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O sujeito do bullying Fonte: Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org.). Autoridade e violência. Porto Alegre, APPOA, 2011. 288p. Autor: Gerson Smiech Pinho - Psicanalista; Membro da APPOA; Membro da equipe do Centro Lydia Coriat; Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). A noção de bullying tem ganhado cada vez mais destaque nas páginas dos jornais e nas manchetes de notícias como referência para interpretar diversos acontecimentos. Um exemplo claro disso foi o assassinato em massa de doze adolescentes, cometido por um ex-aluno de uma escola do Realengo, no Rio de Janeiro, em março de 2011. Entre as suposições levantadas para a motivação de tal evento, foi apontado que o atirador teria sido vítima de bullying quando era estudante. Apesar de não ter sido considerada pela maioria das pessoas como uma hipótese suficiente para produção de tal ato, a associação com a prática do bullying foi bastante explorada quando esse evento foi veiculado pela mídia. O termo parece ter entrado de forma definitiva para o vocabulário cotidiano e passou a ser empregado de forma cada vez mais abrangente e habitual. Artistas, jogadores de futebol e modelos divulgam como foram vítimas de bullying no passado e como fizeram para superar a situação. A discussão sobre o tema é extensa e tem atravessado diferentes âmbitos, desde o espaço das escolas até o debate político. Em 2010, no Rio Grande do Sul, foi aprovada a lei que prevê políticas públicas contra o bullying, a partir da qual as escolas passam a ter que adotar medidas de prevenção e combate ao problema. Além disso, o Senado Federal recentemente aprovou o projeto que inclui o combate ao bullying na Lei de Diretrizes de Bases da Educação. Apesar da prática do bullying ser considerada tão antiga quanto a própria escola, o uso e a disseminação do termo para designá-la são bastante recentes. O emprego de um novo significante convoca a interrogar sobre os deslocamentos do discurso social que conduziram a seu surgimento. Que recorte do real ele recobre, fazendo com que se imponha em nossa cultura, de modo tão abrangente, e seja tão largamente veiculado pelos meios de comunicação? Que contribuições a psicanálise pode trazer para interpretar esse fenômeno? Neste texto, procuro trabalhar essas questões, bem como os elementos relacionados à constituição psíquica da criança e do adolescente que se associam ao bullying e propiciam sua produção. O termo bullying vem da língua inglesa e deriva da palavra bully, que, em sua forma verbal, significa "tiranizar, oprimir, amedrontar, intimidar, maltratar" [Nota de rodapé: MICHAELIS. Dicionário prático inglês-português, português- inglês. São Paulo: Melhoramentos, 1987. p 46]. Originalmente, tem sido empregado para designar um modo específico de violência entre pares no ambiente escolar. Difere de outras formas de agressão por fixar um sujeito ou grupo como agressor e outro como vítima, estabelecendo lugares que se repetem e se perpetuam com o passar do tempo. Contudo, por ter se tornado uma palavra de uso cotidiano, não é raro que seja empregada de forma mais abrangente no senso comum, designando modos de agressão assistemáticos e de menores proporções ou mesmo situações fora do espaço escolar. Com isso, o leque de acontecimentos que são significados e interpretados tomando esse significante como referência se torna cada vez mais extenso. As primeiras pesquisas que tomaram o bullying como objeto de estudo datam da década de 70. Porém, o começo da mobilização coletiva em torno do assunto se deu no ano de 1982, na Noruega, quando o suicídio de três jovens foi a ele relacionado. Esse evento, que marca o início da difusão do tema, não é sem importância. Ao longo das três últimas décadas, ao mesmo tempo em que observamos os crescentes estudos e pesquisas em torno da questão, assistimos também à ocorrência de uma série de situações trágicas no ambiente escolar, as quais, ao serem divulgadas, são rapidamente assimiladas à prática do bullying. Entre as mais conhecidas, estão a do Instituto Columbine nos Estados Unidos, em 1999, em que 13 pessoas foram mortas por dois estudantes que depois se suicidaram; o massacre na Universidade de Virgínia Tech, em 2007, também nos Estados Unidos, em que um estudante matou 32 