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parasitas".{131} Fora do complexo principal do kremlin, as coisas não eram melhores. Oficialmente, a Slon compreendia nove campos distintos no arquipélago, cada um deles dividido em batalhões. Mas também se mantinham alguns presos em condições ainda mais primitivas, nas matas, perto dos locais de atividade madeireira.{132} Dmitrii Likhachev, que depois se tornaria um dos mais famosos críticos literários da URSS, considerava-se privilegiado por não ter sido designado para um dos muitos campos anônimos na floresta. Ao visitar um, "fiquei doente com a visão daquele horror: pessoas dormiam em valas que tinham cavado, às vezes com as mãos nuas, durante o dia".{133} Nas ilhas periféricas, a administração central dos campos exercia ainda menos controle sobre a conduta dos guardas e encarregados. Um preso, certo Kiselev, descreveu em suas memórias certo campo em Anzer, uma das ilhas menores. Comandado por Vanka Potapov (outro integrante da Cheka), o campo consistia de três alojamentos e um quartel de guardas, instalado numa antiga igreja. Os presos trabalhavam no corte de árvores, sem pausa, sem descanso e com pouca alimentação. Desesperados por conseguir alguns dias de folga, decepavam as próprias mãos e pés. Segundo Kiselev, Potanov conservava essas "pérolas" numa grande pilha e as mostrava aos visitantes, para os quais também se vangloriava de ter matado mais de quatrocentas pessoas com as próprias mãos. "Ninguém voltava de lá", escreveu Kiselev a respeito de Anzer. Mesmo que seu relato seja exagerado, ele indica o verdadeiro terror que os campos periféricos representavam para os presos.{134} Em todas as ilhas, as catastróficas condições de higiene, o excesso de trabalho e a alimentação ruim levavam naturalmente à doença, sobretudo ao tifo. Dos 6 mil prisioneiros a cargo da Slon em 1925, cerca de um quarto morreria no inverno de 1925-6, em conseqüência de uma epidemia particularmente grave. De acordo com algumas estimativas, os números permaneceram altos: a cada ano, de um quarto a metade dos presos pode ter perecido de tifo, inanição e outras epidemias. No inverno de 1929-30, um documento registra 25.552 casos de tifo na Slon (rede que então já era muito maior).{135} Para alguns presos, porém, Solovetsky representava algo pior que o desconforto e a doença. Nas ilhas, eram submetidos ao tipo de sadismo e tortura despropositada que se encontrava mais raramente no Gulag em anos posteriores, quando, segundo Soljenitsin, "a capatazia de escravos já se tornara um sistema planejado".{136} Embora muitas memórias descrevam esses atos, a relação mais completa se acha no relatório de uma comissão de inquérito que seria enviada de Moscou mais para o final da década de 1920. No decorrer da investigação, essas horrorizadas autoridades moscovitas descobriram que, no inverno, os guardas de Solovetsky regularmente deixavam prisioneiros nus nos velhos campanários da igreja maior, sem nenhum aquecimento, tendo mãos e pés alados às costas com um único pedaço de corda. Também colocavam presos "no assento", significando que os obrigavam a sentar em mastros por até dezoito horas sem se mexer, às vezes com pesos amarrados às pernas e pés, sem tocar o chão, numa posição que com toda a certeza os deixaria aleijados. De quando em quando, faziam os presos irem nus para o banho, até a dois quilômetros de distância, numa temperatura de congelar. Ou lhes davam de propósito carne podre. Ou lhes negavam socorro médico. Outras vezes, os prisioneiros recebiam tarefas despropositadas e inúteis - deslocar enormes quantidades de neve de um lugar para outro, por exemplo, ou pular de pontes tão logo os guardas mandassem.