivo. Como referencial teórico, ficou claro para mim que eu teria que contar com um sólido referencial teórico- operacional que incluísse o corpo psicóide dentro do todo do desenvolvimento do ser. O terapeuta atento ao corpo- mente à linguagem básica do corpo, que complementa aos fonemas articulados, terá sua relação com seus pacientes profundamente alterada. Não só a comunicação pré-verbal, a de murmúrios choro e gemidos é fundamental em comunicação, mas também a linguagem corporal, gestual, a comunicação infra-verbal. (Anzieu, 1998). Estas mudanças se manifestarão de forma profunda, em diversas situações, desde a forma de reagir a condições inesperadas aparentemente externas ao setting terapêutico, até a novas maneiras de ouvir e valorizar queixas aparentemente apenas somáticas. Dentro do novo referencial teórico- operacional que tenho procurado desenvolver esta última colocação não tem mesmo sentido, visto que, seguindo as idéias do paradigma emergente da complexidade, corpo e mente expressam a mesma totalidade. Meus exemplos clínicos se detêm em pacientes que têm se submetido à análise junguiana sob minha orientação. Trabalho com análise individual de adultos ou adolescentes, com a freqüência de uma a três vezes por semana. Em diversos pacientes o simbolismo de distúrbios orgânicos trouxe contribuição para uma melhor compreensão do caso clínico. O., 39 anos, separada, mãe de uma filha com 20 anos, procurou análise com quadro grave, e suspeita diagnóstica inicial de um processo esquizofrênico. O. estava sendo acompanhada por psiquiatra em clínica com regime aberto e terapia ocupacional, fazendo uso de haloperidol, 5 mg ao dia. Veio trazida em quadro de intensa regressão, acompanhada pelo companheiro de então, seu segundo marido. A transferência foi intensa e O. apresentou uma resposta terapêutica excelente. Não me pareceu, pelo desenvolvimento do caso, uma situação de psicose esquizofrênica, 14 mas muito mais um quadro de transtorno conversivo, acompanhado de queixas somáticas difusas. As queixas somáticas eram basicamente de dois tipos: eventuais dores abdominais provenientes, segundo O. de uma gastrite antiga, e dores de cabeça quase insuportáveis, que em anos atrás haviam cedido após o uso de tryptanol, 25mg ao dia. As dores somáticas eram sempre seguidas de um estado de depressão e astenia profundas. O simbolismo onírico de O. foi uma das chaves para sua boa resposta terapêutica em 3 anos de análise. O., pessoa bastante inteligente e sensível, teve pronta abertura ao simbolismo onírico e pode integrar novas possibilidades existenciais. Dentre seus sonhos, diversos apontaram para a importância do entendimento de seu corpo como expressão da totalidade de seu ser. Um dos principais sonhos, ligado também à transferência, surgiu em relação a um símbolo vital para O., a cruz: "Sonhei que era crucificada. Você, meu analista, me crucificava. Este era seu papel. Os pregos de crucificação eram de madeira, de modo a fazer menos barulho. Apesar disto, algumas pessoas observavam, à distância, e isto me incomodava". Trabalhamos este sonho durante inúmeras seções. O simbolismo da cruz refere- se ao próprio mistério simbólico da encarnação, a verticalidade do espírito que se encarna na horizontalidade da matéria. Este é um dos simbolismos do mistério da cruz: a relação mente- corpo, e como O., com suas racionalizações e intelecto mostrava uma enorme dificuldade em encarnar! Estava claro que minha tarefa, como analista, era crucificá-la. Um outro sonho, que O. tivera meses antes, também apresentava o motivo da cruz. Ela via alguém crucificado,mas de cabeça para baixo. Lembrou-se, que sua mãe, pessoa muito religiosa, havia lhe dito que S.Pedro fora crucificado desta forma. Comentei que ela deveria encontrar uma maneira pessoal de encarnar, e não de acordo com o convencional. Em seus estudos sobre sonhos que apresentou em conferências na clínica de Tavistock, Jung procurou estabelecer certos símbolos oníricos associados a distúrbios somáticos, inclusive alguns símbolos associados ao sistema nervoso autônomo. Nestes sonhos, o aparecimento de animais é uma constante6. (Jung, 1935/1976). 6 “Eu mantenho (…….) que representações de fatos psíquicos em imagens como a cobra ou o lagarto ou o caranguejo ou o paquiderme ou animais análogos também representem fatos orgânicos. Por exemplo, a serpente frequentemente representa o sistema cérebro-espinhal, especialmente os centros inferiores do cérebro, particularmente a medula oblongata e a coluna vertebral. O caranguejo, por sua vez, tendo somente 15 O. sonhou diversas vezes com seu gato de estimação, sempre em situação de doença ou de ameaça de morte. Em dos sonhos, seu gato quase caia em despenhadeiro profundo, e O. tinha que se esforçar ao máximo para salvá-lo. Na ocasião destes sonhos repetidos com o gato, O. havia se separado de seu segundo marido e iniciava uma relação afetiva bastante idealizada com homem mais velho. Sempre se referia a alusão dúbia que a palavra "gato", poderia conter, lembrando- se de seu namorado. Embora concordando com O. que o símbolo tem sempre uma realidade polissêmica, multifacetada, suspeitei de alguma associação a nível orgânico destes sonhos, embora nunca tenha