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APROXIMAÇÕES ENTRE DIREITO E ANTROPOLOGIA: 
UMA REFLEXÃO A PARTIR DO PROJETO DE LEI N° 1.057/20 071 
 
Débora Fanton 
 
 
RESUMO 
 
Atualmente, encontra-se tramitando no Congresso Nacional, sujeito à 
aprovação, o Projeto de Lei n° 1.057/2007. Conhecid o como “Lei Muwaji”, o referido 
Projeto de Lei dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção 
dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras 
sociedades ditas não tradicionais. Não obstante, percebe-se que algumas 
comunidades indígenas brasileiras concebem diferentemente as noções de ser 
humano, de vida e de morte e, por essa razão, não consideram tais práticas como 
“nocivas”. Diante desta questão, que envolve a diversidade cultural, a Antropologia 
assume relevante papel para a Ciência Jurídica, uma vez que evidencia, através de 
instrumentos interpretativos, diferentes sistemas de símbolos significantes. Neste 
contexto, o presente trabalho tem por objetivo introduzir, primeiramente, o conceito 
antropológico de “cultura”, a partir da perspectiva de Clifford Geertz, para uma 
melhor compreensão sobre a diversidade cultural, bem como os elementos 
relacionados a ela: o etnocentrismo e o relativismo cultural. Em seguida, será 
exposta a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na 
ordem jurídico-constitucional brasileira. Por fim, no terceiro e último capítulo, o 
Projeto de Lei será analisado e, em seguida, serão trazidos os argumentos tanto da 
perspectiva antropológica, como da jurídica. Concluir-se-á, nesse sentido, a 
necessidade de um diálogo intercultural, baseado em ambas as perspectivas. 
 
Palavras-chave: Direito. Antropologia. Diversidade Cultural. Relativismo Cultural. 
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
Cada vez mais se tem despertado o interesse e desenvolvido pesquisas 
entre os campos do Direito e da Antropologia. Atualmente, discute-se a 
necessidade do diálogo entre as duas áreas, principalmente no que concerne ao 
âmbito da diversidade cultural. Assuntos como a luta pelo reconhecimento e 
delimitação das terras indígenas, elaboração de políticas públicas, preservação do 
patrimônio histórico nacional, questões relativas à saúde e educação diferenciadas 
e os direitos das minorias étnicas de uma forma geral demonstram esta significante 
preocupação. 
O conhecimento antropológico, apesar de até o presente momento não ter 
recebido seu merecido destaque na Ciência Jurídica, é extremamente indispensável 
 
1
 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de 
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do 
Sul. Aprovação, com grau máximo, pela banca examinadora composta pela orientadora Profª. Drª. 
Clarice Beatriz da Costa Söhngen, Profª. Drª. Lígia Mori Madeira e Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de 
Azevedo, em 25 de novembro de 2009. 
 
2
a ela, tanto em termos teóricos, quanto em termos práticos. O Direito lida com o ser 
humano e ocupa-se, predominantemente, em regular e resolver os conflitos 
decorrentes das relações sociais. Já a Antropologia tem por objetivo buscar 
compreender, através de instrumentos interpretativos, os homens e sua cultura. 
Dessa forma, o pensamento antropológico assume importante papel para 
proporcionar uma ampliação e uma melhor compreensão sobre o homem e, assim, 
sobre o papel do Direito nas relações sociais. 
Pode-se afirmar que a “Antropologia Jurídica” seria a disciplina encarregada 
dessa tarefa e que, através da teoria antropológica e de métodos específicos de 
estudo, como o trabalho de campo e/ou a observação participante, analisa e compara 
as instituições do direito e as concepções de justiça de determinadas culturas.2 
Um exemplo presente no cenário nacional que evidencia a exigência de se 
refletir sobre a conexão entre Direito e Antropologia é o Projeto de Lei n° 
1.057/2007. Conhecido como “Lei Muwaji”, ele foi apresentado pelo deputado 
Henrique Afonso e, no momento, encontra-se tramitando no Congresso Nacional, 
sujeito à aprovação. Este Projeto de Lei dispõe sobre o combate de algumas 
práticas tradicionais indígenas consideradas nocivas, em relação ao tratamento das 
crianças. Dentre as práticas, está aquela que popularmente se convencionou 
chamar de “infanticídio” indígena. Por meio de tal instrumento legal, pretende-se 
impedir tais práticas, a fim de se fazer cumprir os direitos humanos e fundamentais, 
bem como todas as normas de proteção à vida e à infância, previstas no 
ordenamento jurídico brasileiro. 
A justificativa do Projeto de Lei n° 1.057/2007 est á calcada, principalmente, 
na garantia do direito à vida, já que este é o direito “por excelência”. Nesse sentido, 
percebe-se o ideal de preservar a dignidade da pessoa humana e, portanto, a vida, 
a saúde e a integridade físico-psíquica das crianças indígenas e, como aponta o 
texto legal, também das crianças pertencentes a sociedades ditas não-tradicionais.3 
Igualmente, refere o Projeto de Lei, que o artigo 231 da Constituição Federal, 
relativo ao direito de reconhecimento da diversidade cultural, não deve ser 
interpretado de forma desvinculada do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, 
previsto no artigo 1°, inciso III, e das diretrizes dos direitos fundamentais, previstas 
no artigo 5°. 
Contudo, desde a sua divulgação, o Projeto de Lei n° 1.057/2007 tem 
recebido inúmeras críticas e causado polêmicas, sobretudo, entre as comunidades 
indígenas englobadas nesta discussão. Percebe-se que algumas comunidades 
indígenas brasileiras não concebem tais práticas como nocivas, indicando, portanto, 
haver outro universo de significação em relação às concepções de ser humano, de 
vida e de morte. 
Desse modo, nota-se que a discussão centra-se no conflito entre o Princípio 
da Dignidade da Pessoa Humana, o direito à vida e o direito à diversidade cultural. 
 
2
 SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 12; COLAÇO, Thais 
Luzia. O despertar da antropologia jurídica. In: COLAÇO, Thais Luzia (Org.). Elementos de 
antropologia jurídica. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, p. 29. 
3
 Cumpre referir que a ênfase de nossa reflexão neste trabalho se dará sobre as práticas tradicionais 
indígenas. 
 
3
Assim sendo, o presente trabalho tem como finalidade refletir, a partir do Projeto de 
Lei n° 1.057/2007, sobre as aproximações que podem se estabelecer entre os 
campos do direito e da antropologia. Ou seja, iremos discutir a aplicação dos 
direitos humanos e fundamentais, questionando o caráter universalista e interventor 
do Projeto de Lei. Por outro lado, expor-se-á a particularidade da significação dos 
sistemas simbólicos indígenas, já que, a partir do ponto de vista antropológico, 
dever-se-ia interpretar o artigo 1°, inciso III e o artigo 5° em conformidade com o 
artigo 231 da Constituição Federal. 
Tendo em vista que muitas vezes as minorias étnicas são incompreendidas 
ou, até mesmo, menosprezadas, interpretá-las significa despertar a importância de 
enxergar o “outro” a partir de seu contexto social. 
Diante disso, no primeiro capítulo desta monografia serão abordados os 
principais conceitos antropológicos, como a noção de “cultura”, a partir da 
perspectiva de Clifford Geertz, para que seja possível um melhor entendimento 
sobre a diversidade cultural, além das concepções que estão diretamente ligadas a 
esta noção, como o etnocentrismo e o relativismo cultural. 
No segundo capítulo, será explicada a noção e a importante função que o 
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana exerce na ordem jurídico-constitucional 
brasileira, posto que ele é o principal fundamento do Projeto de Lei n° 1.057/2007. 
Ou seja, o primeiro capítulo expõe as principais ferramentas antropológicas para 
tratar deste tema, ao passo que o segundo capítulo, as ferramentas jurídicas.Por fim, no terceiro capítulo, mostrar-se-á os principais aspectos e os 
fundamentos da justificativa do Projeto de Lei n° 1 .057/2007. Em contraposição, 
exporemos as críticas do olhar antropológico dirigidas a ele, bem como a 
interessante proposta do diálogo intercultural e da hermenêutica diatópica de 
Boaventura de Souza Santos sobre o debate relacionado à diversidade cultural e à 
aplicação dos direitos humanos (e fundamentais). Nesse sentido, o que estamos 
buscando é encontrar uma decisão sobre este Projeto de Lei que seja justificável 
para ambas as culturas. 
Para uma melhor compreensão sobre o assunto, realizaram-se entrevistas, 
as quais nos aproximam da realidade indígena e, igualmente, suscitam outras 
questões, que poderiam muito bem ser abordadas neste tema, mas que, devido à 
complexidade, não foram objeto de maior desenvolvimento neste trabalho, tais 
como: a democracia, relacionada à participação das comunidades indígenas no 
processo constituinte brasileiro; o tratamento legal dos povos indígenas no Brasil; a 
colisão entre direitos e princípios constitucionais; os direitos coletivos e o pluralismo 
jurídico. 
Considerando que o presente estudo limita-se em apresentar algumas 
aproximações entre Direito e Antropologia, ressalta-se que não temos o intuito de 
apontar soluções definitivas para o problema, mas o de esboçar questionamentos e 
ampliar o debate sobre ele, uma vez que repensar o Direito a partir do viés 
antropológico é um desafio que se impõe nos dias de hoje. 
 
