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igualdade_e_liberdade estado moderno 3

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Igualdade e
Liberdade
Norberto Bobbio
ìr r{ Tradução
\\. u$Sc"rlos Nelson Coutinho
uw'
iw-
Sumário
Prefacio 7
IGUALDADE
1. Igualdade e liberdade /l
2.Igualdade e justiça 14
3. As situaçöes de justiça L6
4. Os critérios de justiça .18
5. A regra de justiça 20
6. A igualdade de todos 23
7. A igualdade diante dalei 25
8. A igualdade jurídica 29
9. A igualdade das oportunidades 30
10. A igualdade de fat'o 32
11. O igualitarismo 35
12. O igualitarismo e seu fundamento 38
13. Igualitarismo e liberalismo 40
14. O ideal da igualdade 43
Bibliografiø 46
LIBERDADE
1. Liberdade negativa 49
2. Liberdade positiva 5l
3. Liberdade de agir e liberdade de querer 52
4. Determinismo e indeterminismo 54
5. Liberdade do indivíduo e liberdade
da coletividade 57
6. Liberda.de em faæ d,e e liberd,ad.e de (ou pøra)
7. Liberdade dos antþs e liberdade
dos modernos 62
8. Liberalismo e democracia 65
9. Qual é auerd,ødeirø liberdade? 6Z
10. Dois ideais de sociedade hwe Z0
11. A história como história da liberdade ZZ
12. A história da liberdade 75
13. Linhas de tendência dessa história ZB
14.Da liberdade em face do Estado à liberdade
na sociedade 8l
15. Totalitarismo e tecnocracia 83
16. As formas atuais da não-liberdade 88
17. Os problemas atuais da liberdade 92
18. Considera@o fînal g5
Bibliogrøfiø 95
Prefácio
Os dois valores da liberdade e da igualdade reme-
tem um ao outro no pensamento político e na história.
Ambos se enraízam na consideraçäo do homem como
pessoa,. Ambos pertencem à determinaçáo do conceito
de pessoa humana, como ser que se distingue oü pr€:
tende se distinguir de todos os outros seres vivos. -Li-
berdød,e indica um estado; iguøIdod'e, uma relaçáo. O
homem como.p.ZssãlìI ou para ser coñËiîlãîäõFffio
f,éssoä-deve ser, enquanto indivíduo em s9,a.sir-r-ggþ
ridgdç,liy.rç;enqualitosersociat,dere-9ç!,,9¡""ç9^ç*-ç-{9";
mais indivíduos numa Jgfagág {e igualda-d.-e"'
---îî6ert¿ et ega[íté."A Frøternité pertence a uma ou-
tra linguagem, mais religiosa que política . I Suø!!fl3"f1- 
-"
freqüente_{rg¡tu-S-,¡.þttit"ídu prfq"i s-binômio
ínúfñî Liberdnde. Mas, nesse binômio, Justiçø pre-
cede Liberdade. Somente porque soa melhor? A prece-
dência de uma ou de outra palawa depende também do
contexto histórico. As vítimas de um poder opressivo
pedem, antes de mais nada, liberdade. Diante de um
poder arbitrário, pedem justiça. Diante de um poder
despótico, que seja ao mesmo tempo opressivo e arbi'
trário, a exigência de liberdade náo pode se separar da
exigência de justiça.
Afirmar a liberdade e a igualdade como valores sig;
nificaque elas sáo, respectivamente, um estado do indi-
59
8 IGUAIDADEELIBERDADE
vÍduo e uma relação entre indivíduos desejáveis de
modo geral. Os homens preferem ser liwes a ser escra-
vos. Preferem ser tratados de modojusto e náo injusto. 
.,
Tanto mais que, nas sociedades que existiram histori-
camente, nunca todos os indivíduos foram liwes ou
iguais entre si. A qqqiede4e dgliylgç tp_tgtr+1._és,n_gÞta-
*_dqhiælátis9,jp-g_+-*l_ill9_+lede.Imaginadocomosesi-
tuando ora no início, ora no fim da história, conforme
se tenha do curso histórico da humanidade uma visáo
regressiva ou progressiva. Trata-se de uma sociedade
na qual todo homem é liwe na medida em que obedece
apenas a si mesmo e, pelo fato de que essa liberdade é
desfrutada por todos, todos sáo iguais pelo menos en-
quanto sáo liwes. Ao contrario, uma sociedade históri-
ca pode ser constituída de homens liwes mas não iguais
nas respectivas esferas de liberdade. assim como de
iguais enquanto náo sáo liwes, ou, mais sucintamente,
pode ser constituída de desiguais na liberdade e de
iguais na escravidáo.
Liberdade e igualdade sáo os valores que servem de
fundamento à democracia. Entre as muitas definições
possíveis de democracia, uma delas 
- 
a que leva em
conta náo só as regras do jogo, mas também os princÍpi-
os inspiradores 
- 
é a definiçáo segundo a qual a demo-
cracia é náo tanto uma sociedade de liwes e iguais (por-
que, como disse, tal sociedade é apenas um ideallimi-
te), mas uma sociedade regulada de tal modo que os
indivíduos que a compõem sáo mais liwes e iguais do
que em qualquer outra forma de convivência. A maior
ou menor democraticidade de um regime se mede pre-
cisamente pela maior ou menor liberdade de que des.
frutam os cidadãos e pela maior ou menor igualdade
que existe entre eles. Característica da forma democrá-
tica de governo é o sufrágio universal, ou seja, a exten-
sáo a todos os cidadáos, ou, pelo menos, à esmagadora
maioria (o universo jurídico é o universo do quase ot
do nø maioriø das uezes), do direito de voto. O sufrágio
NORBERTOBOBBIO 9
universal é uma aplicaçáo do princípio da igualdade, na
medida em que torna iguais com relaSo aos direitos
políticos 
- 
que sáo os direitos eminentes num Estado
democrático 
- 
os homens e as mulheres' os ricos e os
pobres, os cultos e os incultos. Ao mesmo tempo, é tam'
bém uma aplica@o do princípio de liberdade, entendi'
da a liberdade, em sentido forte, como o direito de par'
ticipar no poder político, ou seja, como autonomia. Os
cidadáos de um Estado democrático se tornam, através
do sufrágio universal, mais liwes e mais iguais. Onde o
direito de voto é restrito, os excluídos sáo ao mesmo
tempo menos iguais e menos liwes.
O fato de que liberdade e igualdade sejam metas
desejáveis em geral e simultaneamente náo significa
que os indivíduos náo desejem também metas diame-
tralmente opostas. Os homens desejam mais ser liwes
do que escravos, mas também preferem mandar a obe-
decer. O homem ama a igualdade, mas ama também a
hierarquia quando está situado em seus graus mais ele-
vados. Contudo, existe uma diferença entre os valores
da liberdade e da igualdade e aqueles do poder e da hie-
rarquia.
Os primeiros, embora sejam mais irrealistas do que
os segundos, náo sáo contraditórios. Náo é contraditó-
rio imaginar uma sociedade de liwes e iguais, ainda que
de fato 
- 
ou seja, narcalizaçáo prática- jamais possa
ocorrer que todos sejam igualmente liwes e liwemente
iguais. Ao contrário, é contraditório imaginar uma soci-
edade na qual todos sejam poderosos ou hierarquica-
mente superiores. Uma sociedade que se inspira no ide-
al da autoridade é necessariamente dividida em pode-
rosos e náo-poderosos. LIma sociedade inspirada no
princípio da hierarquia é necessariamente dividida em
superiores e inferiores. Numa situaçáo originária em
que todos ignorem qual será sua posiçáo na sociedade
futura 
- 
e, portanto, náo saibam se estaråo entre os
que mandam ou entre os que sáo obrigados a obedecer,
10 IGUAIDADEELIBERDADE
e se estaráo no topo ou na base da escala social 
-, 
o
único ideal que lhes pode atrair é o de desfrutarem da
maior liberdade possÍvel diante de quem exerce o poder
e de terem a maior igualdade possível entre si. Podem
desejar uma sociedade fundada na autoridade e na hie-
rarquia somente na condiçáo näo previsível de que es-
tejam entre os poderosos e náo entre os impotentes,
entre os superiores e náo entre os inferiores.
Apesar de sua desejabilidade geral, liberdade e
igualdade náo sáo valores absolutos. Não há princípio
abstrato que não admita exceções em sua aplicaçáo. A
diferença entre regra e exceçáo está no fato de que a
exce@o deve serjustificada. Onde a liberdade é, aregra,
sua limitaçáo deve ser justificada. Onde a regra é a
igualdade, deve ser justificado o tratamento desigual.
Mas o ponto de partida pode também ser oposto, como
na escola ou num quartel, onde a regra é a discþlina e a
liberdade é exce@o. Decidir o que é rrais 1e1.¡¡¿1, r" u
liberdade ou a disciplina, a igualdade ou a hierarquia,
náo é algo que se possa fazer de uma vez por todas. Li-
berdade e igualdade sáo mais normais do que disciplina
e hierarquia somente em sentido normativo, no univer-
so do dever ser.Náo me resulta que, entre as várias
elucubrações sobre sociedades ideais, exista uma só na
qual os cidadáos.náo sejam nem liwes nem iguais, em-
bora uma sociedade de liwes e iguais náo conheça nem
tempo nem lugar.
