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punição pesada para o pequeno grupo de homens que lideraria a Revolução Russa. Na prisão, os bolcheviques, por serem condenados presos políticos e não criminosos, usufruíam tratamento relativamente benévolo e podiam ter livros e material de escrita. Grigory Ordzhonikidze, um dos chefes bolcheviques, mencionaria que leu Adam Smith, David Ricardo, Plekhanov, William James, Frederick W. Tay lor, Dostoievski e Ibsen (entre outros autores) quando preso na fortaleza Schlüsselberg, em São Petersburgo.{37} Pelos padrões posteriores, os bolcheviques também estavam bem alimentados, bem trajados e até muito bem penteados. Uma foto de Trotski quando prisioneiro na fortaleza de Pedro e Paulo, em 1906, mostra-o de óculos, terno, gravata e camisa de colarinho admiravelmente alvo. A vigia na porta atrás dele é a única pista do lugar onde se encontrava.{38} Outra foto, tirada no degredo na Sibéria oriental, em 1900, mostra Trotski de capote e gorro de pele, rodeado por outros homens e mulheres, também de botas e peles.{39} Meio século depois, todos esses itens seriam luxos raros no Gulag. E, quando a vida no degredo czarista se tornava insuportavelmente desagradável, havia sempre a opção de fugir. O próprio Stalin foi preso e degredado quatro vezes. Escapou três vezes, uma da província de Irkutsk e duas da de Vologda - região que depois ficaria salpicada de campos do Gulag.{40} Em conseqüência, adquiriu um desdém ilimitado pela "moleza" do regime czarista. Dimitri Volkogonov, seu biógrafo russo, caracterizou assim a opinião de Stalin: "A gente não precisa trabalhar, pode ler quanto quiser e pode até fugir, bastando ter vontade".{41} Desse modo, a vivência siberiana proporcionou aos bolcheviques um modelo anterior que eles poderiam aperfeiçoar - e uma lição sobre a necessidade de regimes punitivos excepcionalmente severos. Se o Gulag é parte integral da história russa e soviética, também é indissociável da história européia: no século XX, a URSS não foi o único país do continente a ter desenvolvido uma ordem social totalitária, nem a ter erigido um sistema de campos de concentração. Embora não seja a intenção deste livro comparar e contrastar os campos soviéticos com os nazistas, o assunto tampouco pode ser comodamente deixado de lado. Os dois sistemas foram construídos mais ou menos na mesma época. Hitler sabia do Gulag, e Stalin sabia do Holocausto. Houve prisioneiros que vivenciaram e descreveram os campos de ambos os sistemas. Num nível muito profundo, os dois eram aparentados. Antes de tudo, eram aparentados porque tanto o nazismo quanto o comunismo surgiram da experiência brutal da Primeira Guerra Mundial e, logo na seqüência, da Guerra Civil Russa. Na época, os métodos de "guerra industrializada" amplamente utilizados durante tais conflitos geraram enorme reação intelectual e artística. Menos notado - exceto, é claro, pelos milhões de vítimas - foi o uso generalizado de métodos igualmente "industrializados" de encarceramento. A partir de 1914, os dois lados construíram pela Europa afora campos de internamente e campos de prisioneiros de guerra. Em 1918, havia 2,2 milhões de prisioneiros de guerra em território russo. A nova tecnologia - a produção em massa de armas de fogo, tanques e até arame farpado - possibilitou esses e os campos posteriores. De fato, alguns dos primeiros campos soviéticos foram construídos sobre campos de prisioneiros da Primeira Guerra Mundial.{42} Os campos soviéticos e nazistas também são aparentados porque, juntos, se inserem na história mais ampla dos campos de concentração, a qual começou em fins do século XIX. Com o termo "campos de concentração", refiro-me a campos construídos para encarcerar pessoas não pelo que elas fizeram, mas pelo que elas eram. Diferentemente dos campos de criminosos condenados e dos campos de prisioneiros de guerra, os de concentração foram criados para um tipo específico de prisioneiro civil não-criminoso, membro de um grupo "inimigo" ou, pelo menos, de uma categoria de pessoa que, pela raça ou suposta tendência política, era considerada perigosa ou estranha à sociedade.