 
4
1 CULTURA, ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO CULTURAL: O ARCABOUÇO 
TEÓRICO DA ANTROPOLOGIA 
 
Dizer que a Antropologia é a ciência que se dedica ao estudo do homem é 
reiterar o óbvio. As áreas da Antropologia (Biológica, Arqueologia, Lingüística, Social 
e/ou Cultural, entre outras) se ocupam em interpretar a complexidade da existência 
humana, sob o enfoque de diferentes aspectos.4 Aqui, nos ateremos mais à 
abrangência do plano cultural, tendo em vista a especificidade dos fatores 
estudados. 
A noção de “cultura” é de extrema importância para a reflexão antropológica, 
pois sobre ela foi desenvolvida a compreensão de como a experiência humana é 
organizada. Como existem diversas concepções sobre cultura, neste trabalho 
optaremos pela matriz epistemológica do antropólogo Clifford Geertz, tendo em vista 
a atualidade de seu pensamento no que concerne ao assunto, ressaltando-se 
claramente que não possuímos a pretensão de absolutizar o termo. 
 
1.1 TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA: A PERSPECTIVA DE CLIFFORD 
GEERTZ 
 
Clifford Geertz (1926-2006), antropólogo norte-americano de notável 
influência na segunda metade do século XX, contribuiu para a reconstrução do 
conceito “cultura”, para o debate do relativismo cultural, além de ampliar e conectar 
suas reflexões a outras áreas, como história, política, direito, artes e literatura. Dessa 
forma, promoveu o desenvolvimento da antropologia moderna e o desencadeamento 
da antropologia pós-moderna. Sua dimensão hermenêutica rompeu com as 
estruturas metodológicas formais de estudo do meio antropológico, ao considerar 
que o homem e as relações humanas devem ser interpretados em suas 
particularidades culturais, e não sintetizados como se fossem leis gerais em uma 
espécie de Código Cultural. Nesse sentido, a abordagem semiótica da cultura revela 
que os fenômenos culturais são dotados de um conteúdo simbólico e, 
conseqüentemente, carregados de significados passíveis de serem interpretados de 
forma inteligível. 
A posição por uma teoria interpretativa da cultura é claramente visível nos 
argumentos do pensador. O trabalho antropológico é uma interpretação, isto é, uma 
leitura do objeto analisado, e não uma “construção de representações impecáveis de 
ordem formal”.5 Dito de outro modo, a interpretação cultural, através do instrumento 
da prática etnográfica (a descrição densa), somente é possível pela aproximação de 
dados concretos. Ela é um ponto de vista articulado pelo próprio observador a partir 
da interpretação do(s) observado(s) e, por essa razão, nunca será completa, eis que 
apenas o “objeto” de estudo poderia revelar uma interpretação “pura”, já que faz 
parte de sua cultura.6 Nesse sentido, o trabalho antropológico é uma interpretação 
de uma interpretação. Ao estudar uma comunidade indígena, pode-se dizer que o 
antropólogo depende das informações reveladas pelos nativos, seus “informantes”. 
 
4
 Para uma noção geral sobre os ramos da Antropologia, consultar: DAMATTA, Roberto. 
Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 27-38; 
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 16-20. 
5
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 13. 
6
 Ibidem, p. 11. 
 
5
Através dessa coleta de dados, o intérprete busca compreender a trama de 
significados. Assim, a interpretação não pode ser vista como uma lei, mas como uma 
compreensão de um fato particular, de uma comunidade particular, de uma cultura 
particular.7 Seguindo essa linha de raciocínio, o ideal de Geertz pode ser 
demonstrado pelo seguinte trecho: 
 
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias 
de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas 
teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em 
busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do 
significado.8 
 
Com efeito, tendo em vista a atualidade dessa discussão em relação ao 
estudo antropológico, em grande parte deste capítulo, serão apresentadas as idéias 
desenvolvidas por Clifford Geertz para uma melhor compreensão da cultura e, 
portanto, da diversidade cultural. 
 
1.1.1 Cultura: o conjunto de sistemas de símbolos significantes 
 
Uma das principais preocupações da Antropologia foi – e continua sendo – a 
definição do termo “cultura”.9 Tal preocupação deve-se ao fato de que em torno 
desse conceito é que se estruturou todo o estudo do homem. 
Desde a antigüidade, inúmeros pensadores, tais como Confúcio, Heródoto e 
Tácito,10 tentaram explicar a noção de cultura, com o intuito de compreender a 
diversidade humana. Entretanto, apenas em 1871 que as idéias foram 
sistematizadas, sendo pela primeira vez descrito o conceito científico da palavra, 
trabalho realizado pelo inglês Edward Burnett Tylor.11 Após ele, diversos 
antropólogos se dedicaram a esse objetivo, cuja pluralidade de enfoques pode ser 
analisada nas escolas antropológicas do pensamento.12 
Contudo, a maioria das formulações do conceito “cultura”, por serem um tanto 
abrangentes, mostrou-se demasiadamente confusa. Segundo Clifford Geertz, as 
noções amplas correm o risco de perder seu foco, frustrando o seu próprio sentido. 
Conforme o autor, as noções universais perdem sua força. Portanto, percebe-se que 
é de suma relevância delimitar e especificar o conceito cultura, a fim de que tal 
 
7
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 11 e 21. 
8
 Ibidem, p. 4. 
9
 A opinião de Roque de Barros Laraia sobre o estudo da cultura é que: “provavelmente nunca 
terminará, pois uma compreensão exata do próprio conceito de cultura significa a compreensão da 
própria natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana”. (LARAIA, Roque de 
Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 63). 
10
 Ibidem, p. 10-11. 
11
 Para Edward Burnett Tylor (1832-1917), antropólogo inglês da corrente Evolucionista, “Cultura ou 
Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui 
conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos 
adquiridos pelo homem na condição de membro de sociedade”. (TYLOR, Edward Burnett. A ciência 
da cultura. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2005, p. 
69. Sobre a crítica de Clifford Geertz em relação ao referido autor, consultar p. 3 da obra A 
interpretação das culturas). 
12
 Neste trabalho não se pretende detalhar as diferentes contribuições das escolas antropológicas, 
limitaremo-nos em apenas citar as mais conhecidas: Evolucionismo, Difusionismo, Funcionalismo, 
Estruturalismo, Antropologia Interpretativa, Antropologia Pós-Moderna ou Crítica. 
 
6
noção não perca seu conteúdo, torne-se mais esclarecedora e quiçá mais 
poderosa.13 Por essas razões, Clifford Geertz expõe que: 
 
a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de 
comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -, como tem 
sido o caso até agora, mas como um conjunto de controle – planos, 
receitas, regras, instruções (o que os engenheiros da computação chamam 
de “programas”) – para governar o comportamento. [...] O homem é 
precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais 
mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas 
culturais, para ordenar seu comportamento.14 
 
Diferentemente de Tylor, que define cultura utilizando a enumeração de itens, 
como um mero descritivismo – e aqui não desvalorizamos seu mérito, pois foi a partir 
de sua construção que o conceito se desenvolveu –, a concepção de Geertz torna-
se mais consistente, pois mesmo subjetivamente, define de forma simples e clara a 
expressão “cultura”, sem dissecar as “banalidades empíricas do comportamento”.15 
Em suma, para Geertz, o conceito antropológico de cultura pode ser designado 
como um conjunto de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais, 
construídos historicamente, que orientam o comportamento humano, dando 
significado à sua experiência.16 
Ao contrário do que é comumente pensada, a cultura não é apenas um 
detalhe característico que pode marcar um povo, como se o futebol representasse o 
brasileiro, a cuia, o gaúcho, o acarajé, o baiano e assim por diante. Conforme 
Geertz, a cultura não é simplesmente um acessório, mas um elemento essencial 
para a existência humana.17 Os sistemas de símbolos significantes ou padrões 
culturais são, de acordo com o autor, uma espécie de “programa” ou um “gabarito”18, 
no qual o homem norteia as suas decisões. Ressalta-se que o homem não é 
estritamente determinado por sua cultura, como se fôssemos fadados a viver de 
uma só forma. A gama de possibilidades de nossas decisões está inserida em uma 
espécie de gabarito cultural. Por essa razão, pode-se dizer, por exemplo, que 
preferimos escolher comer churrasco de gado à aranha grelhada. 
Para Geertz, “um dos fatos mais significativos a nosso respeito pode ser, 
finalmente, que todos nós começamos com o equipamento natural para viver 
milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie”.19 
Assim, todas as pessoas são capazes de crescer em qualquer cultura, porém tendo 
crescido em uma específica, a ela se adaptará, pois a convivência com os símbolos 
correspondentes implica na sua absorção e, por conseguinte, no seu modo de vida. 
Conforme Geertz: 
É por intermédio dos padrões culturais, amontoados ordenados de símbolos 
significativos, que o homem encontra sentido nos acontecimentos através 
dos quais ele vive. O estudo da cultura, a totalidade acumulada de tais 
padrões, é, portanto, o estudo da maquinaria que os indivíduos ou grupos 
 
13
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 3 e 28-31. 
14
 Ibidem, p. 32-33. 
15
 Ibidem, p. 33. 
16
 Ibidem, p. 66 e 135. 
17
 Ibidem, p. 34. 
18
 Ibidem, p. 124. 
19
 Ibidem, p. 33. 
 