pessoas, ferindo outras 29 e cometendo suicídio logo a seguir; e, no Brasil, a matança em uma Escola no Rio de Janeiro, já mencionada no início deste texto. Ao serem noticiados, todos esses eventos foram, em alguma medida, relacionados ao bullying. Quais caminhos associativos são percorridos para produzir tal ligação? Agressividade e constituição do eu Para dar prosseguimento a essa reflexão e pensar como se organizam os vetores que propiciam o bullying, é fundamental interrogar o lugar da agressividade na organização do psiquismo, já que o fenômeno em questão implica o uso sistemático da violência dirigida aos pares. Desde a psicanálise, principalmente a partir das contribuições de Jacques Lacan, sabemos que as manifestações agressivas encontram uma ligação central com a constituição do eu e sua relação ao semelhante. O eu não é uma instância que esteja dada desde o começo da existência. Sua constituição acontece no período que Lacan [Nota de rodapé: 1949. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.] denominou de estádio do espelho, quando surge a matriz identificatória que lhe dá origem e que possibilitará todas as identificações posteriores, que irão compor sua estrutura. O ponto de partida dessa ideia é um fato recorrente na observação de bebês entre seis e dezoito meses de idade: o júbilo expresso no encontro com a própria imagem refletida no espelho, manifestação do reconhecimento de um eu diferenciado em relação ao meio circundante. Esse fenômeno é resultante de uma primeira identificação com a imagem que o Outro primordial oferece ao sujeito, permitindo a este antecipar uma unidade de si numa época em que a imaturidade e a ineficácia motora são ainda muito significativas. É com base nessa imagem, que o Outro lhe apresenta, que o pequeno filhote humano irá fabricar a estrutura originária do seu eu. Outro fenômeno ligado a esse tempo de estruturação é o transitivismo. Segundo Jean Bergès e Gabriel Balbo, [Nota de rodapé: Jogo de posições da mãe e da criança: ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC editora, 2002.] Leonardo Lima Realce este foi descrito inicialmente por Wallon como típico do desenvolvimento entre dois e três anos e implica a dificuldade da criança em distinguir os estados e atos percebidos entre ela e o outro. Como consequência, observamos que o sujeito reage confundindo sua própria experiência com aquilo que observa em seu semelhante. Por exemplo, quando uma pequena criança cai e é seu companheiro quem chora. Ou, ainda, quando uma criança bate e depois diz que apanhou. Essa indiferenciação, que vai da ação à reação entre os pares, em que o eu toma para si aquilo que o outro lhe apresenta, é testemunho do suporte que a imago do semelhante representa para a constituição do eu. Mas, para que não percamos de vista o tema que nos interessa: que lugar têm as reações agressivas entre pares nesse contexto? Como podemos interpretar a tensa disputa por objetos, tão comum de ser observada em crianças pequenas? Entre tapas e puxões, elas arrancam dos companheiros os mesmos brinquedos diante dos quais eram absolutamente indiferentes no instante anterior. Por que motivo aquilo que está nas mãos do outro adquire tanto relevo e passa a ser tão fortemente cobiçado? Se, nesse momento precoce, a imago do semelhante tem um efeito determinante naquilo que se processa no eu, todo objeto investido pelo outro adquire potencialmente o estatuto de objeto de desejo para o sujeito. A partir daí, nascem as manifestações de rivalidade, ciúme e agressividade entre os pares, observáveisde modo tão claro e direto nesse período. Surge a tríade que enlaça o eu, o outro e o objeto em uma permanente tensão agressiva. Partindo desses fatos, Lacan [Nota de rodapé: 1948. A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.] afirma que a natureza da agressividade no homem está relacionada com o formalismo de seu eu e de seus objetos. Segundo ele, a agressividade é uma tendência correlativa à identificação narcísica, que marca o eu desde sua origem. Em um de seus primeiros escritos, sobre a família, Lacan [Nota de rodapé: A família. Lisboa: Assírio & Alvim, 1981.] aborda esse mesmo tema a partir da noção de complexo de intrusão [Nota de rodapé: Com o termo complexo, Lacan descreve um conjunto de reações de caráter fixo, relacionadas ao Instinto e