{137} Outra forma de tortura própria das ilhas, sendo mencionada tanto em arquivos quanto em memórias, era ser mandado "aos pernilongos". A. Klinger, oficial do Exército Branco que depois realizaria uma das poucas fugas bem-sucedidas de Solovetsky, escreveu que uma vez vira essa tortura ser aplicada a um preso que se queixara porque uma remessa de gêneros destinada a ele fora confiscada. Guardas irados reagiram tirando-lhe todas as roupas, inclusive as de baixo, e amarrando-o a um mastro nas matas, as quais, no verão boreal, estavam infestadas de mosquitos. "Passada meia hora, todo o seu corpo infeliz estava coberto de inchaços provocados pelas picadas", escreveu Klinger. O homem acabou desfalecendo com a dor e a perda de sangue.{138} Execuções em massa pareciam ocorrer de modo quase aleatório, e muitos prisioneiros lembram-se de ter vivido aterrorizados com a perspectiva da morte arbitrária. Likhachev afirma ter escapado por pouco a uma chacina no final de outubro de 1929. Documentos de arquivo realmente indicam que cerca de cinqüenta pessoas (e não trezentas, número registrado por Likhachev) foram executadas na época, tendo sido acusadas de tentar organizar uma rebelião.{139} Quase tão ruim quanto uma execução direta era a sentença de envio para a Sekirka, a igreja cujos porões haviam se tornado as celas punitivas de Solovetsky. De fato, embora se contassem muitas histórias sobre o que acontecia nos porões da igreja, tão poucos homens voltavam da Sekirka que fica difícil ter certeza de quais eram realmente as condições ali. Mas uma testemunha chegou mesmo a ver as turmas sendo conduzidas ao trabalho: "uma fila de pessoas aterrorizadas, com olhar inumano, algumas trajadas com sacas, todas descalças, rodeadas por uma guarda cerrada".{140} Segundo rezava a legenda de Solovetsky, a longa escadaria de 365 degraus de madeira que desciam a íngreme colina dessa igreja também desempenhava um papel nas matanças. Em certo momento, quando as autoridades do campo proibiram que se atirasse contra os presos da Sekirka, os guardas começaram a providenciar "acidentes" - jogando os detentos escadaria abaixo.{141} Há poucos anos, descendentes de presos de Solovetsky ergueram uma cruz de madeira no pé da escadaria, para marcar o lugar onde esses antepassados teriam morrido. Hoje, é um lugar sossegado e bem bonito - tanto que, no final da década de 1990, o museu de história local de Solovetsky imprimiu um cartão de Natal que mostrava a Sekirka, a escadaria e a cruz. Embora o clima reinante de irracionalidade e imprevisibilidade significasse que milhares morreriam na Slon na primeira metade da década de 1920, a mesma irracionalidade e a mesma imprevisibilidade também ajudavam outros não apenas a sobreviver, mas também a cantar e dançar - literalmente. Em 1923, um punhado de presos já começara a organizar o primeiro teatro do campo. De início, os "atores", muitos dos quais passavam dez horas cortando madeira nas florestas antes de ir ensaiar, não tinham texto, de modo que encenavam os clássicos de memória. O teatro melhorou muitíssimo em 1924, quando chegou um grupo inteiro de ex-atores profissionais - todos condenados como membros do mesmo movimento contra-revolucionário. Naquele ano, montaram Tio Vanya, de Tchekhov, e Os filhos do sol, de Gorki.{142} Posteriormente, encenaram-se óperas e operetas no teatro de Solovetsky, o qual também apresentava filmes e exibições acrobáticas. Certo sarau musical abrangia uma peça orquestral, um quinteto, um coro e árias de uma ópera russa. {143} A programação de março de 1924 incluía uma peça de Leonid Andreev (cujo filho, Danil, também escritor, seria preso do Gulag), uma peça de Gogol e uma noite dedicada à memória de Sarah Bernhardt.{144} Tampouco era o teatro a única forma de cultura disponível. Solovetsky tinha uma biblioteca (que chegaria a possuir 30 mil livros) e o jardim botânico (onde os presos faziam experiência com plantas do Ártico). Os cativos, muitos deles ex- cientistas de São Petersburgo, também organizaram um museu da flora, fauna, arte e história locais.{145} Alguns dos prisioneiros mais privilegiados faziam uso de um "clube" que, pelo menos nas fotos, parece verdadeiramente burguês. As imagens mostram piano, parquete e retratos de Marx, Lênin