7
de indivíduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de 
outra forma seria obscuro.20 
 
Portanto, pode-se afirmar que a cultura modela o comportamento humano, na 
medida em que fornece símbolos, ou seja, diretrizes abrangentes de conduta e até 
mesmo tendências e reflexos sutis, os quais orientam a vida do homem. Sem tais 
“códigos”, a vida humana seria vazia de sentidos. 
 
1.1.2 Os elementos simbólicos e seus significados 
 
Como a cultura é um conjunto ordenado de sistemas de símbolos 
significantes, entendê-la importa assimilar o que são os símbolos. Já foi dito 
anteriormente que os símbolos orientam, coordenam e dão sentido ao 
comportamento humano. Mas, o que são eles? 
Em linhas gerais, “símbolo” é tudo aquilo que carrega em si um significado. 
Da mesma forma que a noção de cultura, o conceito de símbolo precisa ser 
delimitado. Geertz o especifica, referindo que: 
 
[...] ele é usado para qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou 
relação que serve como vínculo a uma concepção – a concepção é o 
“significado” do símbolo [...] são formulações tangíveis de noções, 
abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações 
concretas de idéias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças. [...] Os 
atos culturais, a construção, apreensão e utilização de formas simbólicas, 
são acontecimentos sociais como quaisquer outros; são tão públicos como 
o casamento e tão observáveis como a agricultura.21 
 
Os significados, segundo Geertz, “só podem ser ‘armazenados’ através de 
símbolos”.22 Estes, por sua vez, podem ser expressos por uma atitude, um objeto 
concreto, uma relação ou até mesmo uma abstração. A mão abanando em direção a 
alguém que está partindo, o calendário, uma obra de arte, a palavra “amor”, uma 
música. Todos eles são símbolos carregados de um significado específico, isto é, 
que procuram “dizer algo”. Eis alguns exemplos de Geertz: 
 
O número 6, escrito, imaginado, disposto numa fileira de pedras ou indicado 
num programa de computador, é um símbolo. A cruz também é um símbolo, 
falado, visualizado, modelado com as mãos quando a pessoa se benze, 
dedilhado quando pendurado em uma corrente, e também é um símbolo a 
tela “Guernica” ou o pedaço de pedra chamada “churinga”, a palavra 
“realidade” ou até mesmo o morfema “ing”.23 
 
Logo, os significados da cultura de um povo estão sintetizados e 
representados em símbolos, construídos pelo homem para que sua vida tenha 
sentido. Ressalta-se que os elementos simbólicos não podem ser confundidos com 
os atos, objetos e relações, aos quais o homem atribui os significados. Embora os 
primeiros confundam-se com os segundos, isto é, uma cruz simbolize a fé cristã, a 
cruz por si só não é a fé cristã, mas um objeto que a exprime a partir de sua 
utilização por crentes. 
 
20
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 150. 
21
 Ibidem, p. 67-68. 
22
 Ibidem, p. 93. 
23
 Ibidem, p. 68. 
 
8
A interação de um símbolo com outro, dos símbolos entre si, forma um 
conjunto de sistemas de símbolos, os quais regulam e modelam as demais relações 
em que o homem está inserido.24 
Segundo Geertz, os sistemas de símbolos, ou seja, os padrões culturais 
desempenham um papel mútuo: são modelos “da” realidade e modelos “para” a 
realidade. No sentido de modelo “da” realidade, as estruturas simbólicas modelam 
as relações físicas ou não-simbólicas. No segundo caso, no modelo “para” a 
realidade, as estruturas simbólicas é que são adaptadas às relações físicas ou não-
simbólicas. Fazendo-se um paralelo à atividade agrícola, no modelo “da” realidade, o 
homem elabora uma teoria sobre as condições climáticas, da acidez do solo, da 
necessidade de fertilizantes, etc., a fim de obter uma maior produtividade em sua 
plantação. Ao mesmo tempo, no modelo “para” a realidade, essa teoria é modelada 
de acordo com o desenvolvimento da referida plantação, isto é, de acordo com os 
resultados obtidos com as condições climáticas, da acidez do solo e da qualidade 
dos fertilizantes utilizados. Destaca-se que os modelos “da” e “para” a realidade não 
possuem um caráter cronológico, como se um precedesse o outro. Ao contrário, a 
relação entre “da” e “para” a realidade é mútua, paralela, assim como pode serobservado em relação ao exemplo da agricultura. Ao mesmo tempo em que o 
homem elabora sua teoria agrícola, ele observa a natureza, ou seja, a teoria molda o 
físico, bem como a teoria se ajusta ao físico. Desse modo, os símbolos assumem 
uma dupla função, qual seja, dar sentido à realidade, modelando-a e, igualmente, 
modelando a realidade a eles mesmos.25 Nas palavras de Geertz: 
 
Diferentemente dos genes e outras fontes de informação não-simbólicas, os 
quais são apenas modelos para, não modelos de, os padrões culturais têm 
um aspecto duplo, intrínseco – eles dão significado, isto é, uma forma 
conceptual objetiva, à realidade social e psicológica, modelando-se em 
conformidade a ela e ao mesmo tempo modelando-a a eles mesmos.26 
 
Apenas o homem possui uma ligação entre os modelos “da” e “para” a 
realidade. Isto é, diferentemente dos animais, os homens modelam a realidade e 
não apenas adaptam-se a ela. Portanto, a partir das observações do mundo em que 
está inserido, o homem procura tirar proveito dessas constatações, possibilitando 
desenvolver seu aprendizado.27 É o acúmulo desses aprendizados, ou, nas palavras 
de Geertz, do “fundo acumulado de símbolos significantes”28, criado historicamente, 
que possibilita ao homem enriquecer sua própria cultura. Nesse sentido, os símbolos 
representam a essência do comportamento humano. Os símbolos possuem papel 
elementar na vida do homem e, por essa razão, os indivíduos têm uma dependência 
tão grande em relação a eles. 
 
1.1.3 Pensamento Humano e Diversidade Cultural 
 
Inúmeras pessoas acreditam que as diferenças culturais entre os seres 
humanos são produtos da composição genética. Existem teorias que sustentam que 
algumas raças e povos possuem atribuições hereditárias. Pode-se recordar, em 
 
24
 CRAIK, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69. 
25
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69. 
26
 Ibidem, p. 69. 
27
 Ibidem, p. 70. 
28
 Ibidem, p. 35. 
 
9
tempos não muito distantes, do nazismo, o qual propunha serem superiores os 
indivíduos da raça ariana. Além disso, muitas afirmações como estas se tornaram 
populares: “índio é preguiçoso”, “negro de canela fina é mais trabalhador do que o 
negro de canela grossa” ou “japoneses são mais inteligentes”.29 
Da mesma forma, tal problemática pode ser exemplificada pela notícia 
veiculada em uma reportagem do programa Globo Repórter. Nela, os cientistas 
demonstram que a característica de infidelidade de homens e mulheres estaria 
relacionada a determinados genes, ou seja, pessoas com certos atributos genéticos 
estariam mais propensas a trair. Nesse sentido, argumentam os cientistas: 
 
A diferença entre fiéis e infiéis pode ter mesmo relação com os hormônios. 
Cientistas suecos e americanos estudaram o comportamento sexual de ratos 
que formavam pares e descobriram um gene presente no hormônio 
vasopressina que, até então, acreditavam controlar apenas a pressão 
sanguínea, mas que pode influenciar também nos relacionamentos. [...] 
“No ano passado, um grupo de cientistas publicou o primeiro trabalho em uma 
variação desse gene que é relevante para o comportamento dos homens. Os 
homens que têm a versão curta do gene tendem a ser mais promíscuos e 
mais infiéis, e homens que têm a versão longa do gene tendem a ser mais 
monogâmicos e a ficar mais vinculados em casa e a cuidar mais dos filhos”, 
explica o geneticista Renato Zamora Flores, da Universidade Federal do Rio 
Grande do Sul (UFRGS).30 
 
Como é de se notar, a discussão do poder dos genes sobre o comportamento 
humano é ainda muito polêmica. Negar que a composição genética influencia os 
seres humanos soaria irrazoável. Contudo, a Antropologia, através de pesquisas, 
desmistifica a concepção de que tão-somente os genes são os elementos essenciais 
para a distribuição dos comportamentos. Assim, as diferenças genéticas não 
determinariam as diferenças culturais, de modo que, como no exemplo citado, 
homens comportar-se-iam diferentemente das mulheres não em razão de seus 
hormônios, mas porque a cultura lhes fornece uma gama de possibilidades de 
comportamentos e de identificações distintos.31 
Por outro lado, há quem pense que a diversidade cultural é resultante da 
geografia. O tipo de clima, vegetação e outras condições naturais específicas do 
local onde um povo se instalou interfeririam fortemente na vida desse grupo 
humano, conduzindo-o de modo peculiar. Até mesmo condicionariam seu progresso. 
Essa doutrina surgiu na antigüidade, mas se desenvolveu e tornou-se conhecida no 
final do século XIX e início do século XX, sendo refutada por antropólogos como 
Franz Boas. Para ele, os fatores geográficos exercem influência limitada sobre as 
culturas. Tal doutrina também dificilmente responderia por que alguns povos com 
 
29
 Baseado em LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: 
Jorge Zahar, 2008, p. 17. 
30
 REPORTAGEM EXIBIDA no dia 31 de julho de 2009 na rede Globo, às 22h30min. Disponível em: 
<http://g1.globo.com/globoreporter/0,,MUL1250884-16619,00-
ESTUDO+DOS+BRASILEIROS+CASADOS+TRAEM.html>. Acesso em: 09 ago. 2009. 
31
 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 
2008, p. 19-20. 
 