verbalizado isto para a paciente. Ela própria começou a perceber o curioso sincronismo do aparecimento em sonhos, do seu gato carente de atenção, doente, ou mesmo ameaçado de morte, e suas graves crises abdominais. E mais, chegou ao importante insight do ganho secundário que procurava ter ao procurar seu companheiro em momentos de dor abdominal. Passou a tentar resolvê-la sozinha. O. abandonou o Haloperidol já no primeiro semestre de análise devido a uma rápida melhora clínica. Houve um desenvolvimento significativo em seu processo simbólico, com grande transformação de personalidade. A inclusão dos dinamismos corporais dentro do processo analítico levou a uma reavaliação do quadro clínico como não se tratando de uma psicose grave. Paralelamente à melhora psíquica, o quadro orgânico apresentou uma razoável evolução, com espaçamento das dores de cabeça e dores abdominais, que tinham conteúdo simbólico. O que fundamentava a suspeita de processo psicótico anterior era uma introversão exagerada da paciente, uma quase perda de contato com a realidade. O seu corpo foi como se fosse um “sistema tampão” entre seu rico mundo interno e a realidade exterior, um instrumento do qual a paciente pode se utilizar para retomar estudos universitários (um curso em fotografia) e utilizá-lo depois como profissional. Situações parecidas como a de O. nas quais o corpo funciona como elemento protetor quando núcleos psicóticos ameaçam aflorar perigosamente, são tomados erroneamente como verdadeiras “psicoses processuais” e como tal medicadas. O material arquetípico um sistema simpático representa principalmente o sistema simpático e parassimpático abdominal”. (C.G.Jung, 1935/1976, Conferência III de Tavistock , parag. 194, minha tradução). 16 simbólico procura, nestes casos, através do corpo, com símbolos construtivos, organizar a consciência. Cabe ao terapeuta, penso, acompanhar esses processos estruturantes que emergem a partir do inconsciente. Voltarei a essa questão através de outros recortes clínicos no decorrer do trabalho. Uma paciente de 58 anos procurou-me para análise em maio de 1997. Veio referida pela nora. É curioso enfatizar que a indicação se deu em ’89 ou ’90, (a paciente não se lembra bem) e ela busca análise somente oito anos mais tarde, fato que expressa uma “petrificação psicológica” importante. A paciente, a quem chamarei M., é casada pela segunda vez, tem dois filhos casados e bem sucedidos profissionalmente. Ambos têm ampla experiência profissional no estrangeiro, a própria paciente é casada com europeu e conhece bem o velho continente. As sessões ocorreram três vezes por semana. O número total de sessões foi pequeno, pois a análise durou apenas um semestre, como veremos adiante. Os dados transferenciais de M. são bastante significativos. A sua busca tardia de análise já é dado transferencial. Deterei-me um pouco sobre o fluxo do processo transferencial e contra- transferencial no caso de M. por que nele o corpo psicóide da paciente e do analista desempenharam um papel bastante importante. M., desde a primeira sessão, insistiu em chamar-me pelo primeiro nome, pedindo-me que a chamasse também pelo primeiro nome. Por trás desse ritual de cordialidade e afetividade pude sentir uma enorme vontade de poder. M. transpirava poder em seu casamento e em suas relações. Seus fisioterapeutas eram os melhores, seu dentista o melhor de todos, seu filho mais velho um gênio profissional que acabara de receber um prêmio em Nova Iorque. Tudo isso era verdade, pelos cartões e pelas fotos que mostrou em análise e pelos ricos detalhes que me contava. Naturalmente M. esperava de mim também o melhor profissional, e isso se me afigurava como um peso enorme, mesmo a nível corporal. Pude perceber meu corpo rígido e contraído durante as seções, dificultando o fluxo das intervenções. M. conhece bem a Europa, domina bem o Alemão e o Francês e “testou-me” diversas vezes quanto ao domínio de línguas ou ao conhecimento de lugares. Sem dúvida o impulso de competição a dominava, mas juntamente com ele um jogo de sedução também teve lugar na transferência. 17 Grande parte do tempo das sessões foi ocupado com suas queixas somáticas, principalmente a dor bilateral na articulação do ombro, que começara quatro meses antes. Essa sim, a razão, mesmo em nível consciente, para a busca da análise. Sua demanda há oito anos atrás não tinha sido forte suficientemente; fora mais o desejo da nora, com quem não se dava muito bem. O tecido das lembranças de eventos de infância foi emergindo gradualmente, dentro do fluxo da comunicação verbal ; na expressão simbólica de seu processo de individuação, que se manifestou em sonhos, lembranças, sintomas psíquicos e queixas somáticas. Procurei dar a todas essas manifestações atenção idêntica, todas sendo consideradas importantes, desde que expressavam símbolos. Como já foi mencionado, foram necessários os sintomas físicos para que M. procurasse terapia oito anos após a indicação inicial . Tentei abordar a patologia orgânica de forma simbólica, dentro do todo psico-físico. Ziegler (1983) refere-se aos problemas articulares detendo-se na questão simbólica do enrijecimento. Segundo este médico e analista junguiano suíço, os fenômenos