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REVISTA DE DIREITO PUBLICO DA ECONOMIA RDPE 4*(Èffi Editora Fórum '{ai R. de Dir, Público da Economia - RDPE, Belo Horizonte, ano 3, n. 12, p. l-2,18, ort dcz- 2{Il5 A Governança e o Direito* Jacques Chevallier Professor na Universite Panthéon-Ássas (Paris tt). Diretor do CFRSA-CNRS sumário: I A governança à margem do direito - rI A juridicizaçáo da governança - III O impacto da sovernança sobre o cÌireito O tema da governança está em voga: não somente o recllÌ'so a métodos novos (ditos de "governança") ter-se-ia tornado indispensár'el para responder à "crise de govern3bilidadg" qr. conhecem as sociedades contemporãneas,i mas também esses métodos estariam dïfundïoos en-r todos os níveis do edifício social (internacional, regional, nacional, local) e em todo tipo de organízação (Estado, partidos políticos, empresas...). O discurso da governança se revela, entáo, em duas vertentes distintas, mas que se influenciam mutuamente: uma normativa e prescritiva e a outra descritiva e analítica. Sustentada por um conjunto de representações, ligadas entre si e constitutivas de uma ideologia coerente,z a governança é utilizada como meio de legitimação dos poderes estabelecidos e motor de mudança política. Assim, as instituições financeiras internacionais se fizeram ardentes promotoras das práticas de "boa governança" nos países em d.esenvolvimento. Mas a governança constitui também um excelente critério de análise da infìexão das formas tradicionais de exer- cício da autoridade. Agora onipresente no discurso político, o tema da governança é paralelamente o objeto de uma grande difusão no conjunto das ciências sociais.3 f Uma u., q.,. a governança afeta as tecnologias de poder, i-pO.-rJ a questão de sua relação com o direito. Com efeito, o direito constitr-ri o vetor privilegiado de expressão do poder,a o invólucro no qual se encoÌltranl as relações de dominaçáo. No centro dos modos clássicos de "goverÌls" - caracterizados pela assimetria, pela desigualdade, pela unilateralidacie. * Texto originariamente publicado no livro Mélanges Paul Amselek, Bruxelles, Bruylant, 2005, p. 189-::- Agradecemos ao autor pela sua gentil colaboração com o tradutor e autorização para a publìcaçá: ::i.: artigo. Tradução de Thales Morais da Costa (Doutorando na Universite Paris l- Panthéan-Sor..-': 1 CURAPP. La Gouvernabilité. PUF, 1996. 2 DEFARGES, P. Moreau. Gouvernance: une Mutation du Pouvoir? Le Debat, n. 1 15, mai-aoüt 2l -' : ' ',: et seq. et La Gouyernance. PUF, Col. Que sais-je?, n.3676, 2003.3 CHEVALLIER, J. La Gouvernance: un Nouveau Paradigme Étatique? Revue Françaìse )'a:- ^ -:".::' Publique, n. '105-106, 2003, p. 203 et seq. 4 LOSCHAK, D. Le Droit, Discours de Pouvoir. ltinéraires- Mélanges Léo Haman, Eccr::- :" ';:- : --: et seq. 130 lacques Chevallier a forma jurídica é necessariamente afetada pela promoçáo de um estilo novo de decisáo e de açã,o, o qual repousa sobre a cooperaçáo e a procura de adesáoJO.u, paradoxalmente, a noçáo dç-.g--o-.vcrpaqça é rejeitada para --J *"!ãit.FwLf,ora das categorias do pensamento (até mesmo do campo de percepçáo) dos juristas. Enquanto que os trabalhos precursores de Paul Amseleks pareciam dever conduzir a uma receptividade especial dos juristas a uma problemâLrca que permite sintetizar pelo menos algumas das grandes tendências da evoluçáo da técnica jurídica, a ciência jurídica permanece sendo uma das raras ciências sociais nas quais a noçáo náo tem realmente sido admitida. Essa exclr-rsão está em contraste com a recepçáo da noção d. JSH*fup. à qual a governança é, no entanto, consubstancialmente hgaiíã."'É-ïËiãade Que a noçáo de regulaçáo é familiar aos sociólogos do direito que, há muito tempo , ltzeram da regulação um dos atributos do direito (enquanto dispositivo de enquadramento das condutas), e também colocaram em evidência, a partir dos trabalhos de N. Luhmann e G. Teubner, o surgimento com o Estado providência de um' j1!gl9_l9gulador", ggu,..Al, procurava agir sobre os equilíbrios sociais.ô Porém, atualmenÌèlã:noçáo é utilizada numa terceira acepçáo, precisamente para sintetizar certosppgstos_ 1gv_glg\Le* o nas sociedades contemporâneas: o surgimento de um "direito de regulação" manifestando ? passagem de um direito abstrato, geral e desencarnado a um direito concreto e enraizado na realidade.TiOra, uma ligação estreita existe entre regulaçáo e governança: se a idéia de r-egulaçáo remete à idéia de uma certa funçáo a exercer, de certos objetivos a atingir saber, a manutençáo de um equilíbrio de conjunto -, sua concretizaçáo implica o recurso a novos modos de exercício do poder. A regulaçáo pressupõe a governança, com a qual ela forma LÌma aúpta indissociável. Seguindo a via aberta por Paul Amselek, mostrar-se-á que se, numa primeira abordagem, a governança parece se situar à margem do direito - o que explica a indiferença estampada pelos juristas a seu respeito (I) -. ela tende inevitavelmente a sejuridLcrzar, passando pelo canal do direito II : r-rão deixando, portanto, de influir sobre as condições de utilizaçâo -i:, récr-rica jurídica (III). Ievolutìon Générale de la Technique Juridique dans les Sociétés Occidentales . Revue du p 287 et seq. r:;-latron Juridique en Question. Droit et Société, n.49, 2001, p. 830 et seq. , l:':s du Droit: Essai sur la Notion de Regulation. Revue Française D'administratìon ::a ' i75 et seq, FRISON-ROCHE, M. A. Le Droit de la Régulation. Recue/ Dalloz, :. ::r =. '-ss ,?:cueil Dalloz, n.2,2004, p. 126 et seq. AGovernança eo Dlreito 131 I A governança à margem do direito Guiada por uma racionalidade de ordem política, a governança se - situa à primeira vista numa relaçáo de exterioridade ao direito: trata-se de flexibilízar o estilo da açáo púrblica, trazendo novas categorias de atores para a elaboração das escolhas coletivas. A governança se desenvolve, aparentemente, fora dos procedimentos formais de edição do direito -cuja confìguraçáo continua a mesma. No entanto, esse novo estilo de açáo pública traz consigo representações e valores diferentes daqueles sobre os quais repousa o modelo jurídico clássico: a governança deixa entrever um g,g"llgllodo _de piloragem do social, repousando mais sobr - ,s, u:&?psffig * dos atores do que sobre a unilateralidade. A lógica gestionáiiã au".n ciência tende, entáo, a conceber a governança como alternativaao direito. A) A governança, exterior ao direito A governança é sustentada por Llma lógica diferente daquela que governa o direito: enquanto que este último se exprime no imperativo, sob a forma de comandos obrigatórios provenientes de uma autoridade investida do poder de decisão e segundo as regras fixadas para sua ela- boração, a governança provém de uma abord,agem pluralista e interatiua d.a açáo coletiva. Tiata-se de obter, pela virtude du t.o.u, compromissos aceitáveis, levando em consideração a complexidade dos problemas e a existência de poderes múltiplos. A governança implica, ao mesmo tempo, a ampliação do círculo dos atores associados aos procedimentos decisórios e a procura sistemâtica de soluções de tipo consensual. Como é sublinhado por Philip Schmitter,s "a governança é um método ou um mecanismo de ", regulação de uma ampla série de problemas ou conflitos, pelò qual os atores chegam regularmente a decisões mutuamente satisfatórias ou coercitivas, através da negociação e da cooperaçáo"; ela se caracteriza por "formas horizontais de interação entre atores que possuem interesses contraditórios, mas que são suficientemente independentes uns dos outros para que nenhum deles possa impor uma soluçáo por si só, sendo sufi- cientemente interdependentes para que eles sejam todos perdedores se nenhuma soluçáo for encontrada". A lógica da governança se difundiu assim em todos os níveis da ação coletiva, à margem dos procedimentos jurídicos clássicos. Assim, o conceito de "governançaglobal"e foi criado para dar conta da emergência 8 Réflexions Liminaires à Propos du Concept de Gouvernance. ln: La Démocratie dans lous ses États 2000, p. 51 et seq. e ROSENAU, J. N.; CZEMPIEL, E. O. (Ed.). Governance without Government Order and Politics. Cambridge University press, 1992. R. de Dir. Público da Econonria - RDPE, Ilelo Horizonre,;Ìno 3, n. 12, p. l2g-1{o. uui ü.: 1 32 :".qres Chevallier na vida internacional de novas categorias de atores, que vieram ab,..4!ar o monopólio que os Estados detinham sobre as relações internacionais. Os dispositivos tradicionais, de natureza interestatal, sobre os quais repou- sava a ordem internacional não sáo mais sufìcientes. Mecanismos novos, destinados a assegurar uma ampla confrontaçáo de pontos de vista, tornaram-se indispensáveis. Atualmente, esses novos atores (o1g"1ni açõe9 não governamentais, firmas multinacionais, comunidades de experts...) sáo presentes nas arbitragens internacionais, não apenas indiretamente, por intermédio dos Estados com os quais eles guardam relações permanentes, mas também diretamente, por sua associaçáo aos trabalhos de glupos de reflexáo (tais como o fórum de Davos) ou de organizações internacionais, que tendem cada vez mais a se abrir para o exterior. No nível europeu, a estreita relaçáo de grupos de interesse com os processos decisionais tende a fazer da Europa um verdadeiro laboratório do modelo de governança. No plano interno, a funçáo de regulaçáo atribuída ao Estado requer a inflexáo dos modos de exercício do poder e a passagem das formas tradicionais do "governo" ,uo, novos procedimentos da "governança": é realmente em se associando os interessados à definição das regras do jogo que um bom equilíbrio de conjunto poderá ser obtido. A solução de problemas coletivos náo é mais, portanto, da responsabilidade exclusiva do Estado, mas implica a participação dos atores sociais, prontos a ultrapassar a defesa de seus próprios interesses categoriais para tentar extrair um interesse comum e colaborar com a concreLrzaçâo de escolhas coletivas. A açáo pública torna-se assim a resultante de um processo longo, complexo, sinuoso, do qual múltiplos atores sáô convidados a participar. Porta-vozes representativos dos diferentes grupos sociais seráo associados à elaboraçáo das políticas: essa abertura visa a locahzar as fontes potenciais de conflito, a balizar os terrenos de afrontamento, a situar as possíveis zonas de compromisso, e ela autoriza a procura ativa de acordos, a nego- ciação de compromissos. A abertura, no entanto, náo é total: a acessi- bilidade dos atores sociais aos processos decisionais depende dos recursos que eles podem mobilizar, de seu grau de organtzaçâo, assim como de sua aptidáo a se inclinar às condições dojogo coletivo. A lógica da governança conduz, no entanto, a ir além dessa associaçáo dos grupos de interesse, ampliando o círculo dos atores envolvidos e criando novos lugares de troca: um espaço de "debate" tende, assim, a surgir antes do espaço de negociaçâo;trata-se de abrir os processos decisionais para a "sociedade civil", R. de Dir. Público da Economia - RDPE, llelo Horizonte, ano 3, n. 12, p. 129-146, out./dez. 2005 AGovernança eo Direito 133 de escutar a"voz dos cidadãos", no âmbito de uma "política deliberativa", ampliando o campo do debate em torno das grandes escolhas coletivas. Oscila-se entáo entre "governanças instrumentais", visando a uma melhor eficácia da ação pública, e "governanças procedimentais", visando a abrir a açâo púbtica aos cidadãos, aos grupos, às comunidades.r0 No nível territorial, o estilo da ação pÍrblica também muda, os eleitos sendo con- duzidos a levar em consideraçáo a existência de atores múltiplos (grandes empresas públicas e privadas, grupos de engenharia urbana, adminis- trações setoriais, grupos de interesse, associações...), cuja cooperaçáo é necessârrapara a concretizaçâo de políticas locais.rr Enfim , a efi.câcia da ação pública supõe que sejam remediados os efeitos negativos dos isola- mentos administrativos (através do estabelecimento de relações de troca e de cooperação entre sewiços), e que os agentes sejam promovidos ao status de atores integrais: as políticas atuais de modermzaçã,o administrativa baseiam-se na idéia de que os funcionários administrativos devem estar associados, náo somente à concretrzaçâo, mas também à concepção mesmo das reformas.l2 