10
condições geográficas muitíssimo semelhantes e até mesmo em distâncias próximas 
desenvolveram suas culturas de maneira tão discrepantes.32 
Portanto, nem o determinismo biológico, nem o geográfico são suficientes para 
justificar a diversidade cultural. Claramente, o homem sofre influência de sua genética e 
do meio ambiente onde vive, porém não é determinado por esses aspectos, como se 
agisse com um caráter meramente receptivo a eles. Ambos são limitados.33 
A perspectiva tradicional sobre a evolução biológica e cultural do homem 
refere que primeiramente o homem desenvolveu seu aparato físico para, somente 
após a finalização desse estágio, a partir de um “momento mágico”, começar a 
produzir e transmitir elementos culturais.34 
Em oposição, Geertz afirma que a cultura sempre esteve presente na 
evolução do homem, sugerindo “não existir o que chamamos de natureza humana 
independente de cultura”.35 Assim, o autor contesta a teoria do “momento mágico” 
ou do “ponto crítico”, julgando ser incorreta a tese de que o desenvolvimento total da 
biologia humana seria pré-requisito para a capacidade de acumulação cultural.36 De 
acordo com Geertz: 
 
E torna-se evidente, de forma ainda mais crucial, que a acumulação cultural 
não só já estava encaminhada muito antes de cessar o desenvolvimento 
orgânico, mas que tal acumulação certamente desempenhou um papel ativo 
moldando os estágios finais desse desenvolvimento [...] a ferramenta de pedra 
ou o machado rústico, em cujo rastro parece ter surgido não apenas uma 
estatura mais ereta, uma dentição reduzida e uma mão com domínio do 
polegar, mas a própria extensão do cérebro humano até seu tamanho atual.37 
 
Observa o autor, ainda, que não é possível traçar uma linha delimitando o 
homem “não-enculturado” do homem “enculturado”38, como se o próprio homem 
tivesse subitamente se promovido de “coronel” a “general-de-brigada”39. A evolução 
biológica deu-se de forma gradual juntamente com o acúmulo cultural, ambos 
influenciando-se mutuamente.40 Dessa forma, a cultura foi ingrediente essencial para 
 
32
 Segundo Franz Boas: “As condições ambientais podem estimular as atividades culturais existentes, 
mas elas não têm força criativa. O mais fértil solo não cria a agricultura; as águas navegáveis não 
criam a navegação; um abundante suprimento de madeira não produz edificações de madeira. Mas 
onde quer que exista agricultura, arte da navegação e arquitetura, todas essas atividades serão 
estimuladas e parcialmente moldadas segundo as condiçõesgeográficas”. Logo adiante o autor 
complementa: “Desse modo, é infrutífero tentar explicar a cultura em termos geográficos [...] 
Entretanto, as relações espaciais dão apenas a oportunidade para o contato; os processos são 
culturais e não podem ser reduzidos a termos geográficos”. (FRANZ, Boas. Antropologia cultural. 3. 
ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 61-62; BOAS apud LARAIA, Roque de Barros. Cultura: 
um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 21-23). 
33
 Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 
24. 
34
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 34. 
35
 Ibidem, p. 35. 
36
 Ibidem, p. 45 e 60. 
37
 WASHBURN, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 49. 
38
 O significado que o autor imprime à palavra “enculturado” refere-se ao homem ser capaz de 
produzir e acumular cultura. 
39
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 47. 
40
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 46-47. Nesse sentido, 
observa Laplantine que o inato (biológico) e o adquirido (aspectos culturais) interagem 
 
11
a formação do homem, influenciando até mesmo seu aparato físico, mas 
principalmente a organização e refinamento do sistema nervoso central. Ressalta-se 
que o homem, nos seus primórdios, não havia ainda desenvolvido uma cultura no 
sentido de um conjunto de sistemas de símbolos significantes ordenados, o que não 
impede afirmar que já existiam resquícios culturais capazes de orientar o 
comportamento humano e, conseqüentemente, torná-lo cada vez mais dependente 
deles.41 
No exemplo bem formulado de Geertz, sem cultura provavelmente os 
personagens da obra de William Golding, “O Senhor das Moscas”, não seriam 
selvagens inteligentes, “seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos 
instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros 
casos psiquiátricos”.42 
Por conseguinte, a cultura interferiu e pode-se afirmar que continua 
interferindo na evolução da mente humana. Uma constatação recente é a da 
provável modificação da percepção cerebral provocada pela revolução dos meios de 
comunicação. Os acessos à internet estimulam os circuitos cerebrais e ativam o 
córtex pré-frontal, possibilitando aos indivíduos tomarem decisões rápidas diante de 
um grande volume de informações complexas.43 
Assim, segundo Geertz, como um ser inacabado, o homem é complementado 
pela sua cultura, por suas particularidades culturais.44 
Um pássaro, após nascer, ensaia seus primeiros vôos incertos, busca seu 
alimento, acomoda fios, gravetos e barro para a construção de seu ninho e acasala-
se basicamente através de seus instintos – os comandos de seus genes – e pelos 
estímulos externos, os quais ordenam suas ações para desempenhar tais 
atividades. O homem, por sua vez, para escolher sua companheira ou seu círculo de 
amizades, selecionar o alimento que lhe apetece e construir sua residência 
necessita muito mais das chamadas “fontes extrínsecas de informação” do que de 
“fontes intrínsecas”.45 As fontes intrínsecas de informação são os nossos genes. Já, 
as fontes extrínsecas são os fatores externos ao corpo do ser humano, os quais não 
possuem ligação direta com os genes, ou seja, são os padrões culturais.46 O 
homem, ao contrário do pássaro e de outros animais, se apóia muito mais em fontes 
não genéticas para se desenvolver. Nesse sentido, Geertz aduz que: 
 
Entre o que o nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de 
funcionar, há um vácuo que nós mesmos devemos preencher, e nós o 
preenchemos com a informação (ou desinformação) fornecida pela nossa 
cultura.47 
 
continuadamente. (LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 
17). 
41
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 50. 
42
 Ibidem, p. 35. 
43
 LUZ, Lia. A internet transforma o seu cérebro. Veja, São Paulo, edição 2125, ano 42, n. 32, p. 96-
99, 12 ago. 2009. 
44
 GEERTZ, op. cit., p. 36. 
45
 GALENTER; GERSTENHABER, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de 
Janeiro: LTC, 2008, p. 121. 
46
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36, 68, 121-124. 
47
 Ibidem, p. 36. 
 
12
[...] Para construir um dique, o castor precisa apenas de um local apropriado 
e de materiais adequados – seu modo de agir é modelado por sua fisiologia. 
O homem, porém, cujos genes silenciam sobre o assunto das construções, 
precisa também de uma concepção do que seja construir um dique, uma 
concepção que ele só pode adquirir de uma fonte simbólica – um diagrama, 
um livro-texto, uma lição por parte de alguém que já sabe como os diques 
são construídos, ou então através da manipulação de elementos gráficos ou 
lingüísticos, de forma a atingir ele mesmo uma concepção do que sejam 
diques e de como construí-los.48 
 
A capacidade humana provém da interação das fontes intrínsecas e das 
fontes extrínsecas de informação. O aparato genético determina frouxamente o ser 
humano, deixando lacunas na experiência humana a serem preenchidas pelos 
padrões culturais. Dessa forma, as fontes extrínsecas de informação, isto é, os 
sistemas de símbolos significantes, especificam o comportamento humano.49 
Não há dúvidas que possuímos a capacidade de sorrir. No entanto, os 
sorrisos irônico, envergonhado, constrangido e tímido são essencialmente culturais. 
Como o sorriso, outros símbolos são criados pelo homem. A capacidade de criar 
símbolos e compreendê-los é que distingue o homem dos animais.50 Além disso, o 
ser humano necessita aprender e continuar aprendendo.51 
Ora, o pensamento humano não é uma ocorrência enigmática ou misteriosa, 
na qual não possamos descrever ou interpretar. Segundo Geertz, o homem pensa, 
apoiando-se em símbolos elaborados historicamente por sua cultura, os quais dão 
sentido à sua experiência.52 E isto pode ser descrito pela Antropologia. Em 
conformidade com Geertz: 
 
Para tomar nossas decisões, precisamos saber como nos sentimos a 
respeito das coisas; para saber como nos sentimos a respeito das coisas 
precisamos de imagens públicas [...]53 Para obter a informação adicional 
necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender cada vez mais de 
fontes culturais – o fundo acumulado de símbolos significantes.54 Tornar-se 
humano é tornar-se individual, e nós nos tornarmos individuais sob a 
direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados 
historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção 
às nossas vidas. Os padrões culturais não são gerais, mas específicos.55 
 
Assim, a cultura é o ingrediente essencial para a orientação do raciocínio; 
como antes referido, é um “gabarito”. Um indivíduo, ao refletir sobre o instituto do 
casamento, por exemplo, raciocina de acordo com os padrões de sua cultura, isto é, 
na forma como o casamento é realizado. Por esse motivo, muitos ocidentais 
estranham o modo como é procedido o casamento muçulmano no Oriente Médio. 
De um lado a monogamia, de outro, a poligamia. Seus sistemas ordenados de 
 
48
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69. 
49
 Ibidem, p. 33, 36, 69, 124. 
50
 Ibidem, p. 48. 
51
 Ibidem, p. 58. 
52
 Ibidem, p. 150, 33, 36. 
53
 Ibidem, p. 59-60. 
54
 Ibidem, p. 35. 
55
 Ibidem, p. 37. 
 
