173 pág.

Pré-visualização | Página 49 de 50
contrariava a sua função ou o valor que o ordenamento buscava preservar através de sua concessão; muito ao reverso, as decisões acima comentadas li- mitavam um direito para preservar o exercício de outro, atendendo a deman- das de caráter eminentemente particulares. Não existia qualquer referência ainda à função social de um determinado direito. 91 Conforme sintetiza renato duarte franco de moraes: “a base para a deci- são então proferida foi a constatação da intenção maliciosa decorrente da abso- luta falta de utilidade da construção realizada. em outras palavras, a corte francesa concluiu que haveria dolo por parte do responsável pelas lanças em razão de se constatar que o único uso que poderia advir dessas construções seria o prejuízo ao proprietário do han- gar de dirigíveis.” (in “a responsabilida- de pelo abuso de direito — o exercício abusivo de posições jurídicas, a boa-fé objetiva e o código civil de 2002”, in lucas abreu barroso (org) Introdução Crítica ao Código Civil. rio de Janeiro: forense, 206; p. 80). DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL FGV DIREITO RIO 161 De toda forma, a jurisprudência francesa possui méritos por erigir um limite ao direito subjetivo não expresso na lei. Contudo, a formulação de uma teoria mais ampla somente haveria de se realizar em momento seguinte. O Código Civil francês não dispunha sobre o abuso do direito, e nem mesmo sobre a vedação dos atos emulativos, estando embrenhado no con- ceito absolutista do direito subjetivo e do senhorio de seu titular para decidir como melhor dele se valer. As limitações aos direitos subjetivos deveriam constar expressamente da lei. Baseados nessa concepção restrita das limitações impostas ao exercício do direito subjetivo, ou mesmo na inexistência da própria categoria dos direitos subjetivos, sob os quais se abusaria, diversos autores combateram a auto- nomia científi ca da fi gura do abuso do direito. Dentre as várias vertentes dessas teorias negativistas, pode-se mencionar aqueles que negavam o abuso do direito como resultado lógico da própria negação do conceito de direito subjetivo, como Duguit e Kelsen, ou mesmo aqueles que negavam a exis- tência do abuso por ser o instituto uma verdadeira incongruência, conforme defendeu Planiol. Todavia, o principal expoente das teorias negativistas foi Marcel Planiol, tendose tornando notório o seu entendimento de que a expressão “abuso do direito” seria uma logomaquia, constante na contradição existente entre os termos “abuso” e “direito”. Para o autor, os conceitos de abuso e de direito seriam excludentes, não podendo haver abuso de direito. Nesse sentido, na ocorrência de “abuso do direito” estar-se-ia na caracterizando a ausência de um direito. Josserand, ao criticar a doutrina de Planiol, atribuiu à conclusão do autor a ocorrência de um equívoco derivado da pluralidade de acepções existentes para a palavra direito. Segundo o autor, se por um lado direito pode repre- sentar apenas um poder, um direito subjetivo, ele também pode fazer referên- cia ao “conjunto de regras sociais”, ou, melhor dizendo, ao direito objetivo. Sendo assim, a teoria negativista poderia ser refutada através da percepção de que um determinado ato pode ser conforme o direito subjetivo, mas ir contrariamente ao direito objetivo. Embora a aceitação da teoria começasse a crescer entre os autores, alguns problemas terminológicos precisavam ser superados. Nesse particular é im- portante perceber que a teoria se denominou abuso “do” direito e não “de” direito. Isso ocorre porque o ato abusivo em si não está se valendo do direito objetivo, do ordenamento com um todo, mas apenas do direito subjetivo, “do” direito em questão. Outras designações foram propostas, como “excesso de direito”, “desvio de direito” ou “confl ito de direitos”. Mais modernamente, Menezes Cordeiro sugeriu que a teoria fosse denominada “exercício inadmissível de posições jurídicas”, o que, inclusive, atende à necessidade de se perceber que o direito DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL FGV DIREITO RIO 162 subjetivo não é o único objeto de abuso por parte de seu titular, conforme será tratado mais à frente. Uma vez consolidada a existência da doutrina do abuso do direito e a sua utilização gradativa pela jurisprudência, os autores buscaram uma fundamentação para essa teoria ora em aspectos próprios do titular do di- reito do subjetivo. Esses aspectos seriam encontrados em averiguações que extrapolavam os limites do Direito e iam buscar a sua raiz em defi nições de natureza moral. Essa corrente subjetivista do abuso do direito termina por se assemelhar aos trabalhos desenvolvidos pelos autores que desenvolveram a teoria dos atos emulativos, uma vez que, se vai se buscar uma razão subjetiva para proibir o ato abusivo, essa razão terminará por ser o intuito de prejudicar terceiro, ferindo o mandamento segundo o qual a ninguém é lícito lesar direito de outrem no exercício do próprio direito. A medição dos critérios de subjetividade terminou por demandar um avanço na teoria que conferisse alguma forma de avaliação da conduta pre- tensamente abusiva desempenhada pelo titular do direito subjetivo. A regra moral proposta por Ripert cumpriu inicialmente esse papel de operar como um limite ao exercício do direito subjetivo. Ripert trabalha com a noção de ato que possui uma “aparência de direito”, mas que seria dever de seu titular assim não proceder. O intuito de prejudicar é adicionado à a aparência de direito e esses dois elementos terminam por caracterizar a teoria subjetivista do abuso do direito. O autor menciona que “para apreciar o abuso é preciso que o juiz possa julgar o valor dos sentimentos que fazem agir uma pessoa.”92 Nessa direção, o enfoque subjetivo na motivação de agir do titular do direito subjetivo, ao invés de criar um mecanismo para avaliar o abuso, criou verdadeiros obstácu- los para a afi rmação da teoria em tais bases. A teoria que suplantou os questionamentos colocados por Ripert, cha- mada de teoria fi nalista, possui como grande diferencial a construção do abuso do direito não como um elemento externo ao conceito de direito subjetivo, como algo presente na ordem moral e que somente é acionado quando o titular atua de forma reprovável, mas sim como um limite inter- no ao próprio direito. A teoria fi nalista encontrou o seu fundamento no embate doutrinário re- alizado entre Jhering e autores da escola psicológica, dentre os quais pode-se citar Savigny. Para Jhering, direito subjetivo seria o “interesse juridicamente protegido”, contrariando assim a vertente que sustentava ser o direito subje- tivo caracterizado, fundamentalmente, pela vontade que o anima. Essa contraposição entre o predomínio da vontade e o reconhecimento de que o direito subjetivo apenas é uma reunião de poderes jurídicos conferidos ao seu titular pelo ordenamento, gerou a percepção sobre a existência de uma 92 George ripert. A Regra Moral nas Obrigações. Campinas: bookseller, 2000; p. 176. DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL FGV DIREITO RIO 163 fi nalidade pertinente a cada direito. Finalidade essa que terminaria por legi- timar a própria existência do direito. A teoria fi nalista traz para si ainda a percepção de que os direitos subje- tivos não devem ser tratados de forma absoluta, com o império da vontade determinando os seus contornos, mas sim de modo relativo. A vontade cede espaço à verifi cação de que o direito nasce no seio de uma dada sociedade, cujas crenças, valores e percepções estão refl etidas no ordenamento jurídico, o qual, por seu turno, confere às pessoas determinadas faculdades. Tudo de modo a tutelar certos interesses. Segundo Josserand, um dos principais autores da teoria fi nalista, todo di- reito possui um espírito, reconhecido em sua fi nalidade