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A primeira questão que se levanta com respeito à teoria dos direitos fundamentais é a seguinte: podem as expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais ser usadas indiferentemente? Temos vis to nesse tocante o uso promíscuo de tais denominações na literatura ju rí dica, ocorrendo porém o emprego mais freqüente de direitos humanos e direitos do homem entre autores anglo-americanos e latinos, em coerência aliás com a tradição e a história, enquanto a expressão direitos fundamen tais parece ficar circunscrita à preferência dos publicistas alemães. Criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana, eis aquilo que os direitos fundamentais almejam, segundo Hesse, um dos clássicos do direito público alemão contempo râneo.1 Ao lado dessa acepção lata, que é a què nos serve de imediato no presente contexto, há outra, mais restrita, mais específica e mais nor mativa, a saber: direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tais. Com relação aos direitos fundamentais, Carl Schmitt estabeleceu dois critérios formais de caracterização. ~ - Pelo primeiro, podem ser designados por direitos fundamentais to dos os direitos ou garantias nomeados e especificados no instrumento constitucional. Pelo segundo, tão form al quanto o primeiro, os direitos fundamen tais são aqueles direitos que receberam da Constituição um grau mais elevado de garantia ou de segurança; ou são imutáveis (unabänderliche) ou pelo menos de mudança dificultada (erschwert), a saber, direitos uni camente alteráveis mediante lei de emenda à Constituição.3 Já do ponto de vista material, os direitos fundamentais, segundo Schmitt, variam conforme a ideologia, a modalidade de Estado, a espé cie de valores e princípios que a Constituição consagra. Em suma, cada Estado tem seus direitos fundamentais específicos.4 Vinculando os direitos fundamentais propriamente ditos a uma con cepção do Estado de Direito liberal, sem levar em conta a possibilidade de fazer-se, como se fez, desses direitos primeiro uma abstração e, a se guir, uma concretização, independente da modalidade de Estado e ideo logia, em ordem a tomá-los compatíveis com o sentido de sua universa lidade, Carl Schmitt, nas considerações sobre o assunto, retrata com in teira exatidão o caráter de tais direitos enquanto direitos da primeira ge ração. Senão, vejamos: Os direitos fundamentais propriamente ditos são, na essência, en tende ele, os direitos do homem livre e isolado, direitos que possui em face do Estado. E acrescenta: numa acepção estrita são unicamente os direitos da liberdade, da pessoa particular, correspondendo de um lado ao conceito do Estado burguês de Direito, referente a uma liberdade, em princípio ilim itada diante de um poder estatal de intervenção, em princí pio lim itado, mensurável e controlável.5 Corresponde assim, por inteiro, a uma concepção de direitos abso lutos, que só excepcionalmente se relativizam “ segundo o critério da lei” ou “dentro dos lim ites legais”. De tal modo que - prossegue Schmitt noutro lugar da Teoria da Constituição - as limitações aos chamados direitos fundamentais genuínos aparecem como exceções, estabelecendo-se unicamente com base em lei, mas lei em sentido geral; a limitação se dá sempre debaixo do controle da lei, sendo mensurável na extensão e no conteúdo.6 A vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade é à dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, nos condu zirá sem óbices ao significado de universalidade inerente a esses direi tos como ideal da pessoa humana. A universalidade se manifestou pela vez primeira, qual descoberta do racionalismo francês da Revolução, por ensejo da célebre Declaração dos Direitos do Hom em de 1789. A percepção teórica identificou aquele traço na Declaração france sa durante a célebre polêmica de Boutm y com Jellinek ao começo do século X X . Constatou-se então com irrecusável veracidade que as de clarações antecedentes de ingleses e americanos podiam talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço de abrangência, porquanto se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando m uito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. Por isso mesmo, e pelas condições da época, foi a mais abstrata de todas as formulações solenes já feitas acerca da liberdade. Os direitos do homem ou da liberdade, se assim podemos exprimi- los, eram ali “direitos naturais, inalienáveis e sagrados” , direitos tidos também por imprescritíveis, abraçando a liberdade, a propriedade, a se gurança e a resistência à opressão. O fim de toda comunhão política não podia ser outro senão conser vá-los, rezava o célebre texto. O teor de universalidade da Declaração recebeu, aliás, essa justificativa lapidar de Boutm y: “Foi para ensinar o mundo que os franceses escreveram; fo i para o proveito e comodidade de seus concidadãos que os americanos redigiram suas Declarações.7 2. Os direitos fundamentais da primeira geração / Em rigor, o lema revolucionário do século X V III, esculpido pelo gênio político francês, exprimiu em três princípios cardeais todo o con teúdo possível dos direitos fundamentais, profetizando até mesmo a se- qüência histórica de sua gradativa institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade. Com efeito, descoberta a fórmula de generalização e universalida de, restava doravante seguir os caminhos que consentissem inserir na ordem jurídica positiva de cada ordenamento político os direitos e conteú dos materiais referentes àqueles postulados. Os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações suces sivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e qualitativo, o qual, segundo tudo faz prever, tem por bússola uma nova universalidade: a universalidade material e concreta, em substituição da universalidade abstrata e, de certo modo, metafísica daqueles direitos, contida no jus- naturalismo do século X V III. Enfim , se nos deparam direitos da primeira, da segunda e da tercei ra gerações, a saber, direitos da liberdade, da igualdade e da fraternida de, conforme tem sido largamente assinalado, com inteira propriedade, por abalizados juristas. Haja vista a esse respeito a lição de Karel Vasak na aula inaugural de 1979 dos Cursos do Instituto Internacional dos D i reitos do Homem, em Estrasburgo. Vejamos agora de que maneira esses direitos se trasladaram para a esfera normativa e em que fase nos achamos. Os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os pri meiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um pris ma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente. Se hoje esses direitos parecem já pacíficos na codificação política, em verdade se moveram em cada país constitucional num processo di nâmico e ascendente, entrecortado não raro de eventuais recuos, confor me a natureza do respectivo modelo de sociedade, mas permitindo visua lizar a cada passo uma trajetória que parte com frequência do mero reco nhecimento formal para concretizações parciais e progressivas, até ga nhar a m áxim a amplitude nos quadros consensuais de efetivação demo crática do poder. Essa linha ascensional aponta, por conseguinte, para um espaço sempre aberto a novos avanços. A história comprovadamente tem aju dado mais a enriquecê-lo do que a empobrecê-lo: os direitos da primeira geração - direitos civis e políticos - já se consolidaram em sua projeção de universalidade formal, não havendo Constituição digna desse nome que Os não reconheça em toda a extensão. Os direitos da primeirageração ou direitos da liberdade têm por ti tular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculda des ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição pe rante o Estado. Entram na categoria do statiis negativus da classificação de Jelli- nek e fazem também ressaltar na ordem dos valores políticos a nítida separação entre a Sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter antiestatal dos direitos da liberdade, confonne tem sido professado com tanto desvelo teórico pelas correntes do pensamento liberal de teor clássico. São por igual direitos que valorizam primeiro o homem-singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual. 3. Os direitos fundamentais da segunda geração Os direitos da segunda geração merecem um exame mais amplo. Dominam o século X X do mesmo modo como os direitos da primeira geração dominaram o século passado. São os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, intro duzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, de pois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século X X . Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula. Da mesma maneira que os da primeira geração, esses direitos foram inicialmente objeto de uma formulação especulativa em esferas filo só fi cas e políticas de acentuado cunho ideológico; uma vez proclamados nas Declarações solenes das Constituições marxistas e também de maneira clássica no constitucionalismo da social-democracia (a de Weimar, so bretudo), dominaram por inteiro as Constituições do segundo pós-guerra. Mas passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tive ram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de. direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatá veis por exigüidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos. De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à cha mada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concre tização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. Atravessaram, a se guir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.. De tal sorte que os direitos fundamentais da segunda geração ten dem a tomar-se tão justiciáveis quanto os da primeira; pelo menos esta é a regra que já não poderá ser descumprida ou ter sua eficácia recusada com aquela facilidade de argumentação arrimada no caráter programáti co da norma. Com efeito, até então, em quase todos os sistemas jurídicos, preva lecia a noção de que apenas os direitos da liberdade eram de aplicabili dade imediata, ao passo que os direitos sociais tinham aplicabilidade mediata, por via do legislador. 