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pelo lirismo e pelo apuro na linguagem, foi responsá- vel por uma grande retomada no campo da poesia, que talvez, depois de Aleksándr Púchkin, que consagrou o modelo linguístico e poético russo usado até os dias de hoje, e de alguns outros poetas de sua época, tenha ficado um pouco à sombra dos grandes romances do século XIX: [o simbolismo] não só trouxe de volta a poesia russa ao cenário internacio- nal, mas recriou a teoria da poesia como arte verbal, deixando de lado as questões ideológicas fora da esfera da obrigatoriedade [...] 16 _____________ 15 SCHNAIDERMAN, B. Dostoiévski através do tempo: ―o romancista-filósofo‖, o público, a crítica. Turbilhão e semente: ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p.39. 23 Foi de fato o simbolismo um movimento profundamente poético (todos os prosadores simbolistas, como Fiódor Sologub, eram também poetas), de característi- cas cuja ―conceituação é original, não importada‖, como diz Bernardini (2005), e a começar pela do próprio símbolo. Ampliaram sua fundamentação (como fez Merejkóvski, Ivánov, esse já aqui mencionado, Biély, e outros) e passaram para a cria- ção de símbolos novos. Aqui se recita um poema de Zinaida Híppius (1869-1945), A costureira, no qual Bernardini (2005, p.171) destacou a lógica da construção do sím- bolo – parte-se do plano real, ―vindo em seguida o figurativo e o emocional‖: o cetim (figurativo) vermelho (emocional: sangue, amor) da costureira (plano real). A costureira (Tradução de Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos) Há três dias não falo com ninguém... Mas tenho ideias ávidas, malignas. Doem-me as costas, meu olhar se detém Em algo e só vê manchas azulinas. Plange o sino e da igreja e emudece, O tempo todo estou comigo, a sós. A seda rubro-ardente range e cede Sob a inábil agulha do retrós. Sobre o que ocorre há um selo impresso, O um e o outro estão como fundidos. Se aceito um, induzo-me ao recesso Do outro, o por detrás, o escondido. E esta seda me parece Flama, E agora não mais flama, talvez Sangue E o sangue um indício apenas do que chamas Amor, na pobre língua, língua exangue. O amor? Um som... E a esta hora tardia, Do depois, do que vem... não vou dizer. Não é flama, nem sangue... vê, rangia O cetim sob a agulha de coser. __________________________ 16 BERNARDINI, F. A. Simbolismo brasileiro (Alphonsus de Guimaraens) e simbolismo russo. In: CAVALIERE, A.; VÁSSINA, E.; SILVA, N. (Org.) Tipologia do simbolismo do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005, p.169. 24 E na tradução da própria Aurora F. Bernardini, um poema de Aleksándr Blok (1880-1921), de 1903, que ele dedicou à estátua equestre da ponte Ánitchkov, de São Petersburgo. No poema aparecem articulados: a ponte (plano real); o cavalo e o ca- valeiro da estátua (figurativo); a neblina, a água, o negror, o arquejar, etc. (elementos emocionais). Na ponte de gusa trouxeram na brida o Cavalo. Sob os cascos corria negra a Água. Arfava o cavalo. Neblina Sem lua. Na ponte, o arquejar, para sempre. Os cantos da água e os sons do ofegar Tão perto se alargam no caos circunstante Que mãos invisíveis rasgaram ao largo. No negror da água, pairando, o semblante. O ferro soante em um tom ecoou. Sumia o diferente e o eterno dormia. Chiando, no abismo a correia carregou A noite sem fundo em que nada mexia. Assim se passou. Sem moto ou tormento Fixou o cavalo seu eterno arquejar. E na brida enredado, tendido e silente Ficou o cavaleiro no seu despencar 17 A experiência sinestésica proporcionada pelo símbolo foi incorporada por toda arte simbolista, como pelo compositor Aleksándr Skriábin (1872-1915), que relacio- nou cores e sons em