13
símbolos são diferentes e, assim, estranhos um ao outro.56 Nesse sentido, nas 
simples palavras de Roque de Barros Laraia, percebe-se que “a cultura condiciona a 
visão de mundo do homem”.57 
Concordando com Gilbert Ryle, Geertz afirma que o pensamento humano é 
primeiramente um atopúblico e secundariamente um ato privado. É basicamente um 
ato público, pois os indivíduos manipulam sua experiência a partir dos símbolos e 
seus significados, os quais são públicos. É a partir deles que particularmente o 
indivíduo constrói seu pensamento e toma suas decisões.58 Conforme Geertz: 
 
os símbolos [...] são construídos historicamente, mantidos socialmente e 
aplicados individualmente59 
O sistema nervoso humano depende, inevitavelmente, da acessibilidade a 
estruturas simbólicas públicas para construir seus próprios padrões de 
atividade autônoma, contínua. Isso, por sua vez, significa que o pensamento 
humano é, basicamente, um ato aberto conduzido em termos de materiais 
objetivos da cultura comum, e só secundariamente um assunto privado.60 
 
Portanto, o acesso às estruturas simbólicas permite ao homem guiar seu 
pensamento, deliberar sobre as suas ações e determinar a sua própria vida. 
Logicamente, por uma cultura abranger uma multiplicidade de padrões culturais, os 
indivíduos não participam ou, então, não compreendem todos eles. Ainda assim, 
para que sua vida torne-se viável em sociedade, o homem precisa dominar o mínimo 
de símbolos significantes, pois são eles que vinculam os indivíduos, tornam possível 
a sua existência.61 
Igualmente, nesse contexto, cumpre salientar que a cultura é dinâmica. Isto é, 
segundo Roque de Barros Laraia, as características culturais não são imutáveis, 
mas sofrem alterações dentro da própria cultura, tendo em vista, por exemplo, os 
acontecimentos históricos de seu povo e, também, sofrem alterações externas, pela 
interação com outros sistemas culturais.62 Diante de um mundo globalizado, torna-se 
fácil identificar essas modificações. O Brasil, por exemplo, através do contato com 
outras nações, importou palavras tais como “internet”, “hambúrguer”, “buffet”, entre 
outras. O indígena utiliza o celular e não deixa de ser índio. Nós aprendemos a falar 
francês e comemos sushi e, mesmo assim, não deixamos de ser brasileiros. Enfim, 
nenhuma cultura é estática, ela modifica-se ao longo do tempo pelo tráfico de 
símbolos significantes. 
 
56
 Evidentemente existem muitos casais poligâmicos no Ocidente, como ocorre em algumas regiões 
nos Estados Unidos. No entanto, de uma forma geral, a prática mais comum é de que as uniões 
entre pessoas sejam monogâmicas. Destaca-se também que a religião exerce grande influência 
nesse aspecto. 
57
 Para outros exemplos sobre como a cultura condiciona a visão de mundo do homem, consultar: 
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge 
Zahar, 2008, p. 67-74. 
58
 RYLE, Gilbert, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 
121, 150-151. 
59
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 151. 
60
 Ibidem, p. 61. 
61
 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 
2008, p. 82. 
62
 Ibidem, p. 94-101. 
 
14
Diante do exposto, fica mais claro agora pensar que a diversidade cultural não 
é produto dos fatores genéticos ou, então, da localização em que os grupos 
humanos se desenvolveram. A diversidade cultural é resultado dos diferentes tipos 
de interação do homem com o mundo. As relações específicas de um povo, tendo 
em vista sua história, a maneira de como criaram seus símbolos, classificaram seus 
elementos e organizaram suas experiências resultaram em conjuntos de sistemas 
de símbolos significantes diferenciados.63 Nesse sentido, os homens foram ao 
mesmo tempo produtos e produtores de sua cultura e, portanto, essa mútua 
interação, através do processo de aprendizagem (por meio da linguagem), tornou 
viável a construção de diferentes culturas, as quais projetaram diferentes sentidos à 
vida dos seres humanos. 
Em suma, na perspectiva de Clifford Geertz, observa-se que a cultura, como 
um conjunto ordenado de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais, 
construídos historicamente, é elemento essencial para o desenvolvimento do 
homem. Ela funciona como uma espécie de “gabarito” ou “programa”, no qual os 
indivíduos norteiam suas vidas, fazendo-os capazes de tomar suas próprias 
decisões. Dito de outro modo, o homem está atrelado a esta “teia”, pois são os 
símbolos e seus respectivos significados que imprimem sentido e razão à sua 
própria existência. É por esse motivo que Geertz salienta: “sem os homens 
certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito 
significativamente, sem cultura não haveria homens”.64 A cultura é fundamental para 
a formação do ser humano. 
Assim, o que distingue o homem dos animais é a cultura, pois somente ele 
tem o poder de criar e assimilar os símbolos. Ademais, o que distingue os homens 
entre si não é a sua composição genética ou a geografia, mas sim a diferença da 
mútua interação entre os modelos “da” e “para” a realidade que cada povo percebeu 
e elaborou de maneira singular. Tal processo possibilitou, portanto, construções 
diversificadas de modelos simbólicos, refletindo nas diferentes visões de mundo que 
cada cultura possui e orienta seus indivíduos. 
 
1.2 ETNOCENTRISMO 
 
Quando uma cultura se defronta com outra é natural que deste encontro 
desperte um estranhamento. Isso porque, como já examinado, cada cultura imprime 
e entende de maneira peculiar os significados dos seus símbolos, os quais nem 
sempre coincidem com o conteúdo de outros universos simbólicos existentes. Não 
obstante, é possível notar que muitas vezes atribuímos os nossos próprios 
significados aos símbolos de outras culturas, ou seja, emitimos juízos valorativos a 
partir de nossa visão de mundo e nossa experiência em relação à diferentes culturas 
(o “outro”). Assim, tal estranhamento traduz nossa dificuldade em pensar o “outro” 
em seus próprios valores. Esse fenômeno é explicado por Everardo Rocha do 
seguinte modo: 
 
 
 
63
 DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 
1987, p. 24. 
64
 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36. 
 
15
Etnocentrismo é uma visão do mundo com a qual tomamos nosso próprio 
grupo como centro de tudo, e os demais grupos são pensados e sentidos 
pelos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a 
existência. No plano intelectual pode ser visto como a dificuldade de 
pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, 
medo, hostilidade, etc.65 
 
Pode-se afirmar que a visão sobre o “outro” a partir das concepções do “eu” 
esteve presente em toda a história da humanidade. Esse aspecto pode ser 
principalmente verificado na época dos descobrimentos, isto é, quando o 
desenvolvimento da navegação permitiu os primeiros contatos entre diferentes 
povos. Talvez, esses foram os momentos marcantes para se começar a pensar 
sobre a diferença. Referindo-se aos índios do Brasil, o escrivão Pero Vaz de 
Caminha descreve ao Rei de Portugal: “Assim, quando o batel chegou à foz do rio 
estavam ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma roupa que 
lhes cobrisse suas vergonhas”.66 Essa, dentre outras passagens, revela a 
perplexidade dos portugueses com a imagem dos indígenas; em outras palavras: 
como eles não se vestem como nós? Por que não cobrem suas “vergonhas”?67 
Pero Vaz de Caminha também escreve a Dom Manuel: 
 
E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua 
fala e os entenderem, não duvido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, 
fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé, a qual praza Nosso Senhor 
que os traga porque, na verdade, esta gente é boa e de boa simplicidade e 
gravar-se-á neles, ligeiramente, qualquer cunho que lhes queiram dar.68 E, 
portanto, Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar na santa fé católica, 
deve intervir em sua salvação.69 
 
Igualmente,os trechos citados manifestam a visão etnocêntrica do grupo do 
“eu” em comparação ao grupo do “outro”. Os portugueses, ao terem a pretensão de 
incorporar a fé cristã à cultura indígena, a fim de salvar os “bons selvagens” e torná-
los mais “humanos”, consideraram a sua religião como a única ideal. Nesse sentido, 
o etnocentrismo pode ser percebido quando o “eu” eleva a sua visão e as suas 
características como superiores, mais corretas e mais naturais. Já o “outro” é visto 
como uma expressão do absurdo, do frágil ou do ininteligível.70 
O etnocentrismo é um fenômeno que está presente em todas as sociedades e 
que pode ser considerado natural, uma vez que ele decorre do choque entre as 
culturas, ou seja, da constatação das diferenças.71 Além disso, é um fato natural e/ou 
comum, pois a diferença do “outro” parece ameaçar a própria identidade cultural. 
Assim, o etnocentrismo até certa medida torna-se necessário, já que ele funciona 
como uma espécie de autodefesa ou força capaz de revigorar os elementos culturais 
 
65
 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 7. 
66
 CAMINHA, Pero Vaz de. Carta ao rei Dom Manuel. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, p. 9. 
67
 Eduardo Bueno traz à tona mais registros sobre as impressões entre os indígenas brasileiros e os 
navegantes lusos: BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998, 
v. 1, p. 94-102. 
68
 CAMINHA, op. cit., p. 46. 
69
 Ibidem, p. 47. 
70
 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9. 
71
 Ibidem, p. 8; LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo 
Brasileiro, 1989, p. 333. 
 