do enrijecimento articular expressam a morte, até por questões semânticas. As palavras o demonstram bem: A antiga raiz indo-européia stip é encontrada no inglês stiff, significando rigidez, em geral. Stare em inglês, olhar fixo, parece ter a mesma origem; também o alemão medieval stift e o latim stipes… Em alemão encontramos störrisch, teimoso, recalcitrante, e sterben, morrer. (Ziegler, 1983, p.112). Aqui fica clara a relação íntima entre a imobilidade e o morrer, o rigor mortis, que vista simbolicamente, é a possessão da consciência pelo que em psicologia junguiana procura- se conceituar como o arquétipo do senex. A flexibilidade, ao contrário, é fenômeno vital para a natureza. A juventude,a criatividade, e vir-a-ser infantil são flexíveis e moldáveis. “Reumáticos e Estóicos”, é um título de um artigo de Ziegler (1974). 18 A abordagem junguiana envolve necessariamente a noção de arquétipo, conteúdos do inconsciente coletivo irrepresentáveis, mas que se manifestam em nível da imagem psíquica, da experiência externa e também dos sintomas somáticos como procurarei enfatizar neste trabalho.Entre os diversos arquétipos, Hillman (1990) descreve um par polar, puer e senex. O puer, eterna criança, energia infantil é portadora da agilidade mercurial; o senex, velho e tendendo à petrificação, é associado ao peso plúmbeo de Saturno. A persona7 de M. desempenhou sempre o papel jovial, de proximidade afetividade. Já mencionamos isso, a insistência para que eu a tratasse por você, o entusiasmo aparente com a análise e declarando “sua simpatia por mim”. O discurso junguiano fala de que a persona oculta sempre a sombra8, e detectamos uma sombra de senex por trás de sua afabilidade um pouco afetada de sua persona. Vejamos primeiramente como se manifestou o senex em sua psiqué. Nas seções iniciais, são relatadas suas dificuldades com a nora, que acaba por encaminhá-la à análise. Fala de quando a conheceu: foi encontrá-la já casada com seu filho mais velho, em Munique. Na praça central da cidade, seu filho a viu à distância e correu para abraçá-la. Um grande e demorado abraço se segue, a nora observa afastada a cena e M. percebe um olhar destrutivo de inveja e de não participação. 7 A persona (latim: per, sonare: “soar através de”). Refere-se à máscara teatral do ator antigo. Segundo Jung, é uma complexa associação de fatores de como o indivíduo quer aparecer para o social, e ao mesmo tempo de como a sociedade exige que ele apareça. Como tal, a persona tem partes conscientes e outras inconscientes. A maturidade psicológica demanda uma gradual desidentificação do ego com a persona, embora ela sempre existirá, pois representa o arquétipo da adaptação ao social. Há semelhanças do conceito de persona com o super-ego de Freud e o conceito de “falso self” de Winnicott, embora estes três conceitos representem instâncias psíquicas diferentes. 8A sombra é o conceito que Jung dá para a personificação de conteúdos recalcados no inconsciente, complexos afetivamente carregados, incompatíveis com a atitude consciente e com a persona. 19 Pelos fatos atuais, segundo os quais a paciente sente seu filho mais velho distanciado, não só fisicamente, pois moram em cidades diferentes, mas afetivamente, e mais próximo de sua mulher, com a qual tem duas filhas e forma uma família muito feliz, pôde perceber as dificuldades de M. de entrar em contato com sua sombra. Usando os mecanismos de defesa de recalque e projeção, vê na nora muito de sua frustração de ter que perder o filho. Todo esse dinamismo está assustadoramente inconsciente, e M. deposita na nora sua sombra não integrada. Pai e mãe da paciente são de classe financeira abastada, e cultura e relacionamentos significativos nunca faltaram a M. Em sua infância começam as viagens com certa freqüência, não só para o Rio, mas para a Europa, de preferência Paris. Disse no início que tive uma impressão de uma enorme vontade de poder em minha paciente. Com suas associações e com o trabalho gradual de reconstrução, posso agora situar a origem desse poder em seu complexo paterno. Há em M. uma identificação com o poder do pai em nível bastante inconsciente. Através de seu sucesso profissional, o pai se impôs socialmente e no microcosmo familiar. M., sendo filha única, trás memórias antigas de uma preferência especial do pai, de seu afeto e proteção, às vezes exagerados. Em contraposição, há poucas referências à mãe, que trabalhou em educação e parece não ter tido grande influência em M. a não ser desempenhando o papel de mostrá- la como não ser na vida. Na verdade, a passividade e a ausência da mãe chegam mesmo a irritar M. Seu complexo materno negativo levaram-na sempre a procurar o que não é semelhante à mãe, a independência emocional das pessoas, a espontaneidade e o gosto pela solidão. Em sua atual viagem à Europa gaba-se de sua “independência”, pois pode voar só, apesar das dores nos ombros e pode ficar em cidade européia durante longo tempo, “até o Natal”, sozinha em seu apartamento, apenas tratando de sua capsulite e indo periodicamente a algum evento cultural. 