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A sucessão no Facebook
Nelson Rosenvald
“A ordem do mundo é dada pela morte”
(Albert Camus – "A peste”)
 Eu sou do tempo em que a sucessão "post mortem" se resumia a transferência do patrimônio do defunto, o que era privilégio de poucos. Paulatinamente, uma nova ordem se instalou e o próprio conceito de herança se atualizou. Da transmissão da casa de praia e dos discos do Roberto Carlos, passamos a emitir disposições relacionadas a doação de órgãos e do próprio corpo. Estamos agora na nova fronteira do direito sucessório, um campo minado do "far west" na qual famílias e provedores de serviços disputam os legados da vida digital. Para além de valores monetários como investimentos bancários, biblioteca no iTunes, códigos de acesso as mais variadas redes de "social networking", nomes de domínio, milhas aéreas, pontos de recompensa, contas de "PayPal" e "Bitcoin", há também a nossa “memória sentimental” nas redes sociais. Trata-se de um precioso ativo intangível que pode ser delegado as pessoas estimadas, mediante um planejamento sucessório composto de instruções claras, além de meios e senhas que viabilizem os seus anseios. Muitas opções se abrem: O inventariante pode assumir o controle temporário de sua vida digital, eventualmente poderá se pensar em uma inventariança compartilhada (diante da complexidade de interesses postos em jogo), mas nada impede que se nomeie um representante autônomo, especialmente para transferir ou fechar contas. Ilustrativamente, em 2013, Google foi pioneiro ao permitir aos usuários a escolha de herdeiros digitais para o Gmail, armazenamento nas nuvens e outros serviços, apelidado de “Google Will”.
 Porém, o maior passo foi dado pelo Facebook, na sequência da publicação nos EUA do "Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act". Ao invés de simplesmente congelar as contas dos usuários mortos, desde o ano passado a rede social mais popular do mundo faculta os seus membros maiores de 18 anos designar aquele que será o "legacy contact", para gerenciar suas contas postumamente. No universo jurídico “facebookiano" não valem as leis estatais. Mesmo que haja um inventariante para gerir o patrimônio real do morto, a empresa determinou que o titular da página terá que nomear um administrador para o pós-morte, seguindo a "soft law" do Facebook. A escolha só poderá recair sobre os amigos que se encontram nessa rede social. O "legacy contact" poderá ser alterado até a morte, mas daí em diante a pessoa que foi escolhida não poderá transmitir a sua função para terceiros.
 Qual seria a razão de perseverar na rede social após o fim da existência física? Se você não for do tipo sentimental, o melhor a se fazer é optar em vida por retirar permanentemente a página após a morte, salvaguardando a sua vida privada para o futuro. Porém, se a alguém apetece ter as necessidades estéticas e éticas supridas para a posteridade, em um “afterlife" digital, saiba que o responsável pelo legado no Facebook administrará a conta de forma a rebuscar a “timeline" e transformar a página do morto em uma espécie de lápide digital. O cuidador do memorial "on line" poderá escrever um post que será introduzido no perfil da página do memorizado amigo/parente, alterar a sua foto de perfil e até mesmo responder ao pedido para novas amizades em nome do morto. Se lhe for garantida permissão prévia, o responsável pelo legado também poderá baixar os arquivos com “posts" e fotos do morto, exceto o conteúdo de suas mensagens privadas. Ou seja, ele não poderá editar o que falecido já havia publicado, excluir amigos, ou eliminar o conteúdo que seus amigos postaram na página. Se em vida a pessoa escreveu algo embaraçoso ou inseriu uma foto duvidosa, o “legacy contact” não poderá fazer nada a respeito. Essas restrições poderão magoar aquele que julga ser função do cuidador manter o memorial imaculado. Todavia, se fosse dado ao responsável o poder de redimir os “tropeços” do falecido, fatalmente ele concederia um maior peso emocional ao luto, em detrimento da preservação da autenticidade da pessoa morta.
 É duro o caminho da transcendência. A tragédia da existência humana reside na finitude da vida terrena. Sempre se pensou que a crença na vida após a morte fosse um ato de fé. Até agora a mediunidade não era aceita, a luz da razão ou em tribunais, mas doravante o “legacy contact” fará a comunicação "on line" entre o falecido e os seus novos amigos digitais. Novos aplicativos permitirão que sejam enviadas mensagens do além. Se há mais de dois mil anos a filosofia procurar alcançar o sentido da vida, o Facebook oferece uma segunda vida, que possa dar sentido a vida pregressa. Aliás, enquanto o momento do nosso decesso é determinado pelo acaso, o instante do ocaso da segunda vida será determinado pela saúde financeira da empresa de Zuckerberg. Tal como ocorreu no Orkut, para um futuro não tão distante, muitas vidas digitais poderão ficar aprisionadas no limbo...
Pode-se mesmo sugerir um “direito ao esquecimento”. Obras atemporais e de grande qualidade devem estar a disposição das próximas gerações. Mas o que dizer de nossas pequenas futricas cotidianas? Sempre fui encantado pela delicadeza e reserva devotada aos diários e álbuns de fotos. Porém, os contemporâneos perderam a modéstia e estão se levando muito a sério… Após a morte do usuário, de que servirá ao mundo conhecer a sua opinião sobre o “impeachment" ou a sua indignação com o desempenho medíocre do time de futebol no torneio de dez anos atrás. Surge a “biografia autorizada póstuma”, na qual um representante é credenciado a formatar um “the best of” da pessoa morta, e a rede de amigos emitirá opiniões sobre aquilo que a pessoa era ou fazia. Isso sugere uma espécie de "walking dead", em que os mortos-vivos que não querem ser esquecidos, teimam em vagar pela terra, sem a menor sombra de uma consciência.
 A par dessas objeções, é inequívoco que a possibilidade de realização de um legado digital valoriza a autonomia existencial. A liberdade concedida a pessoa de escolher o seu estilo de vida e morte é sempre bem-vinda. As pessoas deveriam deixar claras instruções sobre o que acontecerá com a sua mídia social após a sua morte. Porém, ao contrário dos Estados Unidos, a tradição brasileira é de desprezo ao uso da autodeterminação para as disposições de última vontade. A ojeriza ao testamento nos direciona a sucessão legal, sempre mais atabalhoada, principalmente diante de uma morte inesperada. Receio que essa mesma cultura dificulte a compreensão de que uma página do Facebook é parte de nossas heranças (mesmo que para alguns seja um passivo). Tal como um legislador, o todo poderoso Facebook ponderou abstratamente as eventuais tensões entre o respeito pela privacidade do morto e as demandas afetivas dos saudosos familiares e amigos, que surgirão quando o cliente falecer sem uma prévia manifestação de vontade, seja a de nomear o legacy contact ou de exterminar a página assim que morra. Quem então terá acesso aos ativos digitais? Desde que forneça os detalhes da conta, a rede social permitirá ao amigo ou familiar que comprove materialmente o fato da morte, a opção entre remover ou “memorializar” a página (a palavra “lembrando” passará a constar sob o seu nome). Se essa iniciativa não vier, a página prosseguirá perturbadoramente congelada – sem possibilidade de ser alterada ou gerida por terceiros -, até que um dia a empresa novamente altere a sua política. Portanto, faça bom uso de sua liberdade e delibere por escolher o seu cuidador da rede ou por implodir com toda a vida digital, antes que o Facebook escolha por você.
http://www.nelsonrosenvald.info/#!A-sucessão-no-Facebook/c21xn/578f62490cf256540e9f6cb5

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