NORBERTO BOBBIO
Agosto de 1995
Igualdade
1. Igualdade e liberdade
A igualdade, como valor supremo de uma convivên-
cia ordenada, felíz e civilizada 
- 
e, portanto, por um
lado, como aspiraçáo perene dos homens vivendo em
sociedade, e, por outro, como tema constante das ideo-
logias e das teorias políticas 
-, 
é freqüentemente aco-
plada com a liberdade. Assim comoliberdade,iguøIdø'
de tem na linguagem política um significado emotivo
predominantemente positivo, ou seja, designa algo que
se deseja, embora não faltem ideologias e doutrinas au-
toritárias que valorizam mais a autoridade do que a li-
berdade, assim como ideologras e doutrinas náo iguali-
tárias que valorizam mais a desigualdade do que a
igualdade. No que se refere ao significado descritivo do
termo liberdøde, a dificuldade de estabelecê-lo reside
sobretudo em sua ambigüidade, já que esse termo tem,
na linguagem política, pelo menos dois signifrcados di-
versos. Já no caso d e iguøIdnde; a difïctililade de esta. .
belecer esse significado descritivo reside sobretudo eln
sua indeternrillaçáo; pelo'que dizer.que dois entes'sáo
rguais sem nenhuma outra determinaçáo nada signifi.
ca na, linguagern política; é 'preeiso.que,,se espeeifique'
com- que entes estamos tratando e'com relaçáo a' que
T2 IGUAIDADEELIBERDADE
sáo iguais, ou seja; é preciso responder a duas pergun-
tas: a) iguøId,ød,e entre quem?; eb) iguald,ade em quê? /
Mais precisamente: enquanto a liberdade é uma
qualidade ou propriedade da pessoa (não importa se ft-
sica ou moral) e, portanto, seus diversos signifieados
dependem do fato de que esta qualidade ou propriedade
pode ser referida a diversos aspectos dapessoa, sobre-
tudo à vontade ou sobretudo à açáo, a igualdade é pura
e simplesmente um tipo de relação formal, que pode ser
preenchida pelos mais diversos conteúdos. Tanto isso é
verdade que, enquanto X é liure é uma proposiçáo dota,
da de sentido, X é igual ê uma proposição sem sentido,
que, aliás, para adquirir sentido, remete à resposta à
seguinte questão: igual a quem? Disso decorre o efeito
irresistivelmente cômico (e, na intençáo do autor, satí-
rico) da célebre frase de Orwell: tod,os sõ,o iguais, porém
ølguns sã,o mais iguais do que outros.Ao contrário, se-
ria perfeitamente legítimo dizer que, em determinada
sociedade, todos sáo liwes, mas alguns sáo mais livres,já que isso simplesmente significaria que todos gozatrt
de certas liberdades, enquanto um grupo mais restrito
de privilegiados goza, além disso, de algumas liberda-
des particulares. Por outro lado, enquanto é sem senti-
do a proposiçao X é,.igual, é sensata 
- 
e, aliás, muito
usada, embora extremamente genérica 
- 
a proposiçáo
todos os.homens.sã,o iguøis, precisamente porque, nes-
se contexto, o atributo daigualdade se refere náo auma
qualidade do homem enquanto tal, como é ou pode ser
a liberdade em certos contextos, mas a um determina-
do tipo de relaçáo entre os entes que fazem parte da
categoria abstrata humanidnde. O que pode também
ex¡plicar por que a liberdade enquanto valor, ou seja,
enquanto bem ou fim a perseguir, é habitualmente con-
siderada como um bem"ou um fîm para um indivíduo
ou para um ente coletivg (grupo, classe, nação, Estado)
concebido como um superindivíduo, ao passo que a
NORBERTOBOBBIO 13
igualdade é considerada como um bem ou um fim para
os componentes singulares de uma totalidade na medi-
da em que esses entes se encontrem num determinado
tipo de rela@o entre si. Prova disso é que, enquanto a
liberdade é em geral um valor para o homem como indi-
víduo (razâopelaqual as teorias políticas defensoras da
liberdade, ou seja, liberais ou libertárias, sáo doutrinas
individualistas, tendentes a ver na sociedade mais um
agregado de indivíduos do que uma totalidade),'a igual,;
dade é um valor para o homem como ser genérico, ou
seja, como um ente pertencente a uma determinada
classe, que é precisamente a humanidade (razão pela
qual as teorias políticas que propugnam a igualdade, ou
igualitárias, tendem aver na sociedade umatotalidade,
sendo necessário considerar o tipo de relaçöes que exis-
te ou deve ser instituído entre as diversas partes do
todo). Diferentemente do conceito e do valor da liberda-
de, o conceito e o valor da igualdade pressupõem, para
sua aplicaçáo, a presença de uma pluralidade de entes,
cabendo estabelecer que tipo de relaçáo existe entre
eles: enquanto se pode dizer, no Iimite, que é possível
existir uma sociedade na qual só um é liwe (o déspota),
náo teria sentido afirmar que existe uma sociedade na
qual só um é igual. O único nexo social e politicamente
relevante entre liberdade e igualdade se dá nos casos
em que a liberdade é considerada como aquilo em que
os homens 
- 
ou melhor, os membros de um determi-
nado grupo social 
- 
sáo ou devem ser iguais, do que
resulta a catacteristica dos membros desse grupo de
serem iguøImente liures ou iguais nø liberdq.de: essa é
melhor prova de que a liberdade é a qualidade de um
ente, enquanto a igualdade é um modo de estabelecer
um determinado tipo de rela@o entre os entes de uma
totalidade, mesmo quando a única caract-erística co-
mum desses entes seja o fato de serem liwes.
IGUAIDADE E LIBERDADE
l,ti
tl
l
tl
lì
Enquanto liberdade e igualda.de sáo termos muito
diferentes tanto conceitual como axiologicamente, em-
bora apareçam com freqüência ideologicanente articu-
lados, o conceito e também o valor da igualdade mal se
distinguem do conceito e do valor da justiça na maioria
de suas acepçöes, tanto que a expressáo liberda.de ejus-
tiçø ê freqüentemente utilizada como equivalente da
expressáo liberdade e igualdade.
Dos dois significados clássicos de justiçaque remon-
tam a Aristóteles, um é o que identifrcajustiçø comle-
gali:d,ad,e, pelo que se diz justa a açþo realizada em con-
formidade com a lei (náo importa se leis positivas ou
naturais), justo o homem que observa habitualmente
as leis, e justas as próprias leis (por exemplo, as leis hu-
manas) na medida em que correspondem a leis superi-
ores, como as leis naturais ou divinas; o outro signifrca-
do é, precisamente, o que identiftcajustiça comigual-
dad,e, pelo que se diz justa uma a@o, justo um homem,
justa uma lei que institui ou respeita, uma vez institu-
ída, uma relaSo de igualdade. Näo ê exata a opiniáo
comum segundo a qual é possível distinguir os dois sig-
nificados de justiça referindo o primeiro sobretudo à
açáo e o segundo sobretudo à lei, pelo que uma ação se-
ria justa quando conforme a uma lei e uma lei seria jus:
taquando conforme aoprincípio de igualdade: tanto na
linguagem comum como na técnica, costuma-se dizer
- 
sem que isto provoque a menor confusáo 
- 
que um
homem é justo não só porque observa a lei, mas tam-
bém porque é equânime, assim como, por outro lado,
que uma lei é justa náo só porque é igualitaria, mas
também porque ró conforme a uma lei superior. Náo é
difTcil, de resto, remeter um dos dois significados ao
outro: o ponto de referência comum a ambos é o de or-
dem, ou equilíbrio, ou harmonia, ou concórdia das par-
tes de um todo. Desde as mais antigas representaçóes
NORBERTOBOBBIO 15
da justiça, essa última foi sempre figurada como avir-
tude ou o princípio que preside o oldenar-nento em um
todo harmônico.ou equilibrado tanto da sociedade hu:'
maRa como do,cosmo (de resto, a ordem do cosmo é con-
cebida, na visáo sociomórfïca do universo, como uma
projeçáo da ordem social). Qr3, qar4 q-_r191q¡4e a harm,g-
nia no universo ou na ciuitas, é necessário: ø) que cad'd
.umâ das partes trinha seu lugar atribuído.segup-dorp
que lhe cabe, o que é a,ap_lig4ç-4q.-d-o-p_rlUgÍp_ip 
_Ç!/-Ufrt çai-
úeîùbnøe;-m-ráünïa expresság da juqtigg cqrno- igual'
,dadeú) que, uma vez que a cada parte foi.atribuído qgu
lugar próprio, o equ_ilíbrio alcançado p,9-ja mantido po1
normas unive-rsalñìônte respeitadas.'Assim, ã instãu-
raçäo dêïñu"irtuigualdadã entre as partes e o respei.
to à legalidade sáo as duas condições para a instituiçáo
e conservaçáo da ordem ou da harmonia do todo, que é
- 
para quem se coloca do ponto de vista da totalidade e
náo das partes 
- 
o sumo bem. Essas duas condiçóes
sáo ambas necessárias para realizar a justiça, mas so-
mente em conjunto é que sáo também suficientes. Em,
uma totalidade ordenada, a injustiça pode ser intro--
duzida tanto pela alteração das relações de igualdade
quanto pela nåo-observância das leis:, a alte¡açáo da
igualdade é um desafio à lggalidadg.son-slituída,..assi:n
cg_mo.a_ náo-observância das leis estabelecidas é uma
r"pi"¡" do princÍpio de ieualdádè no--qUde]Þi¡" iltËpi.
ra. De todo mòdò, a igualdade consiste apenas numa
iëIaçáo: o que dá a essa relaçáo um valor, o que faz dela
uma meta humanamente desejável, é o fato de ser jus-
ta. Em outras palawas, uma relaçáo de igualdade é
uma meta desejável na medida em que é considerada
justa, onde porjøsúø se entende que tal relaçáo tem a
ver, de algum modo, com uma ordem a instituir ou a
restituir (uma vez abalada), isto é, com um ideal de har:
monia das partes de um todo, entre outras coisas por-
que se considera que somente um todo ordenado tem a
possibilidade de durar.
ììl
16 IGUALDADEELIBERDADE
Pode-se repetir, como conclusáo, que a liberdade é o
valor supremo do indivíduo em face do todo, enquanto
a justiça é o bem supremo do todo enquanto composto
de partes. E¡n outras-palawas, a l'bgrdade é o bem indi-
vidual por excelência, ao p¿¡sso que á jùiliça è--õiem
sociàl þor eicelência (e, nesse sentido, virtude-È-oðfa"l,\ como dizia Aristóteles). Se se quer conjugar os dois va-
lores supremos davida civil, a ex¡rressáo mais correta é
liberda.de e justiça e nãß liberdad,e e iguald,ade, já que a
igualdade näo é por si mesma um valor, mas o é somen-
te na medida em que seja uma condi@o necessária, ain-
da que náo suficiente, daquela harmonia do todo, da-
quele ordenamento das partes, daquele equilíbrio inter-
no de um sistema que mereça o nome de justo.
