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Epistemologia Jurídica Aurélio Wander Bastos (Professor Titular da UniRio e Doutor em Ciência Política) Etimologia – (do grego epistêmê: conhecimento). Teoria do conhecimento. Estudo dos princípios, hipóteses e resultados do conhecimento com o objetivo de identificar metodologicamente os seus valores. Estudo cognitivo do conhecimento. Teoria de inferências defensáveis. Relação perceptiva entre o agente cognoscente e o objeto cognoscivel. Platão no Teeteto defende que é o conhecimento da verdade a partir de um determinado logos. A sua característica essencial é a reflexão “externa” sobre o conhecimento ôntico (ser) e, na leitura especificamente jurídica, deôntico (dever ser). Todavia, Aristóteles, Hume e John Stuart Mill foram alguns dos expoentes sobre a percepção epistemológica do conhecimento experimental, assim como, modernamente, ampliaram-se os estudos sobre a dimensão compreensiva dos fatos sociais e a crítica dos sistemas de valores. Origem do Termo: Grego: epistêmê; Latim: Episteme; Alemão: Wissenshaftslebre; Francês: Epistemologie; Inglês: Epistemology. Conceito: Os estudos sobre a epistemologia jurídica contemporânea estão dominados pelo debate sobre o Direito, como Ciência formal, essencialmente apoiados na clássica dogmática jurídica, de influência romanista, ou mesmo na influência cientificista de Hans Kelsen. Por outro lado têm crescido os estudos de epistemologia do Direito apoiados na Sociologia Jurídica, que, para A.L. Machado Neto, um dos seus precursores no Brasil, a Ciência do Direito só é Ciência enquanto Sociologia Jurídica. Por estas razões, os estudos dogmáticos sobre o conhecimento jurídico estão sendo gradativamente cumulados a investigações que vêem no Direito uma natureza suscetível a abordagens que traduzam idéias, não apenas racionais - formais, mas também situações sociais reais fácticas, que Tércio Sampaio Ferraz Junior, denominou de leituras zetéticas do fenômeno jurídico, de dimensões mais abertas e de razoável alcance crítico. Estas modernas abordagens têm deslocado as discussões sobre a tradicional correlação entre Direito e Justiça para estudos sobre o objeto e o método, não do Direito, mas da Ciência do Direito, enquanto Teoria Pura do Direito, ou da Sociologia Jurídica, enquanto estudo dos fatos sociais ou da correlação entre fatos sociais novos e tradicionais e a norma jurídica, fugindo, nas ambas dimensões epistemológicas, ao tradicionalismo dogmático romanista. Os juristas que estudam o conhecimento do Direito na sua dimensão normativista (ou legislativa) têem trabalhado o conhecimento jurídico de uma perspectiva dogmática, dominada pelo romanismo praxista, mas, por outro lado, correntes mais recentes têem procurado rever o romanismo hermenêutico identificando-o como mera referência positivista para adotar as reflexões sobre o objeto e o método da Ciência do Direito, como prática da investigação científica em geral. Por isto, as modernas investigações sobre a epistemologia jurídica estão concentradas no conceito de norma jurídica, como objeto da Ciência do Direito, onde a preocupação com o seu conteúdo valorativo perde sua referência prioritária para reconhecer a relação de vinculação formal entre as normas ou a correlação das normas com os fatos sociais novos ou tradicionais, permeados por fluxos de valor. Neste quadro, a norma pode não ser a expressão do conceito de Justiça, no quotidiano da discussão jurídica, e o Direito será sempre e necessariamente a expressão normativa concreta posta na lei – Direito escrito, e não uma expectativa de realização dos ideais abstratos de Justiça. Como observamos, neste contexto de desenvolvimento teórico, podemos afirmar, que, modernamente, admite-se, cada vez mais, que os estudos jurídicos procuram separar o conceito de Direito do conceito de Justiça, deixando a este as formulações sobre padrões ideais e axiológicos de convivência e àquele a expressão da realidade objetiva dos padrões normativos de convivência. Isto não significa, é claro, que a norma não possa ser a expressão da Justiça, mas, a decisão judicial, não necessariamente seria a decisão justa. O equilíbrio ou desequilíbrio entre estas variáveis estará sempre condicionado pelas circunstâncias históricas que em muitas ocasiões se sobrepõe à ratio legis. De certa forma, não há como afirmar que o Direito escrito é injusto, assim como não se pode afirmar que todo o Direito pressuposto seria um Direito justo, mesmo porque a norma escrita pode ser expressiva do conceito vigente de Justiça e, ao contrário, o