20 Percebemos aqui a complexidade da trama transferencial: a capsulite, com dor constante, mesmo durante a noite, contínua, impedindo-a de dormir bem, favorece um processo regressivo, no qual o arquétipo da Grande Mãe é em mim projetado. Este arquétipo proporciona gratificação dos instintos básicos, é o grande útero universal no qual mergulhamos em sono profundo, sem sonhos. É o princípio do não-verbal, ao contrário do arquétipo do pai, que trás o limite, a lei, as proibições e de uma perspectiva filosófica, expressa o princípio do logos. É interessante lembrar que o arquétipo da grande mãe está mesmo associado à matéria (mater-ia)9 em geral e ao corpo em particular . A paciente, com toda sua ambigüidade em relação à sua mãe pessoal- a primeira representante do arquétipo da Grande Mãe- procura de alguma forma o conforto da mãe em nível arquetípico, no analista, pois seu corpo está pedindo esse amparo. Mas a fuga para a Europa é uma expressão desta ambigüidade, pois se depender de mim, será como sua mãe, dependente de seu todo poderoso e idealizado pai. Ziegler (1983, p.119ss ) compara os reumáticos com os filósofos estóicos. A rigidez das articulações teriam de forma sincronística alguma conexão com a rigidez moral, perseverança, traços obsessivos de personalidade, um quê de anedonia - ou seria a-pathia, o ideal estóico? Em primeiro lugar, Ziegler, embora se refira muitas vezes à artrite reumatóide stricto sensu, em outras fala de uma rigidez articular em geral, nesse caso penso que a capsulite adesiva ou ombro gelado de M. se adequa perfeitamente bem às suas descrições. Por outro lado, embora pense que as comparações de Ziegler dos transtornos articulares com características psíquicas específicas são um tanto quanto elásticas, vejo em M. características bem “estóicas” de comportamento. Ziegler chega mesmo a denominar a afetividade dos reumáticos de belle indiference, empregando o termo de Charcot com relação aos histéricos. Se os sentimentos de M. me parecem “afetados”, ou artificiais, encontro aqui uma semelhança de descrição. O fato de ser filha única, realçou a preferência do pai de M. em relação a ela, pois nunca sofreu a concorrência de qualquer irmão ou irmã na fantasia inconsciente de seu pai, dominante de toda a cena familiar. 9 Cf. Webster’s Third New Dictionary – Encyclopaedia Britânica, Vol. II, Chicago, Merriam, p.1394. 21 O casamento precoce aos vinte anos, quando ainda estudava letras, interrompeu qualquer desenvolvimento profissional que pudesse ocorrer posteriormente. Entretanto, cursos particulares, domínio de idiomas e uma inteligência adequada, dotaram M. de uma cultura geral bastante boa. Sua agudeza de percepção e sua competitividade não foram usadas de forma extrovertida, socialmente, mas ao contrário, voltadas para o ambiente doméstico. Esse poder e competição parecem estar presentes em sua postura exageradamente crítica em relação à nora, uma postura de caráter projetivo. Essa é pois, a manifestação do senex a nível psíquico: uma identificação com o autoritarismo e poder do pai, que aparece em sua vida pessoal em suas repetidas demonstrações de segurança, independência e domínio sobre os outros. Naturalmente esses fatores apareceram também na transferência, em uma disfarçada e contínuatentativa de domínio sobre o analista. A nível somático, podemos afirmar que as patologias articulares são típicas de um psiquismo dominado pelo arquétipo do senex. Estamos afirmando isso, baseando-nos nas colocações de Ziegler (1983), e Hillman (1999). O primeiro procura circunscrever o simbolismo psicológico inerente às patologias articulares, o último, define o símbolo do senex como petrificação psicológica e rigidez . A paciente M. procurou análise já com o ombro esquerdo petrificado e bastante dolorido, o ombro direito também atingido em menor grau. O diagnóstico de capsulite adesiva foi feito por especialista no Rio, e confirmado no exterior, onde M. fez tratamento fisioterápico e consultas com conhecido ortopedista. Além da fisioterapia, foi- lhe prescrito injeções de corticóide local. Durante o período de análise, de aproximadamente um ano, após o qual M. viajou, houve relativa melhora, menos dor, embora M. ainda apoiasse o braço esquerdo em uma almofada durante todo o tempo da consulta. 22 Com relação ao caso de M., é importante lembrarmos a noção de arquétipo central ou Self em Jung. Esse arquétipo representa a totalidade biopsiquíca de qualquer indivíduo, e suas manifestações, quer normais, quer patológicas, visam o processo de individuação, a auto-realização do indivíduo. Nesse aspecto, Jung tem uma visão “otimista” da neurose, pois o sintoma neurótico, visto teleologicamente, como causa finalis , busca um alvo (telos) ou realização. No caso em questão de M., os sintomas neuróticos não foram suficientes para a busca de análise, devido à suas defesas racionais. Foram necessárias as manifestações somáticas- capsulite adesiva- para que a paciente procurasse ajuda. O arquétipo do Self, manifestando-se como o corpo psicóide, envolve a misteriosa totalidade biopsicosocial do indivíduo; sendo que os processos auto-imunes constituem uma de suas patologias mais importantes. Como nos lembra Mello F.o, … embora progressivamente mais conhecidos e estudados, [os processos auto-imunes] envolvem uma série de fenômenos com toda uma aura de mistério e de