dependentes da cultura, cujo elemento fundamental é uma representação inconsciente à qual dá o nome de Imago. Dentre os complexos situados na base da família humana, o complexo de intrusão sucede ao complexo do desmame e precede o complexo de Édipo]. Este complexo diz respeito à experiência da descoberta dos irmãos, ou seja, quando o sujeito reconhece que um ou vários semelhantes participam com ele da relação doméstica. Esta descoberta varia em cada cultura e em cada família, dependendo do modo como os nascimentos estão situados e do lugar que um sujeito venha a ocupar na sucessão dos mesmos. O ciúme é o sentimento que se vincula de forma mais direta a essa situação. Para falar do ciúme infantil, Lacan (1981) recorre a uma experiência observável em crianças entre seis meses e dois anos, quando confrontadas com um semelhante cuja diferença de idade não ultrapasse dois meses e meio. Entre as reações que se produzem, aparecem provocações e réplicas que nitidamente indicam o reconhecimento do outro como um rival. A necessidade de as idades serem muito próximas sugere que a imago do semelhante tem uma estrutura em que a similaridade entre os sujeitos é um pré-requisito fundamental e está ligada à estrutura do corpo próprio por semelhança objetiva. Através da imago do outro, o sujeito encontra a imagem de si próprio e é por esta via que as reações de rivalidade irão se produzir. Na situação fraternal primitiva, a agressividade aparece como secundária a essa identificação. De resto, a doutrina psicanalítica, caracterizando como sadomasoquista a tendência típica da libido neste mesmo estádio, sublinha certamente que a agressividade domina então a economia afetiva, mas também que ela é sempre conjuntamente sofrida e agida, quer dizer sustentada por uma identificação ao outro, objeto da violência (1981, p. 41). No drama do ciúme primordial, o eu e o outro se constituem simultaneamente, ao mesmo tempo em que um objeto emerge enquanto elemento de disputa. A partir daí, duas alternativas se colocam no horizonte: ou o sujeito se agarra ao objeto e à destruição do outro; ou o objeto passa a ser socializado através de um acordo ou pacto que só pode ser viabilizado pela introdução da palavra e da dimensão simbólica. A rivalidade e a concorrência só têm um encaminhamento possível a partir da introdução de um terceiro, de uma alteridade que funcione como ordenadora das relações, o que viabiliza que os parceiros não necessitem se destruir mutuamente para conviver. Bergès e Balbo [Nota de rodapé: A criança e a psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.] situam a diferença entre o aniquilamento do outro e a rivalidade atravessada pelo simbólico. Nesta última, a figura do terceiro opera de modo a situar diferença e viabilizar o laço social. Esses autores trabalham a questão a partir de casos de gemelaridade em que haveria uma total ausência de diferenciação entre os pares, imersos em uma identidade absoluta decorrente do fracasso da função simbólica em produzir corte. A esse respeito, afirmam que posso permitir-me ser rival de meu outro, pois existe uma diferença, e essa diferença é até mesmo a única aposta de nossa rivalidade. Porém, quando não há nenhuma diferença, como no gêmeo, a rivalidade só pode ser mortal (1997, p. 138). Ainda, segundo esses autores, é a função simbólica que viabiliza a saída dessa posição aniquilante e aniquiladora, já que "o significante, ao ser diferença absoluta, questiona a gemelaridade" (1997, p. 135). A partir disso, podemos diferenciar duas posições estruturais possíveis na organização da tríade eu, outro e objeto. A escola e o bullying No caminho trilhado até aqui, percorremos o tema da constituição do eu e da agressividade entre pares. Observamos como a relação fraterna é normalmente atravessada pela agressividade e pelo ciúme, e de como a função de um terceiro é fundamental para que as reações agressivas possam encontrar um encaminhamento que garanta o laço com o outro, em oposição à captura pela violência e pelo aniquilamento. Passemos, agora, a abordar de modo mais direto o contexto escolar, o qual também implica o convívio sistemático entre pares - "irmãos", em um sentido figurado. Por esse motivo, a escola é um território privilegiado para a entrada em cena dos investimentos amorosos e identificatórios e também das reações