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LE MONDE diplomatique BRASIL UM NOVO OLHAR SOBRE O MUNDO. UM NOVO OLHAR SOBRE O BRASIL. R$ 14,90ANO 11 / NÚMERO 127 ESCALADA NUCLEAR “INOCENTES ÚTEIS” DO PENTÁGONO POR SERGE HALIMI ARTIGO ESPECIAL DESAFIOS DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA POR RAFAEL CORREA 10 14 2 EPIDEMIA DE OPIÁCEOS VÍCIO COMEÇA NOS CONSULTÓRIOS POR MAXIME ROBIN UNIVERSIDADES PÚBLICAS ABANDONADAS 32 ESQUERDA E MACHISMOHARVEY WEINSTEINPOR THOMAS FRANKVIOLÊNCIA OBSTÉTRICAA ROTINA DO PARTOPOR LUCIANA MOTOKI3024 O ACORDO DE PARIS E O BRASILRETROCESSOS AMBIENTAISPOR CARLOS RITTL 9 771981 752004 00127 2 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 ESTADOS UNIDOS POR SERGE HALIMI* Os “inocentes úteis” do Pentágono © S a n d ra J a v e ra E m Washington, democratas e re- publicanos se entendem, pelo menos, quando se trata de com- bater a Rússia. Segundo eles, Vladimir Putin duvida da determina- ção dos Estados Unidos de defender seus aliados e quer preservar seu regi- me autoritário do contágio democráti- co e liberal. Por isso, teria se decidido pela agressão ao Ocidente. Então, a fim de garantir a paz e a democracia, o Exército norte-americano e os parla- mentares dos dois partidos resolve- ram contra-atacar... Primeiro, o Exército norte-ameri- cano. Obedecendo a uma ordem da Casa Branca, o Pentágono acaba de completar um estudo que preconiza um emprego mais generoso das armas nucleares.1 Estas, atualmente destruti- vas demais para que sua utilização seja sequer imaginável, não desempe- nham, portanto, seu papel de dissua- são; conviria, pois, miniaturizá-las, para que possam servir contra um le- que mais amplo de ameaças. Ameaças, inclusive, “não nucleares”: destruição de redes de comunicação, “armas quí- micas, biológicas, ciberataques” etc. Em 2016, sem saber muito bem quais eram os próprios fundamentos da dissuasão, o candidato Donald Trump teria perguntado a um de seus consultores: “Para que possuímos ar- mas nucleares se não as usamos?”.2 O documento do Pentágono dá uma res- posta à sua maneira. Diante das “am- bições geopolíticas” da Rússia (e tam- bém da China), o desejo de Moscou de “modificar pela força o mapa da Euro- pa” e “questionar a ordem internacio- nal instaurada após o fim da Guerra Fria”, os Estados Unidos devem apres- sar a “modernização de suas forças nucleares”, a fim de continuar no pa- pel de “sentinelas fiéis da liberdade”. Essa abnegação democrática não tem preço – ou melhor, tem: a triplicação do orçamento militar norte-america- no destinado às armas nucleares. Esse alarmismo geopolítico a ser- viço de uma nova corrida armamen- tista suscitaria oposição nos Estados Unidos se, há um ano, a chamada es- querda norte-americana não viesse se esforçando para apresentar Trump co- mo uma marionete de Moscou.3 Ela chegou a ponto de obrigá-lo a entregar armas à Ucrânia (coisa que seu prede- cessor democrata se recusou a fazer) e a aumentar as sanções contra a Rússia. O ex-vice-presidente Joe Biden há pou- co se rejubilou num artigo que é um primor de sutileza já no título: “Defen- der a democracia contra seus inimi- gos: como resistir ao Kremlin”.4 Ao mesmo tempo, os senadores de- mocratas da Comissão de Política Ex- terna publicavam um relatório que analisava “o ataque assimétrico de Pu- tin à democracia na Rússia e na Euro- pa”. Ainda mais indignada que de cos- tume, a jornalista pop star Rachel Maddow, porta-voz da “resistência” a Trump na cadeia NBC, replicou sem demora: “Nosso presidente não ape- nas deixou de extinguir esse incêndio como ficou observando o avanço das chamas!”. Ela pode dormir tranquila: o Pentágono saberá defendê-la. *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1 Ashley Feinberg, “Exclusive: here is a draft of Trump’s nuclear review. He wants a lot more nukes” [Exclusi- vo: eis um esboço da avaliação nuclear de Trump. Ele quer muito mais bombas nucleares], 11 jan. 2018. Disponível em: <www.huffingtonpost.com>. 2 Matthew J. Belvedere, “Trump asks why US can’t use nukes: MSNBC” [Trump pergunta por que os Estados Unidos não podem usar bombas nuclea- res: MSNBC], 3 ago. 2016. Disponível em: <www.cnbc.com>. 3 Ver “Trump acuado pelo partido anti-Rússia”, Le Monde Diplomatique Brasil, set. 2017. 4 Foreign Affairs, Nova York, jan.-fev. 2018. 3FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil EDITORIAL POR SILVIO CACCIA BAVA E agora? © C la u d iu s C om a condenação de Lula fica ca- da vez mais evidente a falência das instituições democráticas. A politização do Judiciário trans- formou-o num poderoso instrumento de perseguição política. Os demais po- deres da República se alinham e se ca- lam, em cumplicidade de classe social. O que vai acontecer com o Brasil, agora que nossa democracia foi sus- pensa, que nossos três poderes – Exe- cutivo, Legislativo e Judiciário – foram capturados e são controlados por gru- pos de interesse e quadrilhas que agem contra a democracia e contra os inte- resses das maiorias? Vale a pena legitimar esta falsa democracia? Vale a pena votar nas eleições deste ano? Qual caminho so- bra para defendermos nossos direitos de cidadãos e cidadãs, para defender- mos uma democracia que nos repre- sente? As ruas? A desobediência civil? A insurreição? Os protestos contra as violações de direitos crescem, assim como crescem os grupos provocadores de direita. Mas todos eles ainda se restringem ao mundo da militância, muitos osten- tando seus cabelos brancos. As novas gerações não conquistaram muito es- paço. Movimentos como os de juven- tude, o movimento contra o genocídio da juventude negra, o movimento das jovens mulheres negras, necessitavam ter um protagonismo maior. Mesmo que o governo Temer tenha 97% de reprovação e a vida tenha se tornado mais difícil, a sociedade civil ainda está relativamente quieta. As marchas e passeatas são diárias, mas aqueles que não são militantes, as maiorias espoliadas, as periferias das grandes cidades, continuam em silên- cio. Há perplexidade e desesperança por toda parte. A proposta de reforma política se mantinha em pé enquanto era possível imaginar a possibilidade de uma Cons- tituinte independente. Mas o atual Congresso, com os parlamentares em sua maioria organizados em lobbies para a defesa de interesses corporati- vos, muitos indiciados em crimes de corrupção, não aceita essa possibilida- de nem sob pressão popular. Esse Judiciário, que assume seu la- do conservador e de direita, tem hoje a última palavra na política nacional. Ignora provas e se omite em casos fla- grantes, como o do senador Aécio Ne- ves, mas considera legítimo “intuir” a culpa de Lula. Esse Executivo criminoso e entre- guista, o governo Temer, acaba de dar isenção tributária às grandes empre- sas petrolíferas internacionais que compraram, a preço de banana, nos- sas reservas do pré-sal. Há estimativas de que essas isenções possam chegar a R$ 1 trilhão. Quem autorizou o presi- dente Temer a dar esse presente às multinacionais?1 De um lado, o governo corta dinhei- ro da saúde, da educação e das políticas sociais; de outro, concede enormes isenções de impostos a multinacionais, deixando de receber impostos que po- deria repassar às políticas sociais, algo estimado em R$ 40 bilhões por ano. A polarização do cenário político revigora o PT, reforçado pelas carava- nas de Lula e por sua crescente prefe- rência eleitoral, já batendo nos 45%2 em dezembro passado. Mas a crise política não se resolve nem com a reabilitação do PT nem com a partici- pação de Lula nas eleições.Ela é uma crise sistêmica. O que precisa mudar é o sistema político, são as regras que permitem às elites controlar e repri- mir as maiorias. Na história, essas mudanças se dão por mobilização dos setores popula- res, quando os cidadãos buscam se reapropriar do poder de decidir sobre a própria vida, coletivamente. Em al- guns casos, fortes movimentos de massa impuseram sua agenda e refor- mas às instituições políticas; em ou- tros, esses movimentos foram às ar- mas, como o exemplo das lutas contra o colonizador europeu na África. A construção das frentes Brasil Po- pular e Povo Sem Medo são importan- tes iniciativas para organizar mais a re- sistência democrática e a defesa de direitos. Essa resistência, porém, preci- sa ser mais ampla, convocar os cidadãos comuns a se organizarem em coletivos, comitês de luta pela democracia, tor- nar-se cada vez mais pública. A disputa política na sociedade se dá pela disputa das narrativas. E os se- tores neoliberais e conservadores se armaram para essa disputa. São pes- quisas, palestras, cursos, seminários, livros, filmes, programas de televisão e notícias que vão apresentando uma vi- são de mundo e as vantagens de suas crenças. Nem todos dispõem de recur- sos para atuar em tantas frentes, mas é preciso estar alerta para o fato de que essa cadeia de conhecimentos e pro- paganda funciona. Entre os principais desafios para os próximos anos está estimular o pensamento crítico, produzir análises e debates que contribuam para a for- mação e instiguem os jovens e todos os setores discriminados a construir uma nova frente política e enfrentar o regime autoritário que se configura e a nova forma de espoliação dos traba- lhadores, isto é, de todos aqueles que vivem de seu trabalho. É difícil prever a evolução da con- juntura, mas com o acirramento dos movimentos sociais e da repressão co- meça a existir a necessidade de os que lutam pela democracia se organiza- rem, cada grupo em seu território, seja pela ativação de entidades locais, seja pela criação de organismos de base, coletivos horizontais, suprapartidá- rios, formando núcleos de resistência. A aposta é refundar a democracia em bases populares, para a defesa dos interesses das maiorias. Se as eleições de 2018 ainda são um importante mar- co dessa disputa, é preciso olhar para um horizonte mais amplo, organizar a resistência e entender que a constru- ção de um pensamento hegemônico se faz no dia a dia, disputando ideias e políticas, fazendo a crítica das políti- cas atuais e apresentando alternativas para disputar corações e mentes. 