16
de uma coletividade, afirmando e assegurando a identidade de um povo. Diante disso, 
apresenta-se o seguinte questionamento: o que seria de uma cultura se os indivíduos 
achassem os seus elementos inferiores, abdicando de sua própria identidade para 
emergir em outra cultura? Por essa razão, pode-se dizer que o sentimento de 
superioridade que caracteriza a visão etnocêntrica, observando-se alguns limites, é 
um fator positivo para o desenvolvimento de uma cultura.72 
O etnocentrismo pode assumir várias feições, desde formas sutis, como o 
estranhamento diante dos diferentes modos de viver e pensar, e também formas 
extremas, como a intolerância cultural. Por conseguinte, ele é até certa medida 
aceitável, pois sua força pode tornar-se perigosa, sendo utilizada pura e 
simplesmente para menosprezar e reprimir o “outro”, negando-lhe condições para 
apresentar a si mesmo.73 Em relação à dificuldade dos homens em encarar a 
diversidade das culturas, Lévi-Strauss comenta que: 
 
A humanidade cessa nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, às vezes 
mesmo da aldeia; a tal ponto, que um grande número de populações ditas 
primitivas se autodesignam com um nome que significa “os homens” (ou às 
vezes – digamo-lo com mais discrição? – os “bons”, os “excelentes”, os 
“completos”), implicando assim que as outras tribos, grupos, ou aldeias não 
participam das virtudes ou mesmo da natureza humana, mas são, quando 
muito, compostos de “maus”, de “malvados”, de “macacos da terra” ou de 
“ovos de piolho”. Chega-se freqüentemente a privar o estrangeiro deste 
último grau de realidade, fazendo dele um “fantasma” ou uma “aparição”.74 
 
O próprio desenvolvimento da ciência antropológica é marcado por idéias de 
caráter etnocêntrico. Os pensadores da corrente evolucionista75, fortemente 
influenciados pela obra “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, acreditavam 
que a diversidade cultural poderia ser explicada em virtude das diferentes posições 
que os povos ocupariam nos denominados graus de evolução da humanidade. 
Segundo eles, todas as culturas enfrentariam obrigatoriamente três estágios de 
desenvolvimento: selvageria, barbárie e civilização. Assim, o parâmetro de 
“civilizado” para o pesquisador era, por exemplo, a existência de elementos 
tecnológicos em uma cultura. Contudo, o que é tecnologia? O pesquisador baseava-
se na sua noção do que é tecnológico, esquecendo-se que esta sequer existia em 
outras culturas. Conforme as críticas dirigidas a essa corrente, o erro do 
evolucionismo estaria em comparar e classificar as culturas de acordo com os 
critérios da sociedade do pesquisador, ignorando o contexto no qual os elementos 
da cultura analisada estariam inseridos. Porém, é de se ressaltar que o mérito do 
evolucionismo está em, ao menos, ter se proposto a refletir sobre o “outro”.76 
 
72
 SIMON, apud CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 
242-243; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9. 
73
 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 14; CUCHE, 
Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 48 e 243. 
74
 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 
1989, p. 334. 
75
 Edward Burnett Tylor, James Frazer e Lewis Morgan foram os autores expoentes do Evolucionismo 
Cultural. 
76
 Sobre a corrente evolucionista: DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia 
Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 89-101; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é 
etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 25-36. 
 
17
No plano legislativo brasileiro, igualmente, essas idéias podem ser 
observadas. O antigo Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos 
Trabalhadores Nacionais, criado em 1910 pelo Decreto n° 8.072, por exemplo, tinha 
como principal finalidade, apesar de aparentes benefícios, transformar o índio em 
um trabalhador rural, a fim de que ele pudesse “progredir” ao estágio “civilizado” da 
cultura dominante nacional. Em outras palavras, os indígenas eram considerados 
como um atraso ao desenvolvimento. O objetivo do projeto era o de integrar e 
assimilar de forma pacífica a cultura indígena pela cultura branca.77 
Além disso, até pouco tempo o indígena não era considerado plenamente 
capaz para exercer pessoalmente todos os atos da vida civil. O artigo 6° do Código 
Civil de 1916 arrolava os indígenas como relativamente capazes, ao lado dos 
maiores de 16 e menores de 21 anos e dos pródigos. A imagem do índio “não 
civilizado” como um ser infantil, que necessita da tutela do Estado, pode ser notada 
no parágrafo único do referido artigo.78 
É de se ressaltar também que, ainda hoje, o índio é visto como um 
personagem do folclore brasileiro que já deveria ter sumido da história do país.79 
Essa posição etnocêntrica em relação às comunidades indígenas pode ser 
visualizada através do trecho do antropólogo Julio Cezar Melatti: 
 
Os brancos que vivem próximos das aldeias indígenas dedicam-se à coleta 
de borracha ou de castanha, à criação de gado, à agricultura e outras 
atividades, segundo as diferentes regiões. Sejam grandes empresários, 
trabalhadores rurais, camponeses, ou garimpeiros, estão sempre a disputar 
o território dos índios. O látex, a castanha, o pasto natural, a terra boa para 
a lavoura, a caça acham-se muitas vezes dentro da área de ação de 
sociedades indígenas. [...] os vizinhos das terras dos índios afirmam que 
eles são preguiçosos, cruéis, sujos. Ao chamá-los de preguiçosos, 
associam a isto a idéia de que os índios não aproveitam bem suas terras, 
que estas produziriam muito mais se pertencessem aos brancos; tal 
acusação serve também para justificar os salários baixos que dão aos 
índios ou em outras regiões onde há excesso de mão-de-obra, para lhes 
 
77
 BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de uma 
hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, 
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, SãoLeopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em: 
<http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/Revista-Eletronica/2007/Dissertacao-de-Mestrado-sobre-
direitos-indigenas>. Acesso em: 15 jul. 2009. 
78
 O artigo 6° do Código Civil de 1916 dispõe: São in capazes, relativamente a certos atos (art. 147, I), ou à 
maneira de os exercer: I - os maiores de 16 (dezesseis) e os menores de 21 (vinte e um) anos (arts. 154 a 
156); II - os pródigos; III - os silvícolas. Parágrafo único: Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, 
estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à 
civilização do País. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L3071.htm>. Acesso em: 14 
set. 2009; BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de 
uma hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, 
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em: 
<http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/Revista-Eletronica/2007/Dissertacao-de-Mestrado-sobre-
direitos-indigenas>. Acesso em: 15 jul. 2009. 
79
 Em relação à visão sobre os indígenas, destacamos o interessante trecho de Eduardo Viveiros de 
Castro: “A impressão que tenho é que o ‘Brasil’ até bem pouco não queria saber de índio, e sempre 
morreu de medo de ser associado, ‘lá fora’, a esse personagem, que deveria ter sumido do mapa 
há muito tempo e virado uma pitoresca e inofensiva figura do folclore nacional. Mas os índios 
continuam aí, e vão continuar. E, como vemos, eles começam devagarzinho a ser admitidos no 
Brasil oficial-midiático, agora que foram legitimados na metrópole. A Amazônia precisou passar 
pela Europa para se tornar visível do litoral do Brasil. Antes assim”. (SZTUTMAN, Renato. 
Encontros Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 85). 
 
18
recusar trabalho. Ao chamá-los de cruéis, justificam a crueldade que usam 
para com eles. Não raro se ouve dizer que o índio deve ser tratado a bala.80 
 
A presente passagem demonstra como o grupo do “eu” constrói uma imagem 
distorcida do “outro”. Ao considerarmos como critério a nossa sociedade 
(desenvolvida, com elevado acúmulo de reservas), concebemos as comunidades 
indígenas como atrasadas, projetando, por exemplo, seu tipo de economia (de 
subsistência) como sinônimo de miséria e pobreza. Dito de outro modo, esquecemos 
o contexto no qual tais comunidades estão inseridas.81 
Portanto, diante dos exemplos citados, percebe-se a necessidade de 
superação do pensamento etnocêntrico, caso não queiramos cair erros teóricos. 
Muito embora seja uma tarefa difícil, ao tentar analisar e compreender o “outro”, é 
importante exercitarmos o desprendimento das concepções da nossa própria 
cultura, atividade que é possível através da relativização. 
 