4. A teoria objetiva dos direitos fundamentais: os valores e as garantias institucionais como abertura de caminho para a universalidade concreta desses direitos Com o advento dos direitos fundamentais da segunda geração, os publicistas alemães, a partir de Schmitt, descobriram também o aspecto objetivo, a garantia de valores e princípios com que escudar e proteger as instituições. Os direitos sociais fizeram nascer a consciência de que tão im por tante quanto salvaguardar o indivíduo, conforme ocorreria na concepção clássica dos direitos da liberdade, era proteger a instituição, uma reali dade social m uito mais rica e aberta à participação criativa e à valoração da personalidade que o quadro tradicional da solidão individualista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato e insulado, sem a densida de dos valores existenciais, aqueles que unicamente o social proporcio na em toda a plenitude. Descobria-se assim um novo conteúdo dos direitos fundamentais; as garantias institucionais. Essa concepção de direitos fundamentais que contêm garantias ins titucionais - e segundo a qual, portanto, os direitos fundamentais não são apenas os direitos da liberdade - deve ser recebida com alguma cau tela, pois a liberdade, ao contrário do que acontece com a propriedade, não é suscetível de “ institucionalizar-se” como garantia. Se isto ocorres se, destruída ficaria a natureza mesma desse direito, sem dúvida o mais clássico direito dos direitos a que o homem aspira. Foi o que judiciosa mente assinalou Albert Bleckmann, analisando a fundamentação teórica dos direitos fundamentais. Graças às garantias institucionais, determinadas instituições rece bem uma proteção especial, conforme disse Carl Schmitt,9 para resguar dá-las da intervenção alteradora da parte do legislador ordinário. São. segundo o mesmo publicista, uma categoria de direitos fundamentais, direitos que se não confundem porém com os da liberdade, porquanto a estrutura dos mesmos é lógica e juridicam ente outra.10 Demais, é da es sência da garantia institucional a limitação, bem como a destinação a determinados fins e tarefas. Não resultou assim d ifíc il a tarefa empreendida por aquele jurista de identificar, entre outras, as seguintes garantias institucionais: as que rodeiam o funcionalismo público, o magistério, a autonomia m unicipal, as confissões religiosas, a independência dos juízes, a exclusão de tribu nais de exceção etc. O polêmico constitucionalista de Weimar colocou nos seguintes ter mos o seu conceito de garantias institucionais: primeiro, que haja urna garantia e que esta, de ordinário, seja de natureza constitucional; a seguir, que a garantia tenha um objeto específico, a saber, uma “instituição”, visto que do contrário não se poderia falar de “garantia institucional” ; e, finalmente, que se refira a algo atual, presente e existente, dotado de forma e organização, a que já se prende também uma situação jurídica constatável; a garantia institucional contém sempre, segundo a lição da- cfuele publicista, elementos de garantia de um status quoV Não se confundem porém as garantias institucionais com as “ ga rantias do instituto” . Estas últim as, segundo Schmitt, ocorrem sempre em proveito de institutos jurídicos de direito privado: a propriedade, o direito sucessório, a fam ília, o casamento. Séndo também garantias de direito constitucional, garantem relações jurídicas e complexos normati vos típicos, tradicionalmente sólidos, ao passo que as garantias institucio nais são pertinentes a instituições de direito público que “compõem uma parte da administração de assuntos públicos” .12 Tendo sido o formulador do moderno conceito de garantia institucio nal, tão fecundo no campo do Direito Público, Carl Schmitt não ignorou porém a velha noção de garantia constitucional ou garantia da Constituição ( VerfàssungsgaranCie), da qual só se pode com certeza falar, segundo ele, quando a Constituição se identifica com a garantia que oferece, e uma violação da garantia é, sem mais, uma violação da “própria Consti tuição” ; enfim , quando um ataque (Angríff) ao objeto garantido é ataque à Constituição mesma.13 Não se pode deixar de reconhecer aqui o nascimento de um novo conceito de direitos fundamentais, vinculado materialmente a uma liber dade “objetivada”, atada a vínculos nonnativos e institucionais,14 a va lores sociais que demandam realização concreta e cujos pressupostos devem ser “criados” , fazendo assim do Estado um artífice e um agente de suma importância para que se concretizem os direitos fundamentais da segunda geração. A busca desses pressupostos inspira,em rigor, o eixo norm ativo ao redor do qual gravitam não somente as novas Constituições senão tam bém boa parte da legislação de direitos fundamentais das últim as déca das constante de tratados, pactos e convenções. A nova universalidade dos direitos fundamentais é inseparável da criação desses pressupostos fáticos. Sobre eles já não tem o indivíduo propriamente poder. Passaram a ser vistos numa perspectiva também de globalidade, enquanto chave de libertação material do homem. Ganha ram pois um novo nível de ação, bem mais alto, que não é o de um Estado particular, mas o de uma comunidade de Estados ou de toda a com uni dade de Estados. Todos os princípios da Constituição que obrigam o legislador são garantias institucionais na acepção ampla de Schmitt. Mas em verdade a maior das garantias constitucionais (e não apenas das garantias institucio nais) seria'indubitavelmente aquela que produzisse os pressupostos fáti cos, indispensáveis ao pleno exercício da liberdade, e sem os quais esta se converteria numa ficção, conforme ficou sobejamente demonstrado depois que se ultrapassou a universalidade abstrata dos direitos huma nos fundamentais da primeira geração. O conceito de garantia institucional, que foi tão afirm ativo para es corar e legitimar a segunda geração de direitos fundamentais, enfrenta desde m uito a sua crise, com perda de substância e densidade, como se fora já um conceito em aparente estado de dissolução. Perdeu, depois da contribuição de Schmitt, muito do teor inicial de precisão e, não obstante a reconhecida existência de uma teoria institucional dos direitos fun damentais, ainda não se cristalizaram noções claras e científicas acerca desse instituto. Afigura-se-nos que para tanto deveras contribuiu o alargamento do conceito de instituição, que em Schmitt fora primacialmente um conjun to de regras jurídicas, um complexo normativo e, de últim o, na crença de alguns juristas, se dilatou tanto que ocupa uma esfera de situações de fato, onde o social e o existencial, produzindo a instituição fática, ten dem a quebrantar os vínculos que ela possa ter ainda com a juridicidade. A importância porém das garantias institucionais é que elas revalo rizam sobremodo os direitos da liberdade, até então concebidos numa oposição irremediável entre o indivíduo e o Estado, e o fizeram na me dida em que se pôde transitar de uma concepção de subjetividade para uma concepção de objetividade, com respeito aos princípios e valores da ordem jurídica estabelecida. Se na fase da primeira geração os direitos fundamentais consistiam essencialmente no estabelecimento das garantias fundamentais da liber dade, a partir da segunda geração tais direitos passaram a compreender, além daquelas garantias, também os critérios objetivos de valores, bem como os princípios básicos que animam a lei maior, projetando-lhe a unidade e fazendo a congruência fundamental de suas regras. 1 Cresceu, pois, com a introdução dos direitos fundamentais da se gunda geração o juízo de que esses direitos representam de certo modo uma ordem de valores, compondo uma unidade de ordenação valorativa que alguns juristas temem possa ressuscitar ou correr o risco de ressus citar a rejeitada concepção de sistema, à qual, segundo Scheuner, os di reitos fundamentais seriam irredutíveis.15 De acordo com a nova teorização dos direitos fundamentais, as pres crições desses direitos são também direito objetivo e isso levou, segundo Schmitt, à superação daquela distinção material entre as duas partes bá sicas da Constituição, em que os direitos fundamentais eram direitos pú blicos subjetivos ao passo que as disposições organizatórias constituíam unicamente direito objetivo.16 A concepção de objetividade e de valores relativamente aos direi tos fundamentais fez com que o princípio da igualdade tanto quanto o da liberdade tomassem também um sentido novo, deixando de ser mero direito individual que demanda tratamento igual e uniforme para assu mir, conforme demonstra a doutrina e a jurisprudência do constituciona lism o alemão, uma dimensão objetiva de garantia contra atos de arbítrio do Estado. 