1 Eduardo Militão, “Estudos apontam perda de R$ 1 tri em renúncia fiscal após leilão do pré-sal”, UOL, 31 out. 2017. 2 Pesquisa do Instituto Ipsos, dez. 2017. 4 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 UNIVERSIDADES PÚBLICAS Sobre o caráter da burguesia brasileira No projeto-programa em vigor no governo Temer, comandado por uma burguesia cosmopolita com “complexo de vira-latas”, não existe uma nação nem interesses nacionais. Assim, ele não necessita de universidades públicas que pratiquem, de forma integrada, o ensino, a pesquisa e a extensão – e ajudem a formar uma nação POR LUIZ FILGUEIRAS, GRAÇA DRUCK E UALLACE MOREIRA* E m 2017, as universidades públi- cas brasileiras, em especial as federais, entraram na mira do governo Temer, tornando-se, concomitantemente, a “bola da vez” dos ataques da grande mídia corporati- va. A ofensiva orquestrada, de tentativa de desqualificação e desmoralização dessas instituições, contou com a parti- cipação do Banco Mundial (Bird), do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal – os três últimos ins- pirados pela Operação Lava Jato. No plano do financiamento do Es- tado para as universidades federais, o governo Temer, apoiado na “PEC da morte”, que congelou os gastos corren- tes federais por vinte anos, reduziu o repasse de recursos para essas institui- ções – tanto os gastos com investimen- tos, com a paralisação de inúmeras obras que vinham sendo executadas, como os gastos correntes ordinários que garantem o funcionamento coti- diano das universidades federais. Na esfera do Ministério Público, do Poder Judiciário e da Polícia Federal, as universidades federais foram agre- didas duplamente, numa tentativa de criminalização e desmoralização de sua comunidade e de seus dirigentes, no mesmo estilo e com o mesmo mo- dus operandi empregado pela Opera- ção Lava Jato. Tendo por justificativa a investigação de supostos desvios de recursos, foram invadidas as instala- ções de duas universidades federais, a de Santa Catarina (UFSC) e a de Minas Gerais (UFMG), com a “condução coercitiva” de dirigentes e professores, o uso de enorme aparato policial – ho- mens mascarados portando armas de grosso calibre – e grande mobilização midiática, como se houvesse organi- zações criminosas agindo no interior dessas instituições, e professores e rei- tores fossem bandidos e operadores dessas supostas organizações. Tudo isso feito sem nenhuma convocação anterior desses servidores públicos para prestar esclarecimentos e sem nenhuma acusação formal. No caso mais dramático, o da UFSC, seu reitor, abalado psicologica- mente – depois de conduzido arbitra- riamente às instalações da Polícia Fe- deral e de ter sido vítima de violência e humilhação em revista íntima, além de ficar proibido de entrar na universi- dade que dirigia –, suicidou-se, jogan- do-se de cima de um andar de um shopping de Florianópolis. Toda a operação foi executada sob a respon- sabilidade de uma delegada que havia trabalhado na Operação Lava Jato, com as mesmas arbitrariedades e uti- lizando os mesmos métodos de exce- ção da “República de Curitiba”. Para completar as agressões às uni- versidades públicas, no final de 2017 apareceu na cena política um “estudo” (assim denominado para dar impres- são de ser científico e, portanto, irrefu- tável) do Banco Mundial.1 Com 160 pá- ginas e encomendado pelo então ministro da Fazenda do governo Dil- ma, Joaquim Levy, trata-se na verdade de um documento político de apoio às contrarreformas neoliberais e ao ajus- te fiscal permanente que vêm sendo colocados em prática pelo governo Te- mer. Seu objeto central é o gasto cor- rente (primário) do governo federal, em especial os gastos sociais com a Previdência e a seguridade social, a saúde pública, a educação pública e os salários dos servidores públicos – na li- nha de que “o governo gasta demais e gasta ineficiente e injustamente”. Por- tanto, deve-se, e pode-se, cortar esses gastos, tornando-os, supostamente, mais eficientes, equitativos e justos. No entanto, a parte dedicada ao ensino superior, em particular às uni- versidades federais, resume-se a sete páginas, pois o foco do documento é a Previdência Social,2 tida pelo capital financeiro como “a joia da coroa” por um motivo compreensível: depois dos gastos com o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública, que consomem mais de 50% do orçamen- to do governo federal, a Previdência Social é o segundo maior gasto, cor- respondendo a pouco mais de 25%. Por sua vez, os gastos com saúde e educação representam de 3% a 4%, enquanto as demais rubricas, como habitação, saneamento, ciência e tec- nologia etc., não chegam, cada uma, a 1%.3 Portanto, é a Previdência Social que mais pode transferir recursos pa- ra o capital financeiro – diretamente, ao aumentar o superávit fiscal primá- rio, e indiretamente, ao “empurrar” parte de seus beneficiários para os fundos de pensão privados.A parte do “estudo” dedicada à crí- tica às universidades públicas federais é de um primarismo e uma grosseria sem par, evidenciando a ligeireza e a má-fé com que foi realizada. O objetivo é um só: desqualificar essas institui- ções taxando-as de ineficientes, in- competentes e injustas, pois desperdi- çam dinheiro público e favorecem os alunos pertencentes às famílias de ní- vel de renda mais elevado. O corolário daí resultante é a defesa da instituição do ensino pago e da redução do finan- ciamento das universidades públicas. Para demonstrar a ineficiência, o Bird compara o gasto por aluno das universidades federais com o das uni- versidades privadas, apontando uma diferença enorme entre ambos: segun- do ele, entre 2013 e 2015, o custo médio anual por estudante foi de R$ 40.900 nas universidades públicas federais e apenas R$ 14.850 nas universidades privadas com fins lucrativos. Por outro lado, para evidenciar o caráter regres- sivo dos gastos públicos, aponta que 65% dos estudantes das universidades federais pertencem aos 40% mais ricos da população, enquanto apenas 20% fazem parte dos 40% dos mais pobres. Com base nessas duas supostas cons- tatações, o Bird propõe a redução dos recursos destinados às universidades federais, o que as obrigaria a “redefinir sua estrutura de custo e/ou buscar re- cursos em outras fontes”, e a introdu- ção do ensino pago. Em suma, o “estudo” do Bird é a ve- lha cantilena da necessidade de um ajuste fiscal, defendido desde sempre pelo capital financeiro e vocalizado pela grande mídia corporativa apoia- da em “especialistas” (economistas ortodoxos) e editoriais focados no te- ma. Nesse contexto, os gastos públicos com o ensino superior, assim como to- dos os demais gastos sociais, também devem se adequar e ser reduzidos, fa- vorecendo o aumento do superávit fis- cal para o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública. Antes de demonstrar o caráter frau- dulento desse “estudo” do Bird, é ne- cessário esclarecer pelo menos três pontos acerca da dívida pública do Es- tado brasileiro e do “ajuste fiscal” do governo Temer, colocando em evidên- cia os argumentos falaciosos dos “es- pecialistas” do mercado. © R en at o A la rc ão 5FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil Primeiro: a enorme dívida pública atual não resultou do excesso de gastos correntes em relação às receitas dos su- cessivos governos. Na verdade, ela de- correu de sucessivas políticas macroe- conômicas executadas nas últimas quatro décadas, em especial o chama- do “ajuste monetário do balanço de pagamento” – adotado pelo governo Figueiredo na década de 1980, por pressão do FMI, durante a crise da dívi- da externa dos países periféricos – e “o Plano Real e a abertura comercial-fi- nanceira” dos anos 1990 e 2000, postos em prática quando do aprofundamen- to do projeto-programa político neoli- beral no país.4 Essas políticas acarretaram o endi- vidamento do Estado aceleradamente; no primeiro caso, com a transforma- ção da dívida externa privada em dívi- da externa pública, cujo pagamento, posteriormente, exigiu do Estado a emissão de títulos de dívida interna como contrapartida para a compra dos dólares gerados pelos exportado- res privados. No segundo caso, a sus- tentação da âncora cambial como ins- trumento de combate à inflação, ao sobrevalorizar o real, implicou eleva- das taxas de juros e grande emissão de títulos de dívida pública interna – co- mo forma de atrair capitais externos de curtíssimo prazo, condição para evitar uma crise cambial que, contu- do, acabou eclodindo em fins de 1998 e começo de 1999. Ambas as políticas aumentaram ra- dicalmente o montante da dívida pú- blica, além de autonomizarem sua evo- lução com relação aos gastos correntes dos sucessivos governos; ou seja, a dívi- da pública cresceu mesmo com equilí- brio orçamentário ou superávit primá- rio. De 1999 a 2013 – portanto, durante catorze anos –, os