Esse desenvolvimento das práticas de governança se realiza à margem dos procedimentos jurídicos e em outros lugares: o caráter informal dos dispositivos de governança contrasta com o formalismo dos modos de elaboraçáo do direito. Dominada por uma lógica de ordem política, a governança, aparentemente, escapa das imposições do formalismo jurídico. No entanto, os processos se entrelaçam inevitavelmente: se a governança se prolifera à penferia da ordem jurídich, nrcm por isso ela deixa de interferir nessa ordem. O direito tende a ser tão somente o invólucro formal de um jogo com finalidade cooperativa, De uma forma mais geral, é um novo estilo de ação pública, fixando-se não mais sobre a unilateralidade e a coerçáo (como no modelo jurídico clássico), mas sobre a cooperaçáo e sobre a adesáo que se definem através do tema da governança: se esse estilo'é compatível com permanência das formasjurídicas - muito embora ele esvazie tais formas de uma parte de seu conteúdo -, ele implica r-tma desvalorrzaçáo da concepÇáo tradicional do direito. Assim, a governança '0 PADIOLEAU, J. G. L'action Publique Post-moderne: le Gouvernement Politique des Risques. Politrques e: Management Public, n. 4, 1999, p. 85 et seq. 11 GALÈS, P. Le Du Gouvernement des Villes à la Gouvernance Urbaine. Revue Française de Science Poi,t'c-z n. 1, 1995, p.73 et seq. 12 CHEVALLIER, J. Les Fonctionnaires et la Modernisation Administrative. Revue Administrative, r'.2f ' . ..- . ' Íev. 1993. p. 5 et seq., e Prévenir L'échec. Revue Française D'administration Publique, n. 87, - ::-s::: 1998, p.389 et seq. R.deDir.PúblicodaEconomia-IÌDPE, lJeloHorizonte,ano3,n. 12,p. 129-Ì{tl.tu: cc 1 34 la.ques Chevallier deixa entrever um modelo de governo das condutas que se distancia da marca do direito. B) A governança, alternativa ao direito O desenvolvimento de práticas de governança revela a insuficiência dos mecanismos jurídicos clássicos para enfrentar os problemas aos quais sáo confrontadas as sociedades contemporâneas: a racionalidade coo- perativa que sustenta tais práticas se situa nas antípodas da concepÇáo tradicional do direito. O modelo de governança aparece, nessa perspectiva, não mais como um simples adjuvante, mas sim como um szóstituto ao modelo de governo que passa pelo canal do direito e que aposta nas competências da dogmática jurídica. Nos fundamentos da governança , hâ a preocup açâo da eficácia da ação pública (a qual, atualmente, é erigida a imperativo categórico). A gestão pública náo é mais dotada de uma legitimidade de princípio, é preciso ainda que os gestores aportem a demonstraçáo concreta da ade- quação das ações empregadas, da qualidade da "performance pública". Ora, o recurso ao instrumento jurídico não somente não aparece mais como a garantia dessa eficácia,l3 mas também tenderia a contradizê-la, ernrazã.o do formalismo e da rigidez caracterizadores do direito:ra a açáo pública seria mais efrcaz quanto mais ela se distanciasse dos entraves do direito; e a governança ofereceria uma via alternativa ao direito. Essa visáo traduz-se, em primeiro lugar, pela rg_{qgáo da especificidade das regras jurídicas aplicáveis à açáo pública: esta última náo apresentaria úma ìingulaïiãadèïãi qüé èla-deïêsse ser submetida a regras derrogatórias do direito comum. Assim, a existência de um _direito administrativo, irreme- diavelmente marcado do traço da unilateralidade, e concebido como um direito de desigualdade e de privilégio, seria contrária ao novo contextono qual se desenvolve a açáo pública. A governança contribui, então, a repensar as fundações sobre as quais o direito administrativo se construiu.rs Em segundo lugar:, a açáo púrblica tende a passar por canais diferentes do vetor.jurídico cIássico. Assim, o movimento de desregulamentaçáo se tradu- ziu menos por um recuo da intervenção púbtica que pelo recurso a práticas mais maleáveis de enquadramento dos comportamentos. Com efeito, a 'r CHEVALLIER, J.; LOSCHAK, D. RationalitéJuridique et Rationalité Managériale dans L'administration Française. ?e,'ue Française D'administration Publique, n. 24, oct.-déc. 1982, p. 679 et seq. r:À:II-CSSE,J.; HARDY ).DroitetModernisationAdministrative. LaDocumentationFrançaise,2000,p.22:'(êõ | ::: -LCSSE, J. Le Droit Administratif Contre la Performance Publique? Actualite Juridique - Droitj:- r's:ratif , mars 'ì 999, p. 195. !- i',::lico ri:r Econor.nia - RDPE, llelo Horizonte,:rno 3, n. 12, p. 129-146, out./dez. 2005 AGovernança eo Direito 135 regulamentação traz inconvenientes e sua aplicaçáo é dificultada por diversos obstáculos: por sua uniformidade, ela se adapta mal à diversidade das situações; por sua estabilidade, ela rapidamente se torna obsoleta; por seu aspecto coercitivo, ela suscita reações de passividade e de fugu. Também o Estado procura modelar os comportamentos, preferencialmente pela utilizaçáo de meios de influência: não se trata mais de coerção mas de convencimento, através do recurso a estímulos diversos. Mais econômica em seu uso, mais flexível em seus efeitos, e sem dúvida mais efi.caz em seus resultados, a incitação torna-se um instrumento privilegiado de regulaçáo. A governança implica, assim, um reajustamento dos modos de intewenção pública. Enfim, a influência do direito na ação pública tende a ser mais indefinida. Com efeito, os mecanismosjurídicos são combinados com meca- nismos extrajurídicos, segundo um agenciamento complexo;rô a idéia de comando cede espaço a uma visáo nova de um direito prestando-se a for- mahzar os compromissos negociados no âmbito dos processos de governança. Essa formulaçáo mostra, todavia, que a idéia de uma governança alternativa ao direito é ilusória: se ela age sobre o direito, modificando sua consistência e sua substância, a governança, náo somente precisa de um ambiente institucional para se desenvolvet, mas também náo pode abrir ;mão de uma traduçáo em termos jurídicos. Ela encontra-se na verdade ' enquistad,a nos processos jurídicos, dos quais ela é indissociável. ll A juridicização da governança Se a governança transborda os procedimentos jurídicos clássicos, ela não escapa, no entanto, da influência do