5. Os direitos fundam entais da terceira geração A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse uma outra dimensão dos direitos fundamen tais, até então desconhecida. Trata-se daquela que se assenta sobre a fra ternidade, conforme assinala Karel Vasak, e provida de uma latitude de sentido que não parece compreender unicamente a proteção específica de direitos individuais ou coletivos.17 Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acres centa historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssi mo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século X X enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatá rio o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirm a ção como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os pu blicistas e juristas já os enumeram com fam iliaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio am biente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade. A teoria, com Vasak e outros, já identificou cinco direitos da frater nidade, ou seja, da terceira geração: o direito ao desenvolvimento, o d i reito à paz; o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação. A relação de Vasak, em verdade, é apenas indicativa daqueles que se delinearam em contornos mais nítidos contemporaneamente; é possí vel que haja outros em fase de gestação, podendo o círculo alargar-se à medida que o processo universalista se for desenvolvendo. Ao contrário de Vasak, a expressão que Etiene-R. Mbaya, o brilhante jusfílósofo de Colônia, formulador do chamado “direito ao desenvolvi mento” , usa para caracterizar os direitos da terceira geração é solidarie dade e não fraternidade. O direito ao desenvolvimento foi o tema de uma aula de E. Mbaya inaugurando os Cursos do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em 1972. Em 1977 a Comissão dos Direitos do Homem das Nações U ni das, apoiada na contribuição daquele professor universitário, formalizou, mediante resolução, o reconhecimento do sobredito direito. Durante a 3a reunião daquela Comissão em 1980, foi ele incluído na Resolução Final do órgão. O direito ao desenvolvimento diz respeito tanto a Estados como a indivíduos, segundo assevera o próprio Mbaya, o qual acrescenta que relativamente a indivíduos ele se traduz numa pretensão ao trabalho, à saúde e à alimentação adequada.18 Adm ite que a descoberta e a formulação de novos direitos são e se rão sempre um processo sem fim, de tal modo que quando “um sistema de direitos se faz conhecido e reconhecido, abrem-se novas regiões da liber dade que devem ser exploradas”. Com base nessa constatação, proclama o jurista a adequação e a propriedade de linguagem relativa ao reconheci mento de três gerações de direitos fundados no princípio da solidariedade. 1 N o atual estádio de desenvolvimento do Direito, esse princípio, se gundo o mesmo Mbaya, exprime-se de três maneiras: “ 1 . 0 dever de todo Estado particular de levar em conta, nos seus atos, os interesses de outros Estados (ou de seus súditos); “2. Ajuda recíproca (bilateral ou m ultilateral), de caráter financeiro ou de outra natureza, para a superação das dificuldades econômicas (in clusive com auxílio técnico aos países subdesenvolvidos e estabelecimento de preferências de comércio em favor desses países, a fim de li quidar déficits); e “ 3. Um a coordenação sistemática de política econômica.” 6. Os direitos fundamentais da quarta geração O Brasil está sendo im pelido para a utopia deste fim de século: a globalização do neoliberalismo, extraida da globalização econômica. O 18. Etiene-R. Mbaya, Menschenrechte im Nord-Sued Verhaeltnis, manuscrito que supomos ainda inédito e que nos foi gentilmente enviado pelo autor. neo liberalism o cria, porém, mais problemas do que os que intenta resol ver. Sua filosofia do poder é negativa e se move, de certa maneira, rumo à dissolução do Estado nacional, afrouxando e debilitando os laços de soberania e, ao mesmo passo, doutrinando uma falsa despolitização da sociedade. A globalização política neoliberal caminha silenciosa, sem nenhu ma referência de valores. Mas nem por isso deixa de fazer perceptível um desígnio de perpetuidade do statu quo de dominação. Faz parte da estratégia mesma de formulação do futuro em proveito das hegemonias supranacionais já esboçadas no presente. Há, contudo, outra globalização política, que ora se desenvolve, so bre a qual não tem jurisdição a ideologia neoliberal. Radica-se na teoria dos direitos fundamentais. A única verdadeiramente que interessa aos povos da periferia. G lobalizar direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional. Só assim aufere humanização e legitimidade um conceito que, doutro modo, qual vem acontecendo de últim o, poderá aparelhar unicamente a servidão do porvir. A globalização política na esfera da normatividade jurídica intro duz os direitos da quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social. São direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. A democracia positivada enquanto direito da quarta geração há de ser, de necessidade, uma democracia direta. Materialm ente possível graças aos avanços da tecnologia de comunicação, e legitimamente sustentável graças à informação correta e às aberturas pluralistas do sis tema. Desse modo, há de ser também uma democracia isenta já das con taminações da m ídia manipuladora, já do hermetismo de exclusão, de índole autocrática e unitarista, familiar aos monopólios do poder. Tudo isso, obviamente, se a informação e o pluralismo vingarem por igual como direitos paralelos e coadjutores da democracia; esta, porém, en quanto direito do gênero humano, projetado e concretizado no últim o grau de sua evolução conceituai. Força é dirim ir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo “ dimensão” substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo “geração” , caso este últim o venha a induzir apenas sucessão crono lógica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antece dentes, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira gera ção, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais. form am a pirâmide cujo ápi ce é o direito à democracia; coroamento daquela globalização política para a qual, como no provérbio chinês da grande muralha, a Humanida de parece caminhar a todo vapor, depois de haver dado o seu prim eiro e largo passo. Os direitos da quarta geração não somente culm inam a objetivida de dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem - sem, todavia, removê-la - a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos da primeira geração. Tais direitos sobrevivem, e não apenas so brevivem, senão que ficam opulentados em sua dimensão principiai, ob jetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se com a mais subida eficácia normativa a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico. Daqui se pode, assim, partir para a asserção de que os direitos da segunda, da terceira e da quarta gerações não se interpretam, concreti zam-se. E na esteira dessa concretização que reside o futuro da globali zação política, o seu princípio de legitimidade, a força inCorporadora de seus valores de libertação. D a globalização econômica e da globalização cultural m uito se tem ouvido falar. Da globalização política só nos chegam, porém, o silêncio e o subterfúgio neoliberal da reengenharia do Estado e da sociedade. Imagens, aliás, anárquicas de um futuro nebuloso onde o Hom em e a sua liberdade - a liberdade concreta, entenda-se - parecem haver ficado de todo esquecidos e postergados. Já, na democracia globalizada, o Homem configura a presença mo ral da cidadania. Ele é a constante axiológica, o centro de grãvidade, a corrente de convergência de todos os interesses do sistema. Nessa de mocracia, a fiscalização de constitucionalidade daqueles direitos enun ciados - direitos, conforme vimos, de quatro dimensões distintas - será obra do cidadão legitimado, perante uma instância constitucional supre ma, à propositura da ação de controle, sempre em moldes compatíveis com a índole e o exercício da democracia direta. Enfim , os direitos da quarta geração compendiam o futuro da cida dania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tão-somente com eles será legítima e possível a globalização política. 7. A nova universalidade dos direitos fundam entais Os direitos da primeira, da segunda e da terceira gerações abriram caminho ao advento de uma nova concepção de universalidade dos d i reitos humanos fundamentais, totalmente distinta do sentido abstrato e metafísico de que se impregnou a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, uma Declaração de compromisso ideológico definido, mas que nem por isso deixou de lograr expansão ilim itada, servindo de ponto de partida valioso para a inserção dos direitos da liberdade - direitos civis e políticos - no constitucionalismo rígido de nosso tempo, com uma am plitude form al de positivação a que nem sempre corresponderam os res pectivos conteúdos materiais. A nova universalidade dos direitos fundamentais os coloca assim, desde o princípio, num grau mais alto de juridicidade, concretude, posi- tividade e eficácia. E universalidade que não exclui os direitos da liber dade, mas primeiro os fortalece com as expectativas e os pressupostos de melhor concretizá-los mediante a efetiva adoção dos direitos da igual dade e da fraternidade. Foi tão importante para a nova universalidade dos direitos funda mentais o ano de 1948 quanto o de 1789 o fora para a velha universali dade de inspiração liberal. Com efeito, em 10 de dezembro de 1948 a Assembléia Geral das Nações Unidas mediante a Resolução n. 217 (III) aprovou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, sem dúvida uma Declaração progra mática, mas que não deixou de ser a carta de valores e princípios sobre os quais se hão assentado os direitos das três gerações, objeto aqui de exame. Dentre outros documentos relativos a direitos humanos produzidos este século, merecem especial menção: a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, do Congresso Soviético Panrusso de 1918, convertido em Capítulo I da Constituição da República Soviética da Rússia, de 5 de julho de 1918; a Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945, as Resoluções da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, os Pactos sobre Direitos Humanos das Nações Unidas, tais como o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 19 de dezembro de 1966; a Convenção Européia dos Direitos do Homem e das Liberda des Fundamentais, de 4 de novembro de 1950, a Carta Social Européia, de 18 de outubrode 1961, a Convenção Americana dos Direitos do H o mem, de 26 de novembro de 1969 e a Carta.Africana de Banjul dos D i reitos do Homem e dos Direitos dos Povos, de 27 de junho de 1981A nova universalidade procura, enfim , subjetivar de forma concreta e positiva os direitos da tríplice geração na titularidade de um indivíduo que antes de ser o homem deste ou daquele país, de uma sociedade de senvolvida ou subdesenvolvida, é pela sua condição de pessoa um ente qualificado por sua pertinência ao gênero humano, objeto daquela uni versalidade. 