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um telegrama secreto, em código, instruindo-nos a liquidar nosso campo por completo, em três dias, e fazê-lo de tal maneira que não ficasse nenhum vestígio. [...] Enviaram- se telegramas a todos os postos, os quais deviam cessar as operações em 24 horas, reunir os presos em centros de evacuação e apagar as marcas dos campos penais, tais como cercas de arame farpado, torres de vigia e placas de sinalização; todos os principais encarregados deviam vestir trajes civis, desarmar os guardas e aguardar novas instruções. Kitchin, junto com vários milhares de outros presos, foi levado a pé pela floresta afora. Ele acreditava que mais de 1.300 detentos tivessem morrido nessa e em outras evacuações-relâmpago.{275} Em março de 1931, Molotov, então presidente do Conselho dos Comissários do Povo, sentiu-se confiante de que não houvesse mais presos na indústria madeireira soviética (pelo menos não visíveis) e convidou todos os estrangeiros interessados a visitarem e verificarem por si mesmos.{276} Alguns já tinham vindo: em 1929, os arquivos do Partido Comunista na Carélia registram a presença de dois jornalistas americanos, "o camarada Durant e o camarada Wolf", que escreviam para a Tass, a agência de notícias soviética, e para "jornais radicais". Os dois foram recebidos com uma execução da Internacional, o hino operário, e o camarada Wolf prometeu "contar aos trabalhadores da América como os trabalhadores da União Soviética vivem e criam uma vida nova". Não seria a última dessas encenações.{277} No entanto, embora a pressão por um boicote houvesse soçobrado em 1931, a campanha ocidental contra o trabalho escravo soviético não deixara de ter algum resultado: a URSS era, e continuaria sendo, muito zelosa de sua imagem no exterior, mesmo sob o comando de Stalin. Alguns, dentre eles o historiador Michael Jakonson, agora especulam que a ameaça de um boicote pode até ter sido importante fator por trás de outra mudança de diretrizes, esta maior. O negócio madeireiro, que demandava grande quantidade de trabalho não- especializado, fora a maneira ideal de utilizar os presos. Mas as exportações de madeira, uma das principais fontes de moeda forte da URSS, não podiam correr o risco de novo boicote. Os presos precisavam ser mandados para outro lugar - de preferência, algum onde sua presença pudesse ser comemorada, e não escondida. Possibilidades não faltavam, mas uma em especial seduziu Stalin: construir um grande Canal do Mar Branco ao mar Báltico, atravessando terreno que, em grande parte, era puro granito. No contexto da época, o Canal do Mar Branco em russo, Belomorkanal, abreviado para Belomor - não era único. No momento em que se iniciou sua construção, a URSS já começara a executar vários projetos que, de forma semelhante, eram grandiosos e faziam uso intensivo de trabalho braçal; entre eles, incluíam-se a maior siderúrgica do mundo, em Magnitogorsk, gigantescas fábricas de tratores e automóveis e imensas "cidades socialistas" plantadas no meio de pântanos. Apesar disso, mesmo dentre as outras crias da mania de gigantismo dos anos 1930, o Canal do Mar Branco se destacava. Para começo de conversa, o canal representava, como sabiam muitos russos, a realização de um sonho bem antigo. Os primeiros projetos haviam sido elaborados no século XVIII, quando os mercadores czaristas procuravam uma maneira de mandar das águas frias do mar Branco aos portos comerciais do Báltico navios carregados de madeira e minerais, sem fazer a viagem de uns setecentos quilômetros pelo oceano Ártico e, depois, ainda descer a extensa costa da Noruega.{278} Também era um projeto de ambição extrema, até temerária, e talvez por isso ninguém houvesse tentado realizá-lo antes. O canal requeria 227 quilômetros de escavação, mais cinco diques e dezenove eclusas. Os planejadores soviéticos pretendiam construí-lo utilizando a tecnologia menos sofisticada possível, numa região pré-industrial do extremo norte, que nunca fora adequadamente desbravada e que, nas palavras de Máximo Gorki, era "hidrologicamente terra incógnita".