direito. Em primeiro lugar, para que ela se desenvolva, é preciso que sèja estabelecido um quadro claro de interaçáo, em que sejam definidas certas regras do jogo. Ela implica por isso mesmo um elemento de "exterioridade institucional",lT ott seja, a existência de uma instância dotada de recursos necessários para iniciar o processo, selecionar os participantes, conduzir as negociações, fixar as bases de um acordo possível - tal enquadramento supondo necessariamente o recurso ao direito. Mas a governança também postula que os compromissos obtidos náo possam ser colocados em dúvida, que eles se imponham a todos, que eles sejam dotados de força obrigatória: ela náo pode ficar limitada ao informal; o produto das negociações deve ser cristahzado, objetivado 16 MOCKLE, D. Gouverner spns le Droit? Mutation des Normes et Nouveaux Modes de Régulation. les Cahiers de Droit, Montréal, v.4J, n.2, juin 2002, p.143 et seq. 1? PADIOLEAU, J. G., op. cit. R. de Dir. Público da Economia - RDPE, llelo Horizonte, ano 3, n. 12, p. 129-146, out.idez. 2ttii5 136 lacques Chevallier pelo recurso ao registro jurídlco. Tfa,nscrita na linguagem e nas formas do direito, a governança pode, entáo, vir se implantar nos procedimentos jurídicos clássicos. , A) A procedimentalizaçáo A procedimentalïzaçao da governança procede de um movimento bem conhecido: inicialmente oficiosos e informais, os contatos indis- pensáveis estabelecidos com os atores sociais tendem irremediavelmente à oficializaçáo e à formaltzaçã,o; enquadrados por regras cada vez mais precisas, eles tornam-sé um dos qlemengos constitutivos do processo formal de tomada de decisóes. Essa dinâmica é,hâ muito tempo, ilustrada pelo desenvolvimento dos procedimentos d.ffi"sülta: \ue a consulta se dirija ao conjunto do público ou apenas aos representantes dos grupg,"#S* * -inlgfeS$ç' ela evolui em todos os casos no sentido de uma instituciona- Irzaçâo crescente. Do mesmo modo que a "pesquisa públicv" - que nos países anglo-saxões abre espaço para um verdadeiro debate, envolvido de formas quase-jurisdicionais - deu aos interessados a possibilidade de intervir na elaboração das decisões que lhes dizem respeito diretamente, a proliferaçáo de "estruturas consultivas" permitiu a associaçáo perma- nente dos grupos de interesse à tomada de decisões, em os integrando no centro do aparelho do Estado. E se o peso dessa "administraçáo consultiva" leva a privilegiar os dispositivos mais maleáveis de concertação, esta última tende ela mesma a um formalismo crescente. Assim, a ampliação do número de atores envolvidos (qr. é inerente à lógica da governança) não é uma coisa nova; e a experiência mostra que ela resulta inevitavelmente em um incremento da complexidade do sistema de decisão formal. As formas novas de governança obedecem a essa mesma trajetória de institucionalizaçã,0, passando pelo canal do direito. No nível internacional, essa trajetória se traduz por um processo de reconhecimento, que eleva os novos atores emergentes à categoria de verdadeiros parceiros dos Estados e das organizações internacionais. Assim, o procedimento dè ...aÃËË*ento confere às organizações náo governamentais um estatuto consultivo perante o ECOSOC, que lhes permite participar às atividades da ONU - a reforma desse estatuto, em 1996, tendo ampliado essas possibilidades de intervenção. Correlativamente, tais organizações náo- governamentais seráo chamadas a.tealizar missões de subtratamento em nome da ONU, notadamente em matéria humanitária. No âmbito da "Colusão global" (Global compact), essa parceria se estendeu a outros autores R. de Dir. Público da Econornia - RDPE, lJelo Horizonte, ano 3, n. 12, p. 129-146, out./dez. 2005 A Governança e o Direito 137 privados, tais como os sindicatos e as firmas multinacionais. Do mesmo modo, a "obsessáo por comitês" praticada no nível europeu leva a envolver diretamente os grupos de interesse Ì-Ìa elaboraçáo das políticas comuni- tárias. Além disso, as organizações não-governamentais serão associadas à reflexáo sobre os grandes problemas internacionais e à elaboração das novas normas do direito internacior-ra1: assim, os "fóruns" reunidos sob sua iniciativa - paralelarrente às nlanifestações tidas sob a égide das organizações internacionais - ç61-;1s integrados progressivamente aos processos decisionais, na via tracacll ern 1992 pela Conferência do Rio sobre o meio ambiente. Certos cÌispositivos oficiais de comunicação vão assegurar a articulaçáo entre esscs cÌcis mundos inicialmente separados: aquele constituído pelos represeÌlt:rl:cs Cos Estados e aquele formado pelos porla-vozes alltoproclamados cla "s:;ieclacle civil internacional" - como o demonstrou de maneira muiro ex:lícr:r o Sollr net parao desenvolvimento sustentável de Johannesburg cle : l- j \o r-rír'el europeu, a criação de um "Fórum permanente da socieclacìe -;', ll" se inscreve na mesma perspectiva, com a etapa suplementar qlÌc c-,r-.:-..'-.1 r eletivação de um sistema per- manente de troca. Sem dúri icÌ:r. cs:; .r-.::itucionalizaçao náo é completa: ao lado das organizações t-táo-{t,-, r-r'Ì-..,r^e ntais atualmente integradas no sistema de decisão e de ação ir-t:c:-l-.r:.--,:ral, reaparecemincessantemente franco-atiradores, que reclrsaÌ'Ìl :ì ::'.icÌr rnternacional em vigor e preten- dem combatê -Ia a partir de ttnra pi :.;-i -, cle exterioridade (v. as freqüentes manifestações organizadas clescle r'' :',eÌltoS de Seattle por ocasiáo das grandes reuniões internacior-rais . \; cÌrtAÌl[o, aqui também, passarelas estáo sendo estabelecidas em viste cic -i:r:ilizar o potencial de contestação da globahzaçã.o econômica, A formataçáo da goverÌ13Ìlcrr cÌr-. ternlos jurídicos é ainda mais explícita na ordem interna. Enquan.u C'.re os pÌoc.ediqrgSgos cfá;sicos de consulta sáo sufìcientemente nr;rie:i',.rrs e adaptáveis para permitir a associação permanente de novos gr'-.llos cÌe interesse organizados aos processos decisionais - tornanclo-se a)):lì o h-rgar privilegiado de exercício da governança -, certos mecanisÌllos :,.1r'íclicos r'êm oficializar a presença de cidadãos. Assim, o procedin-ìeÌrto cie pesqr-risa pública é dotado de um