agressivas e de rivalidade em relação ao semelhante, que abordamos anteriormente. A agressividade, a rivalidade e a competição estarão sempre presentes no cotidiano entre alunos. São normais e constituintes do laço fraterno que o convívio diário impõe. Brigas, conflitos e situações de tensão estarão inevitavelmente presentes no espaço da escola e necessitam encontrar a sustentação necessária para que possam ser elaborados. Por esse motivo, é fundamental que a instituição escolar possa situar uma instância de alteridade que permita que as manifestações de agressividade entre os pares possam ser atravessadas pelo campo da palavra, garantindo dessa forma a preservação do laço social. O fenômeno do bullying é o exato avesso dessa condição. Sua estrutura organiza lugares em que um elemento faz uso da violência para se colocar em uma posição de poder que usurpa o lugar da alteridade que poderia regular o laço entre os pares. Retira de cena a castração, ao propor a positivação do falo no despotismo e no abuso dirigido ao semelhante. Trata-se de uma formação sintomática na qual o eu e o outro são aprisionados em uma tensão agressiva, aniquiladora e sem saída, já que a função da palavra é abolida da cena. É efeito do fracasso da função simbólica para movimentar as posições organizadas dessa forma e situar pontos de referência que viabilizem algum tipo de elaboração pela via do discurso. O bullying representa uma montagem perversa, que reduz o outro à condição de objeto de gozo, a ser desprezado e aniquilado, em um ciclo recorrente, que se perpetua ao longo do tempo. A estrutura sadomasoquista que aí se constrói não tem resolução possível, pela falta de um elemento terceiro que faça a palavra circular e colocar fim ao circuito assim construído. O quadro perverso do bullying congela os personagens em um cenário sem narrativa, em que a palavra perde a eficácia e o valor. A fixidez desde a qual o outro é situado como objeto de violência no bullying pode ser melhor esclarecida a partir de alguns elementos trabalhados por Sigmund Freud [Nota de rodapé: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago. FREUD, S. (1925) A negativa. In: 1980. v. XIX.], em seu texto sobre A negativa. Esse artigo aborda o tema da constituição do eu a partir da distinção de duas formas de julgamento - o juízo de atribuição, que permite definir a posse ou não de um determinado atributo, e o juízo de existência, que constata ou contesta a existência de uma representação na realidade. Para abordar o tema em questão, interessa tomar a primeira delas. Segundo Freud, o surgimento do juízo de atribuição está ligado a uma primeira delimitação de um fora e de um dentro no psiquismo, a partir de um eu-prazer. Tudo aquiloque é considerado bom é introjetado, colocado para dentro e considerado como pertencente ao eu. De modo contrário, tudo o que se julga ruim é expelido, cuspido para fora, considerado estranho e exterior ao eu. Nessa polarização, movida exclusivamente pelo princípio do prazer, se constrói a distinção entre os atributos pertencentes ao eu e aqueles considerados como estranhos a ele. O bullying organiza uma lógica similar à descrita por Freud nesse escrito. A partir dela, o eu situa o outro como depositário dos aspectos desprazerosos não reconhecidos como pertencentes a si próprio, o que permite manter distância da castração, com a manutenção da coesão e investimento narcísicos. O outro funciona como uma réplica ou duplo, portador daquilo que o sujeito necessita manter afastado e eliminar. Por essa via, emergem a agressão e a violência dirigidas ao semelhante. Trata-se de uma tentativa de afirmação narcísica diante da pouca consistência do registro simbólico. Essa estrutura explica o caráter persecutório que o parceiro imaginário adquire no bullying, em uma permanente oposição em relação ao eu, já que carrega os atributos deste último, que não são reconhecidos como pertencentes a ele. Outra questão importante diz respeito à época da vida em que o bullying surge com maior frequência. Segundo Abreu [ABREU, A. M. B. de. Bullying: a violência que permeia a escola. Monografia de Especialização em Psicopedagogia. Facisa, Xaxim, 2009.], a maior incidência acontece entre alunos do 6º ao 9º ano, com agressores predominantemente na faixa etária entre 13 e 14 anos e sujeitos agredidos com 11 