8. A Declaração Universal dos Direitos do Homem Com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de de zembro de 1948, o humanismo político da liberdade alcançou seu ponto mais alto no século X X . Trata-se de um documento de convergência e ao mesmo passo de uma síntese. Convergência de anseios e esperanças, porquanto tem sido, desde sua promulgação, uma espécie de carta de alforria para os povos que a subscreveram, após a guerra de exterm ínio dos anos 30 e 40, sem dúvi da o mais grave duelo da liberdade com a servidão em todos os tempos. Síntese, também, porque no bronze daquele monumento se estampa ram de forma lapidar direitos e garantias que nenhuma Constituição insu- ladamente lograra ainda congregar ao redor de um consenso universal. Se a Declaração exprime esse grau adiantadíssimo de consciência dá homem livre, cidadão de todas as pátrias, bem merece ela que se faça a respeito de sua importância um ligeiro exame doutrinário. Erra todo aquele que vislumbra no valor das Declarações dos D irei tos Humanos uma noção abstrata, metafísica, puramente ideal, produto da ilusão ou do otimism o ideológico. A verdade é que sem esse valor não se explicaria a essência das Constituições e dos tratados, que objeti vamente compõem as duas faces do direito público - a interna e a externa. A história dos direitos humanos - direitos fundamentais de três ge rações sucessivas e cumulativas, a saber, direitos individuais, direitos sociais e direitos difusos - é a história mesma da liberdade moderna, da separação e limitação de poderes, da criação de mecanismos que auxiliam o homem a concretizar valores cuja identidade ja z prim eiro na Socieda de e não nas esferas do poder estatal. Quando se faz do Estado unicamente um fim , privando-o de sua tarefa legítim a de coadjutor eficaz da libertação das dependências, para erigi-lo em nascente e estuário de todos os valores, é que se perde de forma irremediável a faculdade de discernir os grandes momentos da tra jetória libertadora, com que as idéias se afirm am e os princípios prevalecem; mas prevalecem em ordem a fazer o homem menos sujeito à coa ção das regras compulsivas e menos atado ao império das necessidades, sempre responsáveis, no ampliado universo da vida social, por uma di minuição dos espaços livres e autodeterminativos da pessoa humana. Se bem examinarmos a evolução dos documentos declaratórios dos direitos humanos desde o século X V III aos nossos dias, verificaremos talvez, com certa suipresa e júbilo, que há uma constante e uma lógica nos sucessivos graus históricos de sua qualificação. Do campo filosófico ao campo jurídico, do direito natural ao direito positivò, das abstrações do contrato social aos códigos, às constituições e aos tratados, depois de cursar a via revolucionária, essas Declarações fizeram vingar um gênero de sociedade democrática e consensual, que reconhece a participação dos governados na formação da vontade geral e governante. Ergueram-se desse modo conceitos novos de legitimação da autoridade, dos quais o mais importante vem a ser aquele que engendrou a chamada teoria do poder constituinte (pouvoir constituant). Mas poder constituinte cuja titularidade nos sistemas democráticos há de pertencer sempre à Nação e ao Povo, portanto, à soberania política do cidadão. Os direitos humanos, tomados pelas bases de sua existencialidade primária, são assim os aferidores da legitimação de todos os poderes sociais, políticos e individuais. Onde quer que eles padeçam lesão, a So ciedade se acha enferma. Uma crise desses direitos acaba sendo também uma crise do poder em toda sociedade democraticamente organizada. 9. A teoria da crise política (crise constituinte) e os direitos fundamentais O problema dos direitos humanos fundamentais no século X X , so bretudo na sociedade brasileira, não deve ficar desmembrado de uma teoria da crise política, cuja análise se faz imprescindível para podermos sondar o alcance e extensão das dificuldades que agora o País atravessa. Com efeito, a crise política de uma Nação pode percorrer três dis tintos graus nesta escala: em primeiro lugar é crise do Executivo, que normalmente chega ao seu termo quando se muda a chefia de governo ou advém, de maneira bem-sucedida, uma nova política; a seguir, crise constitucional - de solução ainda possível - mediante uma Emenda à Constituição ou, nos casos mais graves e excepcionais, por via da refor ma total ou da promulgação doutra lei maior; enfim , se converte ela em crise constituinte, a de terceiro e derradeiro grau, quando deixa de ser tão-somente a crise de um Governo ou de uma Constituição para se transformar em crise das instituições ou da Sociedade mesma, em seus últim os fundamentos. Não precisamos descer ao primeiro século de nossa história consti tucional para ilustrarmos com exemplos o deplorável quadro das crises que continuam a afligir-nos desde que fundamos a comunhão nacional. Nunca, porém, as três conjunturas se conjugaram com tamanho ím peto e força como nas décadas da segunda metade do século X X . Um a só época constitucional - a do transcurso da Constituição de 1946 - co loca-nos diante do desastre de legitimidade a que ontem chegamos e do qual, em nossos dias, ainda não emergimos. Efetivamente, durante aquele singular período de nossa existência, vimos primeiro uma crise de governo ou crise executiva, quando Getú- lio Vargas entrou em conflito com o Congresso e, não podendo resolver a pendência, suicidou-se. A seguir, decorridos menos de dez anos, passamos por uma crise constitucional, com a renúncia de Jânio Quadros e a introdução do par lamentarismo do Ato Adicional. Já não se tratava então de substituir um Governo, mas de alterar a própria forma de Governo, numa experiência, aliás, malograda. Finalmente, não se resolvendo a crise constitucional, mediante o re tomo ao presidencialismo, cedo ela se converteu na mais funesta de to das as crises: a crise constituinte, que recai sobre o Governo, a Consti tuição e a Sociedade. Nessa crise submergimos durante todo o período autoritário em que o País se governou por Atos Institucionais e decretos-leis. Toda vez que os desesperos coletivos somam os infortúnios gera dos pelas três crises, produz-se a desmoralização política da Sociedade e os direitos humanos fundamentais padecem muito com isso. A tragédia da organização constitucional dos países do Terceiro M undo decorre grandemente da impossibilidade de fazer estáveis as for mas democráticas da Sociedade, açoitadas de problemas sociais, econô micos e financeiros quase insolúveis numa estrutura de poder onde o Estado é tudo e a Nação civil m uito pouco. Ontem, quando havia separação entre Estado e Sociedade, o Estado liberal era o Estado da legalidade-, agora que essa separação inexiste, ou já não pode existir, o liberalismo somente há de sobreviver num Estado social de legitimidade. Mas sobreviver como? À sombra das Constituições e dos Tribunais Constitucionais, cuja jurisprudência atualiza, a cada aresto oracular, tanto a matéria dos direitos sociais como a da limitação de poderes. Remo vendo ambigüidades ou solvendo controvérsias, faz-se,-pela via herme nêutica, o texto se acercar da realidade, ou seja, produz-se a eficácia, a juridicidade, o respeito e o cumprimento rigoroso das nonnas constitu cionais. 