campo de aplicação cada vez r-r-uris :ìÌn1llo, sendo sistematicamente utilizado em todos os casos enl que r eçno púrblica tem efeitos indivi- dualizáveis e destinatários localizár'eis, Enr toclos os lugares, tanto no nível nacional que local, as técnicas de cor-rsr-rita clireta dos cidadãos conhecem R.deDir.PúblicodaEconomia-IÌDPE, IleloHorizontc,ìno3,n. l?,p 129-l46,out./de2.2005 t! 1 38 lacques Chevallier um espetacular desenvolvimento: é assim gue, em França, as práticas de consulta dos habitantes, que se tinham desenvolvido à margem da legalidade, sob iniciativa dos eleitos municipais,rs foram num primeiro momento legalizadas (lei francesa de 6 de fevereiro de 1992) - com reconhecimento posterior do direito de iniciativa dos habitantes em matéria de organizaçáo do território (lei francesa de 4 de fevereiro de 1995) - para em seguida serem estendidas aos outros níveis territoriais e dotadas de força decisória pela revisáo constitucional de 2B de março de 2003.re Os cidadáos exercem, portanto, influênciâ direta sobre o processo formal de decirãó.'ú;ì; rìg"i- ficaiivameúte ainda, as novas formas de "debate público", surgidas de maneira pragmática em torno de grandes escolhas coletivas, tendem a ser progressivamente enquadradas pelo direito. É verdade que, por vezes, o debate fìca limitado à informalidade, como o comprovam as novas "confe- rências de cidadáos", pelas quais uma parcela representativa da populaçáo é convidada a formular uma opiniáo sobre um problema complexo,2o ou ainda os "Estados gerais" reunidos para debater as orientações de algumas grandes políticas setoriais. No entanto, tal debate pode ser instituciona- lizado com bastante ênfase - assim, a partir da lei fi ancesa de 2 de fevereiro de 1995, a reahzaçáo de projetos de organização ou de equipamento de interesse nacional exige o desenrolar de um debate sob a égide de uma "comissão nacional do debate público".2r Esse dispositivo (reformado em 2002 pela lei francesa de 27 de fevereiro de 2002, relativa à "democracia de proximidade", título IV, e pelo decreto de 22 de outubro de 2002), ao elevar o "momento deliberativo" à qr,ralidade de formalidade substancial, integra-o no processo formal de decisáo. A lógica da governança é então progressivamente oficializada nos procedimentos que a transcrevenl em termos jurídicos e, dessa forma, asseguram sua conexáo aos processos formais de decisão. Ela encontra também uma expressão jurídica específìca na técnica contratual. B) A contratll ahzaçao A contratualizaçáo constitui um instrumento privilegiado de forma- bzaçâo da governança. Com efeito, ela traduz juridicamente a abordagem 18 PAOLETTI, M. La Démocratie Locale et le Referendum. L'Harmattan, Col. Logiques Politiques, 1997. re O novo artigo 72-1, 52o, da Constituição francesa prevê que "sob as condiçóes previqtas pela leiorgânica, os projetos de deliberação ou de ato de competência de uma coletividade territoiial podem, sob sua iniciativa, ser submetidos, pela via de referendo, à decisão dos eleitores dessa coletividade". 20 A fórmula foi experimentada pela primeira vez em França em junho de 1998 a respeito da utilização de organismos geneticamente modificados (OGM) na agricultura e na alimentação (v. sobre essa experiência BOY D.; DONNAT-KAMAL. D.; ROQUEPLO, P. Un Exemple de Démocratie Participative: la Conférence de Citoyens sur les OGM. Âevue française de Science Politique, n.4/5,2000, p. 779 et seq.). 2' VALLEMONT, S. (Ed.). Le Débat Public: une Réforme dans l'État. LGDJ, Col. Systèmes, 2001. R. de Dir. Público da Econornia - RDPE, Ilelo Horizonte, ano 3, n. 12, p. 129-146, out./dez. 2005 AGovernança eo Direito 139 contratualista e consensual da açáo pública - que fieura entre os fundamentos da governança. A contratualização implica relações jurídicas fundadas náo mais sobre o unilateralismo e a coerçáo, mas sobre o acordo de uontadas. Se, de um lado, ela pressupóe que seja levada em consideraçáo a existência de atores autônomos (dos quais se deve obter a cooperaçáo), de outro, ela passa por um processo de negociaçáo visando a defìnir os contornos de uma açáo comlÌÌÌ1. Encontra-se aqui, portanto, a lógica que caracteriza a governança. É r'erdade qLle a contratuahzaçáo é acom- panhada de uma inflexão da concepção tradicional do contrato (compre- endido como um ato sinalagmático, repollsaÌrdo sobre a Ìivre troca de consentimentos e sobre a igualdade das partes): as fronteiras entre contrato e ato unilateral de um lado, contrato e convenções mais maleár'eis de "parceria" de outro lado, mostram-se imprecisas na maioria dos casos. Porém, através do desenvolvimento dessas "regras públicas negociadas", é na verdade o movimento de juridicrzaçâo da governança que se verifìca. A existência de uma moldura contratual tem como efeito assegurar a estabilidade e a perenízaçâo do sistema de relações criado entre os diferentes atores envolvidos. Mesmo se a contratualizaçáo não- f_gp fenômeno nov_o, ela passa por um desenvol rot ;;;;"çã de parceria permitem que as organizaçóes internacionais obtenham o concurso de novos atores da sociedade internacional tanto às operações humanitárias que às ações de desenvolvimento sustentável.22 No nível interno, a con- tratualizaçáo aparece como o meio de associar, de maneira estável, os diversos parceiros envolvidos com a elaboração e a realízaçáo de políticas públicas. A economia consiitui, há muito tempo, o lugar privilegiado de aplicaçáo das técnicas contratuais: com efeito, o Estado se viu coagido a compor com os poderes econômicos privados, esforçando-se para obter sua colaboração para a realízaçáo de objetivos de políticâ econômica. A contratualtzaçã.o permite que essas relações se normalizem, identiÍicando os compromissos de cada um. Assim, os instrumentos contratuais foram progressivamente substituindo as técnicas regulamentadoras clássicas, manifestando a passagem para uma "governdbilidade cooperativa".23 22 Com essa finalidade, mais de 200 parcerias foram colocadas em prática com as empresas. 