anos. É interessante observar que as idades referidas coincidem com o início da puberdade e da adolescência. Nessa época, o sujeito se depara com uma série de modificações em seu corpo, bem como com mudanças no modo como é interpelado desde o Outro. Por esse motivo, os processos de identificação da primeira infância entram novamente em jogo - são repetidos, porém agora em uma nova posição. O corpo do adolescente excede a imagem de seu eu. As identificações ligadas à infância já não funcionam como "roupagem" possível para o sujeito. Isso faz com que a rede identificatória construída anteriormente precise se reposicionar, com o trabalho de apropriação de uma posição sexuada e, ao mesmo tempo, na constituição dos outros como objetos possíveis de investimento libidinal. Se, como mencionamos acima, o bullying pode ser compreendido como um fenômeno de afirmação narcísica, torna-se possível entender o motivo pelo qual vai ter maior prevalência nesse período, em que o sujeito precisa colocar em questão todo o processo identificatório que estabeleceu no estádio do espelho e no complexo de Édipo. O bullying no contexto cultural contemporâneo Como foi apontado no início deste trabalho, o bullying tem ganho cada vez mais extensão e amplitude no contexto cultural atual. Após termos percorrido as questões que ligam esse fenômeno à constituição psíquica da criança e do adolescente, passaremos a interrogar os elementos da cultura contemporânea que entram em jogo em sua produção. O individualismo tem sido apontado como característica fundamental do contexto cultural contemporâneo por diversos autores. Isso significa que a noção de indivíduo ocupa o ponto de referência central desde o qual o sujeito atual organiza e orienta sua vida. É o valor máximo da sociedade, em detrimento de outros, ligados às tradições e às referências transmitidas pelas gerações anteriores. Se, como mencionamos anteriormente, o bullying é efeito da ancoragem do sujeito no narcisismo, com a consequente retirada de cena das referências simbólicas, uma cultura individualista como a nossa é um terreno extremamente fértil para sua produção e proliferação. Para situarmos de modo mais preciso essa questão, vejamos como alguns autores concebem o surgimento do individualismo e seu estabelecimento. Segundo Stuart Hall [Nota de rodapé: Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998], é com a modernidade que nasce a concepção do "sujeito individual", no centro de uma nova e decisiva forma de individualismo. Para esse autor, nos tempos pré-modernos, a individualidade era vivida e definida de forma diferente. Não estava sujeita a mudanças fundamentais, pois se apoiava de forma estável nas tradições e nas estruturas divinamente estabelecidas. A posição social de alguém predominava sobre qualquer sentimento de individualidade. Foram as transformações ligadas à modernidade que permitiram o nascimento do "indivíduo soberano", entre o Humanismo renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII (Hall, 1998). Nessa mesma direção, Louis Dumont [Nota de rodapé: Homo hierarchicus. São Paulo, EDUSP, 1992.] afirma que, enquanto nas sociedades tradicionais o valor maior era a sociedade como um todo, com o advento da modernidade, a ideia de "indivíduo" humano adquiriu um caráter quase sagrado e absoluto. Suas exigências encontram-se acima de qualquer coisa e seus direitos só são limitados pelos direitos idênticos dos outros indivíduos. A sociedade passou a ser concebida apenas como um meio, no qual a vida individual é o fim maior. Nas sociedades modernas, o ser humano é o "homem elementar, indivisível, sob sua forma de ser biológico e ao mesmo tempo de sujeito pensante” (Dumont, 1992, p. 57). Na medida em que cada homem particular representa a humanidade inteira, ele passa a ser a medida de todas as coisas. É nessa representação que encontramos a origem da necessidade de considerar todos os homens livres e iguais. A concepção de sujeito moderno, calcada no conceito de um indivíduo autônomo e racional, tem sua representação paradigmática no sujeito cartesiano, fundado na ideia de indivíduo e em sua capacidade para raciocinar e pensar. Segundo essa concepção, o "eu pensante" e indivisível constitui o cerne do espírito do homem. É com essa roupagem que nasce o indivíduo moderno: o sujeito capaz de raciocínio