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servidor autônomo e representa, na operação mágica, a parte do acaso. O mágico acaba por admitir que sua ciência não é infalível e que seu desejo pode não ser cumprido. Diante dele, um poder se levanta. Assim o espírito é, alternadamente, submisso e livre, confundido com o rito e distinto do rito. Parece que nos vemos diante de uma daquelas confusões antinômicas muito freqüentes na história da magia, como na da religião. A solução dessa contradição aparente deve ser buscada numa teoria das relações da magia e da religião. No entanto, podemos já dizer aqui que os fatos mais numerosos em magia são aque- les em que o rito se mostra coercitivo, sem negar a existência de outros fatos cuja explicação encontraremos alhures. O que são os espíritos da magia? Vamos tentar uma classificação muito sumária, uma enumeração muito rápida deles, que nos mostrará como a magia recrutou seus exércitos de espíritos. Veremos imediata- 117 mente que esses espíritos têm outras qualificações além das qualifica- ções mágicas, que eles pertencem também à religião. Uma primeira categoria de espíritos mágicos é constituída pelas almas dos mortos. Há mesmo magias que, seja por redução, seja origi- nalmente, não conhecem outros espíritos. Na Melanésia ocidental, tanto na cerimônia mágica como na religião recorreu-se a espíritos, chama- dos tindalos, que são, todos eles, almas. Todo morto pode tornar-se tin- dalo, se manifesta seu poder por um milagre, uma maleficência etc. Mas, em princípio, só são tindalos os que tiveram, em vida, poderes mágicos ou religiosos. Portanto, os mortos podem aqui fornecer espíritos. O mesmo acontece na Austrália e na América, entre os Cherokee e os Oji- bwa. - Na índia antiga e moderna, os mortos, ancestrais divinizados, são invocados em magia; mas, nos malefícios, invocam-se antes os espí- ritos dos defuntos para os quais os ritos funerários não foram ainda per- feitamente cumpridos (preta), dos que não estão sepultados, dos que ti- veram morte violenta, das mulheres mortas no parto, das crianças natimortas (èhúta, churels etc.). — Os mesmos fatos produziram-se na magia grega, cujos ôcúuoveç [daímones], isto é, os espíritos mágicos, re- ceberam epítetos que os designam como almas: encontramos às vezes a menção de vexuôaíuoveç \nekudaimones, espíritos dos mortos], de ôaíuoveç ur|Tp(i>oi xaí Ttatpwoi \daimones metrôioi kaípatrôioi, espíritos maternos e paternos], porém, mais freqüentemente, a de demônios mortos de morte violenta (|3taio6aváTOi, biaiothanátoi), não sepultados (ãnopoiTacpr)c., áporoi taphés) etc. Na Grécia, uma outra classe de defuntos fornece au- xiliares mágicos, é a dos heróis, isto é, dos mortos que são também o objeto de um culto público; todavia, não é certo que todos os heróis mágicos tenham sido heróis oficiais. Nesse ponto, o tindalo melanésio é inteiramente comparável ao herói grego, pois pode jamais ter sido um morto divinizado e, no entanto, é concebido obrigatoriamente sob essa forma. — No cristianismo, todos os mortos têm propriedades utilizáveis, qualidades de morto; mas a magia praticamente só age com as almas das crianças não batizadas, dos mortos de morte violenta, dos criminosos. - Essa curtíssima exposição mostra que os mortos são espíritos mágicos, seja em virtude de uma crença geral em seu poder divino, seja em virtu- de de uma qualificação especial que, no mundo dos fantasmas, lhes dá, em relação aos seres religiosos, um lugar determinado. Uma segunda categoria de seres mágicos é a dos demônios. Obvia- mente, a palavra demônio não é, para nós, sinônimo da palavra diabo, n 8 Magia mas das palavras gênio, djinn etc. São espíritos um pouco distintos das almas dos mortos, por um lado, e que, por outro, ainda não chegaram à divindade dos deuses. Embora tenham uma personalidade bastante me- díocre, geralmente já são algo mais que a simples personificação dos ritos mágicos, das qualidades ou dos objetos. Na Austrália, parecem