3. As situações de justiça
Que duas coisas sejam iguais entre si náo é nemjus-
to nem injusto, ou seja, náo tem nenhum valor em si
mesmo, nem social nem politicamente. Enquanto ajus-
tiça é um ideal, a igualdade é um fato. Náo é em si mes.
mo nem justo nem injusto que duas bolas de bilhar se-
jam perfeitamente iguais entre si. A esfera de
-ôâ), ieguñdo a diÈtiäçádtr'aäiôiohal, que remonta-a-
Aristótelès, entie justiça comutativa (que tem lugar na
relaçáo entre as partes) e justiça distributiva (que tem
lugar nas relaçóes entre o todo e as partes, ou.vice-v.er-
sa). Mais especificamente, as situações nas quais é rele-
vanté'(ùè ijiistâ óù fáô igualdàdé sao sobròtudó duas:
ø) âqrlela na qual estamos diante de uma açáo de dar(oiì fazei), dà quâl se deva estabòl"""t a correspon-
dência anteiìù'éom um ter ou posterior com um re-
ceber, de onde resulta a seqi.iência ter-dar-receber-ter;
NORBERTOBOBBIO 17
å) aquela na qual ngç. gggqntmmosdiantadoprohlema
{el{]b-u[.varÍjeç¡qÞ"-qu-desvantagenç,.be-nefi ciosour-l:
ônus, direitos ou deveres (em termos jurídicos), a uma I
þtüralidáde dè indivÍduoå pertencentes a uma de,t-e¡lpi-
nàdà categoria. No primeiro caso, a situaçáo se caracte-
riza þor uma relaçáo bilateral e recíproca; no segundo,
por uma rela@o multilateral e unidireciord.Jlg*pffu*
meiro caso, o problema da igualdade se apresenta cofno
problilma de..equiuølênciø, de.,coisas (o que se dá deve
-Ëêr tliluivalente ao que se f,em, o que se recebe ao que se
tem); no segundo, como problema d9..9quiparaçã,o de
pessoas'(tiatâ-se, poi èiempio, de equipa"a", nã i¿Hj
"çáo entre cônjuges, a mulher ao marido, ou, na relaçáo
de trabalho, os operários aos empregados). Todosvêem
a diferença entre a igualdade que é in¡¡ocada.quando,Êe
pede que haja correspondência entrg q q¡g¡gedqriaæ"o*"
piQoë aqlielaquè é ufvöCadá quando se pede que oF
direitos (e óÈ deveres) da mulher cgrrespondam.aos, do . 
"
mar!ìlo, ou que o e,st-ado jurídico dos operariop^p,.9jaequi.
pq-f"adg.ag---dos empregados. De resto, as duas situações
correspondem aos dois tipos fundamentais de relações
que podem ser encontrados em todo sistema social, as
relaçóes de troca e as relaçóes de convivência. Queren-
do dar um nome às duas situaçóes de justiça, pode-se
falar, no primeiro caso, de justiça retributiva, e, no se-
gundo, de justiça atributiva.
Náo é possível especificar ulteriormente os casos tí-
picos de justiça atributiva, tantas e táo imprevisíveis
sáo as situações nas quais se exige uma equalizaçâonas
relaçóes entre os indivíduos. Os casos mais típicos de
justiça retributiva, isto é, de igualdade entre o que se
dá (ou se faz) e o que se recebe, sáo os quatro seguintes:
rela@o entre mercadorias e preço, relaçáo entre paga-
mento e trabalho, relaçáo entre dano e indenizaçáo, re-
laçáo entre crime e castigo. Desses quatro casos, os dois
primeiros sáo de retribuiçáo de um bem com um bem;
os outros dois, de um mal com um mal. Também nesses
l
i:
r'
llil.j:
i;
du_j_g.fltlgl.,ou da igualdade social e pôlitiòamente rele-
'vânte, f a dqs relaçöessoçigis, ou dos indivíduos ou gru-
pos entre si, ou dos indivíduos òom o grupo (e vièdver-
il¡
ì
i'ì
18 IGUALDADEELIBERDADE
casos, a linguagem comum reconhece o nexo entre os
dois conceitos dejustþ e de igualdade, falando respec-
tivamente de preço justo, de sa.ld.rio justo, de indeniza-
çõ,o justa e de penø justø.
4. Os critérios de justiça
IJma vez delimitada a esfera de aplieaçåo da justi-
ça como igualdade, ainda náo se disse nada sobre o que
distingue uma igualdade justa de uma injusta, que, de
resto, num discurso político, é a diferença essencial en-
tre a igualdade desejável e a indesejável. Ainda náo dis-
semos nada sobre o que torna desejável que duas coi-
sas ou duas pessoas sejam iguais. Nesse ponto, o pro-
blema da igualdade remete ao problema dos chamados
zadas sob muitos aspectos: a igualdade entre elas, ou
sua equalizaçáo, só tem a ver com a justiça quando cor-
responde a um determinado critério (que é chamado
de ðùiié¡io.:de ¡'ust!¡a), com base no qual se estabelece
qual dos aspectos deva ser considerado relevante para
o fim de distinguir entre uma igualdade desejável e
uma igualdade indesejável. O fato de que o malum
passionis seja igual ao malum a,ctionis náo é, em si
mesmo, nem justo nem injusto: torna-se justo se se es-
cqlhe como critério de justiça penal o critério do sofri-
mento igual, ou seja, se se aceita o princípio de que cri-
me e castigo devam ser iguais no sofrimento (causado
ou padecido, respectivamente). Se se adotar um outro
critério 
- 
por exemplo, o que inspira a lei de talião,
segundo a qual o castigo deve se igualar ao crime náo
no sofrimento, porém, de modo mais grosseiro e mate.
NORBERTOBOBBIO 19
rial, no tipo de mutilação 
-, 
a equalizaçâo do crime ao
castigo ocorre de outra maneira. Ainda mais evidente
é o caso da equalizaçáo entre trabalho e pagamento:
existem tantos modos de considerar o pagamento cor-
respondente ao trabalho (e, portanto, de considerar
respeitada a relaçáo de igualdade entre um e outro)
quanto sáo os critérios de retribuiçáo adotados em ca-
da oportunidade. Que o salario deva corresponder à
necessidade de reproduçáo da força de trabalho é um
critério retributivo perfeitamente cumprido quando se
respeita a igualdade entre o montante do que o operá-
rio recebe em troca do seu trabalho e o que ele deve
gastar pâra o seu sustento. Mudando-se o critério, o
que era justo conforme o primeiro critério se torna in-
justo conforme o segundo.
Náo há teoria da justiça que náo analise e discutaalguns dos mais comuns critérios de justiça, que sáo
habitualmente apresentados como especificações da
máxima generalíssimaevazia: a cad,ø,um, o seu. Pata
dar alguns exemplos: ø ca.d,a um segundo o mérito, se-
gundo a capacidø;de, segundo o talento, segund,o o es-
forço, segundo o trøbalho, segundo o resultød,o, segun-_.
do a necessidade, segundo o posto etc. Nenhum desses
critérios tem valor absoluto, nem é perfeitamente obje-
tivo, embora haja situaçóes nas quais um é mais aplica-
do do que o outro: na sociedade familiar, o critério pre-
dominante é o da necessidade (e, curiosamente, tam-'
bém na sociedade comunista, segundo Marx); na esco-
la, quando houver fïnalidades essencialmente seletivas,
o critério é o mérito; numa sociedade anônima, o das
cotas de propriedade; na sociedade leonina, é aforça (a
comunidade internacional é, em grande parte, uma so-
ciedade leonina) etc. Embora a escolha desse ou daque-
le critério seja em parte determinada pela situaçâo ob-
jetiva, depende freqüentemente 
- 
e, por vezes, em úl-
tima instância, ainda que nem sempre conscientemen-
te 
- 
das,diversas concepções gerais da ordem social,
,"1'i
20 IGUALDADEELIBERDADE
í\ t\
como é plenamente demonstrado por disputas ideológi-
cas do seguinte tipo: é mais justa a sociedade onde a
- 
i 
. 
cada um é dado segundo o mérito, où aquela onde a ca-
'-"dá up_ é d¿{o 
-se-gundo a aeçgpqidade? Nas situações
' cõncretas, os vários critérios sáo freqüentemente tem-
perados uns com os outros: basta pensar na variedadeI de critérios com que sáo habitualmente selecionados os
candidados a concursos para obter um emprego públi-
co, onde se mesclam, se superpóem e se confundem o
critério do mérito com o da necessidade, o critério da
antigüidade com o do posto. A máxima "a cada um, o
seu" náo enuncia nenhum critério, mas abrange e tole-
ra, em cada oportunidade concreta, todos eles.
5. A regra de justiça
Para além das duas formas de justiça retributiva e
atributiva, a igualdade tem aver com a justiça também
em um outro sentido, ou seja, em rela@o à chamada
regrø de justiça. Por regra de justiçø,. entende-se a re.
, gra segundo a qual'se.devem tratai¡ bs iguais de modo
igual e os desiguais de mgdo desiguáI. É supèiäuo su-
blinhar a importância que essa regra assume em face
da determinaçáo dajustiça, concebida como o valor que
preside a conservaçáo da ordem social. O que convém
sublinhar, ao contrário, é que o problema da justiça
como valor social náo se reduz, como em geral pensâm
osjuristas, à regra dejustiça, nem nela se esgota. Com
efeito, a regra dejustiça pressupóe quejá tenham sido
resolvidos os problemas que pertencem à esferadajus-
tiça retributiva e da justiça atributiva, ou seja, pressu-
põe quejá tenham sido escolhidos os critérios para es-
tabelecer quando duas coisas devem ser consideradas
equivalentes e quando duas pessoas devem ser conside-
radas equiparáveis. Somente depois que estes critérios
foram escolhidos é que a regra dejustiça intervém para
ill'i
li
I'i,.
i.i,'
Ìr
l;,
rl¡: i
,'.i
\,
lìiÌ
NORBERTOBOBBIO 2I
determinar que sejarn tratados do mesmo modo os que
se encontram na mesma categoria. Se não tivesse sido
previamente estabelecido o modo como deva ser trata-
da essa ou aquela categoria, náo teria nenhum sentido
afìrmar que os pertencentes à categoria devam ser tra-
tados de modo igual. Quem confunde o problema (ou
melhor, os vários problemas) da justiçâ õärno igu'aldat4e
com a regra de justiça não parecö þèröèbei-que a pri-
mtiiia tarefa de quem pieteädä'fazei obiá aejustîça
consiste em establecer comoum determinado indivíduo
äalvd¡ef tiätãdô-Þä¡a"S¿¡-fiatå¿o d" 
"'odq 
j;lò. So-
mente depois que se estabelèCeu ô tratamento é que
surge a exigência de garantir que o tratamento igual
seja reservado aos que se encontram na mesma situa-
çáo. Em suma, aregrade justiça refere-se ao modo pelo
qual o princípio de justiça deve ser aplicado: com efeito,
ela foi corretamente chamada de justiça na aplicaçáo.
