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concedidos aos presos políticos socialistas tinham terminado em 1925, quando esses detentos foram transferidos de Solovetsky para prisões na Rússia central. Agora, o termo "preso político" sofria completa transformação, abrangendo qualquer um condenado segundo o infame artigo 58 do Código Penal - que englobava todos os crimes "contra-revolucionários" - e tendo conotações totalmente negativas. Cada vez mais, referiam-se aos criminosos políticos (às vezes chamados KRs, de "contra-revolucionários"; kontras; ou kontriks) como vragi naroda (inimigos do povo).{372} Esse termo, um epíteto jacobino que Lênin utilizara pela primeira vez em 1917, foi revivido por Stalin em 1927 para descrever Trotski e seus seguidores. Começou a ter sentido mais amplo em 1936, depois que uma carta secreta - "da autoria de Stalin", na opinião de Dmitri Volkogonov, seu biógrafo russo - foi enviada do Comitê Central às organizações do Partido nas regiões e repúblicas. Conforme a carta explicava, um inimigo do povo, ainda que pudesse "parecer manso e inofensivo", faria todo o possível para "esgueirar-se sorrateiramente para dentro do socialismo", embora "secretamente não o aceitasse". Em outras palavras, os inimigos não podiam mais ser identificados por opiniões expressas abertamente. Lavrenty Beria, chefe posterior da NKVD, também citaria Stalin com freqüência, observando que "um inimigo do povo é não apenas quem comete sabotagem, mas também quem duvida da justeza das determinações do Partido". Portanto "inimigo" podia significar qualquer um que se opusesse ao poder de Stalin, por qualquer motivo, ainda que aparentasse não fazê-lo.{373} Agora, nos campos de concentração, "inimigo do povo" se tornara termo oficial, usado em documentos. Aprisionavam-se mulheres como "esposas de inimigos do povo", depois que um decreto da NKVD de 1937 autorizou tais capturas; e o mesmo se aplicava aos filhos. Uns e outros recebiam sentenças como ChSVR, "familiares de um inimigo da Revolução".{374} Muitas das esposas foram encarceradas juntas no campo de Temnikovsky, também conhecido como Temlag, na Mordóvia (uma república da Rússia central). Anna Larina, mulher de Bukharin, o líder soviético caído em desgraça, lembraria que lá "nos tornamos iguais em nosso infortúnio - os Tukachevsky e os Yakir, os Bukharin e os Radek, os Uborevich e os Gamarnik. Como diz o ditado, a desgraça compartilhada já é só meia desgraça".{375} Galina Levinson, outra sobrevivente do Temlag, recordou que o regime do campo era relativamente liberal, talvez porque "não tínhamos sentenças, éramos apenas esposas". A maioria delas, observou Galina, eram pessoas que até então haviam sido "totalmente soviéticas" e ainda estavam convencidas de que seu encarceramento se devia às maquinações de alguma organização fascista secreta dentro do Partido. Várias ocupavam o tempo escrevendo cartas diárias a Stalin e ao Comitê Central, nas quais reclamavam, iradas, do complô que se armava contra elas.{376} Em 1937, "inimigo do povo", além dos usos oficiais, já virara ofensa. Desde o tempo de Solovetsky, os fundadores e planejadores dos campos haviam organizado o sistema em torno da idéia de que os presos não eram humanos, mas "unidades de trabalho": mesmo na época da construção do Canal do Mar Branco, Máximo Gorki descrevera os kulaks como "meio animais".{377} Agora, porém, a propaganda descrevia os "inimigos" como algo inferior até a essa espécie de gado bípede. A partir do final dos anos 1930, Stalin começou a referir-se publicamente aos "inimigos do povo" como "praga", "poluição", "imundície" ou, às vezes, simplesmente "erva daninha", que precisava ser arrancada.