{279} Tudo isso, porém, pode até ter sido parte do atrativo do projeto para Stalin. Ele queria um triunfo tecnológico - um que o antigo regime nunca conseguira -, e o queria o mais depressa possível. Exigiu não apenas que construíssem o canal, mas também que o fizessem em vinte meses. Quando pronto, levaria o nome de Stalin. Stalin foi o maior fomentador do Canal do Mar Branco - e desejava especificamente que o abrissem com o trabalho de presos. Antes de iniciadas as obras, condenou com a maior violência quem indagava se um projeto tão caro era mesmo necessário, dado o volume relativamente pequeno de tráfego no mar Branco. "Disseram-me", escreveu a Molotov, "que Ry kov e Kviring querem pôr fim à idéia do canal do Norte, contrariando as decisões do Politburo. Eles deveriam ser colocados no devido lugar e receber uns cascudos." Durante uma sessão do Politburo em que se discutiu o canal, Stalin também escreveu uma nota irritada, rabiscada às pressas, que falava de sua crença no trabalho de presos: Quanto ao trecho norte do canal, tenho em mente confiar na GPU [com mão-de-obra prisional]. Ao mesmo tempo, devemos designar alguém para calcular outra vez as despesas da construção desse trecho. [...] O que me apresentam é caro demais.{280} As preferências de Stalin tampouco eram segredo. Depois que o canal ficou pronto, o principal administrador louvou Stalin tanto pela "bravura" em ter-se disposto a construir aquele "gigante hidrotécnico" quanto pelo "fato maravilhoso de que esse trabalho não foi completado com mão-de-obra comum".{281} Também se pode ver a influência de Stalin na rapidez com que se partiu para as obras. A decisão de iniciá-las foi tomada em fevereiro de 1931, e elas começaram em setembro do mesmo ano, após meros sete meses de projeto e levantamento topográfico. Administrativa, física e até psicologicamente, os primeiros campos de prisioneiros associados ao Canal do Mar Branco brotaram da Slon. Os campos do canal se organizavam com base no modelo da Slon, usavam equipamento dela e eram operados por quadros também seus. Tão logo as obras se iniciaram, os encarregados transferiram muitos presos dos campos da Slon nas ilhas Solovetsky e no continente para trabalharem no novo projeto. Por algum tempo, a velha burocracia da Slon e a nova burocracia do Canal do Mar Branco podem até ter competido pelo controle do projeto - mas o canal ganhou. Ao fim e ao cabo, a Slon deixaria de ser entidade independente. O kremlin de Solovetsky foi designado prisão de segurança máxima, e o arquipélago se tornou simplesmente mais uma divisão do Campo de Trabalhos Correcionais Belomor - Baltiiskii (mar Branco-Báltico), conhecido como Belbaltlag. Certo número de guardas e de destacados administradores da OGPU também foi transferido da Slon para o canal. Dentre eles, como se observou, estava Naftaly Frenkel, que gerenciou desde novembro de 1931 até o término das obras o dia-a-dia do projeto.{282} Nas memórias dos sobreviventes, o caos que acompanhou a construção adquire natureza quase mitológica. A necessidade de economizar acarretava que os presos usassem madeira, areia e pedra em vez de metal e cimento. Cortavam-se custos sempre que possível. Após muita discussão o canal foi escavado com profundidade de apenas quatro metros, que mal era suficiente para embarcações da Marinha de Guerra. Já que a tecnologia moderna ou era cara demais, ou não estava disponível, os planejadores empregaram enormes quantidades de mão- de-obra não-qualificada. Os cerca de 170 mil presos e "degredados especiais" que trabalharam no projeto ao longo dos 21 meses de construção usaram pás de madeira, mais serras, picaretas e carrinhos de mão muito rústicos, para escavar o canal e construir seus grandes diques e eclusas.{283} Nas fotos da época, essas ferramentas decerto parecem muito primitivas, mas só um olhar mais atento revela