complexidade, cuja natureza compreende uma gama muito grande de enfermidades ou de estados que predispõem a enfermidades. (Mello Fo.1992, p.140) Assim como M., talvez por coincidência, outros casos clínicos com patologia articular estão atualmente em análise sob minha orientação. Um deles é C, jovem médica psiquiatra de 35 anos, casada e mãe de dois filhos, que está pelo terceiro período em análise comigo, tendo feito antes dois períodos de quatro anos cada. Estes períodos de análise foram interrompidos por razões de ordem financeira, e também porque um questionamento mais emergencial de C. havia sido de alguma forma elaborado. Neste mais recente período, que começou há dois meses um dado novo aparece: C. relata um enrijecimento das articulações proximais e distais dos dedos das mãos, com calor local. Procurando um bom clínico especializado, foi detectado o fator reumatóide e feito o diagnóstico de artrite reumatóide. O diagnóstico é ainda confirmado pela forte incidência familiar, pois a avó e a mãe de C. ambas tiveram artrite reumatóide. 23 O que mais preocupa C., segundo suas próprias palavras, é que a doença está se manifestando nela de forma extremamente precoce, e intensa. Tomando em consideração os aspectos concretos da doença e todas as medidas de tratamento médico mais imediato, seu lado simbólico tem sido abordado, e C. tem se mostrado aberta para tal. As idéias de Ziegler que discutimos em relação a M. e a Capsulite Adesiva parecem estar também em C., pois podemos perceber o polo psíquico de sua artrite reumatóide em uma constelação do arquétipo do senex segundo percebemos em sua história pessoal e sua dinâmica de personalidade. Na verdade, os aspectos arquetípicos das doenças reumáticas têm seu referencial sincronístico, não explicáveis pela causalidade10 segundo estatísticas bem comprovadas: “pessoas com patologias auto- imunes tendem a ser quietas, introvertidas, confiáveis, consetidoras, restritas na expressão de emoções, rígidas, superativas e auto-sacrificadas”. (Solomon e Moos, in: Ramos,1994, p.67). As características de personalidade citadas aparecem em C. Ela é filha única de pais médicos, sua mãe é pediatra e o pai psiquiatra, os pais tendo se separado quando C. contava 9 anos. As lembranças que C. trás da infância são as de uma mãe excessivamente cautelosa nos cuidados com ela, como se aplicasse os princípios rigorosos de uma pediatria meticulosa a regras alimentares rígidas e um controle exagerado. O pai distante, acaba abandonando a família devido a um envolvimento afetivo. C. entretanto, desenvolveu uma identificação a nível profissional com o pai, especializando-se também em psiquiatria . Mais tarde, esta identificação irá se manifestar em verdadeira simbiose profissional, pois C. se sentirá incapaz de abrir seu consultório próprio, ou mesmo dividir horários com um colega, preferindo atender no mesmo local de seu pai. Este trata de adultos, e eventualmente encaminha crianças para C. tratar, a maioria filhos de pacientes seus. 10 Menciono aqui o referencial causal como polar ao sincronístico (Jung) pois a sincronicidade implica a existência de eventos acausais significativos coincidentes, no caso, traços obsessivos de personalidade (pólo psíquico) e rigidez articular (pólo corporal). 24 Um emaranhado simbiótico, como se vê, que impedia C. de crescer profissionalmente. O arquétipo do senex, manifestando-se em padrões de rigidez e obsessividade, impedia C. de dar saltos maiores, pois julgava-se sempre incapaz mesmo de empregos de maior envergadura e responsabilidade profissional. Assim, começou trabalhando em grande hospital especializado em crianças com paralisia cerebral, depois em outra clínica infantil para crianças psicóticas, e finalmente em serviço municipal para adultos com psicoses graves. Em todos estes serviços, C. trabalhava por honorários quase simbólicos, com pacientes muito graves, que segundo suas próprias palavras, apresentavam sempre um prognóstico tão negativo que o próprio interesse do terapeuta pelo processo era prejudicado. Ao mesmo tempo C. se protegia, não se sentindo cobrada pela eficácia de seu trabalho terapêutico, segundo pudemos ver em análise. A enorme auto- exigência encontrada em artríticos está presente em C. dividindo seu tempo entre as tarefas profissionais e o cuidado dos dois filhos, sempre foi extremamente obsessiva em suas tarefas, nada podendo falhar ou estar aquém de padrão elevado. Portanto traços rígidos e obsessivos aparecem na mãe, no pai e na própria paciente. Pela elaboração gradual do padrão de rigidez, C. pode aos poucos se valorizar. Realizou um curso de especialização em psiquiatria , sendo aprovada com ótimo grau, conseguiu um emprego de ensino em boa faculdade, onde recebe um salário razoável pela carga horária envolvida, e que lhe dá ainda satisfação pela possibilidade intelectual de estudo e pesquisa. Prepara-se agora para dividir o consultório particular com uma colega. O polo somático do arquétipo do senex em C. é sua artrite reumatóide. Refiro- me a ela em análise como parte de sua totalidade, lembrando as idéias de Groddeck, de que a doença psíquica ou somática são uma manifestação do isso, da essência da pessoa e de sua própria maneira de ser. “Acredito que o humano é vivido por algo desconhecido. Existe nele um ‘isso’, uma espécie de fenômeno que comanda tudo que ele faz e tudo que lhe acontece. A frase ‘eu vivo’.... é verdadeira apenas em parte; ela expressa apenas uma pequena parte desta verdade fundamental: o ser humano é vivido pelo isso”. (Groddeck, como Patrik, Troll, carta 2, em “O livro d’Isso”,p.9, 1977). 