Direito não escrito possa manifestar-se como Direito injusto, simplesmente porque estas qualificações dependerão do approach do observador (sujeito cognoscente) ou da autoridade que decide (funcionário obrigado ou Juiz). Para Hans Kelsen a ordem jurídica se constitui de normas puras, vazias de qualquer conteúdo axiológico, permitindo, apenas, reconhecer que o Direito nada mais seria do que a própria norma na sua dimensão concreta e judicialmente aplicável, infensa ao conceito de justiça ou injustiça. Em qualquer outro plano ela seria uma mera expectativa, muito além do Direito subjetivo, na exata divergência da Sociologia Jurídica, sempre mais preocupada com o conteúdo axiológico da norma enquanto expressão do fato social juridicamente relevante, no espaço e no tempo. Neste contexto, não há como desconhecer que o Juiz decide conforme as disposições normativas na sua dimensão material e formal, o que não necessariamente poderá estar conforme os padrões de justiça expectados socialmente, o que, aos olhos da sociedade, poderia ser ou não ser uma decisão justa, mas, que, aos olhos da própria ordem jurídica, seria o Direito escrito, que, pelo menos em tese, é a base referencial da decisão justa. Esta relativização argumentativa não significa uma relativização da decisão judicial, mas demonstra que o processo decisório pode ser (ou estar) vulnerável à linha de compreensão do fenômeno jurídico. Nestas situações, é claro, o argumento zetético seria um mero argumento e a Sociologia Jurídica uma hermenêutica perceptiva da defasagem social da norma e da imprescindível necessidade de se legislar sobre fatos sociais novos. Estas observações demonstram, por conseguinte, que a moderna epistemologia jurídica seccionou o conceito de Direito do conceito de Ciência do Direito, em qualquer de suas dimensões, assim como tem procurado desvincular o conceito de Direito do conceito de Justiça. Neste sentido, o conceito de Direito pode ser a expressão escrita de um determinado conceito de Justiça, literalmente transcrito em Lei, ou, em outras ocasiões, não traduzir exatamente o conceito de Justiça posto em Lei, mas uma figuração fáctica ou valorativa pressuposta, apoiada em sistemas axiológicos que podem divergir, se não absolutamente, parcialmente, do sistema axiológico instituído. Estes sistemas axiológicos, os denominamos, no quotidiano dos estudos epistemológicos, de ideologias, demonstrando que existe uma hermenêutica instituída destinada a conhecer a Ordem instituída e outros sistemas axiológicos preocupados com sua desconstrução na expectativa da construção inovadora da Ordem. Normalmente este processo desconstrutivo se desenvolve através de mecanismos da própria Ordem, quase sempre de baixo alcance modificativo, outras vezes, no entanto, podem ter longo alcance desconstrutivo, mas a partir quase sempre de movimentos sociais exógenos ou de frações dissidentes do Estado, enquanto agentes de implementação da ordem jurídica. No entanto, o pragmatismo normativo subtraiu do debate jurídico a sua dimensão axiológica e transformou o ideal de justiça em mera referência da decisão judicial, assim como, não viabilizando as variáveis fácticas do Direito, na sua dinâmica valorativa, pôde transformar a sua emersão social em mera esperança, que, na posição de Rudolph von Ihering, ultrapassa os limites do próprio Direito subjetivo. Neste ritmo, o cientificismojurídico de Hans Kelsen, mesmo fugindo ao clássico dogmatismo, submeteu o Direito aos padrões metodológicos do seu livro intitulado Teoria Pura do Direito, deslocando, se não, completamente, significativamente, o espaço epistemológico do Direito, em qualquer de suas dimensões, subtraindo do conhecimento jurídico a sua independência, para reconhecê-lo como objeto do conhecimento jurídico, enquanto Ciência do Direito, formatada como Teoria do Direito. Por outro lado, a Sociologia Jurídica deslocou o espaço normativo do Direito para a discussão do fato juridicamente relevante ou da norma que perdeu a sua referência real ou valorativa, transformando, se não o fato social em Direito, em objeto do conhecimento jurídico a correlação entre fato social e norma, o que permite fazer da teoria do conhecimento jurídico uma epistemologia da sintonia ou das defasagens entre o fato social (juridicamente relevante) e a norma. Neste contexto, a Ciência do Direito estuda metodologicamente o Direito como objeto do conhecimento, enquanto norma independente do próprio sistema de avaliação científica, e, em tese, alheia ao sujeito cognoscente, e não como o próprio conhecimento. Comparativamente, para