1.3 RELATIVISMO CULTURAL 
 
O relativismo cultural é um tema extremamente polêmico e, por essa razão, 
não é surpreendente que sobre ele suscitem inúmeras discussões.82 
Conforme afirma Denys Cuche, o relativismo cultural é compreendido de três 
maneiras distintas: (a) como uma teoria, na qual é sustentado que cada cultura 
forma uma entidade separada das demais, cujas conseqüências mais radicais 
seriam a impossibilidade de comparação e de diálogo entre as outras culturas; (b) 
como um princípio ético, que exige uma absoluta neutralidade e respeito em relação 
à diversidade das culturas; (c) como um princípio metodológico, que privilegia uma 
abordagem compreensiva da diversidade, tendo-se em vista a análise completa do 
sistema simbólico das culturas.83 
Embora existam essas três concepções sobre o relativismo cultural, para 
Denys Cuche, apenas a última é válida. Isso, porque a primeira noção não pode ser 
comprovada cientificamente, ou seja, não é razoável pensar que as diferentes 
culturas não podem ser comparadas entre si; e a segunda – da neutralidade ética –, 
porque serve, muitas vezes, como uma “máscara do desprezo”.84 
Portanto, segundo o autor, o relativismo cultural deve ser considerado como 
um princípio metodológico. Nesse sentido: 
Recorrer ao relativismo cultural é postular que todo o conjunto cultural tem 
uma tendência para a coerência e certa autonomia simbólica que lhe 
 
80
 MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2007, p. 255-256. Neste capítulo da 
obra, Melatti expõe também outras visões de como os índios são julgados: do ponto de vista 
romântico, da mentalidade estatística, burocrática ou empresarial. (Ibidem, p. 256-261). 
81
 SAHLINS, apud ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 
1984, p. 79-80. 
82
 Cumpre destacar que foi Franz Boas (1858-1942) o responsável pela concepção antropológica do 
relativismo cultural. Apesar de não ter cunhado a expressão, em seus textos é notável a idéia de 
que as culturas devem ser analisadas em suas particularidades. A primeira pessoa a utilizar a 
expressão “relativismo cultural” foi Melville Herskovits nos anos 1930. (CUCHE, Denys. A noção de 
cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 44 e 240). 
83
 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 239-241. 
84
 Ibidem, p. 239-240. 
 
19
confere seu caráter original singular; e que não se pode analisar um traço 
cultural independentemente do sistema cultural ao qual ele pertence e que 
lhe dá sentido. Isto quer dizer estudar todas as culturas, quaisquer que 
sejam a priori, sem compará-las e ou “medi-las” prematuramente em relação 
a outras culturas.85 
 
Assim, o relativismo cultural não pode estar associado à trivial idéia de que 
“tudo é variável” ou “tudo deve ser aceito”, mas a de que os fatores de uma cultura 
necessitam ser primeiramente compreendidos em seus próprios termos, ou seja, a 
partir da lógica do sistema simbólico dessa mesma cultura e, vale dizer, não a partir 
da lógica do sistema do observador.86 
Na mesma linha, Everardo Rocha destaca que relativizar é “não transformar a 
diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na 
dimensão de riqueza por ser diferença”.87 Dessa forma, ao observar o “outro”, as 
concepções do grupo do “eu” não podem ser colocadas como o centro de tudo, ou 
seja, não podem ser absolutizadas ou universalizadas. Ao contrário, é importante 
que o “outro” seja analisado de acordo com os seus elementos, as suas 
características e os seus próprios problemas.88 Ademais, ressalta o autor que o 
relativismo é um processo complicado, uma vez que devemos perder de vista 
nossas “certezas” etnocêntricas. Todavia, a postura relativizadora permite a reflexão 
sobre o “outro” e, até mesmo, a transformação da própria sociedade do “eu”.89 
Em relação à postura de reflexão sobre o “outro”, Roberto DaMatta refere que 
essa atividade consiste basicamente no movimento de “transformar o exótico no 
familiar e/ou transformar o familiar em exótico”.90 Eis o processo relativizador. 
Na transformação do exótico em familiar, pode-se afirmar que o pesquisador 
busca entender o universo de significação do sistema do “outro”, familiarizando-se, 
ou seja, conhecendo melhor os aspectos culturais que outrora pareciam exóticos, 
incompreensíveis e obscuros. O movimento inverso, a transformação do familiar em 
exótico, refere-se ao fato de o pesquisador descobrir o “outro” na sua própria cultura. 
Em outras palavras, trata-se de identificar e estranhar os elementos familiares que 
estão “petrificados” em nós, ou seja, de realizar um movimento de reflexão sobre 
nós mesmos a partir dessa diferença.91 É justamente essa mútua relação entre o 
familiar e o exótico que proporciona a reflexão e, por conseguinte, o diálogo.92 
 
85
 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 241. 
86
 Sobre esse aspecto, Roque de Barros Laraia ressalta que cada cultura tem a sualógica própria. A 
transposição da lógica de um sistema cultural para outro caracteriza um ato etnocêntrico. Por essa 
razão, um traço cultural deve ser observado em conformidade com a coerência de seu próprio 
sistema cultural. (LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de 
Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 87 e 91). 
87
 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 20. 
88
 Ibidem, p. 46. 
89
 Ibidem, p. 54, 73 e 93. 
90
 DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 
1987, p. 157. 
91
 Ibidem, p. 157-158. 
92
 Ibidem, p. 26-27, 158 e 162. 
 
20
Clifford Geertz, diante desse polêmico tema, assume a posição Anti Anti-
Relativista.93 Esta expressão quer indicar que o autor não possui a pretensão de 
defender o relativismo cultural, mas a de atacar o medo infundado que é mantido em 
relação a ele. Assim, a dupla negativa [Anti Anti-] refere-se, estritamente, a sua 
oposição ao pensamento anti-relativista.94 Tal pensamento, para Geertz, além de 
atribuir conseqüências infundadas ao relativismo cultural, como, por exemplo, o 
niilismo (“ou tudo ou nada”) e o subjetivismo (“tudo depende da maneira como você 
vê as coisas”), dá uma solução errada a este problema antropológico, qual seja, a de 
que precisamos encontrar um aspecto (imutável) do ser humano que esteja acima 
da cultura, como a moral ou o conhecimento (a Razão), para, só assim, afastar os 
supostos fantasmas da abordagem relativista.95 Todavia, mesmo que Geertz rejeite 
a posição anti-relativista, ele não quer assumir uma posição relativista como uma 
teoria antropológica. Nesse sentido, ele destaca que a inclinação relativista dos 
antropológicos recebe impulsos não tanto das teorias construídas a partir dos dados 
antropológicos (costumes, vestígios arqueológicos, crânios, léxicos, etc.), mas, sim, 
a partir destes mesmos dados.96 Ou seja, o alerta dos relativistas sobre o perigo de 
nossas concepções teóricas e atitudes práticas estarem demasiadamente 
arraigadas em nossa cultura e, assim, impossibilitarem-nos de entrar em um diálogo 
autêntico com outras culturas, não precisa ser erigido ao status de uma teoria, 
porque a questão encontra-se em como viver com estes dados antropológicos, que 
colocam em questão, constantemente, a cultura na qual advém o antropólogo.97 
Logo, retomando a idéia central do presente capítulo, pode-se afirmar que o 
relativismo cultural é um princípio metodológico ou, ainda, um exercício no qual se 
busca compreender como os povos deram e dão sentidos diversos aos modelos “da” 
e “para” a realidade. Relativizar significa abandonar a forma radical da visão 
etnocêntrica, na medida em que se busca interpretar a outra cultura a partir de seu 
próprio universo de significação. 
 
 
2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ORDEM JURÍDICO-
CONSTITUCIONAL BRASILEIRA 
 
Antes mesmo de adentrarmos na discussão propriamente dita do Projeto de 
Lei n° 1.057/2007, objeto deste trabalho, teceremos alguns breves delineamentos 
sobre a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na ordem 
jurídico-constitucional brasileira, eis que ela está diretamente relacionada à 
justificação do referido projeto de lei. Cumpre ressaltar também que não nos 
deteremos a examinar a totalidade das normas que estão relacionadas ao problema 
proposto em nosso tema, pois isto envolveria uma análise teórico-jurídica muito mais 
ampla do que a prevista, como, por exemplo, a análise da relação entre os direitos 
previstos em convenções e declarações internacionais e a respectiva abertura 
material do catálogo dos direitos fundamentais da Constituição Federal, bem como 
as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa forma, limitar-nos-
 
93
 GEERTZ, Clifford. Anti Anti-Relativismo. In: _____. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: 
Jorge Zahar, 2001, p. 47-67. 
94
 Ibidem, p. 47. 
95
 Ibidem, p. 61-63. 
96
 Ibidem, p. 49. 
97
 Ibidem, p. 49 e 65. 
 