Com isso, quer-se dizer: na aplicaçáo do princþio de jus-
tiça acolhido, ou 
- 
já que esse ou aquele princípio de
justiça constituem geralmente o conteúdo das leis 
- 
na
aplicaçao da lei. Desse ponto de vista, a relaçáo.entrêì'â
justiça retributiva e atributiva, por um lado, e a regra
dejustiça, por outro, pode ser concretizado do seguinte
modo: a primeira é constitutiva ou reconstitutiva da
igualdade social; a segunda tende a mantê-la segundo
os modos e formas em que foi estabelecida. Dado que a
regra de justiça náo diz qual seja o melhor tratamento,
mas se limita a exigir a aplicaçáo igual de um determi-
nado tratamento, qualquer que seja ele, é chamada
também de justiça formal, na medida em que prescinde
completamente de qualquer consideraçáo sobre o con:
teúdo. Pode ocorrer 
- 
e, de fato, é o que sucede fre-
qüentemente em todo ordenamento jurídico onde as
norrnas envelhecem e se tornam injustas 
- 
que uma
norma injusta seja aplicadajustamente; e, com cetteza,
nâo é a aplicaçáo injusta que pode remediar isso, mas
somente, quando muito, a não-aplicaçáo.
i
lr
22 IGUAIDADEELIBERDADE
Mesmo tendo um valor subordinado ao valor ins-
taurado pela justiça retributiva e atributiva, também ajustiça formal tem por si mesma, ou seja, independen-
temente do valor de justiça da norma, e mesmo no caso
de norma injusta, um valor social, que é o de garantir a
velha ordern até que esta seja substituída pela nova.
Tem também a funçáo de tornar menos chocante a in-justiça ao partilhá-la entre muitos ("mal comum, con-
solo de todos"). Pode-se ainda observar que o instru-
mento mais idôneo parafazer com que a regra de justi-
ça seja respeitada é a promulgaçáo, por parie de quem
detém o poder legislativo numa determinada socieda-
de, de norrnas gerais e abstratas que estabeleçam como
deve ser tratada toda uma categoria de sujeitos. Quan-
do existem normas desse tipo (e a maioria das leis for-
mais sáo assim), o respeito à regra de justiça, isto é, àjustiça formal, resume-se pura e simplesmente à apli-
caçáo escrupulosa e imparcial da lei: com efeito, apli-
cando-se escrupolosa e imparcialmente uma lei atodos
os sujeitos que fazem parte da categoria regulada pela
lei e segundo o tratamento previsto, observa-se tam-
bém a regra da justiça que determina que os iguais se-
jam tratados de modo igual. Desse ponto de vista, a apli-
caçao da regra de justiça coincide com o respeito à lega-
lidade, embora não se deva confundir a realiza@o da
regra dejustiça através do respeito à legalidade, por um
lado, com a justiça como legalidade, à qual nos referi-
mos no item 2; e, por outro, com o princípio de legali-
dade, que é posto em defesa náo da igualdade, mas da
cer:teza do direito. A regra de justiça exþ, para sua
aplica@o, a virtude da imparcialidade em face dos des-
tinatários da lei, ou seja, exige mais o princípio de lega-
lidade do que a lealdade em face do legislador.
NORBERTOBOBBIO 28
6. A igualdade de todos
Ao contrário do que se poderia deduzir do que até
agora foi dito sobre a relaçáo entrejustiça e igualdade
- 
onde justiça sempre apareceu como um termo
axiologicamente significativo e igualdo'de como um ter-
mo axiologicamente neutro, além de descritivamente
indeterminado 
-, 
pode-se constatar que, no debate
político, a igualdade constitui um valor, até mesmo um
dos valores fundamentais em que se inspiraram as filo-
sofias e as ideologias políticas de todos os tempos. Mas
isso resulta do fato de que, em todos os contextos nos
quais a igualdade é invocada (e, naturalmente, também
naqueles em que é condenada), a igualdade em questáo
é sempre uma igualdade determinada ou secundum
quid, que recebe seu conteúdo axiológico relevante pre-
cisamente daquele quid que lhe especifïca o signifïcado.
Decerto, uma das máximas políticas mais carrega-
das de significado emotivoé a que proclama a igualda-
de de todos os homens, cuja formulaçáo mais corrente
é a seguinte: todos os homens sã'o (ou nascem) iguais.
Esta máxima aparece e reaparece no amplo arco de
todo o pensamento político ocidental, dos estóicos ao
cristianismo primitivo, para renascer com novo vigor
durante a Reforma, assumir dignidade filosófica em
Rousseau e nos socialistas utópicos, e ser expressa em
forma de regra jurídica propriamente dita nas declara-
çöes de direitos, desde o frm do século XVIII até hoje.
Mas, com freqüência, náo se dá atenção ao fato de que
aquilo que atribui uma carga emotiva positiva à
enunciaçáo 
- 
euê, enquanto proposiçáo descritiva, é
excessivamente genérica ou até mesmo falsa 
- 
náo'éla
proclamada igualdade, mas a extensáo da igualdade a
;todos. Com efeito, náo pode escapar o signifrcado polê-
mico e revolucionário deste todos, que é contraposto a
situações ou ordenamentos nos quais nem todos, ou
melhor, só poucos ou pouquíssimos, desfrutam de bens
l
l
lrl
24 IGUAIDADEELIBERDADE
e direitos dos quais os demais sáo privados. Em outras
palawas, o valor da máxima náo está no fato de que
evoque o fantasma da igualdade, que sempre pertur-
bou o sono dos poderosos, mas no fato de que a igualda-
de evocada, qualquer que seja sua natureza, devetia
valer para todos (e por "todos" náo está dito que se
deva entender a totalidade dos homens, já que basta
que se entenda a totalidade dos pertencentes a um de-
terminado grupo social no qual, até entáo, o poder per-
maneceu nas máos de poucos). Por outro lado, já que
uma máxima qualquer de justiça, como dissemos, deve
responder às perguntas sobre a igualdo.de entre quem e
aigua,ldade em quê, deve-se observar que a máxima da
igualdade de todos responderia, quando a interpreta-
mos literalmente, apenas à primeira pergunta.
Na realidade, o significado axiológico da máxima
depende também da qualidade, ainda que subentendi-
da, com rela@o à qual se exige que os homens, todos os
homens, sejam considerados iguais. Em nenhuma das
acepçóes historicamente importantes, a máxima pode
ser interpretada como uma exigência de que todos os
homens sejam iguais em tudo. A idéia que a máxima
expressa é que os homens devem ser considerados
iguais e tratados como iguais com rela@o àquelas qua-
lidades que, segundo as diversas concepções do homem
e da sociedade, constituem a essência do homem, ou a
natureza humana enquanto distinta da natureza dos
outros seres, tais como o livre uso da tazâo, a capacida-
de ju:'ídica, a capacidade de possuir , a dignidode social
(como reza o art. 3e da Constituiçáo italianafiou, mais
sucintamente, a dignidade (como reza o art. lq da De-
claraçáo Universal dos Direitos do Homem) etc. Neste
sentido, a máxima náo tem um significado unívoco, mas
tem tantos significados quantas forem as respostas à
seguinte questáo: Todos iguais, sim, mas em quê? Uma
vez interpretado seu significado específico através da
análise das idéias morais, sociais e políticas da doutrina
NORBERTOBOBBIO 25
que a formulou, seu significado emotivo depende preci-
samente do valor que cada doutrina atribui àquela qua-
Iidade em relaçáo à qual se exige que os homens sejam
tratados de modo igual. Até mesmo o campeáo do
igualitarismo, J.J. Rousseau, náo exige que, como con-
diçáo para a instauraçáo do reino da igualdade, todos os
homens sejam iguais em tudo: no início do Discurso
sobre ø origem da desigualdade entre os hnmens, ele faz
uma distinçåo entre desigualdades naturais e desigual-
dades sociais, ou seja, entre as desigualdades produzi-
das pela natureza (e, enquanto tal, benéficas, ou, pelo
menos, moralmente indiferentes) e as desigualdades
sociais, produzidas por aquela mescla de relações de
domínio econômico, espiritual e político que forma a ci-
vilizaçáo humana. O que Rousseau tem como meta é a
eliminaçáo das segundas, näo das primeiras. Numa das
passagens decisivas do Contrøto social, ele escreve: O
pøcto fundømental, em lugør de destruir a iguald,ød,e
nøtural, pelo contró,rio substitui por uma iguøIdøde
morøI e legítimø aquilo que ø natureza poderia tra,zer
de desiguølda.de físicø entre os homens (I,9).
7. A igualdade diante da lei
Das várias determinações históricas da máxima que
proclama a igualdade de todos os homens, a única uni-
versalmente acolhida 
- 
qualquer que seja o tipo de
Constituiçáo em que esteja inserida e qualquer que seja
a ideologia na qual esteja fundamentada 
- 
é a que afir-
ma que todos os homens sdo iguais perante a lei, ort,
com outra formulaçáo , ø lei é igual para todos. O prin-
clpio é antiqüíssimo e náo pode deixar de ser relaciona-
do, ainda que esse relacionamento náo seja freqüente,
com o conceito clássico de isonorniø, que é conceito
fundamental, além de ideal primário, do pensamento
político grego, tal como aparece maravilhosamente
,l'*
lr,
i',,!
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li,':r;
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il,
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itl,,r
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26 IGUAIDADEELIBERDADE
ilustrado nas seguintes palawas de Eurípides: nødø é
mais funesto parø urna cidad,e d,o que um tira,no. Antes
de mais nada, ndo etcistem leis gerais para todos e um
só homent detém o poder, føzendo ele mesmo e para. si
rnesï¿o a lei; e nãn hó, de modo ølgurn igualdade. Ao
contrório, quøndo existem leis escritas, o pobre e o rico
têm iguais direitos (As suplicantes, 429-34). Moderna-
mente, o princípio se encontra enunciado nas Consti-
tuiçöes francesas de 1791, 1793 e 1795; mais tarde, no
art. 1e da Carta de l-814, no art. 6e da Constituiçáo bel-
ga de 1830, no art. 24 do Estatuto albertino [que regeu
a monarquia italianal. Enquanto a Emenda XIV da
Constituiçáo dos Estados Unidos (1868) quer assegu-
rar a todo cidadáo a igual proteçã,o das leis, o princípio
é retomado e repetido, no primeiro pós-guerra,-,tanto
pelo art. 109, $ le, da Constituiçáo de Weimar (1919)
quanto pelo art. 7s, $ 1e, da Constituiçáo austríaca
(1920) e, no segundo pós-guerra, para darmos exemplos
de Constituições inspiradas em diferentes ideologias,
tanto pelo art.7l da Constituição búlgara(L947) quan-
to pelo art. 3q da Constituiçáo italiana (1948).