a Ciência do Direito, a norma está para a observação científica da mesma forma que a natureza, ela não é o próprio conhecimento ou ciência, mas o objeto dele. Por outro lado, a Sociologia Jurídica tem como objeto de seu conhecimento não a norma pura, como pretendeu Hans Kelsen, mas o fato social, como pretendeu León Duguit, ou, numa leitura contemporânea, como nós próprios temos incentivado, como verificação das conexões de valor entre o conteúdo da norma com as variáveis determinantes nos fatos sociais juridicamente relevantes. Isto significa que a norma, seja qual for o seu corpus e a sua vestimenta (lei, decreto-lei, decreto, regulamento, portaria, contrato ou sentença, ou mesmo as medidas provisórias), poderá ser conhecida doutrinariamente de diversos ângulos gnoseológicos e padecer de diferentes interpretações, assim como a sua aplicação casuística poderá estar sedimentada em uma ou várias doutrinas, que, da mesma forma, subsidiarão os recursos e apelações. Não existe uma verdade jurídica, e a mais ostensiva prova é que de toda decisão caberá uma apelação ou recurso, independentemente das ações intrasistêmicas como os embargos e/ou agravos, a outra autoridade superior, assim como a autoridade inferior não está vinculada ao cumprimento de decisão superior, exceto, naquelas situações normativamente determinantes, como as súmulas vinculantes, o que não significa que seja a última verdade. A autoridade judiciária, da mesma forma, ou mesmo a autoridade administrativa, não são instâncias para promulgar a verdade, mas para promulgar o seu conhecimento ou o entendimento judicialmente (jurisprudencialmente) dominante sobre a norma in abstracto ou sobre a sua aplicação concreta a caso concreto. O Juiz decide com a sua ciência (doutrina) e consciência, e não conforme padrões abstratos de Justiça, a menos que esta seja sua doutrina. A última instância judiciária não é aquela que promulga, afinal, a verdade; se o fosse, não se justificariam as ações rescisórias; mas a instância que interpreta e decide segundo os padrões de conhecimento politicamente dominantes. Por esta razão, não se pode desconsiderar, sempre, que a verdade jurídica pode ter dimensões políticas e, por isto mesmo, relativa e sujeita às flutuações de sua própria negação, de seu tempo e de seu espaço. A verdade jurídica é a verdade burocrática na sua dimensão judiciária, e, o que resguarda a decisão judicial, é o aparelho de Estado, e não a própria norma, independentemente das suas dimensões de valor. Tomando o conjunto destas observações como referência, o fenômeno jurídico é a manifestação combinada do fato (a ocorrência social), do valor (implícito, juridicamente referencial) e da norma, na leitura de convicção de Miguel Reale, sendo todavia, que a articulação combinada destas variáveis só é juridicamente possível a partir da ação interveniente dos poderes, na linguagem de Montesquieu, em todos os seus níveis de manifestação organizada, muito especialmente enquanto Poder Judiciário. Não havendo a ação dos poderes não há como aplicar a norma à ocorrência social, assim como a ocorrência social não tem qualquer significado jurídico sem a norma na sua dimensão valorativa perceptível pelo poder. Na ausência da norma, o poder, mesmo o Poder Judiciário, na dimensão estrutural brasileira, será um poder imperativo (ou mesmo arbitrário), fenômeno que não ocorre em países que não se enquadrem exatamente no modelo latino. Esta discussão, todavia, não se encerra com a compreensão de que o fenômeno jurídico é uma manifestação combinada destes três fatores: fato, valor e norma aplicada pelo poder instituído, mas, especialmente, ela se desenvolve a partir da discussão sobre a gênese compreensiva do fenômeno jurídico pensada pelos órgãos legislativos ou pelo Poder Executivo ou mesmo nas dimensões de alcance extensivo do Poder Judiciário. Finalmente, as teorias sobre o objeto do fenômeno jurídico podem ser agrupadas em duas grandes vertentes epistemológicas: a Epistemologia Idealista, de grande força dogmática, e a Epistemologia Sociologista, de grande força zetética. Para os Idealistas, a ordem jurídica é a expressão concreta de um conjunto de princípios ideais e imutáveis e, para os Sociologistas, a ordem jurídica é a expressão da realidade social concreta mutável. Nas duas vertentes teóricas encontramos os mais diferentes matizes, o que nos permite distinguir os Idealistas em jusnaturalistas, positivistas e normativistas e os Sociologistas em historicistas, marxistas, empiricistas e experimentalistas, todas estas teorias têm suas leituras