25 Esta compreensão favorece em terapia a necessidade da busca de flexibilidade, da criatividade do puer que C. encontrou em parte na pesquisa na faculdade e no contato com seus alunos. Ainda quanto ao contato com o puer, para se contrabalançar o predomínio do senex, C. foi reforçada em sua demanda de um trabalho com teatro, atividade que exerceu quando adolescente. No exemplo citado da constelação do arquétipo do senex no campo transferencial, as emoções, e o corpo psicóide de minha paciente e o meu próprio responderam sincronisticamente à ativação do arquétipo. Quero enfatizar a importância de se valorizar a presença corporal de paciente e analista no campo transferencial, um dado que enriquece e abre novas perspectivas terapêuticas. Os recortes clínicos brevemente discutidos permitem uma noção de como a abordagem do todo corpo- mente tem sido feito em minha prática. Creio que minha forma de ouvir e valorizar a somatização simbólica ( Dejours, 1997) tem modificado bastante minha escuta e aprimorado meus resultados. Estas observações clínicas levaram-me a buscar um construto teórico adequado para achados clínicos do continuum corpo- mente. Penso que o conceito de corpo psicóide que procuro justificar e desenvolver neste trabalho, pode em muito contribuir para uma abordagem clínica que valorize a totalidade da personalidade. 26 CAP. 1. BASES FILOSÓFICAS PARA UMA ABORDAGEM CORPO-MENTE. A DIGNIDADE DA MATÉRIA No universo da Grécia clássica, pode- se observar a inexistência da dicotomia corpo –mente, pressuposto tão fundamental da modernidade. Na Ilíada e na Odisséia o herói grego está lá, onde seu corpo está, ele é o seu corpo. Não existe uma psyché dicotomizada do corpo. Os gregos não teriam então um conceito de psique? Certamente. Mas a psyché estaria na Khephalé (cabeça) inerte, sem função, durante a vida do herói. Somente depois de sua morte, sua psyché se desdobrava, descia até o mundo de Hades - mundo dos mortos -e lá permanecia como um Éidolon, um duplo abúlico do herói, exatamente como foi em vida. Por isso Ulisses, na Odisséia, ao evocar os mortos dos Hades, vê o Éidolon de Aquiles, exatamente como foi em vida, e com sua ferida mortal no calcanhar (Brandão, 1986). A alma na Grécia homérica era vista como um sopro vital, a palavra para mente era phrén, diafragma, com isto significando, respiração, hálito vital. (Onians, 1973). Também outras características psíquicas, como a virtude do herói, thimé, era tida como a glândula timo, ao nível do osso esterno.(Onians, op. cit.) Percebemos então a alma imbricada no tórax, por isto se diz, o herói homérico simplesmente estava lá onde estava o seu corpo, não havia o conceito de alma separada do corpo, pelo menos na Grécia homérica (*). (* )Enfatizo “Grécia homérica”, porque em outros períodos históricos da Grécia antiga, entre os órficos, por exemplo, considerados um dos precursores importantes do cristianismo, cultivava–se toda uma complexa doutrina da vida post–mortem, a metempsicose, e a culpa individual das ações nesta vida, já havendo, portanto, uma dicotomia corpo-mente de forma sofisticada (Wili, 1944/1971). 27 Do ponto de vista da história do pensamento no ocidente, a cisão corpo-mente se instaura com a origem mesma da filosofia, do pensamento racional de Sócrates, Platão e Aristóteles. Entre os impropriamente chamados filósofos pré-socráticos, não ocorreu tal cisão, ou melhor, a cisão mente-matéria. Na verdade tais pensadores não foram pré- socráticos, no sentido cronológico que tal expressão implica, pois alguns deles (Demócrito constitui apenas um exemplo entre outros) nasceram mesmo depois de Sócrates. Nem seu pensamento é menos sofisticado do que o que foi desenvolvido por outros pensadores na Grécia clássica. Por isto Carneiro Leão propõe chamá-los pensadores originários. (Carneiro Leão, 1991). Mantenho em meu trabalho a expressão tradicionalmente consagrada de filósofos pré-socráticos. É importante ressaltar a observação de Aristóteles, de que os pré-socráticos não foram filósofos estritamente falando, mas, na verdade, estudiosos da physis, physiologói, (cit. em Carneiro Leão, 1991, p. 17). Os pré-socráticos preocuparam-se não com a questão fundamental da origem do homem, mas com a natureza e a constituição do universo. Pensaram na origem de todas as coisas, baseada no arché, substância primordial original do cosmos e essência atual de toda a criatura. Os quatro archai seriam os quatro elementos, terra, ar, água e fogo. As elaborações dos pré-socráticos constituíram a base conceitual da antiga alquimia alexandrina; a técnica da alquimia, sua techné, os processos de mumificação do antigo Egito faraônico. Von-Franz (1979, 1985). Que importância tem estas questões da pré-história da filosofia para compreensão da totalidade corpo-mente? Em minha opinião, uma enorme importância, pois do ponto de vista histórico, o princípio hilosoísta da alquimia encerra a essência do corpo-mente, isto é, a questão da presença da psiqué no corpo. Isto explica, dentro de uma fundamentação da história da filosofia, a importância da alquimia para um resgate do corpo simbólico que caracterizo como corpo psicóide11. A filosofia pré-socrática e a alquimia antecedem, portanto, a visão dicotomizada do mundo pela filosofia ocidental. 