Apesar de sua universalidade, também esse princí-
pio náo é de modo algum claro, tendo dado lugar a di
v€rsas,interpretações. Prescindo aqui da disputa, que
interessa mais propriamente à teoria jurídica, sobre a
destinaçäo do princípio, ou seja, se ele está dirigido aosjtizes ou também ao legislador. No primeiro caso, na-
da acrescentaria à regra de justiça que prescreve a im-
parcialidade do juízo; no segundo, termina po¡ mudar
inteiramente de natureza, jâ que 
- 
de prir/óípio que
prescreve a igualdade perønte a lei 
- 
ele se transfor-
maria num princípio inteiramente diverso, e bem mais
significativo, isto é, o que prescreve a igualdade "na"
Iei. O princípio tem, antes de mais nada, um significa-
do histórico. Mas, para entender este seu significado, é
preciso relacioná-lo náo tanto com o que ele afîrma,
NORBERTOBOBBIO 27
mas com o que nega, ou seja, é preciso entender o seu
valor polêmico.
O alvo principal da afirmaçáo de que todos são
iguais perante alei é o Estado de ordens ou estamentos,
aquele Estado no qual os cidadáos sáo divididos em ca-
tegorias jurídicas diversas e distintas, dispostas numa
rígida ordem hierárquica, onde os superiores têm privi-
légios que os inferiores não têm, e, ao contrário, estes
últimos têm ônus dos quais aqueles sáo isentos: a pas-
sagem do Estado estamental para o Estado liberal bur-
guês resulta claro para guem examinar a diferença en-
tre o Código prussiano de L794, que contempla três
estamentos em que se divide a sociedade civil (campo-
neses, burgueses e nobreza), e o Código napoleônico de
1804, onde só existem cidadáos. No preâmbulo da
Constituiçáo francesa de 1791,, pode-se ver que os cons-
tituintes pretenderam abolir irceuogauelmente as insti-
tuiçoes que feriam a liberdade e a igualdade de direitos;e, entre essas instituiçóes, incluíam-se todas as que ha-
viam caracterizado o regime feudal. A frase com que se
encerra o preâmbulo 
- 
nd,o møis e*iste, para nenhuma
pøñe da naçõn ou para nenhum indiuíduo, qualquer
priuilégio ou exceçdo ao direito cornurn de todos os fran-
ceses 
- 
ilustra ø contrario, melhor do que qualquer co-
mentário, o significado do princípio da igualdade peran-
te a lei. Nos casos em que, à enunciação do princípio,
seguem-se uma ou mais especificações do conteúdo, o
valor polêmico resulta evidente. No art. 24 do Estatuto
alberbino, segue-se, à enunciaçáo do princípio, a seguin-
te especificaçáo: tod,os gozøm igualmente dos direitos
ciuis e políticos, e sõ,o ød,missíueis øos cargos ciuis e
militares, sa,Iuo as exceções determinadas pelas leis.
Nada mais historicamente condicionado do que a
admissibilidade aos cargos civis e militares (por que náo
à instruçáo e aos direitos políticos?): aquilo contra o que
reage essa prescriçáo é a discriminaçáo com base no
ll,'1
É
i)
:i
i.
,
j::
-t
28 IGUAIDADEELIBERDADE
nascimento, que é o critério sobre o qual se fundam as
aristocracias. Outras formas de discriminaçáo perrna-
necem fora da mencionada prescrição.
Se se prescinde desse significado polêmico ex¡pres-
so ou tácito, que é preciso identificar em cada caso con-
creto, o princípio da þaldade perante aIeíé, também
ele, como todas as fórmulas igualitárias, genérico. Com
efeito, a communis opinio o interpreta como prescre-
vendo a exclusáo de qualquer discriminaçáo arbitrária,
seja por parte dojuiz ou do legislador, onde por discri-
minação ørbitrdria entende-se aquela introduzida ou
náo eliminada sem umajustificaçáo, ou, mais sumaria-
mente, umadiscriminaçáo náo justificada (e, neste sen-
tido, injustø). Mas será suficiente aduzir razóes para
tornar uma discriminaçáo justificada? Qualquer razâo
ou, ao contrário, determinadas razões mais do que ou-
tras? Mas com base em que critérios se distinguem as
razões válidas das inválidas? Existem critérios objeti
vos, ou seja, critérios que se apóiam na chamadanatu-
reza das coisas? A única resposta que se pode dar a tais
questóes é que existem, entre os indivíduos humanos,
diferenças relevantes e diferenças irrelevantes com re-
laçáo à sua inserçáo nessa ou naquela categoria. Mas
essa distinçáo náo coincide com a distinçáo entre dife-
renças objetivas e náo-objetivas: entre brancos e ne-
gros, entre homens e mulheres existem certamente
diferenças objetivas, mas nem por isso relevantes. A re-
levância ou irrelevância é estabelecida corn base em
opções de valor. Enquanto tal, é historicamente condi-
cionada. Se recordarmos as justificações adqpadas, em
cada oportunidade concreta, para justificar ab sucessi-
vas ampliaçöes dos'direitos políticos, compreendere-
mos que uma diferença considerada relevante em um
determinado período histórico (para excluir certas ca-
tegorias de pessoas dos direitos políticos) deixa de ser
considerada relevante num período posterior.
NORBERTOBOBBIO 29
8. A igualdade jurídica
É necessário distinguir de modo mais preciso a
igualdade perante a lei da igualdade de direito, da igual-
dade nos direitos (ou dos direitos, segundo as diversas
formulações) e da igualdade jurídica. A expressáo
iguøIda.de de direito é usada em contraposiçáo aiguøI-
dade d,e fato, e.orrespondendo quase sempre à contra-
posiçáo entre igualdade formal e igualdade substancial
ou material, sobre a qual voltaremos a seguir (cf., adi-
ante, o item 10). A igualdade nos direitos (ou dos direi-
tos) significa algo mais do que a simples igualdade pe-
rante a lei enquanto exclusáo de qualquer discrimina-
çáo náo justificada: significa o igual gozo, por parte dos
cidadáos, de alguns direitos fundamentais constitucio-
nalmente assegurados, como resulta de algumas for-
mulações célebres: Os homens nascen'L e permanecenl
liures e iguais nos direitos (Declara@o de Direitos do
Homem e do Cidadáo , L789); Todos os hornens nøscern
liures e iguøis em d,ignidad,e e d,ireitos (Declaraçáo Uni-
versal dos Direitos do Homem, 1948). A diferença entre
igualdade perante a lei e igualdade nos direitos é subli-
nhada em algumas formulações, como a do art. 2I da
Constituiçáo iugoslava, na qual se diz que os homens
säo iguais perante a lei e nos direitos. A igualdade pe-
rante a lei é apenas uma forma específîca e historica-
mente determinada de igualdade de direito ou dos di-
reitos (por exemplo, do direito de todos de terem acesso
à jurisdiçao comum, ou aos principais cargos civis e mi-
litares, independentemente do nascimento);já a igual-
dade nos direitos compreende, além do direito de serem
considerados iguais perante a lei, todos os direitos fun-
damentais enumerados numa Constituiçáo, tais como
os direitos civis e políticos, geralmente proclamados (o
que náo significa que sejam reconhecidos de fato) em
todas as Constituições modernas. Finalmente, por
igualdade jurídica se entende, habitualmente, a igual-
ll
iìiiìì
iìrr
i
I
l!
ti
30 IGUALDADEELIBERDADE
dade naquele atributo particular q.u.e faz de todo mem-
bro de um grupo social, inclusive a criança, um sujeito
jurídico, isto é, um sujeito dotado de capacidade jurídi
ca. Enquanto a igualdade nos direitos tem um âmbito
mais amplo que o da igualdade perante a lei, a igualda-
de jurídica tem um âmbito mais restrito: o alvo polê-
mico do princípio da igualdade perante a lei é origina-
riamente, como vimos, a sociedade de estamentos,
enquanto o alvo polêmico da igualdade jurídica é a so-
ciedade escravista, isto é, aquela sociedade na qual nem
todos os membros sáo pessoasjurídicas' Numa socieda-
de de estamentos, todos podem ser sujeitos de direito,
ter capacidade jurídica, embora nem todos sejam iguais
perante a lei (no sentido de que cada estamento é regu-
Iado por leis diferentes) e, com maior tazâo, nem todos
sejam iguais quanto aos direitos fundamentais.
9. A igualdade das oPortunidades
Um discurso náo muito diverso deve ser feito acer-
ca do outro princþio de igualdade, considerado como
um dos pilares do Estado de democracia social (tal como
o princípio da igualdade perante a lei representou um
dos pilares do Estado liberal): o princípio da igualdade
de oporbunidades, ou de chances, ou de pontos de parti-
da. Este princþio náo é menos genérico do que o ante-
rior, sempre que não seja especificado seu conteúdo
com referência a situaçóes específlrcas e historicamente
determinadas. Por si mesmo, o princípio da igualdade
das oportunidades, abstratamente considerado, nada
tem de particularmente novo: ele náo passa $a aplica-
çáo da regra de justiça a uma situaçáo na qual'existem
várias pessoas em competição para a obtengo de um
objetivo único, ou seja, de um objetivo que só pode ser
alcançado por um dos concorrentes (como o sucesso
numa corrida, a vitória num jogo ou num duelo, o triun-
i$ ,',:l
i, ,lt,
l*
a
NORBERTOBOBBIO 31
fo num concurso etc.). Náo hánada de particularmente
progressista ou reacionário no fato de que osjogadores
de canastra ou de pôquer comecem o jogo com o mesmo
númeio de cartas, ou os jogadores de xadrez com o mes-
mo número e o mesmo tipo de peças, ou que os duelan-
tes disponham da mesma arma, os corredores partam
da mesma linha, ou os participantes de um concurso
devam ter o mesmo diploma, devam ler para o exame
os mesmos liwos e sejam todos obrigados a náo conhe-
cer o tema que cairá no exame.
