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OS DESENRAIZADOS

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OS DESENRAIZADOS (Florestan Fernandes)
Toda sociedade estratificada cria uma massa variável, com frequência muito numerosa, de indivíduos excluídos da ordem. No passado, essa massa era constituída dos homens pobres e livres (ver, por exemplo, “Desclassificados do ouro – a pobreza mineira no século XVIII”) que não eram homens (do ponto de vista da humanidade exclusivista dos estamentos senhoriais) nem livres (pois somente não eram escravos, embora os escravos valessem no mercado, no interior da economia e da sociedade escravista mais do que eles). Formavam os contingentes miseráveis da terra, os cães sem coleira que mantinham a ordem e, ao mesmo tempo, a ameaçavam. 
Desde suas origens, o industrialismo gerou várias modalidades de populações excedentes e elas possuíam um significado histórico equivalente. A lógica do capital impôs uma função social aquela parte das populações excedentes que se concentraram nas cidades industriais. Cabia-lhe ser o exército industrial de reserva, um elemento de desvalorização do valor monetário do trabalho, de desorganização das classes trabalhadoras e de manipulação repressiva das forças policiais. Foi o próprio movimento operário que freou o “uso negativo” do exército industrial de reserva pelos capitalistas e pela ordem. Nas condições históricas e demográficas da periferia, a expulsão da população destituída do campo gerou o crescimento de “cidades inchadas” e populações faveladas de vários tipos e tamanhos, que não formam exércitos industriais de reservas, mas concentrações de miseráveis da terra (“condenados” ou “malditos” na linguagem forte de Franz Fanon).
Vistas do avião, cidades como Lima e Caracas me deram a ideia de que essas massas humanas e excluídas poderiam transformar a conquista do poder em um fenômeno físico. Se elas invadissem os quartéis, as delegacias e outros bastiões da ordem, elas ocupariam todo espeço e o uso, das armas se tornaria impraticável. No entanto, elas são portadoras de culturas tradicionais e de crenças inculcadas pelos “civilizados”, que excluem esse uso da contraviolência e deixam-se cozinhar no banho frio de surdos rancores, pelos quais a frustação lança o ódio para dentro das próprias hostes e a solidariedade não chega a atingir o porte histórico de uma união sagrada autodefensiva e ofensiva contra os de cima. São Paulo, como o Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras, abriga em ilhas dispersas e em áreas contíguas milhões de desenraizados, que se perdem no pó e na poluição humana da metrópole. Ninguém se importa com eles, com exceção das comunidades eclesiais de base. Uma tendência à organização incipiente engendrou as organizações de favelados, mas estas surgem e atuam em aglomerações nas quais o desenraizamento e o lumpensinato ou se dissiparam ou se tornaram secundários.
Como na sociedade civil escravista, na sociedade civil capitalista os poderosos trocam por migalhas o apoio dessa plebe produzida pela “exploração demográfica” da modernização superfície. Com dez anos, eu próprio lúmpen e miserável da terra, corria pelas ruas gritando “queremos Getúlio”, atrás de outros milhares de pés descalços ou mal calçados iguais a mim. O que torna essa população desenraizada tão ávida de compensações e de esperanças¿ Que sonhos passavam por nossas cabeças¿ Quem não tem nada e se move graças às promessas que ouve (ou aos rumores que se espalham velozmente, vindas de cima), não pertence nem ao mercado nem à política. Portanto, éramos excluídos, com várias miragens e anseios desencontrados, todos esperando o fim da purgação e da exclusão, o milagre da redenção, como diria Antônio Bento, em seu ativismo abolicionista.
As duas pontas estão aí, visíveis: trabalho barato combinado à alienação política. Postas fora da sociedade civil, as populações errantes convertem-se em uma mina de outro para o sistema de poder. De um lado, delimitam a extensão do perigo representado por uma massa enorme de “inimigos públicos da ordem”. Esta só pode conjurar o perigo mantendo e reforçando a exclusão, isto é, impedindo ou limitando a sua inclusão no mercado, no regime de classes e nos grupos institucionalizados dos trabalhadores assalariados. De outro lado deixando-as entregues à próprio impotência e desorganização e, concomitantemente, açulando-as ou acorrentando-as às ilusões de um falso paternalismo e clientelismo político. Isto significa associar promessa e demagogia populista, dentro de um espaço real dominá-lo pela opressão política e pela repressão armada. 
O discurso moralista condena o lumpesinato e o desenraizado por sua rusticidade, ignorância e “apatia”. Trata-se de um discurso diante no espelho, no qual a imagem refletida do moralismo poderia descobrir a própria face, se o dono da fala indagasse, pura e simplesmente: “quem são os responsáveis¿ Quem são os que se aproveitam¿ Por que a sociedade civil capitalista precisa fabricar os milhões excluídos como uma necessidade social para a reprodução da ordem social¿ Para se entender tais questões basta confrontar o que fez a ditadura em São Paulo e o que deixou de fazer o governo ilustrado de Franco Montoro. Ou atentar-se para o presente pugna eleitoral e a presença, a confrontação e as convergências invisíveis dos partidos que apoiam as candidaturas de Maluf, de Quércia e de Ermírio de Moraes. O fenômeno Jânio Quadros repete-se, com outras personalidades. Por que¿ A minoria não tem outro meio de atingir os seus fins senão degradando os malditos e condenados da terra!...
Eis o dilema histórico que se coloca claramente. Poder-se-ia chegar a democracia – mesmo a democracia ampliada burguesa – por tias meios e tais fins¿ Há um circulo vicioso, que só poderá ser quebrado por processos políticos de organização autodefensiva e ofensiva dos debaixo. Os partidos de esquerda temem avançar nesse terreno, um terreno minado pelo terror burguês da massa explosiva dos excluídos que só são úteis nos momentos incivos da desvalorização dos trabalhos no mercado e degradação do humano no processo eleitoral. Ponto de referência para armar a violência institucional, oculta nas atividades “legais” das elites dominantes das classes privilegiadas.
Cortar o nó górdio, eis a questão proletarizar o coração e a mente desses subalternos, que ficam abaixo das linhas de classe da subalternização, como o último degrau da sociedade (“indigentes”, “marginais”, populações, “carentes” ou “dependentes” etc). Os anarquistas tiveram a virtude de estender os braços a esses companheiros e a grandeza de compreender o seu infortúnio. Os revolucionários, nacionalistas ou comunistas, de periferia, acabaram aprendendo, pela prática, que eles são os humildes mais exigentes de amor, de solidariedade humana e de companheirismo. No Brasil ainda arranhamos as meias verdades. Culpam-se à “falta de organização” e a “falta de meios” para chegar até eles com a mensagem literária da fraternidade humana e da igualdade política. Espera-se que o movimento popular de o seu qualitativo de mobilização que só poderá nascer de uma identidade partidária forte, que compreende que a classe operária não contém fronteiras diante da miséria e que o socialismo proletário só poderá florescer pela incorporação daqueles que são os mais desiguais, estejam eles no campo ou nas cidades, sejam eles brancos, negros ou índios enfrentem eles os dilemas humanos que enfrentarem. O que o capitalismo expulsa e separa, o socialismo deve unir e liberar. Essa é a realidade histórica, que torna o proletário tão diferente do seu antípoda burguês e do seu porta-voz, o demagogo. Uma democracia popular, desde o começo, não pode separar os de baixo deve unifica-los em torno da mesmo bandeira igualitária. (Folha de S,Paulo – 21 de agosto de 1986)

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