10.A Declaração Universal e a proteção dos direitos sociais no Brasil Basta, pois, que se atente na índole dos direitos sociais para com preender que o problema da legitimidade é hoje crucial, não podendo ser eficazes as Constituições em cuja moldura jurídica ele não se resolve em harmonia com as aspirações do consenso. O coração das Constituições estáveis se localiza como órgão de continuidade nas disposições do processo legislativo de reforma constitu cional. A parte intangível do ordenamento, que se furta à intervenção re formista é também de capital importância. Guardamos a esse respeito uma tradição de rigidez presente a cada texto constitucional do período republicano. Mas uma novidade da m aior importância trouxe, de últim o, a nova Constituição: os direitos e garantias individuais recebem ali uma prote ção suprema, vedando-se ao poder constituinte derivado a introdução de emenda que tenda a suprimi-los. A garantia se robustece por igual com dispositivo idêntico tocante à separação de poderes, pois sem esta não há liberdade nem direitos hu manos debaixo da proteção constitucional. O constituinte brasileiro deu assim um passo significativo de cunho formal, que coloca fora de deli beração as propostas de emenda tendentes a abolir aqueles direitos. Ocorre, porém, que o avanço teria m uito mais profundidade se abrangesse também o substrato social da Constituição, pelo menos os direitos sociais que, desde a Carta de 1934, compõem a base teórica e positiva de nossa modalidade de Estado social, os quais, sem retrocesso, têm sido consagrados pela evolução do constitucionalismo brasileiro du rante os últim os cinqüenta anos. É óbvio, por consegiiinte, que uma conquista dessa envergadura faria constitucionalmente irrevogáveis os grandes progressos já obtidos para a construção da Sociedade justa, livre e igualitária a que todos aspiram. Um a Constituição aberta não deve abrigar preconceitos. O mesmo poder constituinte que deu um passo de abertura em relação ao passado, contra o privilégio da im utabilidade do sistema republicano, tomando possível, por via de emenda constitucional, a eventual introdução até mesmo da monarquia constitucional federativa, teria dado um passo m ui to mais avançado e gigantesco em relação ao futuro, se fizesse intangí veis, dentro da normatividade constitucional, aqueles direitos fundamen tais já consagrados que regem as relações mútuas entre o trabalho è o capital. A Declaração Universal dos Direitos do Hom em é o estatuto de li berdade de todos os povos, a Constituição das Nações Unidas, a carta magna das minorias oprimidas, o código das nacionalidades, a esperança, enfim , de promover, sem distinção de raça, sexo e religião, o respeito à dignidade do ser humano. A Declaração será porém um texto meramenté romântico de bons propósitos e louvável retórica, se os países signatários da Carta não se aparelharem de meios e órgãos com que cumprir as regras estabelecidas naquele documento de proteção dos direitos fundamentais e sobretudo produzir uma consciência nacional de que tais direitos são invioláveis. “A interpretação é a sombra que segue o coipo. Da mesma maneira que nenhum corpo pode livrar-se da sua sombra, o Direito tampouco pode livrar-se da interpretação”, disse o constitucionalista espanhol Ja- vier Perez Royo, no capítulo V do seu Curso de Direito Constitucional. E a seguir completou a base de sua lição com outra assertiva não menos lúcida e lapidar: “ Sem interpretação não há direito” , ou, com mais pro priedade, “não há direito que hão exija ser interpretado” . Verdades tão óbvias, ele as trouxe à colação unicamente para mani festar estranheza e perplexidade diante da “ausência total” com que se manteve durante século e meio a interpretação afastada do Direito Cons titucional, e “a sua presença súbita nas últimas décadas” .2 Tem ele máxima razão em afirmar que o Direito Constitucional há sido, pois, um direito sem interpretação, até meados do século X X , e que só depois dos anos 50 é que se veio efetivamente a falar de interpre tação da Constituição.3 Principia, a nosso ver, desde aquela década, a ascensão hegemôni ca da Hermenêutica na esfera do Direito Constitucional. Quatorze anos antes, porém, do Prof. Javier Perez, na mesma linha desse pensamento crítico, havíamos ponderado já a surpresa que nos causava a completa ausência, em nossos compêndios de Direito Constitucional, de capítulos consagrados à interpretação. Foi essa uma lacuna que buscamos preen cher no Brasil há cerca de duas décadas com o nosso Direito Constitucio nal, lançado em 1980.4 O que se disse genericamente acerca da interpretação da Constitui ção vale também para a henuenêutica dos direitos fundamentais, que en tra por igual retardada na ciência constitucional da segunda metade do século X X . Trata-se, por conseguinte, de tema que parece virgem nas letras jurídicas do País, pelo menos nos seus tratados de Direito Consti tucional. Mas antes de versarmos diretamente a matéria interpretativa dos d i reitos fundamentais, faz-se mister formular um conceito desses direitos em harmonia com a sua linha evolutiva mais recente, levando em conta, a esse respeito, dimensões desconhecidas até meados do século X X e que lhe dilataram consideravelmente o âmbito de incidência social, alte rando desde as raizes o respectivo relacionamento com o Estado, o qual dantes se mantinha circunscrito ordinariamente a uma esfera negativa e subjetivista de puro teor antiestatal. Considerando, pois, os aspectos positivos que ora prevalecem às antigas- noções de resistência e defesa, configurativas do conceito unila teral de liberdade, imperante na versão clássica do constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais incorporaram ao seu âmbito as presta ções do Estado, as garantias institucionais, o sentido objetivo da norma e a qualificação valorativa. É isto que consente, conforme ponderou A l- bert Bleckmann, defini-los “como as normas objetivas da Constituição que regulam as relações dos indivíduos com o Estado” .3 À sombra, portanto, da conjugação do subjetivo com o objetivo, dis correremos em seguida acerca da hermenêutica dos direitos fundamentais. Tod vincula-se, de neces sidade, a uma teoria dos direitos fundamentais; esta, por sua vez, a uma teoria da Constituição, e ambas - a teoria dos direitos fundamentais e a teoria da Constituição - a uma indeclinável concepção do Estado, da Constituição e da cidadania, consubstanciando uma ideologia, sem a qual aquelas doutrinas, em seu sentido político, jurídico e social mais profundo, ficariam de todo ininteligíveis. De tal concepção brota a con textura teórica que faz a legitimidade da Constituição e dos direitos fundamentais, traduzida numa tábua de valores, os valores da ordem democrática do Estado de Direito onde jaz a eficácia das regras constitu cionais e repousa a estabilidade de princípios do ordenamento jurídico, regido por uma teoria material da Constituição. Os publicistas que mais afortunadamente classificaram ou identifi caram teorias de direitos fundamentais, sem, todavia, as desenvolver, ti veram, com certeza, esse notabilíssimo mérito: o de patentear a im possi bilidade de alguém atuar na esfera interpretativa de direitos fundamen tais ou de cláusulas da Constituição tendo recurso unicamente ao em prego de técnicas jurídicas de interpretação assentadas no simples exa me de texto das variadas disposições legais. Fora esta, com efeito, a pra xe peculiar tanto à metodologia clássica do positivism o como ao seu dedutivismo formalista, o qual costumava operar sobretudo nos distritos tradicionais do Direito Privado. Quando trasladado, porém, ao campo do Direito Público, esse for malismo positivista intentava equiparar a Constituição à lei, como se fos sem ambas dotadas da mesma estrutura, natureza e substância. Tratar a Constituição exclusivamentecomo lei é de todo impossível. Constitui ção é lei, sim, mas é sobretudo direito, tal como a reconhece a teoria material da Constituição. Compreendê-la como direito, e não apenas como lei, ao revés, por tanto, do que fazia o positivismo legalista, significa, enfim, desatá-la dos laços silogísticos e dedutivistas, que lhe embargavam a normatividade e a confinavam, pelo seu teor principiai, ao espaço da programaticidade destituída de juridicidade. Daqui se infere o seguinte: aquele dedutivismo formalista excluía da Ciência do Direito e da tarefa hermenêutica a consideração de princípios e valores, sem cuidar que estes formam o tecido material e o substrato estrutural já da Constituição, já dos direitos fundamentais. Afastados da interpretação, sem eles não há, em rigor, concretização, por não haver “pré-compreensão” ( Vorverstãndnis), e, não havendo “ pré-compreen- são”, quase todo o Direito Público tende a ficar abalado em seus alicerces, fundamentos e legitimidade. Tudo isso à míngua de conteúdos reais, por Obra de um formalismo que, apartado do universo real, tolhe, na opera ção cognitiva, executada por um intérprete prisioneiro da racionalidade lógica, o alcance da presença e ação do elemento indutivo, este fator tão importante na captação dos sentidos normativos. Aqueles valores e princípios representam, por conseguinte, a maté ria-prim a da Nova Hermenêutica; esta, outra coisa não é senão a própria teoria material da Constituição. Aliás, “ a teoria material da Constituição é a hermenêutica mesma do Direito Constitucional” - disse, em 1961, numa assembléia de juris tas alemães em Freiburg, o constitucionalista Horst Ehmké, conforme lembrou há pouco Klaus Stem, com inteiro senso da atualização dessa assertiva. E Ehmke acrescentou que os direitos fundamentais são, no fundo, a Gretchen Frage, a questão vexatória de toda a Hermenêutica.6 O Direito Constitucional, ao criar, assim, a Nova Hermenêutica, que lhe é específica, acolheu no plano científico do Direito as considerações axiológicas, mas referidas unicamente àqueles valores vazados no direi- to positivo e que desde muito, por um certo ângulo, constituem a maté ria-prima do sociologismo jurídico ou do concretisrao, de Ehrlich a Karl Engisch. Com isso, o Direito Constitucional, se não arruinou, pelo me nos fez arcaico o formalismo metodológico da Teoria Pura do D ireito.7 O jurista Karl Korinek, embora não aceite a distinção entre os méto dos imerpretativos aplicados ao Direito Constitucional e aqueles utiliza dos nas demais disciplinas jurídicas - o que, em últim a análise, im plica uma restrição à Nova Hermenêutica - , admite, todavia, que a interpreta ção constitucional, e, por via