O que mais uma vez faz desse princípio um princí-"
pio inovador nos Estados social e economicamente
avançados é o fato de que ele se tenha grandemente di-
fundido como conseqüência do predomínio de uma con-
cepçáo conflitualista global da sociedade, segundo a
qual toda a vida social é considerada como uma grande
competiçáo para a obtençáo de bens escassos. Essa di-
fusáo ocorreu, pelo menos, em duas direçöes: ø) na exi-
gência de que a igualdade dos pontos de partida sejilaplicada a todos os membros do grupo social, sem ne.
nhuma distinçáo de religiáo, de raça, de sexo, de classe
etc.; b) na inclusáo, onde aregra deve ser aplicada, de
situações econômicae socialmente bem mais importan-
tes do que a dosjogos ou concursos. É o caso, para dar
alguns exemplos, da competiçáo pela posse de bens
materiais, pela obtenção de metas particularmente de-
sejadas por todos os homens, pelo direito de exercer cer-
tas profissóes. Em outras palavras, o princípio da igual-
dade das oportunidades, quando elevado a princípio
geral, tem como objetivo colocar todos os membros da-
quela determinada sociedade na condiçáo de participar
da competiçáo pela vida, ou pela conquista do que é vi-
talmente mais significativo, a partir de posições iguais.
li,supér{luo aduzir que varia de sociedade para socieda-
de a defrniçáo de quais devam ser asr posições de partida
a serem consideradas como iguais, de quais devam ser
as condiçóes sociais e materiais que permitam conside-
trì'
,Ì
r
I,
;
'l.r
:t
,lir
,'ììi
'Ì
t,l
i
tl
32 IGUALDADEELIBERDADE
)rar os concorrentes iguais. Basta formular perguntas
ido seguinte tipo: é suficiente o livre acesso a escolas
i iguais? Mas a que escolas, de que nível, até que ano de
i idade? Já que se chega à escola a parbir da vida familiar,
, náo será preciso equalizar também as condiçöes de fa-
,' mília nas quais cada um vive desde o nascimento? Onde
: pâr€rrros? Mas náo é supérfluo, ao contrário, chamar a
r atençáo para o fato de que, precisamente a fim de colo-
car indivÍduos desiguais por nascimento nas mesmas
condiçóes de partida, pode ser necessário favorecer os
, mais pobres e desfavorecer os mais ricos, isto é, intro-
I duzir artificialmente, ou imperativamente, discrimina-
! ções que de outro modo náo existiriam, como ocorre, de
'. resto, em certas competições esportivas, nas quais se
i assegura aos concorrentes menos experlentes uma cer-
i ta vantagem em rela@o aos mais experientes. Dessej modo, uma desigualdade torna-se um instrumento de
. igualdade pelo simples motivo de que corrige uma desi-
I gualdade anterior: a nova igualdade é o resultado da
equiparaçáo de duas desigualdades.
10. A igualdade de fato
Dos princípios da igualdade perante a lei e da igual-
dade de oportunidades, distingue-se a exigência ou o
ideal da igualdade real ou substancial' ou, como se lê na
Constitui@o italiana, defato. O que se entende, generi-
camente, por igualdade de fato é bastante claro: enten-
de-se a igualdade com relaçáo aos bens materiais, ou
igualdade econômica, que é assim diferenciada da igual-
dade formal ou jurídica e da igualdäde de oportunida-
des ou social. Contudo, náo é nada claro 
- 
aliás, é mui-
to controverso 
- 
determinar quais sejam as formas e
os modos específicos através dos quais se supõe que
essa igualdade possa ser pretendida e realizada. Igual-
dade com relação aos bens materiais. Mas que bens? E
NORBERTOBOBBIO 33
por que náo também aos bens espirituais ou culturais?
Se se definirem os bens com rela@o às necessidades
que eles tendem a satisfazer, a questáo da determina:.,r
çáo do que é ou do que não é um bem remete à questáo,
da determinação de quais sáo as necessidades dignas de
serem satisfeitas e em relaçáo às quais se considerajzs,.-
úo que os homens sejam iguais. Todas as necessidades
ou apenas aþumas? E, dado que não parece possível
responder todas 
- 
e nem mesmo o mais conseqüente e
fanático igualitario jamais deu tal resposta 
-, 
entáo
surge outra pergunta: qual o critério com base no qual
é possível distinguir entre necessidades merecedoras e
náo merecedoras de satisfação? Seria, porventura, o
critério da utilidade social, segundo o qual se distin-
guem as necessidades entre socialmente úteis e social-
mente nocivas? Ou o critério, ainda mais vago, da cor-
respondêncía à naturezø, pelo qual se distinguem as
necessidades entre naturais e artifïciais, espontâneas e
provocadas pelos produtores de bens de consumo? A
necessidade de escutar uma sinfonia de Beethoven é
natural ou arbificial, espontânea ou provocada? E a de
tirar férias, calçar sapatos ou lerjornais? Deste ponto
de vista, nada é mais indeterminado do que a fórmula ø
cada um segundo suo,s necessidades, usada também
por Mam e transformada, de resto, em ideal-limite da
sociedade comunista, no célebre escrito Crítica ao pro-
grdïLa. de Gotha.
uma vez determinada a natureza dos bens com re-
laçáo aos quais os homens deveriam ser iguais, o pro-
blema da igualdade ainda näo está resolvido: é preciso
também€labelecer os modos através dos quais os,ho-
mens entram e permanecem em relaçáo com esses
bens. É necessária a posse ou basta o uso? É sufïciente
o gozo ou é necessária a disponibilidade? Ou será neces-
sârio fazer uma outra distinçáo, entre um tipo de bens,
como os instrumentos de produçáo, dos quais só deve-
ria ser lícita a propriedade coletiva, e outros bens, como
ìl:lfj
ì.
i.
iiÊ
ir'
i
,i
'$i
ii
34 IGUAI,DADE E LIBERDADE
os produtos, dos quais seria lícita também a posse indi-
vidual e até mesmo, eventualmente, a liwe disposiçao?
Em terceiro lugar, náo parece que os defensores de uma
doutrina igualitaria possam escapar de uma nova per-
gunta: depois de ter sido determinado o tipo de bens
dos quais é relevante a igualdade a fim de que uma so-
ciedade possa ser consideradajusta, depois de ter sido
estabelecido o tipo de relaçáo que deve existir entre os
membros do grupo e esses bens, a igualdade invocada
será absoluta ou relativa? Ou, para retomarmos a fa-
mosa distinçáo aristotélica, aritmética ou geométrica?
Em outras palawas, os bens a serem distribuídos serão
distribuídos segundo a fórmula a cada un1. en'L partes
iguais, ou segundo a fórmula a cada um na proporçõ,o
de..., ou seja, mediante uma fórmula que permita uma
distribuiçáo diversa segundo o diverso grâu com que
cada indivíduo possui o requisito exigido? Nada impede
que seja considerada igualitária uma doutrina que de-
fende uma fórmula de igualdade proporcional.
Finalmente, deve-se notar que, entre os próprios
princípios de justiça comumemente considerados, al-
guns sáo mais igualitários que outros: um princípio é
tanto mais igualitário quanto menores forem as dife-
renças presumíveis entre os homens com relaçáo ao cri-
tério adotado. O princípio a cada urn segundo a necessi-
dade é considerado o mais igualitario de todos os prin-
cípios (náo é por acaso que nele se inspira a doutrina
comunista), já que se consideraque os homens sáo mais
iguais entre si (ou menos diversos) com relaçáo às ne-
cessidades do que, por exemplo, com relaçáo às capaci-
dades, Disto decorre que o caráter igualitário de uma
doutrina náo está na exigência de que todos sejam tra-
tados de modo igual com relaçáo aos bens relevantes,
mas que o critério com base no qual esses bens sáo dis-
tribuídos seja ele mesmo o mais igualitário possível.
Mas será que existe um critério, se náo objetivo, pelo
menos partilhado por todos, para distinguir os princí-
NORBERTOBOBBIO 35
pios de justiça com base em seu maior ou menor igua-
litarismo? Trata-se de mais uma questáo à qual náo
p¿üece fácil dar uma resposta unívoca. De resto, se a
determinaçáo do que deve ser entendido por igualdade
substancial náo levantasse tantas questöes, nâo teúa-
mos conhecido, ao longo de todo o decurso histórico,
tantas formas diversas de doutrinas igualitárias, fre-
qüentemente em conflito umas com as outras; e, dado
que o igualitarismo é o aspecto mais constante e carac-
terístico das doutrinas comunistas e socialistas, náo nos
encontraríamos diante de comunismos e socialismos
táo diferentes, entre os quais alguns totalmente e ou-
tros parcialmente, alguns absolutamente e outros rela-
tivamente igualitários.
11. O igualitarismo
De todo modo, quaisquer que sejam as diferenças
específlrcas, o que caracteriza as ideologias igualitáriasem rela@o a todas as outras ideologias sociais que tam-
bém admitem ou exigem esta ou aquelaforma parbicu-
lar de igualdade ré a exigência de uma igualdade tam-
bém material, enquanto distinta da igualdade perante
a lei e da igualdade de oportunidades. Do mesmo modo,
como seria ambíguo definir o liberalismo como a dou-
trina que pöe o valor da liberdade acima de todos os
demais valores, se nã.o se definirem quais sáo as liber-
dades que formam geralmente o conteúdo mínimo da
doutrina Iiberal (e se trata das liberdades pessoais e ci-
vis), também seria genérico definir o igualitarismo
como a doutrina que põe o valor da igualdade acima de
todos os demais valores se náo se especifïcar de que
igualdade se está falando e em que medida ela deve ser
aplicada. Já,dissemos.que, para.determinar o.signifrca¡
dq específico de umarelaçao de igualdade, é precisores;..
ponder a pelo menos duas quest1es: iguøIda.de entre
36 IGUAIDADEELIBERDADE
quern? eiguøldøde em quê? Limitando-se o critério de
especificaçáo à relaçáo entre o todo e a parbe, as r€spos:
tas possíveis sáo quatro: ø) igualdade entre todos em
tudo; b) igualdade entre todos em algo; c) igualdade
entre alguns em tudo; d) igualdade entre alguns em
algo. O ideallimite do igualitarismo se reconhece na
primeira resposta: igualdade de todos os homens sob
todos os aspectos. Mas se trata, precisamente, de um
ideal-limite inatingível na prática. Pode-se, quando
muito, redefinir o igualitarismo como a tendência a
atingir esse ideal por aproximaçóes sucessivas. Ilistori-
camente, uma doutrina igualitária é uma doutrina que
defende a igualdade para o maior número de homens
no maior número de bens. E, dado que a igualdade ab-
soluta entendida como a igualdade de todos em tudo é
um ideal-limite para o qual se pode tender mediante
aproximações sucessivas, é lícito falar de doutrinas
mais igualitárias que outras. De igualitarismo parcial e
limitado, ao contrário, pode-se falar a respeito de dou-
trinas que defendem a igualdade em tudo, mas limita-
da a uma categoria de pessoas; é o caso da doutrina pla-
tônica com relaçáo à classe dos guardiáes, ou de algu-
mas regras de ordens religiosas. Fercebe-se que o
igualitarismo parcial ou limitado é perfeitamente com-
patível com uma concepçáo náo igualitária da socieda-
de como um todo. As outras duas possíveis respostas, a
igualdade de todos em algo e a igualdade de alguns (per-
tencentes a uma determinada categoria) em algo, só
podem ser consideradas exigências igualitarias se eli-
minarem uma desigualdade anterior. Assim, chama-se
de.igualitariauma lei que estende o sufrágio às mulhe-
res; ou outra que elimina uma discriminaçáo racial.