28 Um aprofundamento sobre a natureza da alquimia e sua importância para a história da filosofia torna-se fundamental. Julgo que a alquimia tem enorme significado na compreensão da unidade corpo-mente em filosofia e na psicologia profunda. O seu fundamento hilosoísta12, a compreensão do espírito inserido na matéria, está presente na filosofia de Jacob Boehme, na busca dos filósofos românticos da unidade homem- natureza, alcançando sua plenitude no pensamento de Espinosa, quando espírito e matéria ocupam a mesma importância como expressão da identidade única de cada ser, seu modus, ou maneira particular de expressão. (Chauí, 1989). O ponto de partida da alquimia é basicamente não creacionista. Na origem do mundo existiriam o espírito e a matéria, esta última não sendo criada pelo primeiro, mas tendo a importância idêntica a este. (Eliade,1979, Jung, 1945/1974, Von Franz, 1985). Na verdade, no processo de transformação do mundo, a chamada prima materia tem importância fundamental, pois através das infinitas transformações da matéria que constituem o opus alchymicum, o alquimista chegará, partindo dos metais vis, ao ouro ou à pedra filosofal. Na verdade a matéria é considerada, um increatum, não tendo sido criada ou produzida por um demiurgo, tendo a mesma importância que o espírito, desde os inícios do mundo. Na alquimia ocorre portanto, um fenômeno ausente nas religiões creacionistas, um respeito pelo que chamo a dignidade da matéria. A natureza simbólica do opus da alquimia está presente em um de seus aforismos mais conhecidos: aurum nostrum non est aurum vulgi. Portanto, a produção do ouro dos filósofos não é idêntica à obtenção do ouro literal, material, mas a algo de um valor mais diferenciado e significativo, de natureza simbólico-religiosa. O cosmo do alquimista é um universo vivificado pelo espírito, onde as relações de causalidade do homem da modernidade não estão ainda presentes. Há, em vez disto, uma relação da natureza com o homem baseada em analogias, em redes de significantes análogos. Assim os metais têm as características dos planetas, e esses de deuses. O mercúrio é tanto o metal mercúrio quanto o planeta de mesmo nome, e também o deus Hermes/Mercúrio com seus mitos e características divinas. Assim o metal chumbo ocupa11 A medicina oriental desenvolveu conceito semelhante, o “Linga sharila” no Induismo (corpo sutil), e a idéia dos meridianos do taoísmo. Entretanto há diferenças importantes entre o “corpo sutil” oriental e o corpo psicóide que serão discriminadas no cap. 5. 12 Hilosoísta. Atributo da filosofia material, referida às coisas da natureza. (Do grego hylé= matéria). 29 seu lugar neste universo de significantes análogos como o planeta saturno e o deus Saturno/Crono etc. Um psicanalista do círculo vienense de Freud, Hans Silberer (1917/1971) foi o primeiro a detectar o importante significado da alquimia para a psicologia profunda. Mas o trabalho de Jung foi extenso e definitivo neste resgate simbólico da alquimia para a psicologia moderna. Jung entendeu o opus alchymicum como o próprio processo de individuação ou maturação da personalidade, projetada nas diversas transformações dos metais, em suas dissoluções, sublimações, conjugações. Estas diversas operações alquímicas seriam como que transformações da própria substância psíquica presentes no processo terapêutico, na transferência e no processo de individuação em geral. Jung (1946/1972) procurou mesmo comparar o processo da transferência e contra-transferência com os símbolos de um tratado alquímico, de autor desconhecido, O Rosarium Philosophorum (O Rosário dos filósofos) de 1520. A importância psicológica da alquimia deriva do fato de que o homem da modernidade move-se no mundo da causalidade apenas em sua atitude consciente, influenciada pela evolução tecnológico- industrial. Seu inconsciente, porém, mantém os significantes analógicos típicos do pensamento mágico do alquimista. Estes valores simbólicos aparecem a todo instante nos sonhos, fantasias e produções delirantes de psicóticos. A alquimia trás subsídios à percepção das relações corpo/mente que desejo propor: o corpo psicóide tem características do significante analógico além dos fenômenos de causa e efeito. Este significantes analógicos, não causais, foram detidamente explorados por Jung em suas pesquisas sobre os eventos acausais presentes em coincidências significativas por ele denominadas de sincronicidade (Jung, 1952/1972 ). A complexa questão da sincronicidade será abordada em detalhe no capítulo 3 de meu trabalho pois a compreendo como fundamento teórico para a compreensão de um corpo psicóide mediando a relações da mente com o corpo. Voltaremos à questão do sentido simbólico da alquimia com relação ao corpo- mente, quando nos detivermos no estudo de algumas