sucessivos governos obtiveram superávits primários e, as- sim mesmo, a dívida cresceu em ter- mos absolutos e, em alguns anos, até mesmo como proporção do PIB.5 Segundo: os déficits que passaram a ocorrer a partir de 2014 decorreram inicialmente da desaceleração da eco- nomia e posteriormente da política equivocada de desoneração fiscal pa- trocinada pelo primeiro governo Dil- ma, seguida pelo início de um ajuste fiscal em seu segundo governo, radi- calizado violentamente pela “PEC da morte” do governo Temer. Em ambos os casos, o resultado foi a queda da ar- recadação federal e o aparecimento dos déficits – portanto, um problema pelo lado da receita –; enquanto a eco- nomia cresceu, a regra foi a existência de superávit primário. Terceiro: na verdade, o problema das contas públicas são os gastos fi- nanceiros, com o pagamento de juros e amortizações da dívida, que absor- vem mais de 50% do orçamento e cres- cem permanentemente, mesmo com superávit. No entanto, o ajuste fiscal, como seria de esperar, não inclui o ajuste dos gastos financeiros. Com relação à suposta ineficiência e ao desperdício das universidades fe- derais, o Bird rebaixa a complexidade delas ao compará-las às instituições de ensino privado que, com raríssimas ex- ceções, limitam-se ao ensino, contan- do, para isso, com um corpo docente bem menos qualificado/titulado, em tempo parcial, mal remunerado e car- regado de turmas para dar aulas.6 As universidades federais têm co- mo regra, além do ensino, atividades de pesquisa e extensão, hospitais uni- versitários de alta complexidade, clíni- cas e laboratórios, museus, orquestras, teatros, cinemas, escritórios de assis- tência jurídica à população mais po- bre etc., contando, para isso, com um corpo docente altamente qualificado/ titulado e, na maior parte, trabalhan- do em tempo integral. Como consequência dessa enorme diferença, afirmar que as universida- des federais têm um custo por estu- dante maior do que as universidades privadas não tem a menor credibilida- de, se não forem separados dos gastos totais realizados pelas primeiras os gastos com todas as outras atividades listadas anteriormente. Além disso, é preciso abater o pagamento das apo- sentadorias e pensões que, absurda- mente, também faz parte e compõe o orçamento das universidades federais. Apenas depois dessa operação de sub- tração é que se pode fazer uma com- paração do custo por estudante entre os dois tipos de instituição. Estudo do professor Nelson Cardo- so Amaral7 evidencia que, depois de realizada a devida subtração mencio- nada, o custo médio anual do ensino, por aluno, nas universidades federais, para o ano de 2015, foi de R$ 13.875 – menor do que a média da Organização para a Cooperação e o Desenvolvi- mento Econômico (OCDE), de R$ 15.772. Esse mesmo estudo, baseado em uma pesquisa socioeconômica realizada com os estudantes, eviden- cia que pouco mais de 51% tem renda familiar de até três salários mínimos (R$ 2.811), tendo por base o valor do salário mínimo de 2017; se considerar- mos todos aqueles cuja família tem renda de até seis salários mínimos (R$ 5.622), atingiremos 76% do total de es- tudantes das universidades federais. Apenas 10% deles estão no topo da dis- tribuição, isto é, pertencem a famílias com renda acima de dez salários míni- mos (R$ 9.370). O estudo de Amaral desmente tam- bém a afirmação do Bird de que os es- tudantes das universidades federaissão egressos principalmente de escolas privadas de nível médio: em 2014, 64% dos estudantes das universidades fede- rais cursaram o ensino médio integral- mente, ou a maior parte dele, em esco- las públicas e, em sentido oposto, 36% cursaram em escolas particulares. A violência contra as universidades públicas, assim como as demais ini- ciativas do governo Temer, expressa um projeto-programa político claro e coerente de natureza neoliberal, tal como efetivado nos países capitalistas periféricos e dependentes, que ocu- pam uma posição subordinada na di- visão internacional do trabalho. Nes- ses países, a superexploração do trabalho é regra e a concentração de renda e riqueza é indecente: no Brasil de hoje, os cinco indivíduos mais ricos (cinco!) detêm um patrimônio equiva- lente ao da metade mais pobre do país (mais de 100 milhões de pessoas!).8 Nesse projeto-programa coman- dado por uma burguesia cosmopolita com “complexo de vira-latas”, subor- dinada e subserviente ao imperialis- mo, não existe uma nação nem inte- resses nacionais; não há a pretensão de modificar a posição subalterna do país (exportador de commodities) na divisão internacional do trabalho; não cabem a defesa, a reserva e o uso dos recursos naturais do país em favor da maioria da população; tudo é avaliado pela lógica e a métrica do capital fi- nanceiro; não se admite distribuição de renda e da propriedade, com a efeti- vação de uma reforma agrária e a taxa- ção da riqueza, da herança e dos mais ricos; não se necessita de grandes empresas nacionais e estatais que de- senvolvam tecnologia própria, nem de instituições públicas de pesquisa e inovação; em suma, não se necessi- ta de universidades públicas que pra- tiquem, de forma integrada, o ensino, a pesquisa e a extensão – e ajudem a formar uma nação. Estas podem res- tringir sua atuação apenas ao ensino (pago) e, assim mesmo, em posição minoritária, pois atualmente as insti- tuições privadas de ensino superior já absorvem 75% dos estudantes uni- versitários do país – embora, em ge- ral, ofereçam um “serviço” de péssi- ma qualidade. Na verdade, a maior tragédia do Brasil é o caráter de sua grande bur- guesia. Constituída frágil e tardiamen- te no contexto da expansão do capita- lismo no plano mundial, ela não conseguiu fazer uma revolução demo- crática nem se defrontar com o impe- rialismo e dele se distinguir. Mais re- centemente, aderiu de corpo e alma à lógica da financeirização difundida pela globalização, constituindo-se, so- bretudo, como uma burguesia rentista e de negócio.9 O resultado final é que, diferentemente das burguesias dos países imperialistas, ela não conse- guiu construir e liderar uma nação em sua plenitude. De fato, o Brasil é uma nação incompleta, desarticulada e sem coesão e identidade entre seus diversos 1 Bird, “Um ajuste justo: análise da eficiência e equi- dade do gasto público no Brasil”, nov. 2017. 2 Aqui também a estratégia do capital financeiro e do Bird, com amplo apoio midiático, é desqualificar e desmoralizar a Previdência Social pública, ven- dendo a mentira da existência de um déficit estru- tural insustentável – com base em manipulação metodológica que a retira da rubrica maior da se- guridade social, composta ainda pela assistência social e a saúde, e some com parte significativa de suas fontes de financiamento –, além de taxá-la como injusta. 3 Essas informações constam no site do Tesouro Nacional, particularmente quando se considera a consolidação das contas públicas, segundo as despesas por função da União. 4 Ver Luiz Filgueiras, História do Plano Real, Boitem- po, São Paulo, 2000, 2004 e 2016. 5 Em novembro de 1999, primeiro ano do segundo governo FHC, a dívida interna mobiliária federal já era de R$ 415 bilhões, ainda que durante o gover- no Collor e o primeiro de FHC 44 empresas esta- tais tenham sido privatizadas com o intuito de pagá- -la. Catorze anos depois, em 2013, e após sucessivos superávits fiscais primários, essa dívida atingiu R$ 1,9 trilhão. A partir da crise eclodida em 2014, ela evoluiu para R$ 3,3 trilhões em setembro de 2017 (Banco Central do Brasil). 6 No ano passado, estimuladas pela entrada em vi- gor da reforma trabalhista, várias dessas institui- ções promoveram demissões em massa de profes- sores com titulação e salários mais elevados, com o objetivo de recontratá-los de forma precária: a Estácio de Sá anunciou a demissão de 1,2 mil pro- fessores; a Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) demitiu pelo menos duzentos professores; a Anhembi Morumbi, que integra o mesmo grupo da FMU, demitiu ao menos 150; e a Universidade UniRitter, que atua na região sul do Brasil, demitiu mais de cem professores. 7 Andifes, “A hora da verdade para as universidades federais brasileiras: metas do PNE (2014-2024) e 10 mitos a serem debatidos e desvendados”, 2017. 8 Segundo a Oxfam, confederação de ONGs pre- sente em 94 países que trabalha para a redução da desigualdade. Relatório de 2018. 9 Segundo a colunista social Hildegard Angel, em texto publicado pela Revista Fórum, “o rico brasilei- ro de verdade já desistiu do Brasil. Está pouco se lixando se tem gente pobre, vivendo e defecando nas ruas. Não é que ele seja insensível, é que ele não vive aqui. Ele está por aqui. Tem seu aparta- mento à beira-mar, frequenta seu clube, onde joga tênis, convive com seu reduzido círculo de amigos e ponto. Depois, embarca no seu jato para a resi- dência lá fora. O Brasil é para ganhar dinheiro e remeter dinheiro. Esse rico não tem mais o embara- ço da língua, como alguns ricos de gerações ante- riores, pois os filhos e netos já dominam o inglês desde que nascem e [nem] sequer conhecem a nossa História. O rico brasileiro é globalizado, não tem brio patriótico, ao contrário, sente bastante preconceito e desprezo em relação ao nosso país, onde lamenta ter nascido”. segmentos sociais – que não sejam as características superficiais (a maior parte negativa) que supostamente de- finiria um brasileiro genérico. Por tudo isso, a finalização da tare- fa de constituição de uma nação brasi- leira completa, articulada e coesa e de uma universidade pública que expres- se e sirva a essa urgência não pode mais ser realizada por suas classes do- minantes alienadas. Resta saber se, no contexto de uma (des)ordem mundia- lizada, as classes subalternas ainda te- rão a capacidade política de levar adiante essa tarefa histórica. *Luiz Filgueiras, Graça Druck e Uallace Moreira são, respectivamente, professor titu- lar de Economia, professora titular de Socio- logia e professor adjunto de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). 