Mas nem a primeira nem a segunda resposta sáo típi:
aas de uma concepçao igualitária de sociedade. Tomâ.
das,,isoladamente, náo podem ser consideradas como
respostas características de formas históricas de
igu4litarismo. A exigência da igualdade jurídica, enten.
NORBERTOBOBBIO 37
dida como igualdade de todos na capacidade jurídica, é
certamente uma exigência igualitaria com relaçáo às
sociedades onde os homens se dividem em liwes e es-
cravos; mas é a expressáo da ideologia liberal, náo ain-
da de uma ideologia igualitaria.
O que geralmente caracteriza as ideologias iguali-
tárias é o acento colocado no homem como serg,enérico
(ou seja, como ser que pertence a um determinado
genus) e, por conseguinte, nas características comuns a
todos os pertencentes ao genus e náo tanto nas caracte-
rísticas individuais pelas quais um homem se distingue
do outro (que é, ao contrário, o que catacteriza as dou-
trinas liberais); e náo importa, de resto, se o acento cai
nas características negativas do homem (os homens sõn
todos pecodor¿s) ou nas positivas (o homem é um ani-
mal naturalmente social), A essa natttteza comum dos
homens, foi dada historicamente uma interpretaçáo
religiosa 
- 
os homens são irmáos entre si enquanto fi-
Ihos do mesmo Pai 
- 
e uma interpretaçáo filosófica,
que se funda geralmente na idéia de uma igualdade
substancial primitiva ou nøturøL, corrompida e peryer-
tida pelas instituições sociais, que introduziram e per-
petuaram a desigualdade entre ricos e pobres, entre
governantes e governados, entre classe dominante e
classe dorninada. Com freqüência, mesclam-se e se re-
forçam reciprocamente, na própria doutrina igualitá-
ria, ambas as interpretações: o apelo religioso marcha
ao lado do argumento fTlosófico, enquanto o ideal da
regenera@s-moral se rnescla com o darevoluçáo social.
Conforme o\acento seja colocado nas desigualdades eco-
nômicas ou nas políticas 
- 
e, por conseguinte, confor-
me o fim último da igualdade seja buscado através da
eliminaçáo da propriedade privada (comunismo) ou
através da eliminaçáo de qualquer forma de poder polí-
tico (anarquismo) 
-, 
as doutrinas igualitarias se dis-
tinguem em socialistas (ou comunistas) e anarquistas.
As primeiras buscam a igualdade política através da
l
l
i
,ii
itr
:i
38 IGUAI,DADE E LIBERDADE
igualdade econômica, enquanto as segundas percorrem
o caminho inverso.
12. A Íguali4arismo e seu firndamento
Se é verdade que, historicamente, o ponto de parti-
da das doutrinas igualitárias é sobretudo a consider.a-
çáo da natureza comum dos homens, esse ponto de par-
tida náo é logicamente suficiente para justifîcar o prin-
cþio fundamental do igualitarismo, segundo o qual to-
dos ou quase todos os homens devem ser tratados de
modo igual em todos ou quase todos os bens desejáveis.
Mesmo admitindo-se que seja factualmente verdadeiro
que todos os homens são, pelo menos como genu4 mais
iguais do que desiguais, se comparados a outra espécie
de seres vivos, disso náo decorre 
- 
pela inderivabili-
dade de uma proposiçáo normativa de uma proposiçáo
descritiva 
- 
que todos os homens devam ser tratados
de modo igual. Esse princípio ético fundamental náo
deriva da pura e simples constataçáo de que homens
sáo de fato, pelo menos como genus, iguais, mas da ava-
liação positiva deste fato, ou seja, do seguintejuízo de
valor: "a igualdade (a maior igualdade possÍvel) entre
os homens é desejável." A prova disso é que uma dou-
trina náo igualitária, como a hobbesiana 
- 
que consi-
dera como finalidade suprema dos homens que vivem
em sociedade náo a maior igualdade possível, mas ex-
clusivamente a paz social, e funda essa última na re-
núncia à igualdade natural e na constituiçáo de um
ordenamento no qual é traçada uma nítida linha de
demarcaçáo entre os que têm o dever de mandar e os
que só têm o direito de obedecer 
-, 
parte da constata-
çáo de que, em estado de natureza, os homens sáo
iguais. Mas, diferentemente dos teóricos do igualitaris-
mo, Hobbes náo formula sobre a igualdade natural umjuízo de valor positivo; ao contrário, considera a igual-
NORBERTOBOBBIO 39
dade material dos homens, tal como se verifica no esta-
do de natureza,umadas causas dobellunt omnium con-
tra omnes, que torna intolerável a permanência naque-
le estado e obriga os homens a criarem a sociedade civil.
A maior parte dos teóricos do igualitarismo e Hobbes
partem da mesma verdade factual, mas chegam a con-
seqüências práticas opostas, já que avaliam de modo
oposto essa mesma realidade de fato. As conseqüências
práticas opostas derivam náo de uma constataçáo, mas
de uma avaliaçao.
A rigor, a constataçáo da igualdade natural dos ho-
mens náo apenas náo é suficiente para fundamentar o
igualitarismo, mas nem mesmo é necessária. Pode-se
perfeitamente considerar a máxima igualdade como
um bem digno de ser perseguido, sem paratanto tomar
como ponto de partida a constataçáo de uma igualdade
natural, primitiva ou originária dos homens. O marxis-
mo é uma doutrina igualitária, que abandonou comple-
tamente os pïessupostos naturalistas das formas mais
ingênuas de socialismo: aproposi@o normativaø igual'
død,e é um bern digno de ser perseguidonâo deriva sub-
repticiamente, nesse caso, do juízo de fato os homens
na,sceratL ou sã,o por natureza iguais, mas do juízo de
valor ø desigualdade é um mal, ou seja, bem entendido,
aquela desigualdade que se pode observar na história
concreta dos homens, que é a história de sociedades di-
vididas em classes antagônicas e' por isso, profunda-
mente desiguais. Ainda que numa forma extremamen-
te simpl_ifiç-ada, o procedimento mental que preside a
constituiqáo de uma teoria como esta é o completo opos-
to do procedimento hobbesiano: para Hobbes, os ho-
mens sáo de fato iguais, mas devem ser desiguais; para
os.teóricos do socialismo científico, os homens até ago'
ra foram de fato desiguais, mas devem ser iguais. Tal
como as doutrinas igualitárias, também as doutrinas
náo-igualitárias pressupóem náo tanto a consideraçáo
da fundamental e insuperável desigualdade humana,
I
i
i
]{
$,
i
40 IGUAIDADE E LIBERDA.DE
rnasa'âvafiaçáo, positiva.dessa ou daquelaforma de,de_
sigrraldade, seja êntre indivíduos mais ou menos dota-
dos pela natureza em força fisica, inteligência ou habili-
dade, seja,entre raças¡ estirpes ou nações; elas pressu-
põem, em outras palawas, um juízo de valor oposto ao
das doutrinas igualitárias, ou seja, o juízo segundo o
qual essa ou aquela forma de desigualdade é favorável
ou mesmo necessária ao melhor ordenamento social ou
ao progresso da civiliza@o e, portanto, a ordem social
deve respeitar e náo abolir as desigualdades entre os
homens, ou, pelo menos, aquelas desigualdades que sáo
consideradas social e politicamente úteis ao progresso
social. Já que as sociedades até hoje existentes sáo de
fato sociedades de desiguais, as doutrinas näo igualitá-
rias representam habitualmente a tendência a conser-
var o estado de coisas existente: são doutrinas conser-
vadoras. As doutrinas igualitárias, ao contrário, repre-
sentam habitualmente a tendência a modifîcar o esta-
do de fato: sáo doutrinas reformadoras. euando, além
do mais, avaloúzagâo das desigualdades chega ao pon-
to de desejar e promover o restabelecimento de desi-
gualdades agora canceladas, o náo-igualitarismo se tor-
na reacionário; ao contrário, o igualitarismo torna_se
revolucionário quando projeta o salto qualitativo de
uma sociedade de desiguais, tal como até agoraexistiu,
para uma futura sociedade de iguais.
f3. Igualitarismo e liberalismo
Enquanto igualitarismo e náo-igualitarismo são to.
talmente antitéticos, igualitarismo e liberalismo sáo
apenas parcialmente antitéticos, o que não anula o fato
de que, historicamente, tenham sido geralmente consi-
derados como doutrinas antagônicas e alternativas. O
não-igualitarismo nega a máxima do igualitarismo, se-
gundo a qual todos os homens d,euem ser (no limite)
NORBERTOBOBBIO 4I
iguais ern tudo, com rela@o à totalidade dos sujeitos,
afirmando, ao contrário, que somente alguns homens
são iguais, ou, no limite, que nenhum homem é igual a
outro;já o liþeralismo nega 4 mesma máxima náo com
Jelaçaoätqtalidade dos sujeitos, mas àfotalida.dp (ou
' quase totalidade) dos.bgns e dos malg¡.com relação 
-ao-squais os homens deveriam ser iguais, óü!-ôjd:.4dJpifË ä
-þaldâde dô todos náo èm tùdo 
-(ou quase tudo), mas,,
somenteemølgg,wnalgocoistituídô,habiiï.uahêd,Uà;
pelqçcþgmadosdireitosfundamentuþ",_q-q_lgtyf qÞ"gl¿,
Bomqh-,oje,Áãdü;-hüniffi öilTËËesiliïeitosnäosàomäis
'äo que as várias forñäsùe"'Iiberdade pessoal, civil e po-
lítica, enumeradas progressivamente pelas várias
Contituições dos Estados nacionais desde o final do sé-
culo XVIII até hoje, e reconfirmadas, depois da Segun-
da Guerra Mundial, em documentos internacionais,
tais como a Declara@o Universal dos Direitos do Ho-
mem (1948) e a Convenção Européia dos Direitos do
Homem (1950). O ideal do Estado liberal. tal como foi
paradigmaticamente expresso por Kant, é o ideal de um
Estado no qual todos os cidadáos gozam de uma igual
liberdade, isto é, sáo igualmente liwes, ou iguais nos
direitos de liberdade.
