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quando se necessitava de soldados para a frente de batalha -, os presos era soltos graças a anistias maciças. Em certos momentos, acontecia que categorias inteiras de "inimigo" se beneficiavam subitamente de uma mudança de condição. Em 1939, por exemplo, no começo da Segunda Guerra Mundial, Stalin prendeu centenas de milhares de poloneses - e depois, em 1941, ele os libertou de chofre, quando a Polônia e a URSS se tornaram temporariamente aliadas. O oposto também se aplicava: na URSS, os próprios opressores podiam virar vítimas. Guardas e administradores do Gulag e até altos funcionários da polícia secreta também podiam ser aprisionados e condenados aos campos. Em outras palavras, nem todas as "víboras" conseguiam manter as presas - e não havia nenhum grupo específico de prisioneiros soviéticos que vivesse na expectativa constante da morte.{55} Em segundo lugar (conforme, mais uma vez, ficará claro no decorrer do livro), o propósito primordial do Gulag, segundo tanto a linguagem privada quanto a propaganda pública daqueles que o fundaram, era econômico. Isso não significa que o sistema fosse humanitário. Nele, os prisioneiros eram tratados como gado, ou melhor, como pedaços de minério de ferro. Os guardas os faziam ir para lá e para cá a seu bel-prazer, embarcando-os e desembarcando-os de vagões de gado, pesando-os e medindo-os, alimentando-os se parecia que poderiam vir a ser úteis, deixando-os à míngua quando não o eram. Para usarmos a linguagem marxista, os prisioneiros eram explorados, reificados e mercantilizados. A menos que fossem produtivos, suas vidas não valiam nada para seus senhores. Sua vivência, porém, era muito diferente daquela dos judeus e dos outros prisioneiros que os nazistas enviavam para um grupo especial de campos que se chamavam não Konzentrationslager, mas Vernichtungslager - campos que não era realmente "campos de trabalhos forçados", e sim usinas da morte. Havia quatro deles: Belzec, Chelmno, Sobibor e Treblinka. Já Majdanek e Auschwitz continham tanto campos de trabalhos forçados quanto campos de extermínio. Ao entrarem nesses campos, os prisioneiros passavam por uma "seleção". Um número ínfimo era designado para algumas semanas de trabalhos forçados. O restante era mandado direto para as câmaras de gás, onde os assassinavam e então cremavam de imediato. Até onde pude comprovar, essa forma específica de homicídio, praticada no auge do Holocausto, não teve equivalente na URSS. É bem verdade que esse último país encontrou outras maneiras de chacinar centenas de milhares de cidadãos. Geralmente, eles eram conduzidos à noite para uma floresta, alinhados, baleados na nuca e enterrados em sepulturas coletivas antes mesmo de chegarem perto de um campo de concentração - modalidade de homicídio não menos "industrializada" e anônima que a usada pelos nazistas. Há mesmo histórias de que a polícia secreta soviética usou gás de escapamento (uma forma primitiva de gás venenoso) para matar prisioneiros, da mesma forma que os nazistas fizeram no começo.{56} No Gulag, os prisioneiros também morriam, em geral graças não à eficiência dos captores, e sim à incompetência e à negligência crassas.{57} Em certos campos soviéticos em determinadas épocas, a morte era praticamente certa no caso dos escolhidos para cortar árvores nas florestas hibernais ou trabalhar nas piores minas auríferas de Koly ma. Prisioneiros também eram trancados em celas punitivas até morrerem de frio ou inanição, largados sem tratamento em hospitais subaquecidos ou simplesmente baleados por "tentativa de fuga" quando dava na telha dos guardas. Entretanto, o sistema soviético de campos como um todo não era propositalmente organizado para produzir cadáveres em escala industrial - mesmo que às vezes o resultado fosse esse. São distinções sutis, mas importantes. Embora o Gulag e Auschwitz realmente pertençam à mesma tradição intelectual e histórica, eles ainda assim são fenômenos separados e diferentes, tanto um do outro quanto dos sistemas de campos estabelecidos por outros regimes. A idéia de campo de concentração talvez seja genérica o bastante para que a usem em culturas e situações muito diversas, mas até um estudo superficial da história transcultural desse tipo de campo revela que os detalhes específicos - como se organizava a vida, como o estabelecimento se desenvolvia no decorrer do tempo, quão rígido ou desorganizado se tornava, quão cruel ou liberal permanecia - dependiam do país, do regime político e da cultura.