e consciência, coeso, inteiro, "indivisível" e autônomo. Se, nos tempos pré-modernos, a tradição e os costumes guiavam o sujeito ao longo de sua vida, com a modernidade o indivíduo ganha o lugar central. Mas, que consequências têm a colocação em primeiro plano do indivíduo na composição da subjetividade contemporânea? O sujeito atual conta muito pouco com as referências da tradição para orientar sua vida. Se outrora essas referências permitiam situar e estabelecer um lugar no tecido social, hoje já não têm mais o peso e o relevo necessários para tanto. A possibilidade de se fazer representar na cultura passou a ser viável através daquilo que o sujeito vai produzindo e construindo passo a passo, em nome próprio, ao longo de sua existência. Contardo Calligaris [Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Ática, 1996.] afirma que existem dois diferentes caminhos na constituição de um sujeito: a identificação aos valores, obrigações e tradições que recebe de sua cultura; e o esforço por coincidir com a imagem que poderia satisfazer aos outros. Segundo ele, o segundo caminho equivale àquilo que a psicanálise chama de "narcisismo". Dos dois caminhos constitutivos da subjetividade, qual prevalece hoje? Para a modernidade, desde o fim do século XVIII o indivíduo em sua autonomia vale mais do que a comunidade que o abriga, É provável, então, que ele recuse o patrimônio herdado e que, para ser alguém, lhe reste correr atrás de imagens. Todo o mundo, aliás, concordará que, em nossa época, diluem-se os valores e as referências tradicionais, e talvez, momentaneamente, prevaleça a caça às imagens agradáveis (aos outros) (Calligaris, 1996, p. 51). Portanto, o valor supremo atribuído ao indivíduo, na modernidade, confere à nossa cultura um caráter "narcísico". Nessecontexto, a sociedade atual passou a ofertar uma infinita variedade de imagens às quais o sujeito pode aderir para organizar uma suplência mínima para a representação de si, diante da falta de um lugar transmitido pela tradição. Nessa situação, o sujeito precisa garantir alguma consistência para a imagem à qual se encontra aderido e que dá ilusão de valor ao eu. Uma das formas de fazer isso é situar no semelhante todos traços que não se coadunam com tal imagem, transformando o outro em uma espécie de réplica negativa do eu. Ou seja, para dizer que eu sou é necessário afirmar e confirmar que o outro não é. Essa lógica, que captura e aprisiona o sujeito no campo imaginário e narcísico, é a mesma que organiza a estrutura do bullying. Neste, a violência e a agressão sistematicamente dirigidas ao outro têm como finalidade a construção desse espelho do sujeito, ao avesso. A imagem do semelhante é depositária daquilo que o sujeito precisa manter afastado de si para manter a unidade e a coesão narcísicas. Ao definirmos o bullying a partir da necessidade de afirmação narcísica pelo sujeito, torna-se possível dizer que o fenômeno em questão é efeito da condição individualista que o sujeito moderno experimenta. Trata-se de um sintoma social relativo ao contexto da cultura atual, já que é efeito do discurso que propõe o indivíduo como bem supremo. Aqui se coloca um aparente paradoxo. Vivemos era uma cultura que combate o bullying de modo explícito e permanente. Ao mesmo tempo, cultiva os elementos necessários para a produção desse fenômeno que afirma repudiar e, com isso, permite e sustenta sua existência. Retomemos, agora, as questões que vínhamos trabalhando acerca do contexto cultural contemporâneo e vejamos que outras interrogações podemos situar. Desde a psicanálise, um elemento fundamental que tem sido apontado em relação à cultura atual é o "declínio do nome-do-pai". A noção de "nome-do-pai" foi proposta por Lacan (1998), inicialmente, por ocasião de seu trabalho sobre as psicoses. Esse conceito revela a íntima relação da função paterna com o registro do simbólico e com o significante: "a atribuição da procriação ao pai só pode ser efeito de um significante puro, de um reconhecimento, não do pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como o Nome-do-Pa i" (1998, p. 562). O declínio do pai simbólico está diretamente relacionado com a ideia de Calligaris (1996), anteriormente abordada, de que a cultura atual é uma cultura "narcísica". Se, hoje, a identificação aos valores, obrigações e tradições da cultura está colocada em segundo plano, isso é devido ao declínio do nome-do-pai, já que é essa função que permite inscrever o sujeito como elo intermediário na cadeia das gerações, bem como é o que possibilita transmitir o recalcamento e a castração simbólica [CHEMAMA, R. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre. Artes Médicas, 1995]. Essa questão se associa ao modo como diversos outros autores caracterizam o contexto cultural contemporâneo. Por exemplo, Hannah Arendt [Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997.] refere que a crise no mundo contemporâneo é traduzida pelo "esfacelamento da tradição". Sem a tradição que "seleciona, nomeia, transmite e preserva, indica onde estão os tesouros e qual o seu valor (Arendt, 1997, p. 31), perdemos a dimensão da continuidade consciente no tempo: nem passado nem futuro parecem existir, apenas a eterna mudança do mundo, o ciclo biológico das criaturas que nele vivem. Na mesma direção, Walter Benjamin [Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.] fala do aparecimento de "uma nova forma de miséria" através do "empobrecimento da experiência", no que diz respeito à possibilidade de transmissão de uma geração a outra. A partir dessa constatação, esse autor interroga o valor que adquire o nosso patrimônio cultural, na medida em que a experiência não mais o vincula a nós. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do 'atual' (Benjamin, 1985, p. 119). Assim, o caráter "narcísico" da cultura, o "declínio da função paterna", o "esfacelamento da tradição" e o "empobrecimento da experiência" são questões que se encontram entrelaçadas no tecido que constitui o contexto cultural atual e que podem ser referidas como associadas ao bullying, na medida em que este é uma formação sintomática que implica a abolição da alteridade e da autoridade, em busca de um gozo narcisista diante da violência dirigida ao outro. O debate a respeito do tema é, sem dúvida, importante. Porém, a questão é complexa e merece ser tomada com todo o cuidado. Um dos riscos importantes das políticas contra o bullying é transformar toda a manifestação agressiva que aconteça no âmbito da escola em signo desse fenômeno. A consequência disso seria a repressão maciça das mesmas e a impossibilidade de que elas possam ser experimentadas e simbolizadas desde os referentes éticos de nossa cultura. Uma das funções genuínas da educação é permitir essa simbolização, dando andamento à transmissão dos valores de uma geração a outra. Desde uma posição puramente repressora, o risco de retorno da agressividade em forma de violência pode efetivamente ganhar proporções maiores. Se a instituição escolar é um espaço privilegiado de transmissão dos valores das gerações anteriores às atuais, o bullying é sintoma da fragilidade desse processo. Porém, na medida em que o mesmo pode ser lido e interpretado enquanto produção da cultura atual, torna-se possível retomar essa função de transmissão. Referências ABREU, A. M. B. de. Bullying: a violência que permeia a escola. Monografia de Especialização em Psicopedagogia. Facisa, Xaxim, 2009. ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. BERGÈS, J.; BALBO, G. A criança e a psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. BERGÈS, J.; BALBO, G. Jogo de posições da mãe e da criança: ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC editora, 2002. CALLIGARIS, C. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Ática, 1996. CHEMAMA, R. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre. Artes Médicas, 1995. DUMONT, L. Homo hierarchicus. São Paulo, EDUSP, 1992. Obras completas. Rio de Janeiro, Imago FREUD, S. (1925) A negativa. In: 1980. v. XIX. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. LACAN, J. (1948) A agressividade em psicanálise. In:Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. LACAN, J. (1949) O estádio do espelho como formador da função do eu. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. LACAN, J. (1959) De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: __ Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LACAN, J. A família. Lisboa: Assírio & Alvim, 1981. MICHAELIS. Dicionário prático inglês-português, português-inglês. São Paulo: Cia Melhoramentos de São Paulo, 1987.
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