{43} Segundo tal definição, os primeiros campos de concentração modernos foram estabelecidos não na Alemanha, nem na Rússia, mas na Cuba colonial, em 1895. Naquele ano, num esforço para pôr fim a uma série de insurreições locais, o poder imperial espanhol começou a preparar uma política destinada a tirar os camponeses cubanos da terra e "reconcentrá-los" em campos, assim privando os insurgentes de alimento, abrigo e apoio. Em 1900, a palavra espanhola reconcentración já fora traduzida para o inglês e estava sendo usada para descrever um projeto britânico parecido, iniciado por motivos semelhantes, durante a Guerra dos Bôeres, na África do Sul: os civis daquele povo eram concentrados" em campos, de modo a negar guarida e amparo aos combatentes bôeres. A partir de então, a idéia se disseminou ainda mais. Um exemplo: parece que o termo konstlager surgiu em russo como tradução do inglês concentration camp, provavelmente graças à familiaridade de Trotski com a história da Guerra dos Bôeres.{44} Em 1904, colonizadores alemães no Sudoeste Africano também adotaram o modelo britânico - com uma variação. Em vez de simplesmente aprisionarem os habitantes nativos da região (uma tribo chamada herero), eles os fizeram realizar trabalhos forçados para a colônia alemã. Há vários vínculos estranhos e inquietantes entre esses primeiros campos de trabalhos forçados germano-africanos e os construídos na Alemanha nazista três décadas depois. Por exemplo, foi graças a tais campos de trabalho no sul da África que a palavra Konzentrationslager (campo de concentração) apareceu pela primeira vez na língua alemã, em 1905. O primeiro comissário imperial do Sudoeste Africano Alemão foi um certo dr. Heinrich Göring, pai do Hermann que, em 1933, estabeleceria os primeiros campos nazistas. Também foi naqueles campos africanos que se realizaram as primeiras experiências médicas alemãs com cobaias humanas: Theodor Mollison e Eugen Fischer, dois dos professores de Joseph Mengele, fizeram pesquisas com os hereros; Fischer o fez na tentativa de corroborar suas teorias sobre a superioridade da raça branca. As crenças desses acadêmicos não eram nada incomuns. Em 1912, um best-seller teutônico, o livro O pensamento alemão no mundo, afirmava que nada poderá convencer pessoas racionais de que a preservação de uma tribo de pretos da África meridional é mais importante para o futuro da humanidade do que a expansão das grandes nações européias e da raça branca em geral [...] só quando os povos nativos aprendem a produzir algo de valor a serviço da raça superior [...] é que se pode dizer que eles têm um direito moral de existir.{45} Embora essa teoria raramente fosse enunciada com tanta clareza, sentimentos parecidos muitas vezes jaziam logo abaixo da superfície da prática colonial. Com certeza, algumas formas de colonialismo tanto reforçavam o mito da superioridade racial branca quanto legitimavam o uso da violência contra outra raça. Por conseguinte, pode-se argumentar que a vivência corruptora de alguns colonizadores ajudou a abrir caminho para o totalitarismo europeu no século XX. {46} E não apenas europeu: a Indonésia é um exemplo de Estado pós-colonial cujos governantes começaram aprisionando seus críticos em campos de concentração, tal qual os colonizadores haviam feito. O Império Russo, que com muito sucesso conquistara seus próprios povos nativos na marcha para o leste, não era exceção.{47} Durante um dos jantares festivos que acontecem no romance Ana Karenina, de Tolstoi, o marido da protagonista (o qual tinha algumas responsabilidades oficiais sobre "tribos nativas") pontifica acerca da necessidade de que as culturas superiores absorvam as inferiores.{48} Em algum grau, os bolcheviques, assim como todos os russos instruídos, deviam estar cientes de que o Império dizimara os quirguizes,