aditiva, acrescentamos nós, a dos direitos fundamentais, se reveste de características especiais decorrentes da sin gularidade de sua problemática, do lugar que a Constituição ocupa no sistema global da ordem jurídica e das amiudadas imprecisões conceituais estampadas nos textos constitucionais.8 Sob a égide, em grande parte, da Nova Hermenêutica, o constitucio nalismo de renovação da segunda metade do século X X já oferece os seguintes resultados: a criação cientifica de um novo Direito Constitucio nal, ou, pelo menos, a reconstrução desse ramo da ciência jurídica; a formação de uma teoria material da Constituição, fora dos quadros con ceituais do jusnaturalismo e das rígidas limitações do positivism o for- malista, ou seja, o da velha linha de Gerber, Laband, Anschütz, Jellinek - este mais atenuadamente - e, de últim o, Kelsen; a inauguração no Direito Público de um novo pólo de investigações interpretativas, dan tes concentradas em esfera nomeadamente jusprivatista ou juscivilista; a elaboração de duas novas teorias hermenêuticas: uma de interpretação da Constituição, mais ampla, e outra de interpretação dos direitos funda mentais, mais restrita, ambas, porém, originais e autônomas; a introdução do princípio da proporcionalidade no Direito Constitucional, ampliando avassaladoramente a esfera de incidência desse ramo da ciência do di reito, sobretudo no sentido da proteção mais eficaz dos direitos funda mentais perante o Estado; o reconhecimento da eficácia normativa dos princípios gerais de direito, convertidos doravante em princípios consti tucionais e, portanto, erguidos do seu grau de subsidiariedade interpre- tativa nos Códigos até o topo da hierarquia normativa do sistema jurídico; a pluridimensionalidade, a par da plurifuncionalidade dos direitos fun damentais, dantes vistos no antigo Direito Constitucional tão-somente pelo prisma de sua subjetividade; a expansão normativa do Direito Cons titucional a todos os ramos do Direito, acompanhada de uma afirmação definitiva de superioridade hierárquica, e, finalmente, a tese vitoriosa .de que a Constituição é direito, e não idéia ou mero capitulo da Ciência Política, como inculcava a tese falsa de Burdeau e doutros constitucio- nalistas franceses filiados à linha da reflexão constitucional que se vin culava à ideologia já ultrapassada do liberalismo clássico. Nomes respeitáveis e provectos da ciência jurídica contemporânea contribuiram deveras para que se operasse no Direito Constitucional essa mutação renovadora e fecunda, tão decisiva em afiançar-lhe a suprema cia sobre todas as demais ciências do Direito. Dentre os juristas alemães que tiveram papel de destaque na fixa ção dos novos rumos impostos ao Direito Constitucional, tendo por base a Tópica e a Nova Hermenêutica, faz-se mister ressaltar os seguintes: Theodor Viehweg, com Tópica e Jurisprudência, estampado em 1953; Martin Kriele, com Teoria da Produção Jurídica, de 1967; Joseph Esser, com Pré-Compreensão e Escolha dos Métodos na Aplicação do Direito, de 1970; Friedrich Müller, com a Metódica Jurídica, de 1971; e H. J. Koch e H. Ruessmann, com a Teoria da Fundamentação Jurídica, de 1982. / São igualmente dignos de menção, por constarem dos quadros cria tivos da Nova Hermenêutica constitucional, os juristas Horst Ehmke, Ulrich Scheuner e Peter Hãberle. Escreveram eles obras cuja leitura se faz indeclinável para bem compreendermos as transformações de que promanou o Direito Constitucional contemporâneo. 2. O velho Direito Constitucional da separação de poderes e o novo D ireito Constitucional dos direitos fundam entais: do positivism o fo rm a l em decadência ao pós-positivism o m aterial em ascensão Com a queda do positivismo e o advento da teoria materíal da Cons tituição, o centro de gravidade dos estudos constitucionais, que dantes ficava na parte organizacional da Lei Magna - separação de poderes e distribuição de competências, enquanto forma jurídica de neutralidade aparente, típica do constitucionalismo do Estado liberal - se transportou para a parte substantiva, de fundo e conteúdo, que entende com os direi tos fundamentais e as garantias processuais da liberdade, sob a égide do Estado social. Organizar os poderes e traçar a linha das competências indispensá veis ao seu correto e efetivo funcionamento fora anteriormente a preo- 585 cupaçâo dominante das forças e correntes mais conservadoras que cir culavam no constitucionalismo da idade liberal, sobretudo em França, durante a segunda metade do século X X ; tal preocupação, todavia, ainda se exprime no pensamento constitucional. Um jurista e cientista político do quilate de Burdeau, até há pouco, não tinha a Constituição por “di reito” , mas por “ idéia” , e, em razão disso, não a levava tão a sério como devia, conforme inculcou muito bem, recentemente, o publicista Favoreu. Considerável número de cientistas daquele país, segundo o mesmo jurista, se tem aferrado ao entendimento de que a Constituição não é direito, “ por tratar-se de um texto demasiado vago, excessivamente ge ral, que carece de força normativa e que não tem nenhuma densidade enquanto norma” .9 Talvez semelhante entendimentoderive do juízo expendido pelos publicistas acerca da estrutura especial das normas constitucionais, que, sendo, não raro, abertas, incompletas e imprecisas ou demasiado genéri cas, impetram para sua interpretação, conforme assinalou Gem, o em prego de métodos distintos daqueles normalmente utilizados na herme nêutica das leis.10 Por isso mesmo, servem, a nosso ver, como critérios mais eficazes no âmbito da interpretação constitucional, e não como pe ças meramente auxiliares ou tributárias da metodologia clássica. Tomando, porém, ao conceito de Burdeau acerca da Constituição, acima referido, cabe, agora, indagar: mas, se não é direito nem lei, que é, então, a Constituição? U m texto político? U m corpo de normas pro gramáticas? Uma carta de boas intenções? Nada disso. A Constituição é mesmo a Lei das Leis e o Direito dos Direitos; o código de princípios normativos que fazem a unidade e o espírito do sistema, vinculado a uma ordem social de crenças e valores onde se fabrica o cimento de sua pró pria legitimidade. A pertinácia da escola francesa de arredar a Constituição do direito e da lei reflete, ém grande parte, a decadência, o atraso e a baixa ou nenhuma influência que o Direito Constitucional francês, de certo modo fossilizado, exerceu durante vasto período ulterior a II Grande Guerra Mundial sobre a doutrina e a jurisprudência dos tribunais, em contraste com o influxo luminoso doutras épocas em que avultavam o poder e a força de irradiação de seus princípios, nomeadamente os de sua filosofia dos direitos naturais do homem. Essa filosofia fora a coluna do constitu cionalismo da liberdade, imperante durante os séculos X V III e X IX , des de o advento das Constituições. Mas da herança francesa ficou algo sólido, perpetuado na tradição do Estado de Direito e que tem importância para a conservação da liber dade e a formulação constitucional desse conceito nos termos do binô mio Estado e Sociedade: o princípio da separação de poderes. Em verdade, na Constituição, a tripartição e a organização dos po deres são, de último, tocante à sua estrutura, a imagem do Estado, ao passo que os direitos fundamentais compõem a efígie da Sociedade. Es- pelhando-a, exibem tais direitos uma extrema complexidade, por retra tarem os fatores sociais do poder, sujeitos a constantes variações, das quais recebem um certo grau de relevância interpretativa. A densidade problemática dos direitos fundamentais desdobra-se em quatro dimensões sucessivas ou camadas cumulativas superpostas: direitos da primeira, da segunda, da terceira e da quarta gerações, toman do os da segunda, terceira e quarta gerações, do ponto de vista hermenêu tico, uma importância contemporânea incomparavelmente superior à de todas as questões que outrora, no contencioso constitucional, envolviam as relações entre os Poderes. Com efeito, a esfera mais crítica e delicada para o estabelecimento de um Estado de Direito era, na idade do Estado liberal, a organização jurídica dos Poderes, a distribuição de suas competências e, por conse guinte, a harmonia e o equilíbrio funcional dos órgãos de soberania, bem como a determinação de seus limites. Hoje, os direitos fundamentais ocupam essa posição estrutural culminante. Enfim , podemos sintetizar que, ao tempo do velho Direito Consti tucional - o da separação de poderes - a tensão transcorria menos no campo das relações dos cidadãos com o Estado - a filosofia da burgue sia liberal cristalizada na racionalidade jurídica dos Códigos já pacifica ra grandemente essas relações! - do que no domínio mais sensível e de licado das relações entre os Poderes, donde pendia, perante a força do Estado, e a desconfiança remanescente das épocas do absolutismo, a conservação da liberdade em toda a sua dimensão subjetiva. Nesse con texto avultava e se mantinha sempre debaixo de suspeita o Poder Exe cutivo, sobretudo nas monarquias constitucionais, onde ficava mais os tensivamente sujeito aos freios e controle do sistema parlamentar. Já com o novo Direito Constitucional, a tensão traslada-se, de ma neira crítica e extremamente preocupante, para a nervosa esfera dos di reitos fundamentais. A partir de então, a Sociedade procura aperfeiçoar 5S7 o sistema regulativo de aplicação desses direitos, em termos de um cons titucionalismo assentado sobre as incoercíveis expectativas da cidadania postulante. Os direitos fundamentais são a sintaxe da iibérdade nas Constitui ções. Com eles, o