busca da ―arte total‖. Conduzia-se o simbolista russo à totali- dade, ao fim de todas as fronteiras das artes, e, de novo, numa busca acompanhada da profunda angústia de não se poder alcançá-la: ―a arte dos simbolistas está pró- xima da morte da arte‖ (NIVAT, 2005, p.37). Temas como a morte, a loucura e o suicídio, que aparecem no curso do século XIX, estão integrados a uma consciência cada vez mais próxima do descontínuo; e no simbolismo se chega com eles ao paroxismo. Em obras simbolistas, sobretudo nas _____________ 17 BLOK, A. Na ponte de gusa trouxeram na brida o. Tradução Aurora F. Bernardini. Revista Kalinka, São Paulo, Jun. 2011. Disponível em: <http://www.kalinka.com.br/index.php?modulo=Revista&id=13>. 25 russas, não raro a primeira de todas as dualidades, caos versus cosmos, tem uma ex- pressão quase mítica, o que pode ser conferido na poesia, na música, na prosa. A desconstrução do herói na prosa, o qual praticamente desaparece no modernismo, acontece com a ajuda da bela agonia dos artistas simbolistas. Também graças aos simbolistas houve um renascimento cultural russo na virada do século: ―o simbolismo é considerado um dos principais responsáveis pela renovação cultural por que passou a Rússia entre 1890 e 1910‖18. Essa renovação, que trouxe novas perspectivas em arte e filosofia e mudanças de valores e comporta- mentos, pode dar ao simbolismo russo a posição de movimento (termo já usado aqui, mas que não pode ser aplicado a todos os lugares onde houve simbolismo). No modo de viver simbolista, havia um contágio entre a arte e a vida de per- sonalidades frequentemente geniosas e dramáticas. O poeta Vladisláv Khodassiévitch19 (1886-1939) descreveu a sedutora ambiência simbolista, da qual fizerem parte grandes poetas, compositores, pintores e dramaturgos, e também fi- guras que, mesmo não deixando uma obra tão significativa, representavam em sua pessoa o hiperbólico mundo simbolista. É o caso da escritora Nina Petróvskaia, que acabou se suicidando num hotel miserável de Paris no ano de 1928. O caráter de- pressivo e intenso e os tormentos por que passou nas relações com Biély e depois com Briussóv, ele mesmo dono de um caráter insaciável, fizeram de Nina uma das figuras emblemáticas entre os simbolistas russos, que viviam e criavam por entre es- ses destinos melancólicos: Os simbolistas não queriam separar a figura do escritor da sua pessoa, a vida literária da pessoal. O simbolismo não queria ser apenas uma escola de arte, uma corrente literária. O tempo todo se esforçou por ser um método de cri- ação vital, e nisso consistia sua mais profunda e inabalável verdade. (KHODASSIÉVITCH, 1976, p.8) _____________ 18 ANDRADE, H. Breves noções sobre o simbolismo na Rússia. In: CAVALIERE, A.; VÁSSINA, E.; SILVA, N. (Org.) Tipologia do simbolismo do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005, p.148. 19 KODASSIÉVITCH, V. Nekrópol. Paris: YMCA-PRESS, 1976. 26 A implicação do artista na sua criação, ou o ―método de criação vital‖, foi um recurso essencial ao processo criativo simbolista − ―a minha vivência transforma o mundo; aprofundando-me eu me aprofundo na arte‖20 −, e as obras evidenciaram esse contágio de muitas maneiras. Mas decerto havia alguma afetação narcisista nesse lado inebriante de suas vidas. À parte com suas idiossincrasias, o outro reflexo do movimento, a ampliação do panorama cultural russo, constitui um dos seus maiores legados. Foi um momento muito profícuo de intercâmbios. Organizaram-se diversos círculos, nos quais artistas e pensadores de todo gênero debatiam fervorosamente. Todos conheciam o grupo de Dmítri Merejkóvski e da bela Zinaida Híppius, que praticamente conduziram o movimento simbolista em Petersburgo