{58} Para quem estava encurralado atrás do arame farpado, esses detalhes eram cruciais para a vida, a saúde e a sobrevivência. Na realidade, lendo os relatos daqueles que sobreviveram a ambos os sistemas de campos, impressionam mais as diferenças entre as vivências das vítimas do que as diferenças entre os dois sistemas de campos. Cada história tem suas características próprias, cada campo apresentava tipos diferenciados de horror para pessoas de caráter diferente. Na Alemanha, podia-se morrer pela crueldade; na Rússia, pela desesperança. Em Auschwitz, podia-se morrer na câmara de gás; em Koly ma, congelar na neve até a morte. Podia-se morrer numa floresta alemã ou num ermo siberiano, num acidente de mineração ou num vagão de gado. Mas, ao fim e ao cabo, cada um tinha sua história de vida. Parte I - AS ORIGENS DO GULAG (1917-39) 1. PRIMÓRDIOS BOLCHEVIQ UES Teu espinhaço foi esmagado, Minha época bela e lastimável, E, com sorriso inane, Olhas para trás, cruel e fraca, Tal qual bicho que já passou do apogeu, Para as marcas de suas patas. Osip Mandelstam, "Vek"{59} Um de meus objetivos é destruir o mito de que a fase mais cruel da repressão começou em 1936-7. Penso que, no futuro, as estatísticas mostrarão que a onda de prisões, condenações e degredos já se iniciara no começo de 1918, antes mesmo da declaração oficial, naquele outono, do "Terror Vermelho". A partir daquele momento, a onda simplesmente ficou cada vez maior, até a morte de Stalin. Dmitrii Likhachev, Vospominaniy a{60} No ano de 1917, duas ondas revolucionárias cobriram a Rússia, varrendo a sociedade imperial como se esta fosse um castelo de cartas. Depois que o czar Nicolau abdicou (em fevereiro), tornou-se extremamente difícil que alguém conseguisse deter ou controlar os acontecimentos. Alexander Kerensky, o líder do primeiro governo provisório pós-revolucionário, escreveria que, no vácuo subseqüente ao colapso do antigo regime, "todos os programas políticos e táticos existentes, não importando quão ousados e bem concebidos, pareciam flutuar no espaço, sem rumo e sem utilidade".{61} Mas, embora o governo provisório fosse fraco, embora o descontentamento popular fosse generalizado, embora a raiva com a carnificina causada pela Primeira Guerra Mundial fosse grande, poucos contavam que o poder caísse nas mãos dos bolcheviques, um dos vários partidos socialistas radicais que agitavam a favor de mudanças ainda mais rápidas. Fora do país, eles eram muito pouco conhecidos. Uma narrativa apócrifa ilustra muito bem a atitude estrangeira: consta que, em 1917, um burocrata entrou às pressas no gabinete do ministro do Exterior austríaco, gritando: "Excelência, houve uma revolução na Rússia!" O ministro riu com desdém: "Quem conseguiria fazer uma revolução lá? Com certeza não esse inofensivo herr Trotski, lá no Café Central?" Se o caráter dos bolcheviques era um mistério, seu líder, Vladimir Iliich Ulianov (o homem que o mundo viria a conhecer pelo pseudônimo revolucionário "Lênin"), o era ainda mais. Durante seus muitos anos de revolucionário refugiado no exterior, Lênin fora reconhecido por conta de seu brilhantismo, mas também antipatizado por causa de sua imoderação e seu sectarismo. Vivia arrumando briga com outros líderes socialistas e tinha o pendor de transformar em grandes polêmicas as discordâncias menores sobre questões dogmáticas aparentemente irrelevantes.{62}