constitucionalismo do século X X logrou a sua posi ção mais consistente, mais nítida, mais característica. Em razão disso, faz-se mister introduzir talvez, nesse espaço teórico, o conceito do juiz social, enquanto consectário derradeiro de uma teoria material da Cons tituição, e sobretudo da legitimidade do Estado social e seus postulados de justiça, inspirados na universalidade, eficácia e aplicação imediata dos direitos fundamentais. Coroam-se, assim, os valores da pessoa hu mana no seu mais elevado grau de juridicidade e se estabelece o prima do do Homem no seio da ordem jurídica, enquanto titular e destinatário, em última instância, de todas as regras do poder. N o que concerne ainda à figura abstrata do juiz social, este incor pora em seu juízo ou aparelho de reflexão e entendimento uma vasta e sólida pré-compreensão das questões sociais, pressuposto inalterável de toda a hermenêutica constitucional e de seu conceito de concretização; enfim, aquilo que os alemães com rigor científico costumam designar, numa feliz expressão de linguagem, por Vorverstândnis e que sói fazer na cabeça do magistrado a ratio das decisões judiciais com mais sensi-. bilidade para os direitos fundamentais e para o quadro social da ordem jurídica, a que se prende, doravante, a dimensão nova, concreta e objeti va daqueles direitos. A dimensão objetiva, apesar do reconhecimento da doutrina domi nante, tem sido, todavia, alvo de alguns reparos, como aqueles que par tiram de Dieter Grimm, publicista e juiz constitucional na Alemanha. E m obra recente, intitulada O Futuro da Constituição (D ie Zukunft der Verfassung),]] ressalta ele que, na Dogmática dos direitos fundamen tais, depois da II Grande Guerra Mundial, as inovações mais importantes foram a descoberta do princípio da proporcionalidade e o desenvolvimen to (Entfaltung) do conteúdo jurídico-objetivo dos direitos fundamentais.12 Esse conteúdo jurídico-objetivo provoca a chamada “hipertrofia dos direitos fundamentais” (Bettennann). Mas configura, ao mesmo passo, numa variação incontrastavelmente qualitativa, o rompimento e a mu dança da relação direta, exclusiva e unidimensional do cidadão com o Estado, e vice-versa. Relação característica do status negativus e do sub- jetivismo individualista da idade liberal. Sucedeu-lhe, porém, outra rela ção, agora mais ampla - pluridimensional e plurifuncional que é a do status positivas, mediante o qual se reconciliam o cidadão, a Sociedade e o Estado. A hegemonia traslada-se, então, para a Sociedade, com as novas gerações de direitos fundamentais incorporadas ao constituciona lismo contemporâneo, transformando a Constituição em ordenamento jurídico fundamental da Sociedade, e não apenas do Estado. Com efeito, os direitos fundamentais, ao extrapolarem aquela rela ção cidadão-Estado, adquirem, segundo Bõckenfõrde, uma dimensão até então ignorada - a de norma objetiva, de validade universal, de conteú do indeterminado e aberto, e que não pertence nem ao Direito Público, nem ao Direito Privado, mas compõe a abóbada de todo o ordenamento jurídico enquanto direito constitucional de cúpula.13 Resultaram já da dimensão jurídico-objetiva inovações constitucio nais de extrema importância e alcance, tais como: a) a irradiação e a propagação dos direitos fundamentais a toda a esfera do Direito Priva do; em rigor, a todas as províncias do Direito, sejam jusprivatistas, se jam juspublicísticas;b) a elevação de tais direitos à categoria de princí pios, de tal sorte que se convertem no mais importante pólo de eficácia normativa da Constituição; c) a eficácia vinculante, cada vez mais enér gica e extensa, com respeito aos três Poderes, nomeadamente o Legisla tivo; d) a aplicabilidade direta e a eficácia imediata dos direitos funda mentais, com perda do caráter de normas programáticas; e) a dimensão axiológica, mediante a qual os direitos fundamentais aparecem como postulados sociais que exprimem uma determinada ordem de valores e ao mesmo passo servem de inspiração, impulso e diretriz para a legisla ção, a administração e a jurisdição; f) o desenvolvimento da eficácia in- terprivatos, ou seja, em relação a terceiros (D rittw irkung), com atuação no campo dos poderes sociais, fora, portanto, da órbita propriamente dita do Poder Público ou do Estado, dissolvendo, assim, a exclusividade do confronto subjetivo imediato entre o direito individual e a maquina esta tal; confronto do qual, nessa qualificação, os direitos fundamentais se desataram; g) a aquisição de um “ duplo caráter” (Doppelcharakter, D o - ppelgestalt ou Doppelqualifizierung), ou seja, os direitos fundamentais conservam a dimensão subjetiva— da qual nunca se podem apartar, pois, se o fizessem, perderiam parte de sua essencialidade - e recebem um aditivo, uma nova qualidade, um novo feitio, que é a dimensão objetiva, dotada de conteúdo valorativo-decisório, e de função protetora tão exce lentemente assinalada pelos publicistas e juízes constitucionais da Alema nha; h) a elaboração do conceito de concretização, de grau constitucio nal, de que se têm valido, com assiduidade, os tribunais constitucionais do Velho Mundo na sua construção jurisprudencial em matéria de direi tos fundamentais; i) o emprego do princípio da proporcionalidade vin culado à hermenêutica concretizante, emprego não raro abusivo, de que derivam graves riscos para o equilíbrio dos Poderes, com os membros da judicatura constitucional desempenhando de fato e de maneira insólita o papel de legisladores constituintes paralelos, sem todavia possuírem, para tanto, o indeclinável título de legitimidade; e j) a introdução do con ceito de pré-compreensão ( Vorverstãndnis), sem o qual não há concreti zação. Convém assinalar que o jurista Grimm, já mencionado, advertiu acerca dos riscos e da necessidade de cautela no tocante à dimensão ob jetiva dos direitos fundamentais, mas o fez com algum exagero - algo unicamente cabível se, por imprudência, elastecêssemos sem limites o alcance da própria teoria material da Constituição, desamparando-a de sua eficácia normativa. Exprimiu aquele autor o receio, freqüente entre os teoristas liberais e conservadores, de que o status quo social fique exposto à instabilidade e à controvérsia, como sói acontecer toda vez que se interpretam os di reitos fundamentais apenas pelo prisma da objetividade jurídica. Em rigor, a compreensão mais larga desses direitos e de suas fun ções, mediante uma interpretação jurídico-objetiva sem fronteiras, pode ria acarretar a perda de racionalidade na aplicação das regras jurídicas, o afrouxamento dos cânones da hermenêutica clássica e o advento de uma nova metodologia interpretativa, inclinada a fortalecer abusivamen te o poder judicial, propiciando a usurpação das competências políticas de ordinário reservadas aos demais Poderes, a saber, o Legislativo e o Executivo.14 Reflexões desse teor conduzem, de necessidade, a uma indagação maior acerca da legitimidade que teria o Poder Judiciário para manter, por via de sua função hermenêutica, tal superioridade sobre os Poderes Legislativo e Executivo. A hermenêutica constitucional, por exemplo, não teria como tolher a politização dessa relação de poderes, com a he gemonia do Judiciário e o quebrantamento da garantia que o clássico princípio de Montesquieu de alguma maneira sempre representou.para a liberdade no Estado moderno. Afigura-se-nos, porém, haver para tanto uma saída possível: aquela vislumbrada na Metódica de Friedrich Miiller, constante dè sua Teoria Estruturante do Direito. Ela afasta esse perigo e protege os direitos fun damentais com a hermenêutica normativa da concretização compreendida na moldura de um Estado democrático de Direito, onde avulta sobretudo a eficácia das regras constitucionais fora de todo formalismo exclusivo, unilateral e restritivo, sem janelas ou abertura para o universo das reali dades sociais concretas; estas que, na aplicação hermenêutica, fazem parte, indissociavelmente, da própria natureza, vida, substância e nor- matividade do preceito jurídico, do qual a praxis é conteúdo integrativo e essencial. Sem a praxis, o texto legislativo tanto nos Códigos como nas Constituições é pré-normativo, qual se infere da Teoria Estruturante do Direito, do eminente jurista de Heidelberg. Em verdade, a obra de M iiller é a teorização jurídica da praxis e sua estruturação por via hermenêutica. Nessa assertiva inserem-se duas originalidades de seu pensamento: a primeira, a natureza ju ríd ic a de sua teoria, que não é sociológica nem filosófica, mas estritamente científica; a segunda, a unificação pragmática do sein com o sollen, isto é, do ser com o dever-ser, na linha de um largo e abrangente realismo, dissolven- dp e ultrapassando, assim, a dualidade clássica do positivismo formal mediante o emprego de uma metodologia hermenêutica que se percebe de cunho nitidamente indutivo e que importa a rejeição de todos os elementos dedutivistas, cuja aderência essencial ao texto, supostamente nonnativo em si mesmo, sempre foi o timbre das correntes fonnalistas tradicionais. Invalidadas as objeções do positivismo formalista que teme o co lapso da normatividade das Constituições com o emprego dos critérios materiais de interpretação dos direitos fundamentais, caberá, feitas as ressalvas de risco já apontadas, manter o reconhecimento der importân cia capital da dimensão objetiva. Precisamente por ignorar essa dimensão dos direitos fundamentais, que hoje são a alma das Constituições, e não operar com os conceitos de pré-compreensão e concretização, é que o Direito Constitucional, du rante sua fase