6 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 NEOLIBERALISMO E A COLONIALIDADE DO SABER A Unilab e o desmonte da educação C omo já dizia Wallerstein em seu livro Capitalismo histórico e ci- vilização capitalista, o capitalis- mo é o processo da mercantili- zação de tudo – desde o objeto até a própria vida, humana ou não. O capi- talismo, desde sua ascensão no século XIV com a expansão europeia por meio da exploração dos recursos natu- rais no continente americano e a es- cravização em massa de corpos ame- ríndios e africanos, baseou-se no processo de transformar o mundo da vida nas colônias num mundo da mor- te e da não existência. O colonialismo é parte integrante do capitalismo, e é por meio dele que este último põe em prática toda a sua “potencialidade”. A consolidação do capitalismo no sistema internacional não ocorre so- mente por vias econômicas, como muitas vezes somos levados a crer, im- buídos tanto de uma ótica liberal oumarxista ocidental determinista, mas ocorre, sobretudo, pelo fato de ser um projeto para além do econômico, sen- do político, cultural (e de pensamen- to) e social. O processo de legitimação por esses meios permitiu (e permite) ao capitalismo promover toda a sua violência e exploração contra diversas sociedades, tornando-as espaços va- zios homogêneos. O neoliberalismo que está a pleno vapor neste momento nada mais é que uma das várias faces do próprio capi- talismo. Na América Latina, após uma década de governos abertamente neo- liberais, o século XXI via em seu início o surgimento de governos de centro- -esquerda e esquerda, modificando as relações entre o Estado e a sociedade, assim como entre o Sul global e o Nor- te global. É importante ressaltar que, mesmo estando fora do poder, esses grupos que apoiavam o modelo neo- liberal tiveram uma apropriação de riqueza sem comparação na história democrática brasileira, graças à alta das commodities no mercado inter- nacional, ao tripé macroeconômico e a empréstimos a fundo perdido concedidos ao agronegócio. O discurso da justiça social e do combate à fome e à desigualdade social era o mote do debate nos fóruns inter- nacionais, exigindo-se dos países mais ricos que realmente colocassem “as mãos na massa” para modificar o qua- dro de alta desigualdade existente em nível global. Nesse contexto destaca- mos as universidades públicas brasi- leiras (estaduais, federais e institutos federais) e o importante investimento feitos pelos governos dos ex-presiden- tes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. É possível afirmar que se criou um ambiente favorável para rei- vindicações por cidadania, pelo direito à educação formal e pela promoção da igualdade de oportunidades concreti- zadas por meio de uma agenda de ações positivas, que possibilitou a cria- ção de espaços institucionais de pro- dução do conhecimento salvaguarda- dos pelas políticas afirmativas e de reparação, interiorização e internacio- nalização do ensino. Estamos nos referindo à criação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e da Uni- versidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), como resultado concreto de deman- das dos movimentos sociais. Aqui des- tacamos os movimentos negro, indí- gena e dos(as) trabalhadores(as) rurais sem terra e os Núcleos de Estudos Afro- -Brasileiros e Indígenas das universi- dades públicas brasileiras (Neab/Nea- bi), que do ponto de vista estatístico e em razão de pautas históricas de rei- vindicação lutaram pelo aumento e aprimoramento do acesso e da perma- nência no ensino superior. A Unilab, um projeto político dese- nhado por Lula e continuado por Dilma, foi pensada para promover a integração, a interiorização1 e a internacionalização do ensino superior, assim como para possibilitar a aproximação e um amplo diálogo com os países da cooperação Sul-Sul, pertencentes à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), com o objetivo de atender es- tudantes oriundos do Brasil, dos paí- ses africanos de língua portuguesa (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Moçambique) e do Sudeste Asiático (Timor-Leste). Criada pela Lei n. 12.289, de 20 de julho de 2010, possui quatro campi: Malês (São Francisco do Conde/BA), Palmares (Acarape/CE), Liberdade e Auroras (Redenção/CE), onde tam- bém funciona sua sede administrati- va. Dados quantitativos da Diretoria de Registro e Controle Acadêmico(DR- CA), de outubro de 2017, registram um total de 6.803 estudantes matriculados nos cursos de graduação, pós-gradua- ção, presencial e a distância. Nos cur- sos presenciais, foram registrados 3.995 estudantes, por nacionalidade: Brasil, 2.964; Guiné-Bissau, 622; Angola, 151; Cabo Verde, 91; São Tomé e Prínci- pe, 84; Timor-Leste, 51; e Moçambique, 32. Na pós-graduação stricto sensu pre- sencial: 102. E em cursos a distância: pós-graduação lato sensu, 914; e pós- -graduação lato sensu a distância, 1.792. Diante da conquista de ter como sede duas universidades estratégicas do ponto de vista da produção do co- nhecimento e da promoção da justiça social, hoje vemos o Brasil diante de um quadro bastante desafiador. Desde agosto de 2016, após um golpe parla- mentar-jurídico e de cunho profunda- mente neoliberal/colonial, vem se im- pondo um conjunto de propostas que não foram referendadas pelo voto di- reto, colocando-se em perigo tudo o que se conquistou até este momento. Um exemplo concreto é a PEC 95, apre- sentada pelo governo federal e aprova- da pelo Congresso Nacional, a qual congela por vinte anos os gastos públi- cos com saúde e educação. O país como um todo sofre com o impacto do projeto neoliberal e colo- nialista que mudou a prioridade das políticas públicas e externa, colocan- do-a nos Estados Unidos e no conti- nente europeu, deixando em segundo plano a relação com os países da Amé- rica Latina e do continente africano. O projeto colonial/neoliberal age de for- ma brutal, invisibilizando e silencian- do grupos não conformados (indíge- nas, pobres, negros/as, LGBTT+), assim como por meio de expulsões de lugares que “nunca foram destinados a tais grupos”, a exemplo das universi- dades públicas. A tais grupos sempre se destinou, ao imaginário e ao real, o lugar do trabalho, da exploração e da acumulação: os corpos-máquina. A educação, portanto, é uma frente bastante visada por esse movimento neoliberal, em que projetos como o Es- cola sem Partido e os cortes maciços no orçamento têm o intuito de mantê-la sob as rédeas da colonialidade do saber, na qual o acesso e a transmissão do co- nhecimento possam continuar sendo privilégios de alguns grupos. Nesse contexto de ataques diretos à educação estão em jogo os projetos Unila e Uni- lab, que concentram corpos (negros/as, indígenas, pobres, LGBTT+) e currícu- los que contestam o status quo atual. A Unila e a Unilab representam projetos importantes de desenvolvi- mento, de sociedade, de descoloniza- ção do saber e de redefinição do proje- to de sociedade. Esse cenário de ataques diretos requer de nós um en- volvimento conjunto entre a comuni- dade acadêmica, a sociedade civil e movimentos sociais em defesa de uma universidade pública que garanta a in- tegração, a interiorização e a interna- cionalização do ensino superior, e que, acima de tudo, possamos transgredir e transformar as fronteiras do saber, como bem nos convocava a ativista norte-americana bell hooks. *Jacqueline Costa é professora do IHL/ Unilab, coordenadora do Bacharelado de Hu- manidades e Letras (BHU) e doutora em So- ciologia (Universidade Federal de São Car- los); e Vico Melo é professor do IHL/Unilab e doutor em Pós-Colonialismos e Cidadania Global (Universidade de Coimbra). 