idéias de Jacob Boehme. Profundamente influenciado pelas idéias da alquimia, principalmente pelos conceitos de 30 Paracelso, Boehme abriu caminho para as reflexões dos filósofos românticos que procuraram a elaboração do dualismo homem/natureza presente na modernidade como herança iluminista (Gusdorf, 1993). O ROMANTISMO COMO COMPENSAÇÃO À “LA DÉESE RAISON”. As bases filosóficas para uma abordagem do corpo- mente podem ser estruturadas a partir das formulações dos pensadores do período romântico. Isto porque o movimento iluminista foi caracterizado por um afastamento da natureza, com a manutenção de uma separação do homem com a natureza que até hoje se mantém de certa forma como uma cisão com inúmeros desdobramentos, um mal da cultura da modernidade. Um destes desdobramentos é a dissociação da alma e corpo, uma expressão importante da desvinculação do homem de suas raízes naturais (Luz, 1997, p.30 ). Além disso, seguindo Ellenberger (1974) podemos considerar a psicologia profunda como um broto tardio do romantismo, como veremos a seguir. Procuraremos desenvolver neste capítulo as tentativas do movimento romântico de sanar essa dissociação, tentativas que tiveram profunda influência nas elaborações da psicologia profunda. Um dos precursores importantes do movimento romântico foi o místico e filósofo alemão do século XVII, Jacob Boehme. Outro pensador do século XVIII foi Baruch Espinosa, importante figura do romantismo alemão. Boehme, Espinosa e Von Hartmann, o pouco mencionado autor romântico de “A filosofia do Inconsciente”(1887) despertam-me especial atenção aqui, por suas idéias sobre um substrato comum ao espírito e à matéria que nos darão um referencial para a formulação teórica do corpo psicóide. Estas associações não são por acaso. Certas características do movimento romântico o aproximam em muito com características básicas da psicologia profunda, como por exemplo, sua contraposição com as tendências universalizantes do iluminismo, que procurava os referentes universais, e não individuais. Além disso, o movimento romântico procurou através de seus vários pensadores a reabilitação do instinto, intuição 31 e imaginação, dos símbolos, sonhos e fantasia, além de procurar soluções para a permanente dicotomia da mente com o corpo, do homem com a natureza. O Romantismo procurou resgatar a visão unitária do mundo renascentista, perdida pelo movimento iluminista.13 O movimento romântico assinalou um momento decisivo na filosofia e sensibilidade da Europa, um “contra-iluminismo”, como o chamou Isaiah Berlin, cujo efeito foi contestar, ainda que não demolir, o conceito mecanicista de mente que dominara o pensamento europeu desde os tempos de Hobbes e Locke. Essa revolução foi, de início, obra de poetas e pintores, não raro inspirados pelas elucubrações introspectivas de Rousseau e estimuladas por uma renovação de interesse pelas antigas tradições neoplatônicas e herméticas. Em fins do século XVIII, no entanto, adquira o status de grande movimento intelectual, no qual filósofos e teólogos refinaram e sistematizaram as introvisões dos poetas (Clarke, 1993, p. 88). Em Jung as influências do romantismo são tantas que levaram o criador da psicologia analítica a declarar que sua psicologia podia ser considerada uma “psicologia romântica” (Jung, O.C. 18, parag. 1740.)* Estas influências são bastante compreensíveis do ponto de vista da história do pensamento se considerarmos o Romantismo como uma compensação à idade das luzes, tanto ao iluminismo francês de Décartes quanto a Aufklärung alemã de Fitche. 13 Diferencio aqui, seguindo Luz (1997, p.22, n. 2) o Renascimento de Renascença, sendo o último o movimento renovador artístico, literário e científico que teve lugar no Itália, com auge no século XV, enquanto que o renascimento se refere à transição da época feudal para a moderna, por um amplo movimento que parte da Itália no século XIV e se expande por toda a Europa. * Em todo o trabalho, as iniciais O.C. representarão “obras coligidas” de C.G.Jung. A indicação da respectiva obra coligida será sempre seguida do parágrafo ao qual a citação se refere, isto porque, toda a obra coligida de C.G.Jung em vinte volumes é grafada em parágrafos, de forma uniforme, quer seja na edição original em alemão, quer seja na edição anglo-americana, quer seja na edição brasileira da Editora Vozes. No presente trabalho foram consultadas as Collected Works of C.G.Jung, Princeton University Press, New York. 32 O FIM DAS FALSAS CERTEZAS E O INCONSCIENTE O iluminismo, com suas luzes, procurou eliminar o desconhecido, o incerto, o emocional. Nas palavras de Gusdorf (1993) “o diabo foi expulso pelo iluminismo”. E se o diabo foi expulso pelo iluminismo, podemos dizer: o romantismo o trouxe de volta. O diabo reaparece pela influência da teologia no pensamento filosófico do período romântico, na valorização do desconhecido, das emoções, no misterioso, que primeiramente aparece categorizado por Boehme como o Ungrund. “Se a filosofia escolástica medieval era serva fiel da teologia, no período romântico ela se torna sua aliada” (Gusdorf, op. cit.). Entre os artistas do período romântico, que sem serem filósofos
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