ter sido concebidos em toda parte, de uma forma bem distinta; inclusive, quando temos informações suficientes a respeito deles, revelam-se bas- tante especializados. Entre os Arunta, encontramos espíritos mágicos, os Orunchas e os Iruntarinias, que são verdadeiros gênios locais cuja in- dependência mostra bem seu caráter complexo. Na Melanésia oriental, invocam-se espíritos que não são almas dos mortos e, alguns deles, nem deuses propriamente ditos; esses espíritos têm uma importância consi- derável, sobretudo nos ritos naturistas: vui, das ilhas Salomão, vigona, de Florida etc. Na índia, aos devas, os deuses, são opostos os pisâcas, yaksasas, râksasas etc., cujo conjunto constitui, assim que há classifica- ção, a categoria dos Asuras, dos quais as principais personalidades são Frtra (o rival de Indra), Namud (idem) etc. Todos sabem que o masdeís- mo considerou, ao contrário, os daevâs, sequazes de Ahriman, como os adversários de Ahura Mazda. De um e de outro lado, nesses dois casos, lidamos com seres mágicos especializados — como gênios maus, é ver- dade; no entanto, seus nomes mesmos demonstram que, entre eles e os deuses, não havia, ao menos na origem, uma radical distinção. Entre os gregos, os seres mágicos são os ôaíuoveç, que, como vimos, aproxi- mam-se das almas dos mortos. É tal a especialização desses espíritos que a magia foi definida, na Grécia, por suas relações com os demônios. Há demônios de ambos os sexos, de todos os tipos e consistências; uns são localizados, outros povoam a atmosfera. Alguns têm nomes próprios, mas são nomes mágicos. O destino dos Saíuoveç foi tornarem-se gênios maus e juntarem-se, na classe dos espíritos malfazejos, aos Kerkopes, Empuses, Kères etc. Além disso, a magia grega tem uma preferência mar- cada pelos anjos judeus e, em particular, pelos arcanjos, do mesmo modo que a magia malaia. Enfim, com seus anjos, arcanjos, arcontes, demônios, éons, ela constitui um verdadeiro panteão mágico hierar- quizado. A magia da Idade Média herdou esse panteão, assim como todo o Extremo-Oriente herdou o panteão mágico dos hindus. Mas os demônios foram transformados em diabos e dispostos ao lado de Satã- Lúcifer, de quem provém a magia. Entretanto, vemos subsistir, na ma- gia da Idade Média e até os dias de hoje em países onde velhas tradições 119 conservaram-se melhor que no nosso, outros gênios, fadas, diabretes, duendes, kobolds* etc. Mas a magia não se dirige necessariamente a gênios especializados. Na verdade, as diversas classes de espíritos especializados de que acaba- mos de falar nem sempre foram exclusivamente mágicas e, mesmo ten- do se tornado mágicas, têm ainda seu lugar na religião: jamais se dirá que a noção de inferno é uma noção mágica. Por outro lado, há lugares onde as funções de deus e de demônio não estão ainda distinguidas. É o caso de toda a América do Norte; os manitus algonquinos funcionam ora como um, ora como outro; o mesmo acontece com os tindalos da Melanésia oriental. Na Assíria, encontramos séries inteiras de demônios, dos quais não temos certeza se não são deuses; na escrita, seu nome traz em geral o afixo divino, como acontece, em particular, com os princi- pais deles, os Igigi e os Annunnaki, cuja identidade é ainda misteriosa. Em suma, as funções demoníacas não são incompatíveis com as funções divinas. Aliás, a existência de demônios especializados não impede à magia recorrer a outros espíritos, para fazê-los cumprir momentanea- mente um papel demoníaco. Assim vemos, em todas as magias, deuses e, na magia cristã, santos figurarem entre os auxiliares espirituais. Na ín- dia, os deuses intervém mesmo no domínio do malefício, apesar da es- pecialização que neste se produziu, e são os personagens essenciais de todo o resto do ritual mágico. Nos países outrora hinduístas, Malásia e Campa (Camboja), o panteão bramânico figura por inteiro na magia. Quanto aos textos mágicos gregos, eles mencionam inicialmente uma quantidade de deuses egípcios, seja sob