1 Durante os governos Lula e Dilma, esse conceito foi pensado em razão da expansão das instituições de nível superior nas cidades e nos municípios distan- tes dos grandes centros e das grandes capitais. Entre 2002 a 2014 foram criadas dezoito novas universidades federais, elevando o número de cur- sos presenciais ofertados no país de 2.047 a 4.867; o número de institutos federais foi ampliado em 31%, o de cursos de graduação, em 86%, e o de pós-graduação, em 316%. Esses dados eleva- ram o número de municípios atendidos por universi- dades federais de 114 para 289. Fonte: Inep, 2013. A educação é uma frente bastante visada pelo movimento neoliberal. Projetos como o Escola sem Partido e os cortes maciços no orçamento têm o intuito de mantê-la sob as rédeas da colonialidade do saber, na qual o conhecimento possa continuar sendo privilégio de alguns grupos. Nesse contexto de ataques diretos, estão em jogo os projetos Unila e Unilab POR JACQUELINE COSTA E VICOMELO* © R en at o A la rc ão 7FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil ESFORÇOS DO BRASIL E DE SEUS VIZINHOS PARA GARANTIR O DIREITO À EDUCAÇÃO Contra postulados que veem a educação como um investimento como outro qualquer, aspecto reforçado na gestão Meirelles-Temer com o congelamento de gastos para os próximos vinte anos, é importante olhar os dados desse financiamento no Brasil e na América Latina e Caribe POR JOSÉ MARCELINO DE REZENDE PINTO* O dramático panorama do financiamento do ensino O custo do Fies aos cofres públicos é superior a tudo o que se gasta com a folha de pagamento das universidades federais U ma das poucas coisas sobre as quais há um consenso mundial é a importância da educação. As famílias esforçam-se para garantir a melhor instrução possível para suas crianças e jovens. Já as pes- quisas acadêmicas mostram o direito à educação como a porta de acesso pa- ra a garantia dos demais direitos. E até mesmo economistas que só pensam em lucros e dividendos reforçam o pa- pel do ensino como fator de desenvol- vimento econômico e aumento da ren- da. Em outras palavras, para estes últimos, com base na Teoria do Capital Humano,1 a educação é um investi- mento como qualquer outro, que deve ser realizado caso haja a possibilidade de retorno. Nessa perspectiva, ela deixa de ser um direito universal, a ser assegurado pelo Estado, e passa a ser entendida como um serviço, mais uma mercado- ria a ser regulada pelo “deus mercado”. E aqui começam os problemas: em um mundo em que o setor financeiro am- plia seu poder na definição das políti- cas públicas, a visão da educação co- mo um investimento econômico passa a ser hegemônica. Segundo essa abor- dagem, quando muito, deve-se garan- tir a gratuidade nos anos iniciais do ensino fundamental; para os anos se- guintes, em especial na educação su- perior, propõe-se a cobrança de men- salidades e, no caso daqueles que não podem pagar, a receita é o financia- mento estudantil, como acontece no Chile, onde não existe ensino superior público gratuito. Aliás, esse princípio já constava na Constituição Federal brasileira de 1967, da ditadura militar, quando tal abordagem econômica co- mandava o país. Outro ponto de honra nesse tipo de abordagem despontou nos anos FHC e agora retoma com força redobrada na gestão Temer-Meirelles: é o postulado de que mais recursos (melhores salá- rios aos profissionais da educação, equipamentos, redução no número de estudantes por turma etc.) não fazem diferença na qualidade do ensino.2 E “qualidade de ensino” para essa turma é sinônimo de notas em testes padro- nizados, como a Prova Brasil, o Enem, o Programa Internacional de Avalia- ção de Alunos (Pisa) e tantos outros aos quais são submetidos os estudan- tes do Brasil e do mundo. Para melho- rar a qualidade, ou seja, a nota obtida nesses testes, receitam pouco dinhei- ro e muita competição entre as esco- las. Ou seja, mais mercado, mais “li- vre” barganha entre pais e escolas. E, mais uma vez, o Chile é o grande timo- neiro, por meio do sistema de “vou- chers”, em que, em tese, a família esco- lhe a escola em que vai matricular seu filho ou filha. É importante lembrar que todas essas reformas educacio- nais foram colocadas em prática em plena ditadura de Augusto Pinochet e até hoje o regime que lhe seguiu tenta lidar com suas consequências, como o aumento da desigualdade no acesso à educação e a incapacidade das famí- lias de pagar o financiamento estu- dantil no ensino superior. Aliás, o mesmo acontece nos Estados Unidos, onde se vive uma “bolha” de inadim- plência. Já o Brasil caminha celere- mente nessa direção com o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), cuja inadimplência supera os 50% e cujo custo aos cofres públicos é superior a tudo o que se gasta com a folha de pa- gamento das universidades federais.3 Outra característica interessante é que todas essas teorias, que trazem re- ceitas de mercado para a educação, se originam em países ricos, onde, curio- samente, não fazem muito sucesso. Nesses locais, a gratuidade do ensino é a regra e os valores gastos por estudan- te no sistema público são muito supe- riores àqueles praticados nos países com menos recursos, ou remediados, como o Brasil. Aqui, seus discípulos lo- cais, com enorme espaço na mídia, sempre afirmando que o país gasta o suficiente na rede pública de educação básica, não se envergonham em matri- cular seus filhos em escolas particula- res, cujas mensalidades superam R$ 4 mil, um valor dez vezes superior ao gasto médio da rede pública de ensino. Para jogar luz nesse campo, a Campa- nha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade) lançou em setembro de 2017 o Sistema de Monitoramento do Financiamento do Direito Humano à Educação na América Latina e no Ca- ribe (http://monitoreo.campanadere- choeducacion.org), que reúne dados do financiamento educativo público em vinte países da região referentes ao período de 1998 a 2015. Com esse ins- trumento, a Clade procura dotar os segmentos da sociedade civil que lu- tam por uma escola pública de quali- dade de uma ferramenta útil de reivin- dicação e pressão política junto aos governos nacionais com base em indi- cadores concretos sobre o financia- mento da educação. A Clade é uma re- de plural de organizações da sociedade civil, com presença em dezesseis paí- ses da América Latina e do Caribe, que tem como missão defender o direito humano a uma educação transforma- dora pública, laica e gratuita para to- das e todos, durante toda a vida e como responsabilidade do Estado. As informações do Sistema de Mo- nitoramento podem ser consultadas de maneira individual para cada país ou de modo comparativo para toda a região e estão organizadas em três di- mensões de análise: esforço financei- ro público, disponibilidade de recur- sos por pessoa em idade escolar e equidade no acesso escolar. A primeira dimensão (esforço fi- nanceiro público) refere-se à quantida- de total de recursos que cada Estado destina ao sistema educativo público, como parte do orçamento nacional to- tal e da riqueza produzida no país (PIB). A segunda dimensão (disponibi- lidade de recursos) centra-se nos recur- sos públicos disponíveis para cada pessoa em idade escolar. Esse indica- dor é um avanço em relação às medi- das utilizadas por organismos como Unesco e Organização para a Coope- ração e o Desenvolvimento Econômi- co (OCDE), que consideram apenas o valor gasto com estudantes incluídos no sistema escolar. A Clade, por sua vez, considera todas as pessoas matri- culadas na escola (pré-escola, ensino fundamental e ensino médio) e tam- bém aquelas da faixa etária correspon- dente que estão fora do sistema educa- tivo. A terceira dimensão aborda a equidade no acesso escolar, observan- do-se em particular a diferença entre as taxas de acesso à escola do quintil de renda mais alta e do quintil de ren- da mais baixa da população de 13 a 19 anos de idade em cada país. Essa di- mensão traça as desigualdades histó- ricas que operam nos sistemas públi- cos de educação no que diz respeito ao acesso escolar para jovens de famílias com diferentes níveis de renda. Além de apresentar o valor dos in- dicadores, o sistema de monitoramen- to mostra, para cada país, o quanto ele se distancia de um parâmetro de refe- rência considerado adequado. Assim, para o componente do gasto público em educação em relação à despesa to- tal dos Estados, o parâmetro utilizado é de 20%, valor estabelecido no Marco de Ação para a Educação 20304 e acor- dado entre os Estados da região na Re- união Regional de Ministros da Edu- cação da América Latina e do Caribe que aconteceu em Lima, Peru, em 2014. Nessa mesma reunião, os Esta- dos da região definiramcomo meta al- cançar um gasto público de 6% do PIB em educação. Portanto, para a dimen- são esforço financeiro público, os parâ- metros são 20% do gasto público total e 6% do PIB. Já para a dimensão dispo- nibilidade de recursos, o parâmetro utilizado foi de US$ 7.221,60 anuais por pessoa em idade escolar, que é o valor médio investido por estudante 8 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 pela metade dos países da OCDE com menor PIB por habitante.5 Por fim, pa- ra a dimensão equidade no acesso esco- lar, o parâmetro seria uma diferença igual a zero entre os níveis de acesso escolar dos quintis de jovens de 13 a 19 anos, com maiores e menores recursos da população urbana (os detalhes me- todológicos de cada uma das dimen- sões do sistema de monitoramento es- tão explicados no site). Nos gráficos 1, 2 e 3 encontramos uma visão geral dos indicadores rela- cionados ao esforço dos países e aos recursos disponíveis por pessoa em idade escolar. Por limitação de espaço não será discutida a dimensão equi- dade, mas as informações encon- tram-se no site. O Gráfico 1 apresenta quanto o gasto público em educação representa da despesa total dos governos. Consta- ta-se que apenas seis países atingem o parâmetro dos 20% do gasto público total como investimento em educação (Guatemala, Costa Rica, Paraguai, Ni- carágua, Venezuela e Chile), ficando a Guatemala com uma participação de 24,1%, em uma melhor situação, e o Equador, no polo extremo, com 12,8%. O Brasil, com 16%, situa-se 20% abaixo da meta estabelecida. Contudo, de pouco adianta um grande comprometimento do gasto público total com a educação se o país apresenta uma carga tributária baixa em relação ao PIB. Por isso, no Gráfico 2, analisa-se quanto esse gasto público em educação representa do PIB de ca- da país. E aqui o exemplo da Guatema- la volta a ser interessante, pois, muito embora esse país destine 24,1% de sua despesa total para a educação pública, esse esforço representa apenas 2,96% do PIB, ou seja, menos da metade dos 6% do PIB, que são o valor de referên- cia. Apenas