23 SERVERIN, E.; BERTHOUD, A. (Ed.). ta Production des Nornes entre Etat et Société CrVrle. tiHarmattan, Col. Logiques Juridiques, 2000. V. também GAUDIN, ). P, Gouverner par Contrat. L'action Publique en Question. Presses Sciences Po, 1999. lÌ. de Dir. Público da Econouria - IÌDPE, llelo Horizonte, ano 3, n. 12, p. 129-146, out./de2.2005 1 40 lacques Chevallier Mas o fenômeno transborda o domínio econômico para se estender aos diferentes campos de intervençáo pública: para assegurar as responsa- bilidades que lhe foram atribuídas, o "E,stado regulador" deve apoiar-se sobre os atores sociais - e as convenções virão oficializar essa cooperaçáo. Essa prática é particularmente desenvolvida no nível local: na falta de meios suficientes, as autoridades locais sáo levadas a recorrer aos modos de "gestáo delegada" e às convençóes de parceria - as associaçõestendo se tornado, tanto no domínio econômico como no social ou no cultural, um parceiro indispensável para assegurar a concretizaçáo das políticas locais. Mas a contratuahzaçáo náo permite apenas que se ofìcia\rze a asso- ciaçáo de diversos atores privados à açáo pública. Ela é também o meio de promover novas relações no interior mesmo da esfera pública. De um lado, a técnica contratual presta-se a assegurar a coordenação de entidades juridicamente autônomas: assistiu-se assim, em França, ao desenvolvimento de uma contratualízaçáo "vertical", entre o Estaclo e as coletividades locais ou as empresas públicas, e de Lrma contratualtzaçâo "horizontal", entre unidades administrativas do mesmo nível. Por outro lado, a contra- tualizaçâo também é utilizada como instrumento de diálogo social nos diversos serviços (negociaçóes coletivas com os sindicatos, "contratos de participação" destinados a assegurar o retorno dos ganhos de produti- vidade em favor dos agentes, "contratos de performance" visando a res- ponsabilizar os quadros...).2a Essa penetração da lógica contratual no centro da esfera pública levanta diversos tipos de problemas: o da força jurídica de documentos cuja natureza contratual pode ser colocada em dúvida;25 o da compatibilidade dessa contratuahzaçâo com a existência de uma ordem interior administrativa.2ô A aclimatação dessa lógica, ao final de um trabalho de interpretaçãojurisprudencial e doutrinal, é reveladora desse fenômeno. Mesmo se essas diferentes formas de contratuahzação se empilhem, se encaixem, se entrecrllzem - aparentemente na grande desordem -, elas provêm de uma mesma lógica de jmidícizaçã,o da goaernança, pela qual t-- esta se inscreve nas formas do direito: a técnica contratual aparece como o ï -, meio de fazer cooperar os diversos atores, situados tanto no interior como: . t -.*.- 'z4 FORTIN, Y. (Ed.). La Contractualisation dans le Secteur Public des Pays lndustrialisés Depuis 1980, UHarmattan, Col. Logiques Juridiques, 1999. 2s V. Les Contrats entre Personnes Publiques, Actualité luridique-droit Administratif juillet-aoüt 2000: o Conselho de Estado admite a natureza autenticamente contratual de acordos entre pessoas públicas, tais como os "contratos de plano", sob a condiçáo de que eles contenham cláusulas suÍicientemente precisas, possuindo força obrigatória. 'u tr,,tESCHÉRIAKOFF, A. S. Ordre lntérieur AdministratiÍ et Contrat. Revue Françarse de Droit Administratif , n. 6,1997, p.1130etseq. jl I lì. de Dir. Público da Economia - RDPE, llelo Horizonte, ano 3, n. 12, p. 129-146, out./dez. 2005 -*r./1.j A Governança e o Direito 141 fora do Estado, e dotados de racionalidades divergentes; o contrato é o meio de formahzar essa cooperaçáo. Do fato dessa juridicizaçá,o, a lógica da governança náo somente náo fica estranha ao direito, mas ainda influi sobre a concepçáo do direito. lll O impacto da governança sobre o direito Se a governança náo é imune à influência do direito, ela parece se implantar nos mecanismos de prodr-rção do direito (cuja confìguraçáo formal continua imutável) e utiliza técnicasjurídicas de eficácia conÍirmada: não implicando uma separação real do poder de decisáo, a governança flui nos moldes dos procedimentos consllltivos - o acordo de vontades que ela procura passa ele mesmo pelo vetor contratual cÌássico. Logo, numa primeira abordagem, o surgimento dos procedimentos de gover- nança seria desprovido de impacto sobre a concepçáo tradicional do direito, com a qual tais procedimentos seriam, ao final de contas, compatír'eis: os modos políticos de elaboraçáo do direito mudam, mas as formas jttrídicas continuariam idênticas. No entanto, essa análise é simplista: por trás da governança se desenha uma visão diferente da normatividade jurídica, anunciadajá em 1982 por Paul Amselek, o qual invocava o duplo surgi- mento de uma '.direçáo juridicg autônoma" e de uma "direção jurídica náo autoritârra" das condutas. Tiata-se, entáo, de circunscrever olü$ar que esse "direito de governança" é destinado a ocupar. A) Um "outro direito" A persistência de formas jurídicas clássicas não deve iludir: ela esconde uma inflexão substancial na concepçáo do direito:.nqgo_cia-da em sua elaboraçáo, a norrnajurídica torna-se flexível em sua aplicação. Profundamente marcado pela unilateralidade, o direito apresent-a- se classicamente como um ato de "autoridade", pelo qual um auto4 investido de um poder de comando, impóe certas normas de conduta aos destinatários. Ora, o desenvolvimento das técnicas de governança mostra que esse "capital de autoridade" náo é mais suficiente para dotar o direito do poder normativo necessário: a força da regra de direito náo provém mais somente do fato de que ela se enuncia como uma ordem obrigatória, à qual todos devem se submeter; ela depende também , e talvez sobretudo, do consenso que a envolve. Esse consenso supõe que os destinatários participem de sua elaboraçáo: a concertaçáo preliminar, a participaçáo à determinaçã,o da norma torna-se a garantia de seu fundamento; o direito ïr R. de Dir. Público da Econor.nia - RDPE, llelo Horizonte, ano 3, n. 12, p. 129-146, out./dez. 2005 142 tarques Chevallier torna-se assim um direito negociado, que aparece como o fruto de uma deliberação coletiva. À "legitimidacle intrínseca", fundada sobre a repre- sentação do direito como encarnaçáo da razã.o, tende a suceder uma "legitimidade procedimental",2T