21
emos em refletir sobre o Princípio Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana, 
uma vez que ele irradia diretrizes a todo o ordenamento jurídico brasileiro. 
 
2.1 A NOÇÃO DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ORDEM JURÍDICO-
CONSTITUCIONAL BRASILEIRA 
 
Definir o que seja a dignidade da pessoa humana não é uma tarefa fácil, 
tendo em vista a complexidade desta idéia. Isto se deve ao fato de que a dignidade 
possui um conceito extremamente impreciso, genérico, vago e ambíguo.98 Contudo, 
há a necessidade de conceituá-la, da maneira mais explícita possível, mesmo que 
em linhas gerais.99 
A dignidade da pessoa humana pode ser tida como a qualidade intrínseca de 
todo o ser humano, sendo o elemento que o identifica como tal,100 sem distinções, 
ou seja, independentemente de suas características.101 Como algo inerente a todo e 
qualquer ser humano, a dignidade é insubstituível, inalienável e irrenunciável,102 não 
podendo, dessa forma, ser ela substituída, transferida ou mesmo abdicada. Note-se 
que a principal tarefa, aqui, é a procura de critérios de delimitação do conceito de 
dignidade da pessoa humana. 
Nesse sentido, ressalta Sarlet, a dignidade da pessoa humana não é criada, 
concedida ou retirada, mas sim reconhecida e protegida pelo Estado.103 Em outras 
palavras, a qualidade que uma pessoa seja digna, não depende do Direito, já que a 
dignidade preexiste a ele. Ao mesmo tempo, a dignidade da pessoa humana pode 
ser violada e, por essa razão, ao Estado incumbe protegê-la e promovê-la.104 Assim, 
a dignidade é tida como um princípio e não um direito em nosso ordenamento 
jurídico, já que não é concedida, mas reconhecida.105 Sarlet explicita que a 
dignidade da pessoa humana deve ser entendida como norma (princípio e regra) e 
valor fundamental na ordem jurídico-constitucional.106 
 
98
 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição 
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 44. 
99
 Não nos ateremos em expor aqui a perspectiva histórica da construção da noção de dignidade da 
pessoa humana, sendo que, para isso, pode ser consultada a obra de Ingo Wolfgang Sarlet: 
(Ibidem, p. 31-44). 
100
 SACHS, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na 
Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 45. 
101
 No contexto dos direitos humanos, Fábio Konder Comparato afirma que se trata de “algo que é 
inerente à própria condição humana, sem ligação com particularidades determinadas de indivíduos 
ou grupos”. (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São 
Paulo: Saraiva, 2005, p. 57). 
102
 DÜRIG; STERN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos 
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 
2009, p. 47. 
103
 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição 
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 47. 
104
 Ibidem, p. 77-78. 
105
 Ibidem, p. 78. 
106
 Sobre o status jurídico-normativo da dignidade da pessoa humana como norma (princípio e regra) 
e valor fundamental, Ingo Sarlet remete o pensamento a Robert Alexy e, em virtude da 
complexidade deste raciocínio, não o desenvolveremos aqui. Para isso, conferir: SARLET, Ingo 
Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 
7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 74-84. 
 
22
Em função disso, afirma-se que a dignidade da pessoa humana é, ao mesmo 
tempo, limite (função defensiva) e tarefa (função prestacional) do Estado. Limite, 
pois, como uma qualidade intrínseca e indisponível de todo o ser humano, obsta que 
o poder estatal venha ofendê-la, atuando como uma defesa. E, tarefa, pois aoEstado cumpre respeitar, preservar e proteger a dignidade da pessoa humana e, em 
especial, prestar e proporcionar condições para a sua concretização.107 Ainda, 
aponta Sarlet, que a dignidade assume uma dimensão intersubjetiva,108 ou seja, não 
é tarefa apenas do Estado protegê-la, promovê-la e não a violar, mas também da 
comunidade e das próprias pessoas.109 
Em síntese, para Sarlet, a dignidade da pessoa humana pode ser designada 
como: 
A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida a cada ser humano que o faz 
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da 
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres 
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de 
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições 
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover 
sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e 
da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido 
respeito aos demais seres que integram a rede da vida.110 
 
Ressalta-se que a dignidade da pessoa humana, embora seja uma qualidade 
intrínseca ao ser humano, é concretizada através de um processo histórico-
cultural.111 Retomando as idéias do capítulo anterior, a afirmação desta qualidade 
como um símbolo significante depende da interação dos modelos “da” e “para” a 
realidade, de tal modo que seu conceito está em constante desenvolvimento, sendo 
isto uma das razões pelas quais não possui um conteúdo fixo. É o contexto histórico 
e cultural de um povo que assegura e procura concretizar efetivamente este 
elemento intrínseco de cada ser humano.112 Porém, tal elemento deverá valer para 
todo e qualquer ser humano protegido pelo ordenamento. 
Além disso, a dignidade da pessoa humana está intimamente ligada à 
liberdade. Isto diz respeito à possibilidade de o ser humano exercer sua autonomia e 
sua autodeterminação, isto é, de governar a si próprio, bem como definir sua 
 
107
 PODLECH; SACHS, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos 
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, 
p. 52-53. 
108
 KANT, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na 
Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 58. 
109
 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição 
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 125. 
110
 Ibidem, p. 67. 
111
 HÄBERLE, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais 
na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51. 
112
 De acordo com Sarlet, a dignidade é a qualidade intrínseca ao ser humano, que preexiste ao 
Direito, mas que apesar disso “o grau de reconhecimento e proteção outorgado à dignidade da 
pessoa por cada ordem jurídico-constitucional e pelo Direito Internacional, certamente irá 
depender de sua efetiva realização e promoção” (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa 
Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do 
Advogado, 2009, p. 76). 
Sobre este ponto convém lembrar a notável obra de Fábio Konder Comparato, que demonstra, 
através de documentos normativos, a construção histórica dos direitos do homem (COMPARATO, 
Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005). 
 
23
conduta e escolher as circunstâncias em relação à sua vida.113 Sobre este aspecto, 
José Joaquim Gomes Canotilho refere-se à idéia de o indivíduo ser “conformador de 
si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual”.114 Oportuno frisar 
que a dignidade da pessoa humana deve ser reconhecida a todo o ser humano, 
mesmo que a pessoa não possa exercer sua liberdade de maneira autônoma, como 
é o caso, por exemplo, dos absolutamente incapazes (portadores de sérias doenças 
físicas e/ou mentais, nascituro). Por conseguinte, fala-se que a dignidade humana 
está relacionada ao potencial de liberdade.115 
Observa-se, assim, que a dignidade da pessoa humana será efetiva se forem 
garantidos – não somente eles, mas principalmente – o direito fundamental à vida e 
à liberdade. Nas palavras de Sarlet, eles constituem as “exigências da dignidade da 
pessoa humana” (bem como os outros direitos e garantias fundamentais, na medida 
em que são concretizações daquela).116 Nesse sentido, segundo o autor: 
 
Onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser 
humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem 
asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade 
e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos 
fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não 
haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por 
sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.117 
 
Portanto, embora tenhamos traçado em linhas gerais o conceito jurídico de 
dignidade da pessoa humana, percebe-se que o mesmo possui, segundo afirma 
Sarlet, um caráter multidimensional,118 visto que a dignidade da pessoa humana é 
qualidade intrínseca de todo e qualquer ser humano, com uma dupla função (limite e 
tarefa), concretizada em um plano histórico-cultural, e que, como veremos no 
próximo tópico, é o princípio embasador do ordenamento jurídico brasileiro. 
 
2.2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO E FIM DO 
ESTADO E A SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS 
 
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 consagrou o valor da 
dignidade humana, ao reconhecer em seu preâmbulo e em outros artigos que o 
homem possui o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei. Este 
documento exerceu grande influência e, a partir disso, a idéia sobre o valor supremo 
da dignidade da pessoa humana passou a ser integrada expressamente em diversas 
cartas constitucionais.119 Após um longo processo histórico, o homem figura o 
elemento primordial do Estado, isto é, que legitima e justifica o poder estatal. 
 
113
 BLECKMANN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais 
na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 50. 
114
 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: 
Almedina, 2000, p. 225. 
115
 DÜRIG, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na 
Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 50-51. 
116
 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição 
Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51. 
117
 Ibidem, p. 65. 
118
 Ibidem, p. 66. 
119
 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: 
Saraiva, 2005, p. 222-237. 
 
24
Conforme assinala Bleckmann, “é o Estado que existe em função da pessoa 
humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não 
meio da atividade estatal”.120 Para Judith Martins-Costa “a pessoa, considerada em 
si e em (por) sua humanidade, constitui o ‘valor fonte’ que anima e justifica a própria 
existência de um ordenamento jurídico”.121 E, segundo Canotilho: 
 
A dignidade humana como base da República significa o reconhecimento do 
indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste 
sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é 
o homem que serve os aparelhos político-organizatórios.122 
 
Nessa mesma linha, tendo em vista que os direitos protegem a dignidade do 
homem, Robert Alexy destaca que: 
 
A observação aos direitos do homem é uma condição necessária

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