cinco países (Cuba, Bolí- via, Costa Rica, Venezuela e Brasil) atingem essa meta, ficando Cuba na melhor posição. Ainda sobre o Gráfico 2, chama atenção o fato de dez países não atingi- rem 5% do PIB e de dois deles não atin- girem nem 3% do PIB aplicados em educação pública (Guatemala e Repú- blica Dominicana). Esse indicador mostra a importância da existência de sistemas tributários que permitam aos Estados dispor de recursos para a apli- cação de políticas públicas. Países co- mo Dinamarca, Finlândia e Suécia, que conseguiram construir um Estado de bem-estar social, possuem uma carga tributária acima de 40% do PIB. Já a maioria dos países da América La- tina e do Caribe apresenta uma carga abaixo de 20% do PIB. O Brasil fica em uma faixa intermediária, com uma carga tributária de 32% do PIB.6 Finalmente, não basta um país destinar à educação pública um per- centual adequado em relação ao PIB se o valor desse PIB é pequeno quando comparado à sua população e, princi- palmente, quando confrontado com seus desafios educacionais. E é nesse aspecto que a situação se configura dramática para os países da região, co- mo mostra o Gráfico 3. Este apresenta o valor disponível por criança ou jo- vem em faixa de escolarização (pré-es- cola, ensino fundamental e ensino médio) medido em dólares PPP (Poder de Paridade de Compra, na sigla em in- glês), um indicador que busca tornar comparável os gastos nos diferentes países. Lembrando que para esse indicador o valor desejável adotado pela Clade é de US$ 7.221,60 por criança ou jovem em faixa de escolarização, percebe-se o quão distante os países da região estão do valor gasto por estudante dos países com menor renda per capita da OCDE. Apenas Costa Rica e Chile estão ligeira- mente acima da metade do valor de re- ferência, e doze países estão abaixo de um terço desse parâmetro. No Brasil, é comum ouvir de diferentes governos que o país gasta em educação um per- centual do PIB equivalente ao dos paí- ses ricos, o que é verdade, mas, quando se analisa o recurso disponível, infor- mação que de fato importa, constata- -se um valor inferior à metade daquele disponível nos países com menos re- cursos da OCDE. Por isso, é fundamen- tal, nas análises comparativas, consi- derar o conjunto dos três indicadores, ressaltando-se que aquele que real- mente impacta no dia a dia das escolas é o recurso disponível (Gráfico 3). Os dados apresentados mostram a importância do tamanho da econo- mia, medida em especial por meio de seu PIB por habitante, para a garantia de recursos adequados para suas polí- ticas públicas. Por exemplo, a conside- rada baixa carga tributária de 26% do PIB dos Estados Unidos propicia aos governos cerca de US$ PPP 14,5 mil por habitante; já a carga tributária de 32% do PIB no Brasil, considerada alta pelos economistas neoliberais, signifi- ca apenas US$ PPP 5 mil por habitante. Fica evidente, assim, o mal que fazem, aos países da região, as políticas reces- sivas que estão sendo colocadas em prática em vários deles. No caso do Brasil, retroagiu-se em 2016 ao PIB por habitante de 2008; em outras palavras, nove anos de crescimento perdidos. O sistema de monitoramento lan- çado pela Clade também permite ana- lisar a evolução das diferentes dimen- sões para o conjunto da região. Um fato bastante positivo, por exemplo, é que Argentina, Brasil, Chile, Costa Ri- ca, México, Uruguai e Venezuela au- mentaram significativamente a dispo- nibilidade de recursos por pessoa em idade escolar desde 1998. Nos casos de Argentina e Brasil, surpreende que os montantes disponíveis por pessoa em Obs.: Maior valor em US$ PPP entre 2013 e 2015, com exceção dos seguintes países, em que se usou o dado mais recente disponível: Venezuela (2009), Nicarágua (2010), Uruguai (2011) e República Dominicana (2012). Não há informação para Cuba. Obs.: Maior valor entre 2013 e 2015, com exceção dos seguintes países, em que se usou o dado mais recente disponível: Venezuela (2009), Cuba e Nicarágua (2010), Uruguai (2011) e República Dominicana (2012). Obs.: Maior valor entre 2013 e 2015, com exceção dos seguintes países, em que se usou o dado mais recente disponível: Venezuela (2009), Cuba e Nicarágua (2010), Uruguai (2011) e República Dominicana (2012). Fo nt e do s gr áfi co s: S is te m a de M on ito ra m en to d o Fi na nc ia m en to d o D ire ito H um an o à E du ca çã o na A m ér ic a La tin a e C ar ib e. 9FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil idade escolar praticamente duplica- ram entre o fim dos anos 1990 e os dois últimos triênios disponíveis (2010- 2012 e 2013-2015 para a Argentina; 2007-2009 e 2010-2012 para o Brasil). No entanto, como já comentado, mesmo os países que apresentaram os maiores investimentos no período es- tudado ainda estão longe de atingir o valor de referência. O país mais bem colocado é a Costa Rica, que dedicou US$ 3.860,11 para cada pessoa em ida- de escolar, por ano, no triênio 2013- 2015, valor que é praticamente a meta- de da referência. UM RÁPIDO OLHAR SOBRE O BRASIL O Brasil, como se pode ver no item anterior, não faz bonito no que se refe- re ao esforço no financiamento da educação. Um resultado que sur- preende, considerando que já estamos no segundo Plano Nacional de Educa- ção (PNE) aprovado no período pós- -ditadura. O primeiro deles (Lei n. 10.172/2001) determinava a ampliação dos gastos públicos no ensino público para 7% do PIB. Contudo, o veto do presidente Fernando Henrique Cardo- so inviabilizou o cumprimento dessa meta. Já o atualPNE (Lei n. 13.005/2014) estabelece um compromisso ainda maior com o financiamento da educa- ção: atingir 7% do PIB até 2017 e 10% em 2024 (meta 20 do PNE). Além disso, determinava a criação, até 2016, do Custo Aluno Qualidade inicial (CAQi), um parâmetro de financiamento que visa assegurar condições básicas de fi- nanciamento para todas as escolas públicas do Brasil.7 Se não houve veto à meta de financiamento do atual PNE, as políticas recessivas do início do se- gundo governo Dilma, acentuadas ao extremo pela gestão Temer-Meirelles, têm inviabilizado o avanço esperado no financiamento educativo público. O Gráfico 4 mostra a evolução, em termos reais, das despesas totais da União com a manutenção e o desen- volvimento do ensino, assim como os gastos com a educação superior. Os dados indicam que, desde 2012, a despesa total com educação vem caindo em termos reais e, no caso da educação superior, essa queda aconte- ce desde 2014. No total, de 2012 a 2016 houve redução de R$ 14,2 bilhões, atingindo mais a educação básica. No caso da educação superior, a queda foi menor, mas seus efeitos são igualmen- te graves, pois a rede federal se encon- tra em um momento de crescimento. Por outro lado, como indica a Tabela 1, no mesmo período assistiu-se a um crescimento impressionante dos re- cursos públicos destinados às univer- sidades privadas por meio do Fies. Os dados apontam para a mobiliza- ção de recursos públicos ao sistema pri- vado de educação superior, seja por despesas diretas, seja com base em sub- 1 Theodore W. Schultz, O valor econômico da edu- cação, trad. Paulo Sérgio Werneck, Zahar, Rio de Janeiro, 1967; e Theodore W. Schultz, O capital humano: investimentos em educação e pesquisa, trad. Marco Aurélio de Moura Matos, Zahar, Rio de Janeiro, 1973. 2 Nigel Brooke e José Francisco Soares (orgs.), Pes- quisa em eficácia escolar: origem e trajetórias, UFMG, Belo Horizonte, 2008; e José Marcelino Rezende Pinto, “Dinheiro traz felicidade? A relação entre insumos e qualidade na educação”, Archivos Analíticos de Políticas Educativas/Education Poli- cy Analysis Archives, v.22, p.19, 2014. 3 Ministério da Fazenda, “Fundo de financiamento estudantil: ausência de sustentabilidade e suas causas”, jun. 2017. 4 Unesco, “Educação 2030: Declaração de Incheon e Marco de Ação – Rumo a uma educação de qua- lidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos”, 2016. 5 Os dezessete países de menor PIB per capita da OCDE, em 2010, são: França, Itália, Nova Zelân- dia, Espanha, Coreia do Sul, Israel, Grécia, Eslovê- nia, Portugal, Eslováquia, República Tcheca, Hun- gria, Estônia, Polônia, Chile, México e Turquia. 6 Receita Federal do Brasil, Carga Tributária no Bra- sil, Brasília, set. 2016. 