ligada a seus modos de elaboraçáo. A passagem por diferentes lugares de diálogo e fóruns de discussão permitirá que se postule o caráter "racional" do conteírdo da norma. Logo, as práticas de governança não são soment.e um instrumento que permite qlle o responsável pela tomada de decisões enriqueça sllas fontes de informaçáo ou envolva outros atores nllm processo decisório que se tornou complexo. Tàis práticas obrigam aquele qne tomarâ a decisão a levar em consideração as preferências e as rejeições de seus parceiros (e a procurar as vias de um compromisso possível); a unilateralidade torna-se, portanto, apenas aparente e dissimula uma diuisao de fato do poder de decisão. Essa divisão torna-se explícita a partir do momento em qlÌe se constata o esforço de ir além da simples consulta, associando os atores sociais à concepção mesmo das decisões, no quadro de dispositivos de concertaçáo. Essa divisáo delineia-se mais sutilmente nas técnicas de contratualizaçáo que, ao mesmo tempo em que se desenvolvem, freqüentemente sob a cobertura de uma unilateralidade formalmente preservada, contribuem para a esvaziar de toda substância. Os progressos da governança, que ela seja sustentada por trm objetivo de eficácia ou por uma preocupação de democratrzaçâo, tendem assim a relativLZar a distinção tradicional entre ato unilateral e contrato:?s náo somente se passa sem se perceber de um ao outro, numa "escala cle continuidade"2e implicando de uma só vez a apariçáo de categorias híbriclas,3o mas também, e freqüentemente, o at.o unilateral é tão-somente o inr'ólucro cle rrm verdadeiro acordo negociado. O movimento cle contratrÌalização não se reduz assim à simples proliferação de contratos, mas subverte a própria forma r-rnilateral. A procura de um melhor _ggl]$tio entre Iei e t'antruto - noradamente em matéria de orgar'rzação profissional e cle relaçoes sociais - se inscreve na mesma trajetória de evoluçáo. Corn efeito, trala-se de dar aos atores econômicos 27 HABERMAS, ). Droit et Démocratie. Gallimard , 1992. 28AUBY,J. B. La BatailledeSan Romano: Réflexion sur les Evolutìons Recentesdu DroitAdministratiÍ,Acutalité Juridìque-Droit Administratif, nov.2001, p. 918; CAILLOSSE, J. Quel Droit Administratif Enseigner Aujourd'hui? Revue Administrative, n. 328, 2003, p. 343 et seq. et n.329,2003, p.454 et seq. 2e PONTIER, J. M. Le Droit Administratif et Ia Complexité. Actualite luridìque-droit Administratif, mars 2000, p. 187. 30 Como já pôde constatar MADIOT, Y. Aux Frontìères du Contrat et de tacte Administratif Unilateral. Recherche sur la Notion D'acte Mixte en Droit Public. LGDJ, 1971. R. de Dir. Público dir Econornia - RDPE, llelo Horizonte, ano 3, rr. 12, p. 129-146, out./de2.2005 A Governança e o Direito 143 e sociais uma abordagem nova sobre a produçáo do direito, colocando ',::.Ì:*Yï-'f ,}Í{?-t';á;l o acento sobre a negociação coletiva. A "governança social" implica que seja atribuído um peso maior às normas convencionais (produto da negociação entre parceiros sociais) que às normas estatais (resultado das leis e dos regulamentos).3r A governança afeta também o conteúdo da norma. Como o de- monstrou Kelsen, o próprio do direito é ser - diferentemente dos outros dispositivos normativos qlÌe, como ele, procuram agir sobre os com- portamentos - uma " ordem de coerçáo", otÌ seja, de reagïr por atos de coerçáo às condutas consideradas como indesejáveis e contrárias a suas prescriçóes. Implicando nm verdadeiro "poder de exigibilidade", a coerção se traduz pela facr-rldade de obter a execuçáo pelos destinatários independentemente de selÌ consentimento, e, se necessário, contra sua vontade. Ora, a lógica da governança implica, ao contrário, o refluxo desses aspectos de coerçáo e de unilateralidade tradicionalmente ligados ao direito: ela se fundou, já se viu, sobre Llma procura sistemática de consenso. A partir do momento em que a norma jurídica é o produto de negociações e em que seu conteúdo constitui o objeto de um acordo, ela perde toda dimensão coercitiva para os destinatários. Assim, as práticas de governança náo podem deixar de modifìcar a consistência mesmo das regras de direito: os comandos jurídicos tendem a abrir espaço a técnicas mais maleá- veis, decorrentes dessa "direçáo jurídica náo autoritária das condutas", da qual fala Amselek. Vê-se o desenvolvimento de "formas progressivas e graduadas de emergência do direito visando, pela ediçáo de regras maleáveis e flexíveis, a enquadrar a prática dos atores sociais, a orientar seu comportamento, a favorecer sua autodisciplina, antes de chegar ao enunciado de normas coercitivas".3z Mas, mesmo se a regra de direito se exprime formalmente no imperativo, esse imperativo torna-se a expressáo de um deuer ser construído coletiuamente. Correlativamente, as fionteiras do direito perdem sua precisáo: a especificidade da normajurídica em relaçáo a outros dispositivos normativos torna-se menos evidente. Náo somente o direito e o náo direito se combinam segundo urrla aliança variár'el, mas 3r O Conselho Constitucional relativizou essa evoluçáo ao fixar, em sua decisão de 13 de janeiro de 2000, que o legisladorsomente poderia afetar o conteúdo de acordos negociados entre os parceiros sociais por um motivo de interesse público suÍiciente. 