positivista mais acentuada, se irmanou ao Estado e ao D i reito Administrativo e, de último, adotando aqueles conceitos, na idade do pós-positivismo, se irmana mais à Sociedade e à Ciência Política. Isto fica deveras nítido quando se transita da dimensão subjetiva - que ocupou todas as épocas do Direito Constitucional clássico - para a 591 dimensão objetiva, ou seja, para as nascentes da materialidade valorati- va e institucional, onde reside a funcionalidade intrínseca daqueles di reitos, e se chega, enfim, por via interpretativa e classificatória, a uma configuração que compreende os direitos da segunda, da terceira e da quarta gerações, valendo-se para tanto de uma nova metodologia, cujo ponto culminante se alcança mediante o conceito de concretização. Verificamos, então, o seguinte: há na Constituição normas que se interpretam e normas que se concretizam. A distinção é relevante desde o aparecimento da Nova Hermenêutica, que introduziu o conceito novo de concretização, peculiar à interpretação de boa parte da Constituição, nomeadamente dos direitos fundamentais e das cláusulas abstratas e ge néricas do texto constitucional. Neste são usuais preceitos normativos vazados em fórmulas amplas, vagas e maleáveis, cuja aplicação requer do intérprete uma certa diligência criativa, complementar e aditiva para lograr a completude e fazer a integração da norma na esfera da eficácia e juridicidade do próprio ordenamento. Na Velha Hermenêutica, regida por um positivismo lógico-formal, há subsunçao; em a Nova Hermenêu tica, inspirada por uma teoria material de valores, o que há é concretiza ção; ali, a nonna legal, aqui, a norma constitucional; uma interpretada,a outra concretizada. Se exagerarmos, porém, na teoria material da Constituição, toma mos a reiterar, o Direito Constitucional corre o grave risco de dissolu ção; já não será ciência, mas literatura política, e, além de entrar em de clínio de normatividade, ele sê flexibilizará, disperso nos casuísmos do poder ou nas soluções tópicas de um decisionismó sem juridicidade, que confunde poderes, extingue garantias e transgride competências. Faz-se, assim, movediça a ordem constitucional, e todo o sistema jurídico se des loca para üm campo de instabilidade. Não é, contudo', o arbítrio, e sim a liberdade em toda a sua multivalência, que compõe a base e a essência da teoria material da liberdade. Com a liberdade, vista sempre à luz das complexidades de nossa época, é de esperar passe essa teoria definitiva- mente a prevalecer na região da doutrina. No dorso de antíteses tais como Estado e Sociedade, lei e Consti tuição, legalidade e legitimidade, legalismo e constitucionalismo, sub- sunção e concretização, norma unidimensional - que é a norma-texto - e norma pluridimensional, nos termos da concepção genial e estraturan- te de Friedrich M iiller, a saber, norma-texto, norma-programa, norma- âmbito, norma-direito e norma-decisão, é que se percebe com toda a evi dência a linha de separação no Direito Constitucional contemporâneo do pós-positivismo material, em ascensão, ao positivismo formal em de cadência.592 CURSO DE D IR EITO C O NSTITUCIO N AL O primeiro esplende em riqueza e fecundidade inovadora, fazendo nascer da gestação de seus conceitos a Nova Hermenêutica, ao passo que o segundo jaz embalsamado num formalismo álgido e refratário aos conteúdos velozes e dinâmicos daquele universo novo de direitos funda mentais em expansão; alheado da realidade, freqüenta unicamente as pá ginas do Direito Constitucional clássico, de inspiração liberal. Em suma, o pós-positivismo, de raízes manifestamente axiológicas, elaborou uma metodologia que fez da hermenêutica o capítulo mais im portante do novo Direito Constitucional. M ax Scheler e Nicolai Hart- mann, na Filosofia, e Kaufmann, Holstein e Smend, no Direito, foram os grandes precursores desse movimento de renovação e antagonismo à escola positivista. 3. A necessidade de fazer eficazes os direitos fundamentais e a insuficiência da Velha Hermenêutica Os direitos fundamentais, em rigor, não se interpretam; concretizam- se. A metodologia clássica da Velha Hermenêutica de Savigny, de ordiná rio aplicada à lei e ao Direito Privado, quando empregada para interpre tar direitos fundamentais, raramente alcança decifrar-lhes o sentido. Os métodos tradicionais, a saber, gramatical, lógico, sistemático e histórico, são de certo modo rebeldes a valores, neutros em sua aplicação, e por isso mesmo impotentes e inadequados para interpretar direitos fun damentais. Estes se impregnam de peculiaridades que lhes conferem um caráter específico, demandando técnicas ou meios interpretativos distin tos, cuja construção e emprego gerou a Nova Hermenêutica. Com acuidade, Hans-Joachim Koch assinalou a complexidade e a peculiaridade n , destacando a necessidade de considerar os seguintes aspectos, indubitavelmente de extrema relevância: o círculo de proteção que deve envolver cada direi to fundamental, as respectivas reservas de lei, as normas legais preen- chedoras dessas reservas, as normas jurídicas infralegais, sobretudo os decretos, as normas de legislação procedimentais e de competência e os demais mandamentos da Constituição, tais como o pertinente ao princí pio do Estado de Direito.15 Demais disso, é de observar que a hermenêutica dos direitos funda mentais requer vias de investigação que transcendem os caminhos aber tos pelo emprego dos métodos interpretativos da escola clássica de Sa- vigny. Isto deriva da peculiaridade mesma imanente 4 estrutura normati va desses direitos fundamentais, que exigem, segundo Koch, “ decisões de prioridade” ou primazia, tais como “entre sua pretensão de tutela {Schutzanspruch) e as interferências legislativas ou entre direitos funda mentais conflitantes, isto é, posições constitucionais cuja harmonia deve ser levada a cabo por via do legislador” .16 A partir daí se coloca, obviamente, o recurso ao princípio da pro porcionalidade, que também serve de apoio à metodologia da Nova Her menêutica.17 Refere Stem que a revolta contra os métodos clássicos de interpre tação - “patrimônio comum da jurisprudência” - partiu da Teoria Geral do Direito e do Direito Público, o que é verdade.18 Mas foi especifica mente no campo do Direito Constitucional que a ofensiva aos critérios interpretativos tradicionais se fez com mais ímpeto e de maneira mais bem-sucedida. Nesse âmbito depara-se-nos Ulrich Scheuner entre os primeiros ju ristas alemães a manifestarem descrença na possibilidade de interpretar os direitos fundamentais com os instrumentos do formalismo, peculiares à metodologia clássica da Lógica Jurídica, tradicionalmente aplicada ao Direito C ivil.19 Impetrava ele, ao contrário, para cada direito fundamental uma in terpretação histórico-cultural, fundada na consideração tanto da história como da tradição, e vinculada sobretudo à compreensão de seu conteú do objetivo, bem como à dilucidação material de seus problemas.20 Entendia Scheuner, porém, numa contradição manifesta, que os di reitos sociais, com exceção de alguns, não eram justiciáveis21 - uma posição vulnerável, em grande parte já ultrapassada pela doutrina mais avançada do Direito Constitucional do século X X . Entre a interpretação da Constituição e a interpretação dos direitos fundamentais há apertados vínculos, servindo os princípios que regem aquela ao esclarecimento do significado das normas pertinentes a esses direitos. Com respeito à Lei Fundamental de Bonn, diz Klaus Stem, que a interpretação dos direitos fundamentais “é o mais importante teatro de guerra na luta pela interpretação” dessa Lei.22 E, a seguir, referindo a importância de tais direitos, se vale de u ’a máxima célebre do jurista R. v. Gneist ao formular os direitos fundamentais como “postulados gerais da Sociedade” .23 Aliás, na Alemanha, durante a República de Weimar, a interpreta ção dos direitos fundamentais ficara atada à metodologia clássica de Savigny. Em conseqüência disso, girava ao redor da lei e de suas técni cas interpretativas, sem valor hermenêutico autônomo, que só adquire por ensejo da segunda metade do século X X , por obra dos novos con ceitos de interpretação produzidos pela Tópica. Tocante aos direitos fundamentais, dominava ainda o cenário ju rí dico da época de Weimar, segundo adverte aquele constitucionalista, uma acesa controvérsia a respeito da aplicação de duas teorias interpre tativas: a teoria subjetiva, dominante na jurisprudência e na doutrina, sobretudo com Anschütz - o principal comentador da Constituição de Weimar - , e a teoria objetiva; a primeira, volvida para o constituinte, buscando-lhe a expressão de vontade, e a segunda, para a natureza, a independência e o sentido próprio do direito fundamental, interpretati- vamente desmembrado de seu instituidor.24 D e qualquer modo, os publicistas alemães desse período chegaram a vislumbrar três aspectos de capital relevância quanto aos direitos fun damentais: primeiro, a sua função protetora, capacitada a impor limites e deveres, tanto à autoridade legislativa como administrativa; segundo, o caráter unitário e unificador de que são dotadas tais normas de direitos fundamentais, sem embargo de sua variedade material de conteúdo, e terceiro, o princípio da efetividade desses direitos, cunhado por Thoma, princípio mediante o qual se determina que, em caso de dúvida na esfera interpretativa, cabe a preferência àquela norma mais apta a desdobrar com maior intensidade a eficácia jurídica do direito fundamental.23 O princípio compieta-se teoricamente,
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