7 Para conhecer mais sobre o CAQi, visite a página da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, idealizadora desse mecanismo, que inverte a lógi- ca do financiamento das políticas educacionais no Brasil: <www.custoalunoqualidade.org.br>. sídios, uma vez que o governo federal obtém esses recursos a juros de merca- do e cobra de estudantes em valores re- duzidos. Impressiona o total de recur- sos mobilizados pelo Fies; em 2016, este já superou o gasto da União com manu- tenção e desenvolvimento do ensino na educação superior. De forma análoga, a partir de 2014 começou-se a reduzir os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), principal fonte de financiamento da educação básica, co- mo mostra o Gráfico 5. O que preocupa em relação ao Fun- deb é que seus recursos apresentam uma queda justamente quando as ma- trículas de estudantes que se benefi- ciam do fundo deveriam estar cres- cendo em função das metas do PNE 2014-2024, que implicam a ampliação da oferta em todas as etapas e modali- dades, assim como a melhoria nas condições de oferta. Ou seja, são mais estudantes, para um bolo total de re- cursos em queda. Na prática, estados e municípios não estão ampliando suas matrículas e, para reduzir custos, fe- cham-se escolas e aumenta-se o nú- mero de estudantes por turma. Não bastassem os efeitos predató- rios da recessão econômica para o fi- nanciamento da educação, o governo Temer-Meirelles, por meio da Emenda Constitucional n. 95/2016, que congela os gastos primários do governo federal por vinte anos, jogou por terra qual- quer possibilidade de efetivação do atual PNE, uma vez que as despesas com educação, assim como com as de- mais políticas sociais, não terão ne- nhum crescimento real, podendo in- clusive sofrer redução. Além disso, estimulados pelo governo federal, es- tados e municípios estão colocando em prática suas versões locais da EC 95, particularmente porque a aderên- cia a suas normas draconianas é con- dição para a rolagem de suas dívidas junto à União. Essas medidas acabam com a vigência do artigo 212 da Cons- tituição Federal, que estabelece a vin- culação de uma parcela da receita de impostos para a manutenção e o de- senvolvimento do ensino. Somente a ditadura de Getúlio Vargas e a militar fizeram o mesmo. Para os milhões de pessoas jovens e adultas que têm o direito constitu- cional à educação pública de qualida- de e veem seu futuro negado não há outra saída que não passe pela revoga- ção da EC 95 e pela luta contra a reces- são econômica. Luta que é também da população brasileira que atuou pela aprovação do PNE 2014-2024 e agora vê esse projeto de mudança sustentá- vel da educação ser destruído por um governo que não tem legitimidade e está comprometido com as forças mais retrógradas do país. Mas 2018 es- tá só no começo. *José Marcelino de Rezende Pinto é pro- fessor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e vice-diretor da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade) Brasil. Fonte: Autor, com base em dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Deflator IPCA. TABELA 1. EVOLUÇÃO DOS VALORES DOS RECURSOS DO FIES (R$ BI CORRENTES) Fonte: Diagnóstico Fies. Ministério da Fazenda, jun. 2017. Fonte: Autor, com base nos dados consolidados divulgados pela Secretaria do Tesouro Nacional. Fies (R$ bi correntes) 2011 2012 2013 2014 2015 2016 Despesas financeiras 1,8 4,5 7,6 13,7 14 19,3 Aportes ao FGEDUC 0 0,1 0 1,3 0,5 0,6 Despesas administrativas 0,05 0,2 0,1 0,07 0,7 1 Subsídio implícito 0 0,5 0,6 1,8 6,7 11,4 Custo Total 1,9 5,3 8,3 16,9 21,9 32,3 10 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 Costa do Sauípe, dezembro de 2008: à época, oito dos dez presidentes sul-americanos eram de esquerda: Rafael Correa, Hugo Chávez, Cristina Kirchner, Evo Morales, Luiz Inácio Lula da Silva, Michelle Bachelet, Fernando Lugo e Tabaré Vázquez © J am il B it ta r OS DESAFIOS ESTRATÉGICOS DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA Governar sob bombas... midiáticas A ruptura com seu sucessor e antigo colaborador Lenín Moreno fez Rafael Correa, presidente equatoriano entre 2007 e 2017, retomar o combate. Para além desse enfrentamento singular, ele testemunha conquistas e refluxos da esquerda latino-americana, e revela até que ponto a grande mídia se tornou uma arma a serviço dos partidos conservadores POR RAFAEL CORREA* D epois da longa noite neoliberal dos anos 1990 e a partir da elei- ção de Hugo Chávez na Vene- zuela em 1998, os bastiões da direita latino-americana ruíram como um castelo de cartas. No apogeu do fe- nômeno, em 2009, oito de dez países da América do Sul eram governados pela esquerda. Sem mencionar El Sal- vador, Nicarágua, Honduras, Repúbli- ca Dominicana e Guatemala. Neste úl- timo, assim como no Paraguai, era a primeira vez que líderes progressistas chegavam ao poder. Os primeirosanos do século XXI foram marcados por grandes avanços econômicos, sociais e políticos, em um contexto de soberania, dignidade e autonomia geopolítica. Essas con- quistas foram facilitadas pela alta dos preços das matérias-primas, mas ain- da é necessário que essas riquezas se- jam investidas no “bem viver” de nos- sos povos (ler reportagem na pág. 12).1 A América, assim, não conheceu uma época de mudança, mas uma mudança de época. Para os poderes de outrora e para os Estados hegemôni- cos, tornou-se urgente acabar com as dinâmicas que anunciavam a segunda etapa: a da independência regional. Se excluirmos o golpe de Estado (frustrado) contra Chávez em 2002, as tentativas de desestabilização come- çam no fim dos anos 2000: Bolívia (2008), Honduras (2009), Equador (2010) e Paraguai (2012).2 A partir de 2014, essas forças antes dispersas se aproveitaram da reviravolta do ciclo econômico para operar uma restaura- ção conservadora com apoio interna- cional, financiamento estrangeiro etc. A reação não conhece limites nem es- crúpulos: hoje, toma a forma de sufo- camento econômico na Venezuela, golpe de Estado parlamentar no Brasil e ainda judicialização da política, com as ameaças contra os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Cristina Fer- nández de Kirchner (Argentina), mas igualmente contra o vice-presidente Jorge Glas, no Equador.3 De modo que agora restam apenas três governos progressistas na América do Sul: na Ve- nezuela, na Bolívia e no Uruguai. A estratégia reacionária repousa sobre dois argumentos: o modelo eco- nômico da esquerda teria fracassado; os governos progressistas teriam de- monstrado sua falta de moral. Desde o fim de 2014, a região em seu conjunto sofre o contragolpe de um contexto econômico internacio- nal desfavorável. Apesar da recessão, as dificuldades específicas do Brasil e da Venezuela ilustrariam a falência do socialismo. Mas o Uruguai, go- vernado pela esquerda, não é o país mais desenvolvido ao sul do Rio Bra- vo? E a Bolívia não figura entre os melhores indicadores macroeconô- micos do planeta? O Equador, de seu lado, enfrentou o que chamamos de “a tempestade per- feita”: a queda de nossas exportações foi agravada por uma forte valorização do dólar, moeda que utilizamos desde 2000. Os choques externos que nos de- sestabilizaram em 2015-2016 não tive- ram precedente na história contempo- rânea do país. Pela primeira vez em trinta anos experimentamos queda das exportações por dois anos conse- cutivos, perda equivalente a 10% de nossa produção anual. Em 2016, o valor de nossas exportações alcançou ape- nas 64% do montante registrado dois anos antes. No primeiro trimestre des- se mesmo ano, o preço do barril de pe- tróleo equatoriano baixou para US$ 20, cifra que não permite cobrir os custos de produção. Ao mesmo tempo, o dólar passou de 0,734 euro para 0,948 euro entre janeiro de 2014 e dezembro de 2016, um salto de 30%, enquanto a moeda de nossos vizinhos colombia- nos se depreciava em mais de 70%, tor- nando suas exportações mais compe- titivas. Manchete: o fluxo de capital se inverteu entre o Estado e as empresas públicas petroleiras; o governo preci- sou investir US$ 1,6 bilhão nessas em- presas para salvá-las da falência. Sem contar os litígios perdidos diante dos tribunais de arbitragem que nos obri- garam a pagar mais de 1% do PIB às empresas Oxy e Chevron.4 E para coroar, em 16 de abril de 2016, a zona costeira sofreu um terre- moto de quase 8 pontos na escala Richter, com centenas de vítimas. A catástrofe e suas 4 mil réplicas provo- caram uma queda de 0,7% no cresci- mento e acarretaram perdas equiva- lentes a 3% do PIB. Por essas razões passamos de um crescimento vigoro- so de 4% em 2014 a somente 0,2% em 2015, e tivemos um recuo de 1,5% em 2016. Contudo, apesar de dificuldades tão severas e da ausência de uma moe- da nacional, superamos a recessão em tempo recorde, com custos reduzidos: não houve recrudescimento da pobre- za nem aumento das desigualdades – proeza inédita na América Latina. No Equador, as políticas heterodo- xas demonstraram, assim, sua eficácia tanto em período de expansão quanto de recessão. Entre 2007 e 2017, a eco- nomia do país mais que dobrou, gra- ças a um crescimento superior ao da região. Os menos favorecidos tiveram o maior aumento da renda da história do país, e 2 milhões de pessoas saíram da linha de pobreza. 11FEVEREIRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil UM FILME DE OLIVIER PEYON ESTRELANDO ISABELLE CARRÉ RAMZY BEDIA MARÍA DUPLÁA “Um dilema moral ilmado com sutileza. Uma interpretação sensível e delicada dos atores.” Studio Ciné Live “Uma viagem existencial tratada com uma encenação suave, iluminada pela luz da América Latina.” Télérama 8 DE FEVEREIRO NOS CINEMAS VIRGINIA MÉNDEZ DYLAN CORTES LUCAS BARREIRO DISTRIBUIÇÃO APOIO O PRETEXTO DA CORRUPÇÃO Essas análises econômicas, porém, contam pouco para a população. As pessoas percebem principalmente que, nos últimos anos, seus negócios não vão tão bem, seus filhos têm difi- culdade de encontrar trabalho e os sa- lários não aumentam no mesmo ritmo do custo de vida – sentimento do qual se aproveita a mídia, que prefere a ma- nipulação à informação. Uma parte dos meios de comunicação apresenta essa recessão continental como o re- sultado de nossas opções políticas, e não como um fenômeno ligado às pró- prias estruturas de nossa economia. Outras sugerem, ao contrário, que po- deríamos ter empreendido transfor- mações mais profundas e que dessa forma não teríamos assinado nossa própria condenação. Enquanto repro- vam os governos de direita por não te- rem feito nada, fustigam-nos por não termos feito tudo. O segundo eixo da crítica aos go- vernos progressistas se dá no plano moral. O tema da corrupção fornece a ferramenta eficaz para fragilizar os processos nacionais