32 AUTIN, J. L. Uusage de la Régulation en Droit Public. ln: MIAILLE, M. (Ed.). La Régulation entre Droit et Politique. UHarmattan, Col. Logiques Juridiques, 1995, p. 43 et seq. R. de Dir. Público da Economia - RDPE, IJelo Horizonte, ano 3,n. 12, p. 129-146, out./de2.2005 144 ncques Chevallier também se passa imperceptivelmente de um ao outro, em funçáo de uma "escala de juridicidade", cujos contornos são difìcilmente discerníveis.33 Se a lógica de governança afeta o direito,.falta medir seu alcance. B) Um "direito de governança"? Se a governança traz consigo Lrma concepçáo diferente do direito, isso não vincula sua esfera de aplicação concreta. Duas teses são a esse respeito concebíveis: ou o l'direito de governança" pode ser concebido como resposta a certos problemas específicos e situado à margem do direito clássico; ou ele pode ser concebido como ih-rstração de uma tendência forte de evolução do direito nas sociedades contemporâneas. A confrontação com as teses relativas ao " direito da regulaçã,0" é escla- recedora a esse respeito. Para alguns,3+ o direito "d!!i regulação constituiria uT__4_o_J.9_.1"1n95|9.gfftto, transcendendo a distinção clássica entre o direito privado e o direito público. Em se aplicando aos setores econômicos abertos à concorrência, o direito "da" regulação teria como funçáo manter nesses setores umFqgiliprio entre a proteçáo da livre concorrência e areahzação de outros objetivos.j Ale- disso, ele se apoiaria sobre a existência de autoridades novas, cümulando v31ios tipos de pode cuja utili zaçâo é i"6ôiãi"ãaã uo respeito de certat è:iggl.rjj ftrndamentais (princípio da imparciaIidade,princípioda,,u,,proporCiona- lidade). Outross5 inscrevem a emergência do direit o " de" regulação numa perspectiva mais ampla de evoluçáo do fenômeno jr"rrídico: com efeito, o direito de regulaçáo constituiria uma nova figura, um "outro corpo" do direito,léndo pouco a ver com o "direito regulamentar" clássico. Suce- dendo ao direito "abstrato, geral e desencaÌ-na.lo", "direito jupteriano"36 ôììF pvlìritt o t lwlncnenÁÂ^-ia pctarqì ^ Ài,-oitn "),," l^^Ã^ -^-:^ -L-.- -.-r^ !r urrrLUrruu^rLr4 LrL4Lqr, v urr LIL\J *: . t r.5Lrr(1l<l\J Jçr lét Ldl ítL- terizado "pot sua adaptação ao concreto, sua aprdil-ação dos indivíduos, sua adequa$g*"q-o_,,:9JjçJ.l3*das sociedades que ele pretende reger". No lugar de ser imposto do exterior, ele seria "a ação do grupo sobre ele mesmo", u o'ò.rçaà dei*undo lugar para mecanismos de cooperação. A problemâtrca da governança engloba e ultrapassa a da regulação: como a regulaçáo, ela supõe um modo mais maleável de ação (caracterízad,o pela flexibilidade), a adequação ao real, a reflexividade; mas ela também se 33 CAILLOSSE, J. Revue Administrative, p.3SZ. 34 FRISON-ROCHE, M. A.. op. cit. 3s TlMSlT, G., op. cit. 'u oSI F; KERCHoVE, M. Van de. De la Pyramide au Réseau? Pour une Théorie Dialectique du Droit. Facultés Universitaires Saint Louis, Col. Droit. 2002. R. de Dir. Público da Economia - RDPE, Belo Horiz-onre, ano 3, n. 12, p. 129-146, out./dez, 2005 A Governança e o Direito 145 concentra sobre as formas de exercício do poder necessárias para atingir esses objetivos, a saber, a associação dos diferentes atores à definição das escolhas coletivas. Assim, o "direito de regulação" será pertinente e efi.caz na mesma proporção em que ele for o produto da filosofia pluralista e interativa que está no centro da lógica de governança. Assim concebida, a governança constitui um modelo de exercício do poder de aplicação geral, transponível a todos os níveis e em todas as esferas de organrzaçáo social.3i Correlativamente, a lógica da governança tende a penetrar o conjunto do direito, tanto privado como público: a idéit de qúe convém associar os diferentes atoÌ'es à elaboração da norm a e ___plg_f.9lif q ç-gg:g$o à coerção é atualr-r-rente comlrmente admitida. Em todos os níveis, os produtores de direito são convidados a se conformar aos preceitos da governança. Isso r-ráo sigr-rifica, no en[anto, que se esteja em presença de uma configr.rraçáo jurídica radicalmen[e nova. De nm lado, esses preceitos já estavam mais ou menos presentes no direito clássico, como o demonstra a existência dos procedimentos consultivo e contratual. I Por outro lado, o "direito de governança" T. l.Tp.."T "t.r"r-les dadog*eti.u i"rídi.u, 19, atesta a qerp-_9lg?S3*.*-'9.1l_Qryql j* idt_.-e: tradicionais. O direito de ggyg111e!-ç_q!,ão {_e_ve-,_p9114q19,_sï percebido .-9j'-g únoUufU-Uf i!9-ç14$lgg.ja 1e3!ig-d1u gou.ì;;d'ãssocia, _ lggt$glqegelidudes iqfinita!_,_ dileito " gw"::--@!ïQ _lg,w_), _e;cryo, com -rt_.113.1.t1191 . aï"i,o ryg_*:tWà@,_ ;;*i'dl* E;õ*õ q"á"ãã .iâ ãf.tu o direito ffit.nt., ela 19Tp;.Ìã ;"!_g-t3pério_ 9_.-rl" racionalidade. Finalmente, a lógica da govei"á"çu poa. também c-*tri--* ! ,(,. l"t'" buir à consolidação dos princípiosjurídicos tradicionais: a "boa goverança" pregada pelas instituições financeiras internacionais para os países em desenvolvimento impli ca, náo o menosprezo de tais princípios, mas,-ï-Ì==-.eaioq-,ate_3S-4_o._gf:ryg!g'a:j"rigt:as, através da intensificaçáo das exi- h gências do Estado de direito. A bòa governança vem, assim, reforçar a l-y orto5loxia jurídica. I Portanto, e contrariamente às aparências, a governança náo é estranha ao mundo do direito: náo somente ela tende irresistivelmente a sejuridicrzar,por intermédio da procedimentalizaçáo e da contratualtzaçâo, 37 O relatório sobre as orientaçoes da política de saúde e de seguridade social, que figura como anexo da lei de financiamento da seguridade social publicada no Jornal Oficial francês de 24 de dezembro de 2002, fala de uma "nova governança" do sistema de saúde e de seguro-saúde; a reforma dos hospitais anunciada em junho de 2003 pretende, por sua parte, promover uma nova "governança dos hospitais" etc. 38 DEFARGES. P. Moreau, op. cit., p. 63. R. de Dir. Público da Economia - RDPE, llelo Horizonte, ano 3, n. 12, p. 129-146, out./de2.2005 146 la.qres Chevallier mas ainda ela influi sobre a concepçáo do direito, favorecendo a promoção de um direito negociado e maleâvel, nas antípodas do direito de comando tradicional. No entanto, o "direito de governança" não deve ser con- cebido como um modelo jurídico alternativo: a governança corre nos moldes do direito vigente - do qual ela modifica somente as condições de elaboração e o alcance normativo - e se apóia sobre a racionalidade jurídica clássica. Sob essas reservas e com esses limites, o conceito de governança se_presta a esclarecer algumas das transformações do direito nas sociedades' contemporâneas. fìnror-ução bibliográfìca deste texro, conforme a NBR 6023:2002da Associaçã;l I Iìrasileira de Normas Técnicas (ABNT): I | "nruuorLIER, Jacques. A governança e o direiro. Reuista de Direito Púbtìco d,a I llconomia - RDPE, Belo Horizonle, ano 3, n. 12, p. 129-146, out./dez.2005. I R. de Dir. Público da Economia - RDPE, IJelo Horizonte, ano 3, n. 12, p. 129-146, out./dez. 2005
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