Todavia, o liberalismo é uma doutrina só parcial-
mente igualitária: entre as liberdades protegidas inclui-
se também, em geral, a liberdade de possuir e de acu-
mular, sem limites e a título privado, bens econômicos,
assim comp-a-liberdade de empreender operaçóes eco-
nômicas (abhamada liberdade de iniciativa econômica),
liberdades das quais se originaram e continuam a se
originar as grandes desigualdades sociais nas socieda-
des capitalistas mais avançadas e entre as sociedades
economicamente mais desenvolvidas e as do Terceiro
Mundo. As doutrinas igualitarias, de resto, sempre acu-
saram o liberalismo de ser defensor e protetor de uma
sociedade econômica e, portanto, também politicamen-
te náo-igualitária; para Marx, a igualdade jurídica de
i$
$ì
42 IGUAIDADEELIBERDADE
todos os cidadáos sem distinções de estamento, procla-i
\j mada pela Revolu@o Francesa, náo p¿tssou, na realida-l
* 
"r.l' 
pe, de um instrumento de que se serviu a classe bur-{
'ol lguesa com o objetivo de liberar e tornar disponível a¡) , f força de trabalho necessária ao desenvolvimento do cd-i
f' ;t pitalismo nascente, através da ficçáo útil de um contralij\ to voluntário entre indivíduos igualmente liwes. Da
\ crítica das doutrinas igualitarias contra a concepçáo-e S\.. ,þrática libu"¿ Aá, Br"tuao é que. n4qceram- as exigência$t\ do direitos sociais, que transform¿rr¿rm profundamentÇ
\-' o sistema de rela-ções entre o indivíduo e o Fstado e ¿ü
þiópriaorgarizryâo do Estâdo, até mesmo tror 
""gioù*j'
-quê Se consideram continuadores, sem alterações brusf
cas, datradição liberal do séculoXlX. Por outro lado, od,
. liberais sempre u".rr*u* os igualitarios de sacrificar a{
' liberdade individual, que se alimenta da diversidade
das capacidades e das aptidões, à uniformidade e ao
ì nivelamento impostos pela necessidade de fazer com
que os indivíduos associados sejam táo semelhantes
quanto possível: na tradiçáo do pensamento liberal, o
igualitarismo torna-se sinônimo de achatamento das
aspirações, de compressáo forçada dos talentos, de
nivelamento improdutivo das forças motrizes da socie-
dade. Liberalismo e igualitarismo deitam suas raízes
em concepções da sociedade profundamente diversas:
individualista, conflitualista e pluralista, no caso do li-
beralismo; totalizante, harmônica e monista, no caso
do igualitarismo. Para o liberal, a finalidade principal é
a expansão da personal.idade individual, abstratamen-
te considerada como um valor em si; para o igualitario,
essa finalidade é o desenvolvimento harmonioso da co-
munidade. E diversos são também os modos de conce-
ber a natuteza e as tarefas do Estado: limitado e ga-
rantista, o Estado liberal; intervencionista e dirigista, o
Estado dos igualitários.
Essa diversidade, contudo, náo exclui a proposta de
sínteses teóricas e soluções práticas de compromisso
NORBERTOBOBBIO 43
entre liberdade e igualdade, na meclida em que esses
dois valores fundamentais (untamente com a ordem)
de toda convivência civilizada sáo considerados como
sendo náo apenas antinômicos, mas também parcial-
mente complementares. A Constituição italiana, para
citar uma entre muitas, estabelece em seu art. 3e, $ 2e,
que é tarefa da República renl.ouer os obstú,culos de or-
dern econômicø e social que,limitando de fato a liberdø-
de e a igualdade dos cidaddos, irnpedem o pleno desen-
uoluimento da pessoa, humana e ø eþtiua participaçã,o
de todos os traba.lhadores no, organizaçõ,o política, eco-
nômicø e social do país. Mesmo levando-se na devida
conta a imensa distância que existe entre declarações
solenes desse tipo e a realidade de fato, é significativo
que liberdade e igualdade sejam consideradas, no mes-
mo texto, como bens indivisíveis e solidários entre si.
14. O ideal da igualdade
A tendência no sentido de uma igualdade cadavez
maior, como já havia observado ou temido Tocqueville
no século XD(, é irresistível: o igualitarismo,apesar da
aversáo e da dura resistência que suscita em cada revi-
ravolta da história, é uma das grandes molas do desen-
volvimentor4r-ls'tórico. A igualdade entendida como
equalizaçäó dos diferentes é um ideal permanente e
perene dos homens vivendo em sociedade. Toda supe-
raçáo dessa ou daquela discriminaçáo é interpretada
como uma etapa do progresso da civilizaçáo. Jam?ip*
q9P9-.9.n.p"osl4epqçafq,-r.as0-psst-aç'e*m.d,tççuss?gê-s,tnês\
þ¡_tgt p"¡oçipaiq de d-esisr¡gl$4.$.9 e-r-rtry 9,'1"h9_gtgqgi-? \
raça {ou, aé mòAo mais geral, ãparti-cjnasal num._grrpo l
étnico ou nacional), o sexo e äõlasse social.
Depois du trugiíËäääÏääiÄiñä-ääiËääo e quase
como uma desforra contra as abominações que ele pra-
ticou, a opiniáo pública mundial redespertou para o
\l
w
&
44 IGUALDADEELIBERDADE
apelo daquele grande movimento rumo àigualdade que
é a superaçáo do ódio e da discriminaçáo raciais. O ra-
cismo está se tornando cada vez mais, para quem o
exerce ou apenas o tolera, uma marca de infâmia. Ne-
nhum auditório estudantil no mundo poderia hoje es-
cutar sem revolta a liçáo sobre o homem negro (o ho-
mern naturøl em sua, total barbd,rie e desregramento)
que Hegel, o grande Hegel, ministrava de sua cátedra
em Berlim.
Como já se observou varias vezes, a revoluçáo silen-
ciosa de nosso tempo, a primeira revoluçáo incruenta
da história, é a que conduz à lenta mas inexorável ate-
nuaçáo, até a total eliminaçáo, da discrimina@o entre
os sexos: a equiparaçáo das mulheres aos homens, pri-
meiro na mais restrita sociedade familiar, depois na
mais ampla sociedade civil, através da igualdade em
grande parbe exigida e em parbe (ainda que em pequerra
parte) já conquistada nas relações econômicas e políti-
cas, é um dos sinais mais seguros e encorajadores da
marcha da história humana no sentido da equalização
dos desiguais.
Há mais de um século a idéia comunista atua na
direçáo da luta contra a desigualdade das classes soci-
ais, considerada como a fonte de todas as outras desi-
gualdades, rumo à meta última da sociedade sem clas-
ses, uma sociedade nø qual o liure desenuoluimento d,e
cøda urn seja a condiçãn pa,rd o liure desenuoluimento
de todos.
Tal como a liberdade, também a igualdade aparece
cadavezmais como um téÀoç. Como tél.oç e, ao mesmo
tempo, como retorno à origem, ao estado de natureza
dos jusnaturalistas,* ou, ainda mais remotamente, à
idade de ouro, ao reino de Saturno, reitãn justo que, sob
seu reinødo, nã,o hauia netL escro'uos nenx propriedøde
* Grupo de pessoas adeptas ou simpíticas ao naturalisrno. (N. do E.)
NORBERTOBOBBIO 4ã
priuøda, mas todas as coisas peñenciøm a todos sem
diuisões, corno se todos os homens tiuessem urn só
patrimônio.
Bem mais do que a liberdade, é a igualdade 
- 
preci-
samente a igualdade substancial, a igualdade dos igua-
litários 
- 
que forma o traço comum e característico das
cidades ideais dos utópicos (assim como uma feroz e
inflexível desigualdade é o signo da avertência e da
premoniçáo das utopias negativas de nosso tempo),
tanto daquela de Thomas More, que escreve que en-
quanto ela [ø propriedøde] perdurar, pesøró, setnpre so-
bre a parcela amplamente majoritd,ria e melhor dø hu-
manidade o førdo angustiønte e ineuitd,uel da pobreza e
das desuenturas, como daquela de Tommaso Campa-
nella, cuja Cid,ade do Sol é habitada por fi,hósofos que
resoluem uiuer fiIosoficamente erL cotnunl,.Inspira tan-
to as visões milenaristas das seitas heréticas que lutam
pelo advento do Reino de Deus, que será o reino da
fraternidade universal, quanto os ideais sociais das re-
voltas camponesas, nas quais Thomas Münzer 
- 
güê,
segundo Melanchton, ao ensinar que todos os bens de-
viam ser possuídos em comum, tornarø ø ïLcLSsa td,o sel-
uagenx que nãn queriø møis tra,balha.r 
- 
se liga a
Gerard Winstanley, que pregava: o gouerno do rei é o
gouerno doqescribøs e dos fariseus, que só se conside-
ram liures sQsã,o donos daterra e dos seus irm.ã,os; rnas
o gouerno rþublicano é o gouerno da justiçø e do, pø2,
que ndn fa.z distinçdo entre as pessoc,s. Constitui o ner-
vo do pensamento social dos socialistas utópicos, desde
o Código dø naturezø de Morelly até a sociedade dø
grande harmonia de Fourier. Anima, agita e torna te-
mível o pensamento revolucionário de Babeuf: softLos
todos iguøis, nfi,o é uerdade? Este princípio é inconteste;
pois, a nã,o ser que se esteja louco, ndo se pode dizer se-
rio,mente que é noite quando é dia,. Entã,o, pretendemos
uiuer e morrer iguais como turscenxos: querenxos a iguøI-
dade eþtiuø ou ø morte.
46 IGUALDADEELIBERDADE
Do pensamento utópico ao pensamento revolucio-
nário, o igualitarismo percorreu um longo trecho do
caminho: contudo, a distância entre a aspiraçáo e a re-
alidade sempre foi e continua a ser táo grande que,
olhando para o lado e para trás, qualquer pessoa sensa-
ta deve náo só duvidar seriamente de que elapossa um
dia ser inteiramente superada, mas também indagar se
ê razoâvel propor essa suPeração.
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