populares. Evi- dentemente, o Brasil5 aparece como exemplo, mas um fenômeno similar se observa atualmente no Equador. Tudo começa por uma acusação mais espetaculosa que fundamenta- da. Depois aparecem os bombardeios midiáticos, que privam a vítima esco- lhida de seus apoios políticos. A culpa- bilidade presumida do dirigente per- seguido passa então para segundo plano entre os juízes, suscetíveis à pressão da direita e da mídia: não se trata mais de, para eles, condenar com base em provas que eles teriam identi- ficado, e sim de identificar provas que possam condená-lo. Quem pode se opor à luta contra a corrupção? Esse combate é uma de nossas primeiras vitórias no Equador: ao longo dos dez últimos anos, erradi- camos a corrupção institucionalizada que havíamos herdado. Mas, para a di- reita, a “luta contra a corrupção” re- presenta hábitos novos de uma mesma preocupação: seja contra o narcotráfi- co nos anos 1990, seja no caso da guer- ra contra o comunismo nos anos 1970, trata-se sempre de, na realidade, orga- nizar uma ofensiva política. Falam em ausência de regulação, permissividade, corrupção sistemáti- ca. Mas que controles autorizam con- tas secretas em paraísos fiscais, por exemplo? No Equador, os controles são estritos: é preciso declarar a origem de qualquer depósito superior a US$ 10 mil – obrigação que os paraísos fiscais não impõem... O Equador é o primeiro país do mundo a instaurar uma lei proibindo funcionários públicos de es- tabelecer qualquer tipo de interação privada com os paraísos fiscais. Para a imprensa, não há dúvida: a corrupção nasce no coração do Esta- do, do sistema público. Mas a realida- de mostra que ela provém em grande medida do setor privado, como de- monstra o escândalo da Odebrecht6 e este fato: há até pouco tempo, as em- presas alemãs tinham isenção fiscal sobre osdepósitos ilícitos destinados ao nosso país. Sem dúvida, a esquerda também sofre o contragolpe paradoxal de suas conquistas. Segundo a Comissão Eco- nômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepalc), cerca de 94 milhões de pessoas saíram da pobreza para integrar a classe mé- dia durante a última década, em gran- de parte graças às políticas dos gover- nos de esquerda. Contudo, entre os 37,5 milhões de pessoas que o Partido dos Trabalhado- res (PT) tirou da pobreza, poucos se mobilizaram para apoiar a presidenta Dilma Rousseff quando esta estava ameaçada de destituição. É possível conhecer a prosperidade objetiva e ainda assim se sentir em um estado de pobreza subjetivo: apesar das melho- rias no nível de vida, as pessoas conti- nuam se sentindo pobres, não em rela- ção ao que possuem (ou em relação ao que possuíam antes), mas em relação ao que aspiram. Não raro, as exigências da nova classe média se revelam não apenas distintas das dos pobres: muitas vezes são antagônicas, alimentadas pelo canto da sereia da direita, pelos meios de comunicação e por estilos de vida imaginados em Nova York. A esquerda sempre lutou contra a corrente, pelo menos no mundo ocidental. Lutara ela contra a natureza humana? O problema se complica se tam- bém forem levados em conta os esfor- ços da direita para forjar uma cultura hegemônica – no sentido gramsciano –, de modo que os desejos da maioria servem aos interesses da direita. Um exemplo dramático: a rejeição da lei sobre sucessão e herança que tenta- mos instaurar no Equador. Enquanto apenas três em cada mil equatorianos recebem herança e a incidência do no- vo imposto se daria apenas pelos mon- tantes mais importantes (menos de 0,5% das sucessões, ou 172 pessoas por ano, em uma população de 16 mi- 1 No campo da saúde, por exemplo, as despesas do Estado equatoriano passaram de 0,6% do PIB em 2000 para 7,5% em 2013. (Todas as notas são da redação.) 2 Ler Maurice Lemoine, “América Latina: ‘golpes light’ e desestabilização moderna”, Le Monde Di- plomatique Brasil, ago. 2014. 3 Vice-presidente de Rafael Correa a partir de 2013, Jorge Glas ocupou as mesmas funções sob a pre- sidência de Lenín Moreno, eleito em abril de 2017 com o apoio do chefe de Estado que deixava o po- der. Glas foi parar em 2 de outubro de 2017 no âmbito de uma investigação ligada ao escândalo de corrupção implicando a empresa Odebrecht. Os apoiadores de Correa analisaram o episódio como uma ilustração do conflito político que opu- nha o ex-presidente a seu sucessor, o primeiro acu- sando o segundo de romper com a herança que ele havia se comprometido a defender. 4 Ler Hernando Calvo Ospina, “A Chevron polui, mas não quer pagar suas multas no Equador”, Le Monde Diplomatique Brasil, mar. 2014. 5 Ler Laurent Delcourt, “Movimento contra a corrup- ção ou golpe de Estado disfarçado?”, Le Monde Diplomatique Brasil, maio 2016. 6 Ler Anne Vigna, “As ramificações do escândalo Odebrecht”, Le Monde Diplomatique Brasil, set. 2017. lhões), muitos pobres e grande parte da classe média se manifestaram con- tra um dispositivo do qual eles pode- riam se beneficiar. Nossas democracias deveriam ser rebatizadas como “democracias mi- diatizadas”. A imprensa às vezes de- sempenha um papel mais importante que os partidos políticos durante os processos eleitorais: convertida em principal força de oposição enquanto a esquerda governa, ela encarna o po- der dos conservadores e do setor priva- do. A imprensa transformou o estado de direito em estado de opinião. PODEROSOS INIMIGOS A esquerda também enfrentou o esgotamento do exercício de poder, mesmo que sua passagem tenha sido coroada de sucessos. Nenhum gover- no pode satisfazer a todos, ainda mais quando a dívida social é tão aguda co- mo no caso do Equador. Recuperar a voz dos mais humildes, dar oportuni- dades aos mais pobres, direitos aos trabalhadores, dignidade aos campo- neses, tirar poder dos bancos, da mí- dia e dos velhos partidos: tudo isso nos custou poderosos inimigos, que nos acusaram de “polarizar” o país. Eles esquecem que alcançar metade do que realizamos teria causado uma guerra civil há algumas décadas. A esquerda que se contenta em re- presentar uma pequena minoria dos eleitores ignora o que implica gover- nar: responder às tempestades eco- nômicas, submeter-se às traições dos que sucumbem à tentação do poder ou do capital etc. Não há dúvida de que um revolucionário não tem o di- reito de perder a batalha moral. Um governo honesto não é aquele que desconhece casos de corrupção, e sim aquele que luta para erradicá-la. Parte dos militantes sofre ao não per- ceber essa diferença e se deixa afetar pela desmoralização que satisfaz os adversários. É preciso sempre demonstrar au- tocrítica. Mas também precisamos ter confiança em nós mesmos. Os go- vernos progressistas sofrem ataques constantes das elites e dos meios de comunicação, que se baseiam no me- nor dos equívocos para nos enfra- quecer. Por essa razão, o principal “desafio estratégico” da esquerda la- tino-americana consiste talvez em se lembrar das contradições e dos erros que fazem parte do processo político: eles não podem conseguir que baixe- mos a guarda. *Rafael Correa é ex-presidente da Repúbli- ca do Equador (2007-2017). Não se trata mais de condenar com base em provas que eles teriam identificado, e sim de identificar provas que possam condená-lo A imprensa às vezes desempenha um papel mais importante que os partidos políticos durante os processos eleitorais 12 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2018 “ CONQUISTAS E REFLUXOS No Equador, a difícil construção de um serviço público de saúde Nos últimos dez anos, o governo equatoriano vem tentando restaurar o poder do Estado, em particular para garantir a todos os cidadãos acesso aos cuidados médicos – uma empreitada bastante auspiciosa, mas por vezes um tanto quanto inábil POR LOÏC RAMIREZ*, ENVIADO ESPECIAL © R af ae l C or re a S igchos nos dá boas-vindas”, ex- clama o doutor César Molina apontando o dedo para o pico nevado que se revela ao longe sob a luz do sol. A subida demoraria uma hora, entre montanhas e encos- tas, até nosso veículo chegar ao hospi- tal tinindo de novo. Desde sua abertu- ra, em janeiro de 2017, cerca de cem pessoas estão trabalhando nesse esta- belecimento de arquitetura sóbria, minimalista, moderna. Na fachada, fi- gura o símbolo nacional instaurado pelo governo do ex-presidente Rafael Correa (2007-2017): um círculo cromá- tico, ou a “marca do país”. “Antes da eleição de Rafael Correa, mais de um terço do orçamento nacio- nal era destinado diretamente a ONGs”, contava Carlos Jativa em 2010, quando ocupava o cargo de embaixador do Equador em Paris. O presidente e seu movimento político, Alianza País, pro- metiam uma virada de 180° e o restabe- lecimento do papel “fundamental” do Estado. As obras não faltaram, mas pa- recia um jogo de pega-varetas: quando se manipulavam algumas peças, ou- tras podiam colapsar. Por exemplo, no campo da saúde. “Durante os trinta anos que prece- deram a eleição de Correa, nenhum hospital público foi construído”, ressal- ta Maria Verónica Espinosa, ministra da Saúde. “Isso ilustra a importância que era dada à saúde pública neste país”, completa. A Constituição de 2008 mar- ca uma ruptura: o texto afirma a res- ponsabilidade do Estado de assegurar o acesso gratuito a cuidados e medica- mentos. E, quando se fala em dever, também se fala em recursos: entre 2008 e 2016, o governo investiu mais de US$ 15 bilhões (a moeda utilizada no país desde 2000), multiplicando por cinco a média anual de gastos de saúde no período de
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