clássicas e/ou modernas. O fato, todavia, de se classificarem em vertentes metodológicas distintas não significa que tenham posições dessemelhantes, nem muito menos o fato de se classificarem na mesma vertente não significa que dêem ao fenômeno jurídico tratamento idêntico. Da mesma forma, os Sociologistas não sucedem historicamente aos idealistas, ou vice-versa, assim como o fato de uma consolidação doutrinária anteceder a qualquer outra não significa que ela deixe de influir na formulação doutrinária do Direito, ou que os códigos e leis venham a ser reformulados porque se desenvolveram doutrinas que rejeitem ou critiquem formulações teóricas consolidadas. Muito ao contrário, todas estas doutrinas influenciam conjuntamente o universo da discussão jurídica e contribuem para a interpretação e aplicação das normas estabelecidas. O conjunto destas vertentes doutrinárias, todavia, se assemelham pela gênese epistemológica, isto é, enquanto para os Idealistas, sejam eles jusnaturalistas, positivistas ou normativistas, a ordem jurídica é a imagem e o ato da razão que determinam o comportamento social, para usar a linguagem hegeliana, na sua herança de Platão, ou o imperativo categórico (ético), na linguagem de Emmanuel Kant, para os Sociologistas, sejam eles historicistas, marxistas ou empiricistas, a ordem jurídica é um reflexo de idéias que se desenvolvem a partir da experiência e da dinâmica das relações sociais, na sua herança marxista ou, na expressão de Leon Duguit, quando reconhece que vivemos uma especialíssima situação: os fatos rebelam-se contra os códigos. O gráfico seguinte permite uma visualização didática das duas vertentesepistemológicas: Gráfico EPISTEMOLOGIA EPISTEMOLOGIA JURÍDICA JURÍDICA IDEALISTA SOCIOLÓGICA ↓ ↑ ↓ ↑ Como se verifica, para os Idealistas, a ordem jurídica, enquanto Direito escrito, inspira os padrões de conduta social, e delimita as ações juridicamente proibidas, ou permitidas, e, para os Sociologistas, a ordem jurídica, enquanto Direito, é construída a partir de forças socialmente determinantes e a delimitação do proibido ou do permitido juridicamente é circunstancial e depende exclusivamente da correlação de forças sociais, da tradição, do costume e da experiência, quando não dos novos valores emergentes. Para os primeiros, a ordem jurídica só deve mudar quando ela se afastar dos padrões ideais racionais e universais de Justiça. São os homens que, na aplicação da ordem jurídica, ou na sua execução e realização, levam-na a se afastar dos valores universais e predeterminados de Justiça. Diversamente, os sociologistas acreditam que a sociedade, no seu contínuo movimento de mudança, provoca alternadamente variações nas correlações de forças sociais (fatores reais de poder) ou nos processos de sedimentação de costumes e tradições, o que exigiria constantes e necessárias modificações na ordem jurídica para evitar a sua defasagem, as clivagens de interesses conflitivos e o seu conseqüente atropelamento pelos fatos. Conclusivamente, estas duas grandes vertentes epistemológicas, traduzem, exatamente, as preocupações teóricas do pensamento dogmático, no seu compromisso com a razão universal, e do pensamento zetético, no seu compromisso crítico de adaptação da norma aos valores fácticos juridicamente determinantes. Bibliografia: Kelsen, Hans: Teoria Pura do Direito, 4ª. ed., Coimbra, Armenio Amado Editores, 1979, e, ainda, 2ª. ed., edição brasileira, São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1985. Duguit, León. Traité de Droit Constitucionnel, 3ª. ed., Paris, Ancienme Librairie Fontemaing, 1927. Reale, Miguel: Lições Preliminares de Direito, 3ª. ed., São Paulo, Saraiva, 1976. Machado Neto, A.L.: Compêndio de Ciência do Direito, 6ª. ed., São Paulo, Saraiva, 1984 e Sociologia Jurídica, 7ª. ed., São Paulo, Saraiva, 1987. Von Ihering, Rudolph: A Luta pelo Direito (Prefácio de Aurélio Wander Bastos), 2ª. ed., Rio de Janeiro. Ed. Lúmen Júris, 2000. Ferraz Junior, Tércio Sampaio: Função Social da Dogmática, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais. Bastos, Aurélio Wander: Teoria do Direito, 4ª. ed., Rio de Janeiro, Ed. Lúmen Júris, 2009 e Conflitos Sociais e Limites do Poder Judiciário, 2ª. ed., Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2004. Maffetone, Sebastiano e Salvatore: Veca: A Idéia Justiça de Platão a Rowes (trad. Karina Janini), São Paulo, Martins Fontes, 2005, (Justiça e Direito). Ordem Jurídica Idéias Ordem Jurídica Idéias Sociedade (Relações Sociais) Sociedade (Relações Sociais)
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