{378} A mensagem era clara: os zeks não eram mais considerados cidadãos plenos da URSS, se é que de alguma maneira podiam ser considerados pessoas. Um preso observou que estavam sujeitos a "uma espécie de excomunhão da vida política e não tinham permissão para participar das liturgias e rituais sagrados de tal vida". {379} Depois de 1937, nenhum guarda usava a palavra tovarishch (camarada) para dirigir-se aos presos, e estes podiam ser espancados por utilizá-la quando se dirigiam aos guardas, os quais tinham de tratar por grazhdanin (cidadão). Fotos de Stalin e outros líderes nunca apareciam nas paredes dos campos e prisões. Uma visão relativamente comum em meados da década de 1930 - um trem carregando presos, tendo os vagões cobertos com retratos de Stalin e com faixas que declaravam serem seus ocupantes stakhanovistas - já se tornara impensável depois de 1937. O mesmo ocorreu com as celebrações do 1º de maio, como aquelas outrora realizadas no kremlin de Solovetsky.{380} Muitos estrangeiros ficavam surpresos com o forte efeito que essa "excomunhão" da sociedade soviética tinha sobre os presos. Um prisioneiro francês, Jacques Rossi - autor do Manual do Gulag, um guia enciclopédico da vida nos campos -, escreveu que a palavra "camarada" conseguia eletrizar presos que havia muito tempo não a ouviam: Uma turma que acabara de completar um turno de onze horas e meia concordou em ficar e trabalhar o turno seguinte apenas porque o engenheiro-chefe [...] disse aos presos: "Peço-lhes que façam isso, camaradas" {381} À desumanização dos "criminosos políticos" seguiu-se uma mudança bem nítida (e em alguns lugares drástica) nas condições de vida deles. O Gulag dos anos 1930 fora geralmente desorganizado, freqüentemente cruel e ocasionalmente mortal. Mas, em alguns lugares e em alguns momentos durante aquela década, oferecera-se até aos presos políticos a oportunidade da redenção. Os trabalhadores do canal Moscou-Volga podiam ler o jornal Perekovka, cujo nome já significava "Regeneração". O final da peça Aristocratas, de Pogodin, mostrava a "conversão" de um ex-sabotador. Em 1934, Flora Leipman (filha de uma escocesa que casara com um russo, mudara para São Petersburgo e logo fora presa como espiã) visitou a mãe num campo madeireiro do norte e descobriu que "ainda havia um elemento de humanidade entre os guardas e os presos, pois a [NKVD] ainda não era tão sofisticada e tão psicologicamente orientada como viria a ser alguns anos depois".{382} Flora sabia do que estava falando, já que ela mesma se tornou prisioneira "alguns anos depois". Depois de 1937, as atitudes realmente mudaram, sobretudo em relação àqueles presos condenados pelo artigo 58. Nos campos, os presos políticos eram retirados dos postos de trabalho que haviam ocupado em planejamento ou engenharia e forçados a retornar ao "trabalho geral", ou seja, ao trabalho braçal não-especializado em minas ou florestas: não se podia mais permitir que os "inimigos" tivessem qualquer posição de importância, por medo de que se dedicassem à sabotagem. Pavlov, o novo chefe da Dalstroi, assinou pessoalmente a ordem que obrigava um preso-geólogo, I. S. Davidenko, a "ser utilizado como trabalhador comum e em hipótese nenhuma ter autorização para conduzir trabalhos independentes. As tarefas de Davidenko devem ser controladas com cuidado e sujeitas a observação diária".{383} Num relatório arquivado em fevereiro de 1939, o comandante do Belbaltlag também alegava ter "escorraçado todos os trabalhadores indignos de confiança política" e, sobretudo, "todos os ex-presos condenados por crimes contra-revolucionários". Ele asseverava que, dali em diante, as funções administrativas e técnicas deveriam ser reservadas para "comunistas, membros do Komsomol [a Juventude Comunista] e especialistas de confiança".{384} Fica claro que a produtividade econômica já não era a maior prioridade dos campos. Em todo o sistema Gulag, os regimes prisionais ficaram mais duros, tanto para os criminosos comuns como para os presos políticos. No começo dos anos 1930, as rações de pão para o "trabalho geral" podiam chegar a um quilo por dia - mesmo para aqueles que não cumprissem 100% da meta -, e atingir até dois quilos para os stakhanovistas. Nos principais lagpunkts do Canal do Mar